Resolvo
reeditar Rosinha em capítulos. Não desejei postar toda a obra de uma só vez,
mas em partes, embora completa. Rosinha é muito especial para mim, pois me foi
projetada em arquétipo há muitos anos, bem antes de pensar escrevê-la. E passa
mais uma vez por revisão.
INTRODUÇÃO
“Essa obra não é mediúnica. Assim não há e
nem haverá qualquer assinatura de espíritos ou entidades invocando o ditado.
Admito, no entanto, o exercício da intuição
ou da inserção da alma sobre meus pensamentos, e vez por outra faço um jogo com
a alma: ela mostra-me claramente algumas cenas e eu as recubro com palavras,
com minha pobre semântica. Dou um rumo bem definido àquelas projeções deixando
fluir as idéias passo a passo.
Nunca me agrada o que escrevo e a custo trago
a público.
Rosinha não escapou dessa hesitação. Ficou
guardada muito tempo em minhas gavetas e estantes, sob a forma compacta de um
livreto. A esqueci de fato, principalmente porque a dramaticidade dos
personagens sempre me tocou profundamente e não gosto de abordar o sofrimento
dessa maneira e nem recomendar. Algo difícil explicar: amá-la e negá-la.
Mas não houve jeito, o mesmo impulso que me
leva a escrever me levou a relembrar Rosinha e prometi mudar alguns argumentos
da história, abrandando o sofrimento dela, trazendo-lhe um final feliz. E de
novo esbarrei em conceituações mentais-emocionais: que é um final feliz? Assim,
pouco mudei no desenho da obra e nem um pouco de seu final.
Como adendo, desejo chamar a atenção aos fatos
aparentemente irreais que envolvem e circundam Rosinha, aos seus passos e
situações julgadas inverossímeis, sabendo que a inteligência sensível do leitor
entenderá que tratamos de um personagem especial, de alma avançada num corpo
infantil. Sua excepcionalidade e memória são inatas à própria alma, não
importando a pouca experiência da tenra e delicada personalidade que assim se
manifesta.
Mesmo à Calunga, noutro plano e contexto,
podemos atribuir-lhe certa capacidade e instantes de excepcionalidade. Os
demais personagens foram trabalhados no sentido de não obstaculizar a
consecução dos fatos, nos momentos em que não deveriam interferir. Ou seja,
pode-se julgar estranho Rosinha tão cuidada e vigiada em casa, ficar mais de
uma hora sem ser vista ou ouvida e isso, sem dúvida, não escapa às reflexões do
leitor atento. Assim, o tempo no seu andamento normal passaria a ser sentido em
parâmetros diferentes, permitindo a Rosinha realizar o que precisava ser
realizado.
Haverá mesmo mensagem importante ou pelo
menos aproveitável na obra? Não sei, sinceramente. O que eu entendo é que quando
nos propomos a escrever nos apropriando da técnica da linguagem e comunicação,
temos o dever de tentar trazer a qualquer público uma mensagem construtiva.
Pelo menos assim eu tentei".
Rayom Ra.
CAPÍTULO I
ENCONTRO
INSÓLITO
Sansão e Hércules, desesperados, latiam no
pomar. Pela direção dos latidos era de supor que estariam a um canto do
aprazível lugar próximo ao muro. Luiza, uma negra de meia idade, absorta nos
rápidos e precisos movimentos das agulhas longas e prateadas, tricotava
qualquer coisa numa cadeira de balanço em treliça. A lã vermelha subindo
enrabichada do rolo no chão dispunha-se sem nós em diversas camadas sobre suas
pernas.
A
grande, confortável e ricamente mobiliada sala de estar, submergia no mesmo
silencioso marasmo de toda a mansão. Unicamente o tic-tac do carrilhão suíço
entalhado em ouro, encostado a uma das paredes, ali, nesse momento, quebrava a
vazia atmosfera. Contudo, o ritmo contínuo e repetitivo de seus mecanismos vinha
trazer-lhe a quase indução ao sono. Luiza resistia. Assim, qualquer outro ruído
mais significativo produzido dentro da mansão ou fora dela punha-a mais
desperta a aguçar-lhe os sentidos.
A maneira matronal e a preocupação que se
assentava em seus pensamentos em estar vigilante, produziram-lhe à personalidade
relevos definitivos nos dez anos em que aqui trabalhava como governanta e,
principalmente, desde há oito anos, ao ser incumbida de também cuidar da
criança. Incomodada com os dobbermans ela gritou:
-
Rosinha, chame o Pedro, mande-o ver porque os cães estão latindo!
Os
passos da menina estrondaram pelo largo corredor e ela passou zunindo diante do
pórtico, em cuja dependência da sala Luiza se encontrava.
- Não corra tanto, menina, você pode cair –
repreendeu-a.
Confiante em suas pernas ela continuou no
mesmo embalo. Logo atingiu o jardim de inverno, cruzando-o e descendo os três
degraus do róseo mármore, pisando o pátio do fundo, ganhando o trecho que a
separava da esquina da casa, e, já sob palmeiras, começou a chamar:
-
Pedro! Pedro! Pedro!
O jardineiro não respondia e Rosinha, ainda
correndo, seguia pela rua principal internante ao bosque.
