CAPÍTULO VI
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Rayom Ra
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ROSINHA EM PERIGO!
Três
dias se passaram, não chovera e o Sol agora voltava pleno. O frio ainda
permanecia, mas na medida das horas um calor gostoso obrigava a todos se irem
livrando dos agasalhos. Rosinha se recuperava quase completamente e não mais
sentia aquele mal estar. Nesse dia, voltara a estudar com Marga e após o almoço
saíra a passear pelo bosque e pomar, embora com agasalho fino.
Quase à noite veio encontrar Luiza à mesa,
debruçada entre papéis e anotações, a fazer seguidas contas na calculadora
eletrônica. Rosinha que nunca a vira assim, curiosa, aproximou-se, esticando-se
a olhar suas anotações. Diante dela a relação de mantimentos e gêneros passava
por exame e ela deixava escapar palavras de perplexidade:
- Não é possível! Esses itens do estoque não
podem ter baixado tão depressa!
Rosinha, coração aos pulos, deu um passo
atrás, caindo em si. Aproveitando-se da concentração dela e inobservância à sua
presença, saiu pé ante pé diretamente para seu quarto.
Dia seguinte, sem qualquer sombra de mau
tempo, resolvida a sair novamente, Rosinha tomou a chave e foi ao portão
batendo três vezes. Não obtendo resposta, decidida, enfiou a chave na fechadura
e se evadiu. Lá fora, tomou a direção que sempre tomava ao lado de Calunga e em
certo instante desejando passear pelas redondezas enveredou por outro lado. Ao
cabo de algum tempo, havia entrado e saído por três ruas, parado e conversado
com crianças e chegado a entrar numa casa para tomar um copo d’água. Estava
solta e feliz, pensando um dia alçar voo para muito além, a outros lugares, a
outras situações!
Mais adiante retomou o caminho que
levava à ponte. Queria experimentar-se,
sentir-se capaz de lá chegar sozinha, fazer-lhes uma surpresa! Não havendo
dificuldade alguma logo se viu a andar sobre a terra macia, divisando ao longe
os contornos e quebrados da ponte! Próximo do declive que terminava sob a
ponte, parados à margem do caminho, encontrou dois homens que a olharam com
redobrada atenção. Um tremor e sensação indefiníveis assaltaram-na, chegando
pálida e trêmula debaixo da ponte, o que foi prontamente notado por seus
amigos.
- Foi os dois irmão, eles está hoje por aqui
– falou Calunga contrariada, após Rosinha ter-lhes contado.
- Eles são maus? – perguntou ainda assustada.
- É...eles é dois vagabundo e ladrão! –
reafirmou Janú explosivamente sem pensar no temor da criança.
- É preciso ter cuidado, filha, não venha
mais sozinha para esses lados, a gente nunca sabe. Aqui está tudo bem, eles não
costumam descer e perturbar o nosso juízo – falou Gregório.
O olhar de Príncipe deitava-se ansiosamente
sobre ela e o semblante retratava apreensão. Foi somente após ouvir as palavras
de Gregório que ela se acalmou, reparando que Janú e Príncipe vestiam-se com as
roupas que lhes dera. Calunga e Gregório não; usavam suas habituais vestes. Um
olhar mais atento a fez observar que Janú houvera apertado o vestido que em
Luiza cabia, mas nela excedia, ao passo que Príncipe, vestira a roupa
exatamente como a recebera e embora sobra-se-lhe estava com aspecto mais belo o
rapaz. Estava assim com camisa branca de mangas compridas, calças levemente
azuladas e sapatos marrons – e sua alta estatura, para completar,
configurava-lhe especial elegância.
Mais
tarde, Gregório e Calunga a levaram para casa, não vendo sinal dos dois homens.
Rosinha, no entanto, carregava a incômoda sensação de que a vigiavam de longe.
Veio o sábado. Rosinha, outra vez serviu aos
amigos distribuindo-lhes alimentos. Não foi tanto como da última entrega, mesmo
assim daria para alimentá-los bem por uns dois pares de dias, supunha. Ela
realizara manobras desde a noite anterior, levando os mantimentos para o seu
quarto e os escondendo. Pela manhã, tomava-os da janela e os enfiava no porão,
que não se lembrara até então de usá-lo, retirando-os dali aos poucos enquanto
todos almoçavam, levando-os para o fundo do bosque em idêntico saco preto de
plástico de que antes já lançara mão. Enquanto fazia isso, lembrava-se que em
duas outras ocasiões levara-lhes pessoalmente provisões com Calunga, dividindo
o peso, embora as quantidades fossem bem menores. O melhor mesmo era Gregório
vir e ele mesmo carregar.
