quarta-feira, 9 de março de 2016

Rosinha - (7) - Final


                                                                   CAPÍTULO VII
                                                                           FINAL

  - Quietos todos, polícia!
  - Polícia? – espantou-se Gregório ao ver todos aqueles homens armados de revólveres e metralhadoras a os arrodear.
  - Nós não fez nada, doutor! – falou assustada Janú, sendo logo puxada para onde estavam Príncipe, Gregório e Calunga, todos atônitos!
  - Onde está a menina?
  - Que menina, doutor? – perguntou Gregório.
  - Não finjam – falou asperamente o policial que comandava a ação – a filha do doutor Almeida!
  - Rosinha! – gritou Calunga – Que aconteceu com ela?
  - Deixem de fingimento senão o pau vai comer! Vocês a sequestraram e telefonaram pedindo resgate ou planejaram isso e seus comparsas fizeram o serviço!
  - Juro, doutor, não fizemos nada disso. A menina é nossa amiga, nós não íamos fazer isso. Veja essas roupas, quem nos deu foi ela – falou nervosamente Gregório mostrando suas roupas e apontando para Príncipe que vestia terno completo, e a Janú com o vestido e blusa de Luiza.
  - Safados, sem-vergonha, maldito! – gritava Calunga chorando e mordendo as mãos.
  - Cale a boca! – gritou o policial.
  - Foi eles – continuou Calunga sem dar ouvidos ao policial – os maldito!
  - Eles quem? Diga logo!
  - Os irmão malvado! – respondeu ainda mordendo a mão.
  - Quem são? 
  - É dois vagabundo, doutor. Nós não conhece eles direito, eles de vez em quando passa aqui, mas nós não gosta deles, são bandido! – falou Janú, choramingando.
  - A gente não sabe. A gente só sabe deles porque os outros nos contam. Não temos nada com eles, juro! – reafirmava Gregório.
  - Essa história está mal contada. Vai todo mundo para o distrito, vamos andando!
  Não houve tempo. Calunga correu para o lado do rio e pulou n’água.
  - Segurem-na, ela vai fugir!
  Os homens correram para a margem e um deles mergulhou atrás dela. Calunga afundava e subia para tomar ar, distanciando-se sempre na correnteza, desaparecendo de vista.

  Correndo e se escondendo, ela subiu por uma rua estreita, margeada de casas velhas e pobres. A comunidade era a mais abandonada do bairro, a pobreza de seus moradores não poderia caber noutro lugar. Com o vestido vermelho molhado e manchado das águas barrentas Calunga ardia de raiva e indignação.
  - Miserável! Eles vai ver só uma coisa se fizer mal pra Rosinha!
      
  A tarde ia desfalecendo, o céu encoberto de nuvens cinzentas prometia mau tempo, um vento frio começava a soprar. Ela precisava apressar-se se pretendia descobrir onde tinham levado Rosinha!
  Encostado a um canto, um carro estacionado achava-se coberto com panos. Era sem dúvida o carro de ambos. Calunga soubera ainda há pouco de um velho mendigo, amigo de Gregório, que eles tinham saído pelas onze da manhã e voltado pelas duas da tarde nesse mesmo carro. Foram informações muito perigosas que ninguém ousaria dar, porém Calunga houvera prometido comida e cigarros para o velho. Pensava descobrir tudo e contar para a polícia. Ela parou diante do barraco que o velho indicara se preparando para espreitar. Nesse instante, duas fortes sirenes rasgaram o ar, a porta do barraco se abriu e os irmãos saíram, vendo-a ali parada.
  - Ela trouxe eles! – falou um dos sequestradores.
  O outro fez movimento de puxar o revólver e Calunga pulou para o lado, procurando se esconder atrás de outro barraco. Ele atirou e a bala foi cravar na madeira. Ele deu mais dois passos e apontou de novo para Calunga.
  - Parem, não atirem! – gritou o policial da janela do carro que já se aproximava.
  Os dois não obedeceram, atiraram na polícia e correram rua acima. A polícia respondeu ao fogo e os bandidos correram mais.
  - Atrás deles, peguem a negrinha!
  - Eles pensa que eu to com eles. Não vou deixar me pegar! – resmungou, enfiando-se entre barracos e cercas, invadindo quintais!
  
 A caçada continuou. Enquanto uma parte dos policiais perseguia os irmãos, enfrentando-se em tiroteio, dois outros corriam atrás de Calunga. A noite caía e isso facilitava a fuga. Ela conseguiu esconder-se e deixou o lugar quando achou que não mais a procuravam, descendo por outra ladeira, ganhando a auto-estrada. Tinha-os enganado direitinho! Quando pretendia atravessar a estrada, dois faróis jorraram intensamente sobre ela, estonteando-a e a cegando.
  - Pare, não fuja mais!
  - Vocês não me pega, ninguém me pega! – gritou com raiva, lançando-se ao canteiro que separava às duas pistas. Mal conseguia enxergar; as sombras eram mais intensas do que os pontos luminosos, ela corria às tontas.
  - Volte, menina, por aí não!
  Ela não obedecia, olhando para adiante naquela sucessão de sombras, contornos e faróis que se moviam, julgou ver a pista livre e se atirou nela. Um estardalhante ranger de freios e torturante cantar de pneus foram ouvidos e um baque surdo finalizou o terrível instante. O corpinho da criança foi lançado para o alto, estatelando-se no asfalto noutro baque abafado.