Cansada de chamar e não obtendo resposta, ela
parou e resolveu tomar outra direção, deixando a rua principal, ingressando por
via secundária em terra firme, assinalada e margeada por pedras pintadas em
branco. Altas em ambos os lados, viçosas e em tamanhos aproximadamente iguais,
dobravam-se verdes folhagens de samambaias, que vinham terminar, como a via,
alguns metros depois, junto à margem de um lago. No centro do lago havia um
chafariz, constituído de enorme cálice circundado por três estátuas de
divindades gregas, de cujos cântaros tombados sobre os ombros jorravam filetes
de água. O cálice, entretanto, fazia projetar contínuos e múltiplos esguichos
ao seu redor que turvavam a superfície da água. O lago, inserido entre
espécimes de árvores estéreis, ensombrado por nódoas diversas, vinha evocar a
imperfeita, mas feliz lembrança, de um oásis numa propriedade belissimamente
bem conservada.
Os persistentes latidos despertaram mais
fortemente a curiosidade infantil, sobrelevando-lhe a atenção acima da
obrigação imediata. Em casos assim, a proibição era explícita: somente Pedro, a
quem os cães conheciam muito bem, poderia investigar a origem de um alarme – ou
na ausência dele a própria Luiza! E Rosinha, esquecendo-se propositalmente da ordem,
deu meia volta e contornou a margem do lago, enfiando-se por caminho cercado
por pendentes folhas de tinhorões.
Sempre correndo, ela de novo atingiu os meandros
da rua principal, deixando-a por outra via, tão bela quanto as anteriores, ao
longo da qual porções de cedrinho principiavam formação compactada. Ao cabo de
instantes, já um pouco ofegante, divisava ao longe o portão que permitia
ingresso ao pomar.
Na mesma incontida ânsia ela prosseguiu,
negando-se completamente a todas as recomendações paternais e de sua ama,
sentindo vibrar no peito incompreensível e desconhecida emoção. Já não era mais
a curiosidade infantil que a movia, mas um estímulo de argúcia. Seu vestidinho
azul pregueado ia balouçando na medida de seus acelerados passos, como um
estandarte que prenuncia a metamorfose de uma vida que se adestra na inocência
e recolhimento, para outro universo maior e desconhecido.
Ali chegando elevou a mão e apoiou-a sobre a
tranca, virando-se instintivamente, circunvagando o olhar nervosamente pelos
arredores para ter a certeza de que ninguém a surpreenderia. Um calor assomou-lhe
à face branca e pálida, colorindo-a de um rubor recalcado de culpa ou vergonha.
Como nada visse ou pressentisse, pressionou a tranca para cima, empurrando
levemente o portão que rangeu. Ela, então, se enfiou pelo estreito vão, o menor
possível, ultrapassando-o com todo o cuidado e fez o portão retornar à posição
anterior, movendo a tranca para baixo.
A fúria dos cães continuava; um pensamento
súbito assaltou-a e seu inexperiente coração bateu descompassadamente. Um
tremor tomou-a da cabeça aos pés. E se fosse um bicho mau? Ou um ladrão? Sendo
menina frágil nada poderia fazer para se defender, e o bicho podia comê-la, ou
o ladrão levá-la! Sabe-Tudo vivia alertando-a e aconselhando-a acerca dos
perigos. Era sempre preferível evitá-los a combatê-los. Mas ele não dissera
também, certa vez, que se conhecendo a forma do perigo, e os meios de
contorná-lo, o medo decresce e assume posição de estratégia e prudência? E como
poderia saber e experimentar se não visse do que se tratava? Se encontrasse
Pedro e assustada ficasse a espera do resultado, jamais experimentaria a emoção
de haver conhecido por conta própria. Não, dessa vez não! Além de tudo, sentia-se
empurrada, impelida a ver o que acontecia!
Levantou a fronte aguçando a audição e fez
balançar a negra e pequena trança que morria pouco abaixo da nuca, adornada na
extremidade superior por estreito laço azul. A direção dos latidos, sem dúvida,
indicava a proximidade do muro e reiniciou a correr, parando de vez em quando,
roçando a mão numa casca de árvore ou liso tronco, hesitante ainda.
A beleza significativa do pomar e o cuidado
que a ele dispensavam tornavam-no primoroso recanto. As árvores frutíferas,
carregadas e coloridas, encarreiravam-se por qualidades em áreas e locais
próprios. Havia laranjais, pés de tangerinas, limoeiros, jabuticabeiras,
caramanchões de maracujás, macieiras, pereiras! Em espaços regulares, ao longo
de todo o terreno, espalhavam-se parreirais carregados de muitos cachos de
variadas uvas, além de ameixeiras, figueiras e outras dádivas da mãe natureza! Ao fundo, via-se um capinzal semi trabalhado,
deixando a antever que novas mudas de plantas substituiriam a inóspita
vegetação, tão logo as trouxessem e as plantassem! Os caminhos por entre
árvores, ou sob a proteção enramada e emaranhada das trepadeiras em
caramanchões, mostravam, aqui e ali, ranhuras de piaçabas e sulcos de ancinhos
que regularmente usavam-nos para varrer e fazer a juntada de folhas ou frutos
caídos, ou eram marcados por trilhas de rodas dos carrinhos de mão.