Não demorou e Gregório entrou, tendo à mão o
mesmo caixote, tomando rapidamente as coisas, despedindo-se e saindo com Janú e
Calunga. Antes de separarem-se, Rosinha e Calunga combinaram um novo encontro
segunda-feira.
* *
*
Finalmente Rosinha conheceria a escola!
Sentada a sua frente, Calunga a informava que estivera sondando o local por
dois dias, não vendo nem sinal daquela caminhonete horrível. Amanhã, ao meio
dia e meia, em horário especial, uma turma entraria e podia conhecer um pouco
do movimento escolar. E no dia seguinte, durante o recreio, ela viria saber o
que era uma bagunça.
Chegaram à escola. Rosinha, satisfeita da
vida, antegozava a visita. Algumas crianças espalhadas pela calçada próximo ao
portão caminharam para elas. Umas, ao reconhecerem Calunga, riram e
falaram-lhe, enquanto outras, mais afastadas, nada disseram.
- Eu quero apresentar pra vocês minha amiga
Rosinha – disse orgulhosamente, mostrando-a com mão aberta.
Rosinha riu timidamente. Houve um instante de
silêncio e ela temeu que não os agradasse.
- Oi, Rosinha, eu sou o Sérgio! –
apresentou-se um menino de cabelos ruivos e sardento.
- Eu sou o Carlos! – outro se apresentou.
- Eu sou a Suzana! – a menina falou-lhe com
simpatia.
- Oi! – respondeu Rosinha com sorriso ainda
tímido.
- Você mora aqui perto? – perguntou-lhe
Suzana, de cabelos soltos e mesma altura dela.
- Mais ou menos. É lá para trás! – apontou.
- Onde
você estuda? – perguntou-lhe ainda Suzana.
- Em
casa mesmo!
- Em casa? – surpreendeu-se a menina
- Ué, você não vai para a escola? –
surpreendeu-se igualmente Sérgio.
- Ela tem uma professora só pra ela! –
ajudou-a Calunga.
- É?
- Puxa!!
- Meu pai quer assim – explicou envergonhada
– mas eu queria estudar na escola.
-
Chii! Deve ser uma chatura ter uma
professora em cima da gente o tempo todo – observou Carlos que era gordinho.
- Ela não lhe dá recreio? – perguntou Suzana.
- Não. Eu estudo a manhã inteira, de tarde
faço os deveres de casa e depois eu saio.
- Vai
passear? – interessou-se Suzana.
- Umas vezes eu saio com Calunga, outras eu
fico lá em casa mesmo, correndo pelo bosque e pomar.
- Tem bosque e pomar na sua casa? Puxa deve
ser muito grande! – admirou-se Sérgio.
- E é mesmo – interferiu Calunga – deve caber
umas dez escola dessa aí lá dentro, com pátio e tudo!
- Puxa que monstro! – falou Carlos.
- Não dá para se perder lá dentro? – de novo
Suzana perguntava.
- Eu já
conheço tudo e não me perco nunca!
- Você não tem medo de ficar sozinha naquele
mundo? – inquiriu Sérgio.
- Não. Sabe-Tudo me ensinou que o medo quase
sempre é produto da imaginação e que devemos, sempre que possível, conhecer a
forma do perigo e os meios de contorná-lo. E até hoje eu não enfrentei nenhum
perigo lá em casa!
- Sabe-Tudo, quem é? – aguçou-se Suzana
- É...
- Um amigo dela....,é filósofo! – acudiu-a de
novo Calunga.
- É, ele é muito sábio – comentou Rosinha.
- Que é um filósofo? – perguntou Suzana.
- Filósofo? – Sabe-Tudo me disse que filósofo
é quem estuda as coisas que tocamos e enxergamos e aquelas que não enxergamos e
nos tocam!
- Puff! Que complicação! Parece um vizinho
que eu tenho, ele só diz coisas assim e nem o meu pai entende – falou Sérgio
com careta, provocando riso em Rosinha.
- Tem a
Áurea também, outra amiga, ela é prosadora!
Calunga olhava-a atentamente pronta a
interferir.
- Que é prosadora? - novamente Suzana se
enchia de curiosidade.
- É quem vive contando coisas: histórias e
acontecimentos.
- Ah, essa eu queria conhecer! – animou-se Sérgio.
- É a coisa mais difícil que tem! – atalhou
Calunga.
- Por quê? – surpreendeu-se o menino.