  À distância, no interior de outro carro, Rosinha, ao lado de um policial, permanecia atenta. O rostinho como cera retratava os efeitos do medo que aquelas horas de horror lhe tinham causado. Os olhos mostrando profundas manchas roxas varriam todos os lados em agitação. Seu peito fremia e chiava, ela temia um ataque mais forte da asma. Um grupo de policiais se aproximou e aquele junto a ela pôs a cabeça para fora perguntando:
  - Então, pegaram todos?
  - Os dois conseguiram escapar, mas a negrinha morreu atropelada – respondeu simplesmente um deles.
  Ao ouvir aquilo, Rosinha foi tomada de desespero, gritou e quis pular para fora do veículo. O policial segurou-a, mas ela se debatia e, finalmente, gritando como louca desmaiou.
       
                                                                           *     *     *

  Quinze dias se passaram. A tensão e o abatimento estampavam-se nos semblantes de Almeida e Luiza. Rosinha, desde que voltara parcialmente do estado de choque há uma semana, permanecia letárgica, murmurando palavras ininteligíveis. O rosto descarnado e descolorido deixava a destacar somente os graciosos contornos; o azul daquelas duas safiras reluzentes não era visto. Os braços alvos, cada vez mais finos, enleavam-se em cordões transparentes que conduziam o soro e os medicamentos ali misturados. A beleza ingênua que nela haviam conhecido transformara-se num espectro infantil.

  Inútil tentar descrever o estado de espírito de Almeida e Luiza, mas pelos rostos consumidos se tinha uma pequena idéia do turbilhão depressivo que deles se apossara e do remorso que neles entrara. Num martírio sem fim, Luiza ficava a vigiá-la dia e noite, mortificando-se ao lado da criança.

  Mais dez dias se foram. Rosinha, agora, em repetidos instantes, se debatia. Palavras escapavam-lhe dos finos lábios arroxeados cujos significados chegavam a um breve termo antes de se consumar. A luta continuava e o sofrimento a todos compungia.

  Nessa noite o tempo piorara, uma chuva intensa derramava-se pela cidade. O frio se intensificara e os agasalhos coloriam toda a gente. Pela madrugada, Luiza vencida pelo cansaço, dormia sentada com a cabeça apoiada no sofá, de corpo meio estirado e calcanhares apoiados no chão.  Rosinha se remexeu e murmurou:
  - Calunga!
  Os olhos da criança se abriram e agitada sentou-se. Com movimentos bruscos foi arrancando os tubos dos braços. Os lábios descerraram riso estranho e um brilho de loucura ocupava o encanto de seu olhar. Jogando a coberta ao chão, pulou da cama, e cambaleando qual ébrio lançou-se em direção da dupla porta que antecedia pequena sacada, arremessada sobre o pátio interno do hospital.
  - Calunga!
  Torcendo o trinco, abriu a ambos os lados, parando sobre a soleira de mármore. O vento gelado atingiu-a em cheio e um jorro da chuva ensopou seu rosto e peito. Luiza, sentindo aquele impacto, pulou assustada do sofá.
  Rosinha, meu Deus, que está fazendo?
  Correndo para a criança alcançou-a no justo instante em que ela desabava, amparando-a antes que atingisse o chão, trazendo-a de volta para a cama.

  O estado da criança piorou; uma febre alta veio torturar-lhe o cérebro e incendiar-lhe o corpo inteiro. Todos os recursos médicos não eram suficientes para fazer o tratamento avançar, ela estava por demais debilitada, não havia mais dúvida: o fim estava próximo!

  No terceiro dia, após aquele episódio, Rosinha abriu os olhos perto da meia-noite. Luiza arcou-se sobre o leito e sussurrou para Almeida que cochilava no sofá. Ambos fitaram-na a espera de algo. Ela permaneceu olhando para adiante, como se visse alguma coisa invisível, tendo atraído súbita luminosidade, esboçando um sorriso brando e fácil, como antes fora o seu. Esperançado, Almeida pôs-lha a mão na testa e estranhamente não lhe sentiu quentura alguma. Rosinha forçou um movimento tentando levantar a cabeça, ainda estampando o sorriso.