As fruteiras menores, ainda em crescimento,
tinham a proteção de armações de telas, e em alguns trechos, uns poucos compridos
cestos de palhas em fibras ali estavam, servindo para o armazenamento de folhas
varridas, de pequenos galhos secos ou frutas estragadas. Espalhados, jaziam outros
poucos cestos menos fundos, especialmente usados para o quase diário transporte
das frutas colhidas diretamente das árvores. Tudo no lugar transpirava viço e
extraordinária vida, e o perfume de todos os frutos vinha por vezes navegar em
evolante onda ao esbarro da aragem, aliciando insistentemente os sentidos para
a irresistível prova do bocado!
O Sol como áureo manto vestia copas e ombros
de árvores, arrastando-se pelas costas dos parreirais e caramanchões,
jogando-se ao generoso solo. O lugar, nesse dia, achava-se diferentemente
iluminado. Havia um dinamismo! As cigarras explodiam em cantigas, os pássaros
afinavam-se em gorjeios, as abelhas zuniam nervosamente, outros insetos se
lançavam desprendidos e borboletas coloriam o ar! Um mundo de festas, um
gigantesco salão para muitos comensais!
No centro de tudo, majestosamente postado sem
o séquito de iguais, havia enorme pessegueiro - o único ali existente!
Rosinha já enxergava os cães debaixo de alta
macieira próximo ao muro. Latiam e rosnavam fremindo as ameaçadoras mandíbulas,
nervosos por não poderem abocanhar o objeto de suas perseguições. Ora rodeavam
a árvore, ora pulavam e agarravam-se ao tronco tentando galgá-lo! Temerosa, ela
estancou a poucos metros da árvore, olhando para cima, coração aos pulos,
desejando ver e ao mesmo tempo não desejando. Os cães, ao perceberem-na, se
alvoroçaram com duplicada ferocidade, pulando e latindo. De repente, uma
carcomida maçã atingiu a cabeça de Hércules e uma inteira pegou Sansão pelo
flanco. Eles se irritaram mais, espumaram, saltaram ambos para o tronco
arranhando-o com suas fortes unhas. Rosinha trouxe a mão ao peito e tremeu.
- Fora
seus danado, vai embora! – gritou uma voz áspera, mas infantil.
Um misto de susto e crescente curiosidade
fizeram Rosinha, num deslize vacilante, dar um passo a frente. Em medido gesto,
olhou para o alto e viu dentre as folhagens um pedaço de pano vermelho. Arfante
e com olhos exageradamente abertos, encorajou-se a mais um passo e deu-o,
parando, porém, estupefata, ao notar um pequeno corpo negro que apoiava os pés
num galho mais grosso, segurando-se com ambas as mãos noutro mais fino.
- É uma menina! – exclamou finalmente ao ver
o rosto da aparição.
- Claro
que sou uma menina, e esses dois vira-lata não me deixa sossegada! – falou a
outra em tom rude e alto.
- Vira-latas? – redarguiu Rosinha surpresa.
Os cães não haviam amansado e por causa da
voz da invasora continuavam a latir alvoroçados.
- É
vira-lata! Não sabe o que são vira-lata? – reclamou no mesmo tom autoritário.
- Mas eles não são vira-latas, eles se chamam
Hércules e Sansão!
- E
daí? É Hércules e Sansão vira-lata, ora essa! – replicou escarnecendo.
Rosinha, sem saber o que responder ou fazer,
ficou ali parada, fitando-a com seus olhinhos azuis, sentindo uma sensação
estranha abraçá-la.
- Ei,
menina! Vai ficar aí me olhando o dia todo? Eu quero descer!
- O que eu faço? – perguntou estonteada,
ainda envolta pela admiração, sem se importar com o alvoroço dos cães.
- Ora,
prenda os diabinho! – apontou para os cães com mão aberta.
Ela então baixou o rosto e mirou os cães,
dando-se conta de que eles eram a real ameaça.
- Sansão, Hércules, venham, venham! – eles
cessaram os latidos e olharam-na -- Venham, me acompanhem! – saiu a correr para
o fundo do pomar, sendo imediatamente seguida por eles. Chegando ao portão do
fundo abriu-o, e os cães nem parecendo as mesmas feras de há pouco, cruzaram o
vão correndo mansamente ao seu lado, até amplo canil com barras de ferro no
meio do bosque, sob densa e agradável vegetação. Ela escancarou a porta semiaberta
e os mandou entrar. Os cães a obedeceram e ela travou a porta com o ferrolho,
girando nos calcanhares reiniciando uma correria de volta.
Não se
refizera da surpresa de uma negrinha invadindo o pomar! Ansiosa pelo reencontro,
passou velozmente pelo limiar do portão, encaminhando-se por entre as árvores.
Chegando debaixo da macieira não a viu e seu coração acelerou, sobrevindo-lhe
um estremecimento, incompreensível para seu infantil entendimento, mas
suficiente para uma alma intuitiva que se revolvia dentro dela.
Outro estremecimento mais forte, mais
enérgico, veio tocá-la em meio a um pequeno susto. A voz da negrinha, de outro
galho, soou no tom desdenhoso e agreste, porém encontrando em seus ouvidos uma
acústica favorável que lhe causava o estranho prazer de ouvi-la:
- Prendeu os diabinho?
- Já, pode descer sem susto!