- Porque..., porque...ela nunca diz quando
vai lá, aparece assim, pam! Sem ninguém esperar! – Calunga olhou esquisitamente
para Rosinha que lhe devolveu o olhar.
- Que pena! – lamentou Sérgio.
- Áurea me disse certa vez que todos devem
exercitar a imaginação, procurando tocar com o pensamento onde as pontas dos
dedos não alcançam. Mas a gente não deve inventar bobagens, porque isso não é
imaginação construtiva.
- E
como a gente vai saber quando faz certo? – interrogou-a Suzana.
A essa altura, outras crianças ao ouvirem a
interessante conversa desse grupo se aproximaram. Calunga, ao reconhecer duas
daquelas de quem não gostava começou a fazer caretas e trejeitos. Rosinha, sem
aperceber-se que se transformara no centro das atenções, continuava:
- Ela disse que é muito simples. Por exemplo:
a gente pega uma rosa e a cumprimenta. Depois, com o pensamento sobre ela
passamos a imaginar o que ela faz, por que tem pétalas, caule, raízes debaixo
da terra e o que ela representa. Fazemos então perguntas para ela: de onde vem
o seu perfume, sua cor, o que acontece depois que ela morre, e outras coisas. E
assim vamos desenvolvendo a imaginação construtiva. Um dia as respostas vêm às
nossas mentes. Mas se pensarmos o contrário, que as coisas só existem para nos
servir e somos donos delas ou inventamos histórias más, estamos criando
imaginação destrutiva.
- Ah, essa não! Que coisa de maluco! É muito
melhor jogar vídeo game de lutas e guerras! – intrometeu-se um daqueles que
chegara por último. Rosinha, emergindo de um torpor procurou-o, vendo seu rosto
e ar de importante.
- Desses que têm em casa? – perguntou com
surpreendente entonação na voz.
- É, e
filmes que passam no cinema onde meu pai me leva!
- Sabe-Tudo disse que os gostos são diversos,
mas se amamos a violência nos perdemos nela. Se amamos as coisas simples e
belas nos tornamos conhecedores!
- Ah, não entendi nada, caretice! – replicou
o menino.
- Cale a boca sua besta, ninguém lhe chamou
na conversa, não fica aí dando patada! – interviu prontamente Calunga.
- Eu falo sim, e você não tem nada com isso!
– respondeu.
Calunga fez menção de se lançar em sua
direção, porém Rosinha percebendo isso a segurou:
- Não, Calunga, por favor!
Calunga refreou sua reação, principalmente ao
reparar que o guarda Félix se aproximava do portão. Disfarçando, ela se afastou
do grupo indo sorridente em sua direção.
- Oi, seu guarda!
- Pelo jeito não foi ainda dessa vez que lhe
pegaram.
- Não senhor, eu enganei eles, mas foi por
pouco!
- Tome juízo, menina, não venha mais arranjar
briga aqui na porta da escola, eu já lhe avisei.
- Não venho, palavra. Só se eles me provocar.
Félix olhou-a bem e ela procurando o que
dizer-lhe lembrou-se de Rosinha.
- Eu tenho uma amiga, o senhor quer conhecer
ela?
- Uma amiga?
- É ! Uma amiga de verdade – repetiu com o
mesmo ar de orgulho – ela é muito legal, melho que aquela cambada de riquinho
que tem aqui.
O
guarda continuava a olhá-la surpreso. Parecia-lhe impossível alguém como ela
ter uma amiga a quem respeitasse e admirasse.
- Onde
ela está?
- Ali, junto com aquele pessoal, de vestido
azul. Ei, Rosinha, venha cá! – gritou levando a mão à boca, fazendo concha.
Rosinha deixou-os e se chegou com timidez.
- Esse
é o guarda Félix que lhe falei. Ele quer lhe conhecer.
- Muito prazer! – cumprimentou-o olhando para
o chão.
- Você é amiga de Calunga? – Ela meneou a
cabeça sem encará-lo. O guarda reparava nela e a estudava. – Onde é que você
mora?
- Lá para trás – respondeu apontando. O
guarda olhou Calunga com olhos apertados.
- Você sabe onde é, Calunga?
- Sei..., quero dizer, mais ou menos...., não
sei muito bem não, é pra lá!
- Qual é a rua?
- A rua? É..., é uma daquela, eu não sei
direito seu guarda. Ah, droga, pra que tanta pergunta?
- É para saber – ele olhou novamente para
Rosinha – e você sabe o nome da rua?
- Não
senhor – respondeu ainda sem olhá-lo.
- Qual
é seu nome todo, filha?
