domingo, 6 de março de 2016

Rosinha - (3)

                                                                          CAPÍTULO III
                                                                    DE NOVO CALUNGA

  Dia seguinte à indisposição Rosinha voltava às aulas. À tarde fez os deveres que Marga tinha passado; depois saiu a correr e passear pelo bosque e pomar, entrando em casa duas vezes. Luiza via-a agir com normalidade, e como sempre naquele horário retomava a tricotar. À noite, Almeida, pontual, chegou e realizou os mesmos movimentos e após o jantar inquiriu-a sobre seus estudos e atividades. Manhã seguinte, quase tudo se repetia, e à tarde e à noite.

  Passada uma semana, Rosinha quase se conformava em não mais ver Calunga. Julgava que ela não gostara mesmo de seus modos e nunca mais retornasse. As imagens daquele encontro, no entanto, por vezes mexiam-se e falavam-na, demonstrando que ainda insuflavam seu mundo anímico com alguma vida. Apesar de tudo – meio desacreditada meio não – vez por outra, ainda esperançada, a procurava pelas árvores. Numa oportunidade, tendo percorrido a distância que se estendia paralela ao muro, chegou a escalar uma árvore, um tanto desajeitada, escorregando por causa de seus sapatos, buscando apressar-se para não ser surpreendida por ninguém, e tentou olhar sobre o muro na intenção de vê-la pelos arredores. No entanto, conseguiu enxergar somente árvores e telhados e longínquas montanhas sob névoa azulada, tão inalcansáveis quanto era sua liberdade. A mentira não mais se arremessava em seus pensamentos, nem ecoavam-lhe aos ouvidos palavras chamejantes que a haviam queimado tantas vezes num só dia. Sabe-Tudo com sua sabedoria e conselhos lavara-lhe a alma!

  Luiza deixara de lado aquele assunto do pomar, não mais evocava a mentira da criança e seu insurgimento às costumeiras ordens. Domingo, ao levá-la a passear pelo parque e observá-la com maior interesse enquanto ela se divertia com escorregas e balanços, a cena do pomar retornou-lhe à lembrança. Com desagrado procurou afastá-la da mente.