- Vê lá se eles vai aparecer de novo por aqui
e me fazer pular outra vez pra cima dessa árvore. Eu não to aqui pra sobe e
desce o dia inteiro! – foi falando ousadamente ao mesmo tempo em que agilmente
escorregava de um galho para outro, deslizando pelo tronco fazendo gavinhas com
pés e mãos. Atenta, Rosinha acompanhava a todos esses precisos movimentos e
quando ela tocou o solo, ficou a fitá-la com intensa curiosidade.
- Ei, por que ta me olhando desse jeito,
nunca viu outra menina? – falou franzindo a testa.
- Desculpe,
eu..., eu já vi sim, mas nunca conversei com uma de fora. Quero dizer... assim
como você!
- Você
nunca conversou com uma criolinha como eu? Essa não, menina! Quer que eu
acredite nessa história? – disse agora rindo, fazendo engraçados trejeitos.
Rosinha não conseguia esconder seu estado de
espírito. A negrinha de cabelos encaracolados, de testa larga e sorriso escarninho,
deixando à mostra dentes alvos e esmaltados, que tão rápido se mostravam
acobertavam-se por lábios proeminentes, cuja boca repuxada nos cantos
emprestava-lhe ousados reflexos de orgulho indômito e infantil, causava-lhe
profunda impressão. Tão forte que nem se fixara direito no seu mal enjambrado
vestido vermelho, largo em seu esbelto e ébano corpo a dar-lhe um ar caricato.
Tudo isso, longe de provocar em Rosinha outro sentimento avesso qualquer, inspirava-lhe,
ao contrário, atração, curiosidade e mistério!
Esse emaranhado sentir que lhe atravessava os
sentidos e se encravava em sua impressionável e acolhedora alma, modelada a um
mundo insólito cercado de muros e pessoas de poucos atrativos espirituais,
colhia-a com volúpia, estremecimentos e avalanche. Não definia uma só daquelas
impressionantes comunicações, antes, somente as sentia. A linguagem não
pronunciada da indizível intuição, fazia-se ali indiscutível arauto,
enriquecendo-a num súbito e profético momento, naquilo que por oito longos anos
haviam-na cruelmente negado!
E Rosinha, aparvalhada e vexada, continuava a
fitá-la com espanto, mesmo depois da admoestação, do escárnio e do deboche.
Como não recebesse a réplica de suas infiltrantes palavras, a negrinha retomou:
- To
esperando menina, será que não me ouviu?
Rosinha corou, dando-se conta do absurdo do
momento, ao que lhe parecia vergonhoso diante daquela figura viva e estranha
que chegara de um mundo distante, para ela completamente desconhecido. Ela
baixou a cabeça e não respondeu. A negrinha, percebendo-lhe o embaraço, teve
súbita reação, procurando a seu modo pouco polido e enérgico modificar o rumo
da conversa:
- Ta
bem, se não quer responder não faz mal, dexa pra lá!
Rosinha, cabisbaixa ainda, segurava agora as
mãozinhas às costas, olhando o sapatinho preto que mexia de um lado a outro, em
atitude engraçada de completa timidez e vergonha infantil. A negrinha, por seu
turno, vendo a demorada reação de Rosinha, começou a inquietar-se, coçando
atrás da orelha e sobre a nuca, fazendo trejeitos com a boca e nariz. A menina
à sua frente, limpa, impecavelmente vestida e surpreendentemente tímida,
causava-lhe também curiosidade e reflexão. Sempre vira crianças ricas, filhas
de gente importante que não curvavam a fronte para olhar os pobres ou mendigos,
julgando-as todas iguais e pernósticas, cheias de caprichos e envaidecimentos.
Eram sempre autoritárias e muitas cruéis. Quantas vezes, gostosamente,
pregara-lhes peças à porta da escola, sujara-lhes os uniformes ou
desmanchara-lhes os cabelos. Isso, invariavelmente, valia-lhe correr do guarda
Félix que vigiava o movimento escolar, e passar boa temporada sem lá voltar,
pelo menos naqueles horários.
Ela ria-se quando outras crianças mais dadas,
escutando os comentários na porta da escola, vinham contar-lhe que as mães de narizes
arrebitados, faziam queixas à diretora do estabelecimento, exigindo que a
pegassem e a castigassem. Mas ninguém a segurava, nem mesmo o moleirão do
guarda Félix; ela era muito mais ligeira e esperta, e percebia de longe quando
armavam-lhe emboscadas. Sabia que pretendiam levá-la à força para uma
instituição, sem mesmo consultar Gregório e Janú, seus responsáveis. Ela
espionava, escondia-se, não se apresentava. Vira duas ou três vezes um carro
negro pintado com faixas brancas chegar à escola com dois homens sisudos dentro
dele, a ficar estacionado na rua lateral. Tinha certeza de que estavam por ali
para agarrá-la, e de vigiada passava a vigiá-los, de longe, de sob as árvores
ou detrás de muros. Depois tudo se normalizava e até o guarda Félix voltava a
conversar com ela, dando-lhe conselhos, dizendo-lhe não desejar vê-la
castigada, e que não fizesse arruaças, pois também não gostava de ser
advertido. Seu comportamento moderado durava não mais do que duas semanas, por que
não suportando a empáfia e as provocações dos riquinhos, dava-lhes novas
lições!