- Rosinha....
- Da Silva! – interviu Calunga.
-
Rosinha da Silva – murmurou o guarda. Rosinha lançou olhar aparvalhante em
direção a Calunga que fez trejeito e piscou-lhe. O guarda continuou – muito
prazer dona Rosinha, você também é brigona como Calunga?
- Não senhor, eu nunca briguei com ninguém.
A campainha tocou e a criançada começou a se
alvoroçar em direção ao pátio. O guarda desviou a atenção sobre Rosinha e se
aproveitando disso Calunga puxou-a, atravessando apressadamente a rua,
desaparecendo ambas na primeira esquina.
Noutro dia elas chegaram no justo instante em
que a campainha anunciava o recreio. Calunga olhava para todas as direções e
não via o guarda Félix. Com certeza fora até o bar tomar o seu café. Elas se
apoiaram nas barras do portão ficando a observar com interesse. Num minuto o
pátio lotou e a gritaria encheu o ar. Correrias e brincadeiras tiveram imediato
início e Rosinha a tudo acompanhava. Pouco faltava para terminar o recreio,
notaram-lhes as presenças.
- É Rosinha! – apontou Suzana trazendo com
ela mais três meninas. O ruivo Sérgio as viu correr em direção ao portão, e
reconhecendo Rosinha também se aproximou. Vendo aquele interesse por sua
pessoa, Rosinha encheu-se de alegre transparência.
- Conte pra gente uma história da Áurea! –
pediu Suzana, afastando dos olhos negros uma mecha de cabelos.
- Você
gostaria de verdade?
- Gostaria!
- Eu também! Gritou mais atrás Sérgio.
Rosinha pensou um pouco deixando escapar
suave suspiro e esboçando tímido sorriso começou:
- Era uma
vez uma pedra grande e larga num lugar qualquer desse mundo. O Sol quase
diariamente vinha derramar-se sobre ela. A chuva de vez em quando a lavava e o
frio, ao seu tempo, imprimia-lhe seu castigo. Durante os ventos fortes e ciclones
ela assobiava e largava pequenos grãos, às vezes poeira, às vezes lascas
inteiras. Nas épocas de transformações da crosta do planeta terremotos a
sacudiam, mas a tudo ela suportava. Porém, chegou o dia em que se cansou
daquilo, das experiências duras e dos impactos, desejando ser uma árvore como
tantas que havia na floresta lá adiante.
Esse desejo foi ficando cada dia mais forte
até que rachou se estilhaçando toda, sentindo sua energia ser transportada ao
reino vegetal pairando sobre pequena semente dentro da terra. Não entendia nada
o que acontecia, mas foi ficando a observar a semente que se sufocava e lutava
em busca de ar, de Sol, de vida até que brotou num ramúnculo tênue e frágil,
subindo para a superfície. E veio de novo o mesmo Sol, o mesmo ar, o vento, a
chuva, o frio, enfim todas as coisas que a ex-pedra conhecera e que agora
vestida de árvore vinha reencontrar, sentindo novo prazer e sensações
diferentes de antes. O tronco da árvore com o passar dos dias enrijecia, ficava
mais forte e de seus galhos brotavam folhas verdes e saudáveis. Em épocas
certas, a árvore sentia a seiva correr pelos seus veios, enchê-la de prazer e
vida! Noutras épocas, a seiva decrescia e afundava procurando as raízes,
deixando-a fraca e desanimada.
Chegou o dia em que essas experiências
repetidas cansaram-na e desejou ser como um daqueles pássaros que pousavam
sobre sua copa ou galhos, que voavam e desapareciam de vistas conhecendo novos
lugares. E esse desejo avultou-se tomando-a completamente e ela não quis mais
viver para ser uma simples árvore! Secou e morreu!
De novo, como produto do desejo, sua energia
veio ancorar-se dentro de um ovo de uma fêmea de condor, mais além do que
desejou, pois pensava em ser um simples pássaro. Como condor, voou alto entre
cumes de montanhas, sobre nuvens e sob o azul límpido do céu. Viu e visitou
regiões de rara beleza, entrou por florestas, vales, planícies, sobrevoou
praias, lagos, rios e cachoeiras; caçou e se alimentou de sua própria caça,
procriou e abandonou ninhos. Aprendeu do instinto, do alerta do perigo, da
sensação! Pressentia a mudança dos ventos, do clima, a aproximação de chuvas e
nevascas, conheceu o homem e suas manobras para adaptar-se ao meio ambiente. E
como antes, cansou-se de ser ave e desejou ardentemente ser homem. Com esse
desejo morreu!