  Numa outra dimensão, inacessível aos sentidos comuns, um corpinho negro flutuava diante dela, sorrindo farta e alegremente a acenar-lhe. O vestido vermelho era o mesmo, reconhecia-o, tinha a mesma feitura, largo e mal enjambrado, porém resplandecia.
  - Calunga, você veio! – falou clara e audivelmente, forçando o corpo para adiante, amparada por Luiza e pelo pai, sorrindo agora com toda a graça.
  “Venha, Rosinha, pule daí, eu vim buscar você!”
  - Eu vou! Eu vou! – falou com entusiasmo fremindo o corpinho, fazendo uso da última reserva de energia que possuía. Almeida desejou puxá-la de volta, ela estremeceu e soltou-se, largando o sofrido invólucro em mãos humanas, projetando a alma para mãos espirituais!

  Tão logo se viu segura pela amiga uma corrente de energia percorreu-a fortalecendo-a e ela se foi coberta por vestes azuis em vestido de gazes reverberante!
  - Você demorou, Calunga, pensei que nunca mais a veria!
  - Agora ta tudo bem, eu vou levar você pra um lugar onde eles vêm lhe buscar.

  Seguiram por lugares e cores, flutuando mais do que andando, de mãos dadas e felizes. Em certo lugar Calunga parou:
  - Aqui, Rosinha! Prá lá eu não posso seguir, só você. Eles deve ta vindo!
  - Quem? – Ela atentou pela primeira vez ao fato.
  - Eles! Olha lá, ta vindo!
      
  Duas formas iridescentes desprendendo luz e beleza em tons distintos chegaram e as envolveram.
  - De novo livre do corpo – falou a primeira delas, a mais azulada.
  - Sabe-Tudo, você?
  - Purificada e liberta! – disse a segunda, a mais dourada.
  - Áurea, você também?
  - Sim, Rosinha, como sempre juntos de você – disse Sabe-Tudo
  - Mas por que a vida lá embaixo, o sofrimento, aquelas coisas todas?
  - Foi necessário, criança, para você e para o mundo. Agora que triunfou a levaremos de volta ao verdadeiro lar, seu planeta, seu mundo azul! – explicou Áurea.
  - E Calunga? – questionou preocupada.
  - Eu fico, Rosinha. Eles me disse que tenho de ajudar os meu e outros mais. Vou ter muitas coisa pra fazer, eu sou daqui, esse mundo é o meu!
  - Eu vou poder voltar para visitá-la?
  - Claro, minha menina, sempre que as condições astrológicas assim permitirem – informou Sabe-Tudo. Ela alegrou-se e se abraçou à amiga.
  - A nave está esperando. Vamos então? – convidou Sabe-Tudo.
  - Vamos! Respondeu a criança.

  Eles a envolveram em dois feixes de luz e ela refulgiu. E como a uma pluma ergueram-na e se desprenderam para o alto. Era um voo mais do que fácil e ela olhou para baixo vendo Calunga cada vez mais distante, acenando com alegria e felicidade.

                                                         
                                                                           *     *     *

  Com a morte da filha, Almeida isolou-se por algum tempo. Deixou a mansão e largou a direção da fábrica a cargo de seu vice-presidente. Ninguém sabia por onde ele se enfiara, nem mesmo Luiza. Depois ele voltou magro e abatido. Chamou a governanta e comunicou-lhe ter pensado e sofrido muito, não desejando morar mais nesse lugar onde vira a  esposa e a filha morrerem e onde somente recordações tristes encheriam sua vida. Lembrando Rosinha, e o que ela certamente aprovaria, iria transformar a propriedade num grande orfanato, com isso talvez conseguisse amenizar em si o tremendo remorso que carregava na alma.

  Assim foi feito. Logo a propriedade foi mudada em alguns aspectos com moderno projeto adaptado à nova situação. Muitas crianças encheram de outra vida as dependências da mansão. Bosque e pomar ecoavam suas vozes em horas de lazer e aprendizado ao ar livre. Luiza dirigia e ocupava-se. O orfanato tinha voluntários de ensino, assistência médica, alimentação sólida e tudo mais que necessitasse para a formação de futuros cidadãos e cidadãs. E Luiza viu desfilarem ante seus olhos muitos corpinhos desprezados por pais egoístas ou visitados pela fatalidade, amando-os profundamente com carinho e tolerância. Almeida cumpria fielmente a promessa de nada deixar faltar-lhes, porém jamais voltara ao lugar, embora se casasse novamente e tivesse a felicidade de ser pai três vezes.

  Em momentos de descanso, Luiza buscava refúgio à beira do lago a meditar. Em algumas ocasiões, ao longo dos anos, voltavam-lhes recordações de Rosinha e de tempos em tempos, nesses instantes, pressentia uma forma translúcida coberta de azul a pairar adiante e a acenar-lhe por inteiro, por vezes acompanhada de outra envolta em vermelho suave. Ela então exalava suspiros, sua alma lavava-se das tristezas e preocupações e acalentava novas esperanças. Rosinha estava bem, melhor do que nunca, em breve a veria e a abraçaria novamente!

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