Mas ali estava uma menina diferente: tímida,
estranha, que a olhava como se de verdade nunca tivesse conversado com uma
negrinha. Era rica, isso era fácil entender, pelo trato que dera aos cães que
só podiam pertencer-lhe, pela roupa que vestia e onde morava! Estranha,
estranha mesmo essa menina, mas simpática. De novo fez tentativa para modificar
aquele abismo entre ambas, ao mesmo tempo sutil e tênue como um fio de aranha.
- Como é que você se chama, menina?
-
Rosinha! – respondeu sem alterar a postura.
- Eu me
chamo Isabel, mas eles só me conhece por Calunga. Aliás, por causa disso, eu
tive de dar um soco no olho dum guri enjoado, lá na frente da escola!
- Você surrou um menino? – Rosinha se assustara
piscando os olhinhos azuis, levantando a cabeça, soltando as mãos e perdendo o
ar tímido.
-
Surrar eu não surrei, eu só dei um soco no olho dele; bem que ele merecia uma
surra. Ele ficou me enchendo por causa de meu apelido achando que era nome. Então
eu disse pra ele que me chamava Isabel e ele quis saber de quê. Ora, Isabel, só
isso, respondi pra ele. Sabe o que ele fez? Começou a gritar: Isabel só isso!
Isabel só isso! Aí eu mandei ele calar a boca, mas ele não calou. Então eu fui
pra cima dele e bum...!
- Ele
se machucou? – perguntou Rosinha bastante interessada, levando as pontas dos
dedos de uma das mãos aos lábios.
-
Machucô nada, foi só manha. Ele gritou tanto que a escola inteira ouviu. Então
eu tive de me mandar porque a diretora veio também doidinha pra me segurar. E ninguém
me pega, nem a polícia!
- Polícia também? - Rosinha ia de espanto a
espanto.
- Só de
vez em quando – respondeu apoiando a mão no tronco da macieira, fazendo de novo
aquele trejeito – é o guarda Félix, que toma conta da criançada da escola. Ele
no fundo é meu amigo e vive me dando conselho.
- Eu
também tenho um amigo que me dá conselhos – aventurou-se, Rosinha, soltando-se
um pouco mais.
- Ele também é guarda da escola? – perguntou
atenta, descolando-se da árvore.
- Não, é o Sabe-Tudo, ele mora ali! – mostrou para o meio do pomar.
- Onde?
– ela olhou acompanhando o gesto de Rosinha.
- Ali, bem no meio, depois daquela última
laranjeira.
- Mas eu não to vendo nada, só árvore! –
falou a negrinha se abaixando e apertando os olhos, querendo enxergar mais
longe.
- É isso, ele é um pessegueiro! – confirmou
com inocência e simplicidade.
Calunga virou a cabeça para Rosinha com
espanto e interrogação, como se não houvesse entendido.
- Pesseguero? Você ta querendo dizer, aquele
negócio que dá pêssego?
- É ele mesmo, é o Sabe-Tudo, mas chi....,
ele não queria que ninguém soubesse! – ela encolheu os ombros levando a mão à
boca em reprovação.
Calunga replicou prontamente, demonstrando
com suas palavras a rudeza de quem está acostumada a arreliar e brigar:
- Que é isso, menina! Ta me achando com cara
de troxa, desde quando pesseguero abre a boca pra falar?
Rosinha novamente chocou-se com a
incredulidade e desconfiança da negrinha. O rubor subiu-lhe à face e com o
rostinho expressando aquela mesma graciosa timidez, olhou para o chão fechando
o cenho, murmurando palavras de lamento e arrependimento:
- Bem
que ele me preveniu. Ele disse que ninguém ia acreditar!
- Ta bem, ta bem! É que eu nunca ouvi dizer
que árvore falasse, muito menos um pesseguero. Faz de conta que eu não ouvi
nada, ta legal?
- Mas é
verdade – replicou Rosinha com energia, levantando a cabeça e mostrando
lágrimas nos olhos – eu não menti, ele sempre me diz para sustentar a verdade
em qualquer situação. A mentira é como língua de sapo: sai da boca como gosma
repelente e pegajosa e volta trazendo o alimento que produz mais gosma. Ele diz
isso e diz coisas bonitas também!
Calunga, espantada, olhava-a agora com ar
apatetado.
- Ele disse isso, da língua? – ela abriu bem
os olhos.
- Disse! – confirmou Rosinha.
Calunga fez trejeitos com o nariz e olhos, e
com expressão que a tornava jocosa e esquisita pôs a língua para fora
envesgando, procurando vê-la à extremidade. Em seguida, cuspiu e abaixou-se
para olhar.
- Ele não disse que quem mente cospe sapo,
disse? – perguntou preocupada, levantando-se e a olhando.
- Não, mas se a mentira escapar por nossos
lábios esteja o coração adoçado para não azedarmos a alma alheia. A mentira e a
maldade juntas produzem maiores males do que uma doença que atira sobre o
leito!
- E o sapo?
- Que tem o sapo?
- Como é que ele entrou nessa história, ele
já foi gente?
- Não
sei, isso ele não explicou. Mas acho que sapo é sapo, gente é gente!
- Eu também acho, confirmou aliviada, eu ouvi
falar lá na porta da escola que tem gente que cospe sapo e vira sapo quando
mente, mas é história boba, não é?
- Sabe-Tudo disse que a imaginação pode ser
construtiva e destrutiva; que o medo das coisas imaginadas para causar medo,
luta contra a coragem das coisas imaginadas para criar coragem – Rosinha agora
falava sem ressentimentos.