Eis que logo renasceu num lar humano, cercado
de gente a festejar-lhe e a dar-lhe as boas vindas. Nesse novo lar cresceu e
aprendeu. Deteve muitas experiências, conheceu dores e sofrimentos, odiou,
traiu, amou e perdoou; passou e viu passar e finalmente cansou-se desejando ser
algo maior e melhor: um anjo!
Como anjo viveu em mundo diferente,
trabalhando para construir as coisas necessárias para a vida do planeta que
somente surgiriam centenas ou milhares de anos depois na Terra. E tendo
aprendido e feito de tudo no seu mundo, desejou ser maior: um arcanjo! Como
tal, fez mais que o anjo e subiu sempre, crescendo em consciência,
agigantando-se, aprendendo e construindo nos mundos superiores, passando de arcanjo
para outras formas maiores e finalmente se transformou num planeta!
Como planeta, foi responsável por todas as
formas de vida que nele habitavam e sentiu em si mesmo os corações deles bater
de alegria ou tristeza, medo ou destemor ou por qualquer outro sentimento e
sofreu com o homem a arrancar-lhe pedaços, ameaçar destruí-lo, mas assim mesmo
os amou com maior intensidade.
Muitos anos depois, tantos que não
conseguiríamos saber direito, tendo cumprido seu papel, tendo amado e sofrido
como alguém na Terra jamais entenderá, quis ser algo mais extraordinário ainda;
um sol!
E transformou-se num sol magnífico, soberbo,
imenso como são todos os sóis. Com tal, animou a vida biológica e espiritual de
todo o seu sistema, sendo amado e venerado como um deus, um senhor absoluto no
céu!
Veio o tempo em que tendo cumprido mais esse
papel no cenário da criação quis ser uma fantástica e infinita vida muitas
vezes maior do que qualquer sol no universo: uma constelação!
Nesse exato instante soou a campainha
anunciando o final do recreio. A criançada soltou um ah! E Rosinha calou-se.
Uma tossida a fez e à Calunga olhar para o lado e viram o guarda Félix
encostado ao muro, de braços cruzados, a ouvir a narrativa.
Na verdade, as crianças não haviam entendido
bem a história, pois Áurea a dera deste modo a Rosinha, sabedora de sua
excepcionalidade. Entretanto, ao ouvi-la, eles ficaram cativos, atraídos não
exatamente pelas palavras proferidas por Rosinha, mas pela mensagem subjetiva
que lhes ficaria gravada para sempre em suas almas, hoje, ainda, ingênuas.
Dois dias depois Rosinha voltava a visitar a
família de Calunga, levando coisas e a alegrando. Em meio às conversas,
Príncipe comentou acerca da história contada no portão da escola que Calunga
havia comentado, desejando escutá-la. Rosinha fixou-se em seus verdes e sonhadores olhos, propondo:
- Áurea contou-me outra história
interessante, não prefere ouvi-la? Ele meneou afirmativamente com a cabeça e
mediante seu acolhimento e atenção de todos, ela iniciou:
- Havia um castelo e um príncipe muito belo e
formoso. Era inteligente e sonhador e um dia seria coroado o rei daquele país.
Embora inteligente e de alma sensível, nada queria com responsabilidades,
apreciando muito mais as festas e os namoros com as moças bonitas. Tinha
dezenas de namoradas dentre a nobreza e fora dela e de longe as moças vinham ao
castelo sob um pretexto qualquer, mas somente para vê-lo e dele se enamorarem.
O rei, homem prático e ambicioso, gostava de
negociar e acumular ouro, pouco se importando com as necessidades do povo,
impondo-lhes sempre taxas e tributos, aumentando sua riqueza, mas também a
pobreza do povo. A rainha pouco se incomodava com isso, e vivia rodeada de
damas da corte em encontros, distrações e comemorações. Quando o rei se
ausentava do castelo em suas inúmeras viagens pelo país, deixava o príncipe com
a responsabilidade de dividir com a rainha o governo, porém a rainha continuava
com nada a se importar e o príncipe entregava-se às dispendiosas caçadas e noitadas.
Dava festas e mais festas, gastava ouro presenteando regiamente aos convidados
que bebiam e dançavam até o Sol nascer! A rainha participava das festas até certa
hora; depois se retirava, fingindo nada perceber dos exageros do filho.
O rei ao retornar com os baús cheios de novos
valores e contratos com as províncias, condados e ducados para fornecer-lhe
víveres e pagar-lhe altos percentuais sobre o que eles exportavam, autorizados
pelo reino, era informado pelos mexeriqueiros sobre as festas e caçadas do
príncipe. Ficava furioso e corria aos cofres para ver quanto de sua riqueza
houvera escapulido, porém nada fazia para castigá-lo porque o amava muito e à
rainha.
O tempo passou e os exageros da família real
chegaram a tal ponto que o povo não suportando mais aquela situação se
revoltou. A revolta fora planejada e
dirigida pelos nobres não satisfeitos com as cobranças que o rei impusera aos
produtos de suas terras e administrações feudais. Como resultado, o rei e toda
a realeza do governo foram executados e suas almas levadas ao Tribunal Celeste
para serem julgadas de fato e de direito.
Lá em cima o Tribunal mostrou-lhes todas as
suas faltas e abusos, provando-lhes que muito haviam tido e nada de útil
fizeram em favor do povo com quem há muitas dezenas de anos se comprometeram a ajuda-los.
Como corretivo, o Tribunal Celeste obrigou-os a renascer no mundo, nas piores
condições, a fim de que sentissem na própria carne o mal que haviam cometido a
muitas famílias e expurgassem os venenos da usura e egoísmo. Por duas vezes, o
rei, a rainha e o príncipe se reencontraram sem saber por que passavam por
aquelas aflições materiais, porém na terceira e última vez dos reencontros,
seus sonhos e intuições mostraram-lhes o que provocara aquela situação. Uma
esperança tênue, mas constante, vinha dizer-lhes que aquilo estaria prestes a
acabar e tão logo uma mensageira chegasse-lhes, essa presença serviria para
confirmar-lhes que o fim das dores estava próximo, bastando que completassem
seus dias na Terra. E a mensageira veio e eles a reconheceram!
Ao término eles se entreolhavam e nada
diziam. Havia um impacto em suas almas, um segredo desvendado e uma expressão
de alívio em seus semblantes. Rosinha então se despediu e se foi com Calunga.
Noutra semana, Rosinha e Calunga voltaram à
escola na hora do recreio. A criançada se alvoroçou mais uma vez em direção ao
portão para ver Rosinha. Como sua presença já causasse rebuliço entre os
alunos, a história contada e outras referências que fizera sobre Áurea e
Sabe-Tudo chegassem aos ouvidos das professoras, e, principalmente por ser
amiga de Calunga, as mestras, curiosas, determinaram que um ou outro ficasse à
espreita e as avisassem quando ambas chegassem. Com efeito, isso aconteceu e as
professoras correram ao portão a fim de encontrá-las. As duas se assustaram
mediante aquele alvoroço no pátio, fazendo movimento de se afastar e fugir, mas
as mãos do guarda Félix pousaram-lhes sobre seus ombros impedindo-as.
-
Calma, crianças, as professoras só querem conhecer Rosinha.!
Uma delas abriu o portão e se aproximou
sorrindo. Rosinha deu um passo atrás, embora segura pelo guarda, piscando
timidamente. Calunga começou a fazer trejeitos com o nariz e a boca. A professora,
jovem e bonita, olhou Rosinha curiosamente, estudando-a da cabeça aos pés.
- Então você é a Rosinha de quem tantos
falam?
Ela baixou o rostinho segurando as mãos atrás
e não respondeu. Calunga, vendo o embaraço da amiga, falou prontamente:
- É ela
sim, dona, e é minha amiga!
Três outras professoras chegaram nesse
instante e rodearam-nas. A primeira continuou com delicadeza:
-
Aquela história que contou para eles, onde foi que aprendeu?
- Foi a Áurea – respondeu com os olhos ainda
pregados no chão.
- Áurea, quem é?
- É...
- Uma amiga dela, ora! – atalhou Calunga.
- Uma amiga, Rosinha?
- É sim
senhora.
- Ela
conta-lhe muitas histórias?
Rosinha confirmou com a cabeça.
- Como é ela?
- Ela..., ela...
- Poxa, que chatura! Ela já disse que é uma
amiga, pra que ficar aí enchendo à toa! – irritou-se Calunga.
- Quieta, Calunga! – repreendeu-a o guarda – deixe a professora perguntar ela sabe o que
está fazendo!
- Então, Rosinha, diga-nos como é essa Áurea,
o que ela faz além de contar histórias?
Rosinha pretendeu calar-se, nada mais falar.
Afinal, ninguém poderia obrigá-la a responder se não quisesse. Entretanto, a
voz mais que conhecida falou-lhe aos ouvidos:
“Conte-lhes, Rosinha, diga-lhes quem eu sou!”