Calunga passou as costas da mão sobre os
lábios tendo nos olhos luzidio brilho. Essa menina era muito mais estranha do
que antes supusera. Falava coisas diferentes, sabia-as na ponta da língua, mas
de repente ficava toda caída e desarmada
feito uma criancinha de três anos. A história do pessegueiro falante não a
engolira, nunca vira árvore gemer quanto mais falar. Ah! Isso deve ser a tal
imaginação que se referira. Com certeza alguém lhe ensinara essas besteiras e
ela, bobinha, achava que o pessegueiro era quem falava. Será que era birutinha?
Nunca conversara com outra negrinha, um pessegueiro que fala e ensina, ora
bolas! Vai ver é mesmo, birutinha da silva! Mas apesar dessas esquisitices,
era-lhe agradável, longe de ser pedante como aquelas bestas ambulantes, filhos
de papais e mamães ricos, que cavalgavam para a escola. Ela não, e não tinha a
menor vontade de pregar-lhe uma peça!
- Escute, Rosinha, esse Sabe-Tudo aí, ele
anda também, vai passear, fala com otras pessoa? – perguntou tanto quanto
possível com teatral garridice, procurando esconder uma dose de malícia.
Rosinha, sem perceber-lhe a intenção, respondeu prontamente com humor
recuperado, achando que a negrinha realmente se interessava pelo pessegueiro
sem mais dúvidas:
- Não, ele é uma árvore já disse, e árvores
não andam! De vez em quando ele brilha, treme um pouco, mas é só isso. Você é a
primeira pessoa a saber disso e eu vou contar-lhe uma outra também, é sobre a
Áurea!
-
Áurea, quem é?
- É minha amiga. Sabe-Tudo disse-me que ele é
filósofo e Áurea disse-me que ela é prosadora. Ela fala tanta coisa bonita...!
- Essa Áurea também é..., é... – gaguejou
Calunga, apontando com o dedo para os lados do pessegueiro com nova cara de
espanto, sem saber direito como perguntar.
- É uma roseira – respondeu com naturalidade
– ela mora lá no bosque, num canteiro do jardim!
Calunga olhava-a abismada! Dessa vez ela ultrapassara
sua previsão. Julgara-a birutinha, mas via agora que ela era muito mais que
isso, era doidinha. Primeiro a história da menina, depois o pessegueiro, agora
essa da roseira. No entanto, mesmo cismada com as faculdades mentais da outra
sentia-se curiosa por saber detalhes, por escutar o que sua doidera tinha para
dizer – algo a instigava a isso!
- E o que ela conta?
- Bem,
muitas coisas, depende do assunto.
- Você quer dizer que tem de levar um assunto
pra ela falar?
- Mais ou menos. Às vezes eu estou passando e
ela me chama, então começa a falar sobre as coisas. Noutras, eu vou lá e puxo
conversa.
A negrinha comia-a com os olhos. Como é que
podia uma menina tão engraçadinha e meiga estar falando esses disparates, essas
besteiras? Será que ficando a escutar essas coisas sem pé nem cabeça ia repetir
também e ficar igualzinha? À esse pensamento seus olhos se arregalaram e
mostrou transtorno na fisionomia que foi prontamente notado por Rosinha.
- Está sentindo
alguma coisa? – perguntou-lhe preocupada.
- Eu? Não... ora essa! Por que ia sentir? Eu
só to ouvindo, não falei nadinha!
- Uma vez ela disse-me o seguinte –
prosseguiu Rosinha ignorando os sintomas da outra – o perfume das flores são
jorros de essência que os anjos trazem do alto e derramam nos cálices. O
perfume não serve somente para aspirarmos e sentirmos prazer, nem para encher
nossos ambientes e torná-los atrativos. Ele tem coisas maiores e misteriosas e
quando as descobrimos, os segredos passam a nos pertencer e nós a eles. Porém,
somente corações puros e sem nódoas conseguem desvendar esses segredos e
deleitar-se nos seus eflúvios!
- Rosinha! Rosinha! – gritaram-lhe ao longe.
Ela reconheceu de imediato a voz da governanta.
- É
Luiza, depressa, se esconda! – falou nervosamente.
- Pra que tanto medo, Rosinha?
- Ela vai contar para o meu pai que eu estive
conversando aqui com uma menina de fora. Depressa, corra e se esconda!
Sem muito pensar, Calunga resolveu atender-lhe
ao apelo e com incrível agilidade saiu correndo para a direção de uma
ameixeira, subindo em seguida no tronco, pulando para um galho e se acocorando
acobertada pelas folhas. Rosinha, vendo que a negrinha havia se escondido foi
ao encontro de Luiza, parando junto ao portão no momento em que ela o abria.
- Que
houve, menina, onde está o Pedro? – ela franzia a testa, juntando as
sobrancelhas ralas e finas.
- O Pedro? Ele, ele, eu não o encontrei!
- E os
cães, onde estão, por que latiam tanto?
- Eu os
prendi, eles estavam fazendo escarcéu por nada, quero dizer, por uma coisa à
toa!
Luiza sobressaltou-se lançando o brilho das
negras e grandes pérolas sobre aquele rostinho de rara delicadeza, vestido
agora com disfarces e dissímulos. Rosinha, ansiosa, sentia a respiração
pesar-lhe no peito a querer agitá-la, mas procurava conter-se a fim de não
demonstrar que encobria um fato, um segredo. Aqueles olhos negros e mais
vividos incomodavam-na!
- Rosinha, por que me desobedeceu? Você não
sabe que essas coisas são tarefas de adultos?
- Mas eu não encontrei o Pedro!
- Então
resolveu ir ver sozinha. E que coisa à toa os fazia latir tanto?
Rosinha emudeceu. Se contasse era mais do que
certo que Luiza a delataria ao pai. Recebia poucas visitas, não tinha
amiguinhas e não ia à escola. Seu pai queria zelar por sua formação, educá-la
sem a influência de pessoas de outras classes. Os únicos amigos secretos eram
Sabe-Tudo e Áurea. Eles a amavam e a ensinavam, faziam gravar em sua
privilegiada memória cada palavra, cada exemplo, e ela nunca mais esquecia.
Apesar deles, de seus carinhos e sabedoria, ainda assim não podia evitar se
sentir confinada e vigiada. E o que aconteceria se o pai viesse a saber daquela
estranha invasora do pomar e sua conversa com ela?
Uma luta jamais experimentada deflagrou-se em
seu íntimo, fazendo agora descompassar seu infantil coração. Não dizia mentiras
e repetira ainda há pouco importante adágio de Sabe-Tudo, porém a realidade era
mais dura que as palavras! Sabe-Tudo ensinara-lhe que era hábil e válido
ocultar e dissimular, mas quanto a mentir, fora bem claro, que fazer?
- Ande
Rosinha, conte logo, o que os fazia latir tanto? – A voz de Luiza parecia
declarar-lhe que a tudo já conhecia, querendo unicamente a confissão.
- Era
um gato! – respondeu a criança, corando e desviando o rosto do percuciente
olhar.
- Um gato?
- É, um gato grande, mas ele fugiu –
confirmou dolorosamente sentindo os olhos umedecerem, lutando para que as
lágrimas não viessem à tona.
A governanta olhou em torno buscando perceber
algo estranho. Evidentemente Rosinha mentira e isso era surpreendente. Olhou de
novo para a criança e constatou sua angústia, apiedando-se dela.
Desgrudando-lhe os olhos perpassou-os novamente pelos arredores e deu dois
passos à frente, fingindo acreditar no que ouvira.
- Bem, se
o gato já foi podemos soltar de novo os cães.
- Não, espere – sobressaltou-se a criança –
ele pode estar ainda por ai, então os cães o verão e farão outro escarcéu.
- Está
bem, vamos então procurar o gato pelo pomar, se o encontrarmos o afugentaremos.
- Agora, Luiza? – ela mostrara apreensivo brilho nos olhos
azuis.
- Não
deseja? Se estiver com medo eu vou sozinha.
- Não é
isso, Luiza, é que... bem, para que se preocupar: é somente um gato, não é?
Luiza, verdadeiramente curiosa, percebia que
a luta e a resistência da criança a crucificavam e resolveu mudar de tática.
- Muito
bem, então deixemos o gato para lá. Vamos entrar, depois mandamos soltar os
cães.
Rosinha aliviou-se exalando uma quantidade de
ar retido e isso de certa maneira aliviou também Luiza. Deixaram o pomar e
entraram. Rosinha deu um jeito e fugiu de Luiza. A governanta, achando
providencial a fuga da criança, correu à cozinha e mandou uma das empregadas se
apressar em avisar Pedro de que havia qualquer coisa pelo pomar. Ele
verificasse e tomasse as providências; logo mais o procuraria para saber. Dadas
as ordens voltou para a cadeira de balanço.
Embora severa e prestimosa na obediência ao
patrão em relação à disciplina da menina, Luiza muito a amava e afora o
cumprimento dessas obrigações era paciente com ela. Fazia de tudo para vê-la
sorrir e atirar-se em seu pescoço. Isso era bom e sentia-se nesses instantes
possuidora de um pedaço daquele anjo inocente e esperto, que para tristeza e
preocupações, passava temporadas sob cuidados médicos por sua bronquite
asmática e inclinações congênitas para a anemia. Contudo, a disciplina e o
rigor na obediência ao patrão impunham-se como escopo principal e não se
permitia descuidar-se e se arriscar a receber advertências. Horrorizava-se
somente em pensar na possibilidade de falsear no trabalho, ver-se substituída,
estar longe de Rosinha. Esses temores, no entanto, eram insulsos. Doutor
Almeida jamais pensou em tal hipótese; para ele Luiza era perfeita e
insubstituível. Apreciava-a como sabia levar a cabo uma ordem,
desembaraçando-se habilmente de todos os pormenores com suficiência e
objetividade. Seus relatórios, tão a gosto de um industrial como ele, eram
práticos e concisos, pois evitava cansá-lo.
Nada faltava na dispensa desde a estocagem de
alimentos e especiarias a vinhos e outras bebidas nacionais ou importadas,
empilhadas na adega do subsolo. Os uniformes da cozinheira, da auxiliar,
copeira, de Pedro e dois outros empregados responsáveis pela jardinagem, bosque
e pomar eram limpos e à hora; idem, as roupas do próprio doutor Almeida, as
dela própria e de Rosinha. Preocupava-se com as costuras, indo pessoalmente aos
ateliers para mandá-las fazer ou ajustar, ou às boutiques para roupas prontas.