-
Áurea! – exclamou a criança, levantando subitamente o rostinho, procurando em
derredor, porém nada vendo, além de rostos estranhos.
- Sim, Áurea! – repetiu a professora.
- Ela...,é uma roseira! – falou decidida.
Houve
espanto geral, e após segundos a professora recomeçou;
- Mas,
Rosinha, roseiras não falam, elas dão rosas tão somente!
- Áurea fala, sim, e me conta histórias belas
e me ensina sobre o amor!
As professoras, atônitas, entreolharam-se,
voltando a fixar-se no rostinho pálido e gracioso da criança. Uma delas,
lembrando-se de algo mais, perguntou:
- E esse tal Sabe-Tudo, é uma roseira também?
Rosinha calou-se e dessa vez foi Sabe-Tudo
quem lhe falou:
“Pode contar-lhes também, minha menina, eu
deixo!”
- Sabe-Tudo é um pessegueiro! – respondeu com
a mesma convicção.
- Um pessegueiro? – de novo o espanto geral e
elas agora acreditavam que Rosinha não seria uma criança comum.
- Pessegueiros também não falam, Rosinha –
insistia a professora.
- Sabe-Tudo fala, ele é filósofo!
- E o
que ele ensina? – outra professora perguntou.
- Coisas da vida.
-
Conte-nos algumas!
Rosinha passou a dizer-lhes dos assuntos
conversado com Sabe-Tudo. As professoras ao sentirem a seriedade deles,
mandaram os alunos embora, ficando ali com as duas crianças e o guarda Félix,
que as tinha largado e se afastara. Depois falaram de Áurea. Rosinha
contou-lhes uma rápida história. O sinal havia tocado e os alunos se recolhido.
A diretora veio correndo para saber por que as professoras não haviam voltado
para as salas de aulas e entrou na roda da curiosidade, perguntando também.
Finalmente quiseram saber de sua vida, mas sobre isso ela pouco falou, dizendo
em certo instante:
- Minha única amiga fora de casa é Calunga, eu
somente saio com ela.
Calunga riu e fez caretas para a diretora que
a desaprovava. Como resultado desse deboche, a diretora fez-lhe novas ameaças
prometendo-lhe que a apanhariam e a levariam. Calunga soltou meia dúzia de
palavrões e puxou Rosinha pelo braço:
- Já
chega, vamo embora Rosinha, corra!
Rosinha, assustada, a acompanhou e
atravessaram a rua, desaparecendo na esquina.
- Poxa, Rosinha, pra que você teve de contar
pra elas?
- Eu
não ia contar, mas eles me mandaram!
- Eles quem?
- Áurea e Sabe-Tudo!
- Ai! Ai! Ai! Ta brincando comigo? Como é que
eles podia mandar se eles ta lá na sua casa?
- Eu também não sei. Só sei que eles falaram
bem aqui, nos meus ouvidos!
Calunga coçou a cabeça, enfiando os dedos
naqueles cabelos encaracolados, fazendo habituais cacoetes e nada mais
comentou. Aprendera a respeitar as explicações da amiga. Logo chegaram ao
portão e Rosinha abriu-o, sob os olhares da outra.
- Rosinha, você fugiu!
A voz de Luiza soou-lhe como terrível
sentença e a figura cheia, com olhos arregalados, impressionaram-na como nunca.
Calunga pulou e tentou esconder-se, porém Luiza correu ao portão vendo-a – quem
é você?
- É
Calunga, ela é minha amiga! – intercedeu Rosinha como a protegê-la.
- Amiga? Você está...., amiga, Rosinha?
Ela olhava a negrinha e não atinava.
- E
daí? Não posso por quê? Você também é criola pobre e vive aí com os rico!
- Ora, deixe de ser malcriada!
- Puff! – Calunga fez-lhe careta pondo a
língua para fora e Luiza, com raiva, bateu o portão e o fechou.
- Bem que eu estava desconfiada que havia
algo estranho por aqui. Rosinha, em
prantos, correu e se fechou no quarto ignorando os chamados e as batidas na
porta da governanta. Agora nada mais interessava, tudo estava perdido!
Almeida ao chegar foi informado de tudo e a
interrogou no quarto. Rosinha explicou o que fizera. Almeida, zangado, não se
sensibilizou e disse-lhe que se algum deles fosse visto pelas imediações da
propriedade, mandaria a polícia levá-los, pois certamente eram perigosos.