O pagamento quinzenal dos empregados ficava sob sua responsabilidade, fazendo
necessárias anotações, destacando e arquivando recibos. Nada a abafava ou a
sobrecarregava. Sendo experiente e adestrada nas ocupações, rapidamente se
despachava, voltando à tepidez das tardes e a Rosinha.
Como o ritmo das atividades em todos os
quadrantes da propriedade e dentro da própria mansão fosse sistemático, somente
uns poucos dias a agitavam por conta daqueles encargos. O restante do mês era
levado tranquilamente, mergulhado em calmaria, só eventualmente perturbado por
excepcionais problemas. A mansão e tudo o que em redor dela existia silenciava,
poucas vezes eram ouvidas vozes pelas dependências; as conversas fúteis, por
ordem, eram proibidas e somente um ou outro ruído mais significativo nesses
dias rasgava ou feria a atmosfera plácida de seu interior. Em ocasiões, Rosinha
corria e gritava pelos corredores e salões, movida por uma necessidade de
agitar e trepidar, ou por livre escolha e provocações, a fim de ouvir os ralhos
de Luiza e dela se esconder, deixando-a procurá-la por algum tempo.
Três a quatro vezes ao ano Pedro e os dois
homens cuidavam do horto que rodeava a propriedade, produzindo movimentação
extra-rotineira, tratando de acertar e modelar o enorme anel vegetal. Os
craques das tesouras, as penetrantes incursões da moto serra nos galhos do
arvoredo, as farfalhantes quedas, os arremates por cordas, o varrer deles pelo
chão quando puxados a mãos, ou atrelados ao trazeiro do jipe, os posteriores
aparos em tamanhos adequados, o rebuliço corriqueiro, os chamados de atenção,
os gritos de alerta e toda uma gama adicional de ruidosas ações daqueles homens
atentos e por vezes nervosos, ecoavam por vezes – quando trabalhando mais próximos – pelos cômodos da
periferia da mansão, eventualmente pelos corredores. Luiza deveras apreciava a
tudo aquilo e vigilante permanecia como a supervisionar às ordens do patrão,
sentindo-se fazer parte do sucesso das execuções.
Afora esse bulício em épocas espaçadas no ano,
unicamente os rangidos e trepidações de carrinhos de mãos, o roncar e rolar do
jipe e um ou outro rumorejar de vozes como regulares e diárias propagações,
animavam e atuavam na monotonia ordenada da vida humana daquela gente da
mansão. Como complemento ainda das rotineiras ações, havia, duas vezes por
semana, na época da colheita, o jipe guiado por Pedro a sair carregado de
caixas abarrotadas de frutas, que eram levadas para ser comercializadas em
mercados.
Assim, os homens que figuravam como componentes
temporários do panorama da propriedade, não contavam de maneira alguma no
âmbito das emoções e afetos de um lar como aquele. Pedro conhecia cada árvore
do bosque ou pomar, cada roseira, os pés de avencas, dálias, margaridas,
amores-perfeitos, girassóis, as plantas ornamentais, os cedros e cedrinhos,
gramas e gramíneas, e tudo mais que a terra ali produzia. Tratava-os, dava
ordens para que os tratassem, amparava-os, podava, regava e vitaminava! Com
todo esse labor, essa administração quase perfeita, era um profissional,
fazia-o em troca de numerários, como seus ajudantes.
Às empregadas da casa, em escalas e medidas, como
não podia deixar de ser, era-lhes tributada igual apatia e ausência em relação
direta ao âmago verdadeiro do lar. Embora corretas no proceder, não podiam
fazer parte das pulsações e têmpera da família – mesmo Luiza – ainda que isso
ali quase não existisse. Faltava, no estrito sentido, a inserção, o ser e
estar, os limites e posses do teu e do meu, o sangue, as emoções atávicas;
aquelas coisas e objetos que iludem e enganam, mas que enlaçam, fazendo um lar
verdadeiro amar e conflitar! E somente Rosinha e o pai, figurantes da diminuta
família, inseridos num universo de reinos e espécies vegetais, com simples
pessoas em redor, possuíam laços consanguíneos autênticos, mas vidas afastadas!
Voltemos à Luiza. A governanta sentada na cadeira
de balanço não consegue concentrar-se nos alinhavos do tricô. Meia hora já é
passada e não aguentando mais o esforço em permanecer em expectativa, ela se
levanta em gesto brusco, jogando ao assento a porção trabalhada com a lã
vermelha; desembaraça-se da linha e sai da sala. Procurando não fazer ruídos
para não despertar a atenção de Rosinha, alcança o pátio, ruma para o pomar,
abre o portão e envereda pelos caminhos chamando a Pedro. Não ouvindo resposta
e não o vendo, desloca-se para o fundo da propriedade em direção ao portão que
acessa ao bosque. Antes mesmo de ali chegar, Pedro surge-lhe ladeado pelos
cães, fazendo-os penetrar no pomar. Luiza, ansiosa, aguarda o relatório e Pedro
a informa nada ter encontrado, após cuidadosa busca por todos os cantos, estando
de volta para novamente soltar os cães naquela área. Desapontada, ela retorna
pelo mesmo caminho remoendo na lembrança a cena passada com Rosinha e sua
estranha reação.
Segue Capítulo II
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