Rosinha defendeu-os como pode, mas tudo inútil. Nos dias que se seguiram a vigilância
à menina tornara a mansão numa prisão mais rigorosa que antes. Ora Luíza saía
atrás dela, ora Pedro ou um dos empregados ficava sempre por perto a olhá-la.
Marga fora incumbida de sondá-la e tentar obter novas informações, mas Rosinha
jamais dissera uma só palavra além do que contara ao pai.
Rosinha pouco falava, mal estudava, não fazia
direito os deveres e não se incomodava nem um pouco sobre as ameaças de Marga
em dobrar-lhe os deveres de casa ou fazer relatórios desabonadores ao doutor
Almeida. A palidez em seu rosto aumentara, mas felizmente não tivera nenhuma
crise de bronquite asmática ou outra coisa qualquer que lhe abalasse a frágil
saúde. Passara-se uma semana e somente agora ela voltava a Sabe-Tudo:
- Como é que você sabia que eu estava lá e
como conseguiu falar nos meus ouvidos?
“Foi necessário, Rosinha, tivemos de fazê-lo,
eu e Áurea!
- Mas
de que jeito, vocês não são plantas?
"Somos?".
Rosinha atrapalhou-se, mirando-o sem saber o
que pensar. Porém, um misterioso brilho perpassava seus místicos olhos e o
rosto assumia ar sério ao mesmo tempo reflexivo. Foi um momento único e
fugidio. Tocada por invisível despertar ela quase de imediato emergiu daquela
revelação, embora uma dúvida ainda permanecesse:
- Então por que você não me avisou que Luiza
estava por perto?
"Há coisas que precisam ser empurradas,
outras se deixam ao seu natural curso".
- Não entendi nada, Sabe-Tudo! Somente sei
que agora eles descobriram tudo, me vigiam o tempo todo e não vou mais poder
sair.
"Tenha calma, criança, tudo vem ao seu
tempo. Seja paciente e aguarde!".
No roseiral ela voltava ao mesmo tema:
- Puxa,
Áurea, eu vivo contando para eles suas histórias e você nem para me avisar que
Luiza estava por perto quando eu cheguei!
"Não
fique triste, Rosinha. Ainda que lhe pareça incompreensível no momento um dia
você entenderá. O amor é o eterno triunfante, você verá!".
- Que tem o amor a ver com isso?
"Tudo, Rosinha. Se você sempre entender o
que eu e Sabe-Tudo lhe dizemos, não magoar seu coração, nem odiar os que a
cercam, será triunfante e mais cedo do que imagina se libertará do jugo. Seja
eterna criança, seja qual o amor, o mais puro!".
Os dias sob aquela atmosfera de vigilância
tornaram-se tristes e melancólicos. Os adultos não voltaram a insistir sobre
seu inusitado procedimento, mas as conversas não eram mais como outrora; havia
barreiras e desconfianças. Rosinha sentia-se estranha em sua própria casa e
isso a incomodava muito.
Veio outro final de semana e ela permaneceu novamente
sem poder sair: medida punitiva, sem dúvida alguma, e isso doeu-lhe
profundamente. No meio da terceira semana de isolamento e vigilância, acusou um
estímulo, uma estranha inquietação que a levava a ardentemente desejar sair e
lançar-se à rua de qualquer maneira. Mas como fazê-lo se a chave do portão lhe
fora tomada e a outra desaparecera do galpão? Por curiosidade ou indefinível
impulso, ela projetou-se ao recinto da ala secundária do interior da mansão
onde guardavam o chaveiro. A porta estava trancada e lamentou não poder
adentrar. Não resignada, ainda sob a aura de uma sensação estranha e movente,
tomou o corredor principal e saiu à varanda. Sem nada pensar, foi parar em frente ao portão de ferro da entrada social da mansão. As
travas de segurança, em cima e embaixo, estavam livres e ela sequer notou. Porém, ainda em seu estado de semi-transe, levou à mão à fechadura pressionando o
trinco para baixo e o portão abriu-se!
Conduzida ainda por alguma coisa mais forte que
sua vontade, ela puxou o portão e evadiu-se. Correu para a rua, daí para outra,
contornou o quarteirão e passou pelo fundo da propriedade onde costumava tomar
os caminhos já conhecidos. Um automóvel velho com vidros escurecidos parou
junto a ela; a porta de trás foi aberta e um homem avançou tapando-lhe a boca,
enquanto outro braço a enlaçava pela cintura e a jogava para dentro do veículo.
- Tudo
certo. A caça está na mão, valeu a pena esperar todos esses dias – falou o sequestrador rindo e a amordaçando.
Segue Capítulo 7
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Rayom Ra
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