  Veio a segunda-feira. Rosinha suportou como pode as lições com Marga e ao almoço sua companhia à mesma mesa. À tarde, após os deveres de casa, saiu a correr pelo bosque, a conversar com Áurea e a visitar o pomar. Sansão e Hércules escarafunchavam o capinzal do fundo do terreno, enquanto ela caminhava próximo ao muro. Entretanto, uma surpresa a aguardava. Sobre o muro, protegido por um volumoso galho de uma pereira a alguns metros dali, um vulto negro, sentado, chamou-a:
  - Ei, Rosinha, estou aqui!
   Era a mesma voz, a mesma presença. Rosinha deu um salto de alegria e exclamou:
  - Calunga!
  - Eu mesma. E quede os dois vira-lata?
  - Estão lá no meio do capim! – respondeu emocionada apontando para aquela direção.
  - Então não posso pular pra aí, senão eles me vê e faz de novo aquele barulho todo!
  - É, não pule não, fique aí mesmo! Espere! Por que você não dá a volta por fora e pula lá no fundo, no bosque? Lá podemos conversar mais a vontade! – sugeriu agitada.
  - Lá o muro é alto e cheio de caco de vidro, além do mais não tem fruta!
  Rosinha olhou-a com uma ponta de decepção a empanar o brilho de seus olhos.
  - Você então veio aqui... ,por causa das frutas?
  Calunga, elevando os olhos de sobre Rosinha, correu o antebraço sob o nariz esfregando-o e mirou um dos parreirais mais adiante carregado de uvas brancas, respondendo com medido desinteresse.
  - É pelas fruta...
  Rosinha sentiu o coração apertar. A negrinha prosseguiu após a pequena pausa:
  - ...pra lhe ver também. Afinal quase não deu pra gente falar daquela vez!
  Rosinha sorriu largamente, os olhos emitiram brilho de rara beleza!
  - Por mim também?
  - Ué, por que não? Pelo que sei fruta é fruta, a gente come e ela acaba, mas gente é gente! Ainda mais como você!
  - Como eu? – perguntou surpresa e curiosa.
  - É, cheia de novidade, de esquisit..., eh..., de história e dona de um lugar grande como esse.
  - Mas isso aqui não é meu, é do meu pai. Ele é dono também de uma fábrica de tecidos!
  - É a mesma coisa, ora – soltou aquele riso debochado – se o seu pai é dono de alguma coisa você também é. É a mesminha coisa!
  - Ele nunca me disse que eu era dona de nada – exclamou inocentemente com ar atarantado.
  - É preciso dizer, Rosinha? O que é do pai é da filha, sempre foi assim. Bem, eu acho que sempre foi.
  Rosinha pensou um pouco levando o dedo ao queixo e apontou-o para Calunga.
  - Estou me lembrando que Sabe-Tudo me disse que nós de verdade não somos donos de nada, nem do nosso corpo, porque ele vem, cresce e se acaba e nós não conseguimos detê-lo e nem entender direito como ele funciona, quanto mais sermos os donos dele!
  - Chiii....! – fez Calunga com cara de tédio.
  -Chi, o quê? – perguntou Rosinha, piscando vivamente.
  - Nada..., nada! É que..., bem esse Sabe-Tudo, é um bocado complicado né?
  - Ele é filósofo, já disse isso. Ele fala assim mesmo, só para deixar a gente pensando.
  Calunga refletiu. Em seguida voltou a encarar o rosto pálido de Rosinha.
  - Sabe de uma coisa, Rosinha, eu tive pensando noutro dia do que você me contou desse tal Sabe-Tudo e daquela roseira, a...,a...
  - Áurea! – acudiu-a Rosinha
  - É, dessa aí! É que...,eu também conheço duas pessoa que diz coisa parecida. Um é o Príncipe, que mora com a gente. Ele vive sonhando. De vez em quando diz umas coisa estranha; o outro é o Gregório, meu pai de criação, que fala coisa difícil, mas só sobre a miséria. Só que eles não é árvore, é gente de carne e osso como nós! 
  Rosinha, comovida, não percebeu a proposital mensagem de Calunga.
  - Quer dizer que eles também falam coisas para você pensar? – excitou-se pela provável coincidência.
  - Pra dizer a verdade eu nem ligo quando eles começa a abrir a boca falando e falando. Quem aguenta eles é a Janú!
  - Janú?
  - Minha mãe de criação, ela se chama mesmo é Januária, mas todo mundo chama ela de Janú!
  - Eu também não tenho mãe – falou Rosinha com naturalidade – quem me criou foi a Luiza..., aquela que me chamou da outra vez, lembra-se?
  - Eu não cheguei a ver ela. Eu pulei fora da ameixera, corri lá pra aquele telhado de maracujá, subi nele e me mandei por cima do muro!
  - Como é que você consegue pular para fora de um muro tão alto, ninguém até hoje conseguiu?
  Ela riu e olhou para trás, apontando para baixo:
  - É que um tronco de árvore despencou e encostou no muro. Eu aproveito e subo nele até aqui, então agarro aqui em cima e pulo. Ainda bem que desse lado não tem caco de vidro senão eu não ia conseguir!
  - Ah...! – fez Rosinha entendendo.

  Nesse instante, Hércules e Sansão surgiram ferozes, latindo e pulando, querendo atacar Calunga. Rosinha assustada gritou:
  - Vá embora, Calunga! Os empregados vão lhe descobrir e eu nunca mais vou poder conversar com você!
  - Mas eu não comi fruta nenhuma! – respondeu Calunga sem se alterar.
  - Vá, por favor! – suplicou-lhe – vá, eu jogo algumas pelo muro e amanhã eu encho uma cesta todinha para você levar, depois do almoço!
  Os cães, como da outra vez, latiam furiosamente e pulavam, ignorando as ordens de Rosinha para se acalmar.
  - Ta bem, Rosinha, amanhã eu volto, mas veja se me arranja mesmo uma cesta com fruta!

  Com habitual agilidade ela pôs-se de pé, andando dois passos sobre a estreita borda do muro, agachando-se e se lançando para baixo. Seu corpo foi descendo, a cabeça desapareceu, e finalmente as mãos. Respirando aliviada Rosinha gritou mais energicamente com os cães que ainda insistiam em latir. Então tomou uma pêra caída, e a lançou para longe, provocando-lhes correrias naquela direção.

  Em seguida, passou a catar do chão as frutas em boas condições as lançando sobre o muro, na expectativa de que Calunga as pegasse. Afora os erros na pontaria, em que as frutas esborrachavam-se de volta ao pomar, conseguiu acertar três lançamentos e estancou os movimentos ao ouvir vozes, afastando-se do local. Eram Pedro e um dos empregados.

                                                                               *     *     *

  Rosinha mais se distraia do que comia. Almeida, calado e de rosto sério, parecendo somente preocupado com seus pessoais problemas não a observava. Vestia robe verde e tinha os negros cabelos irrestritamente penteados para trás sem nenhuma divisão. Alguns poucos fios brancos entremeavam-lhe a farta cabeleira e os óculos de aros finos davam-lhe ao rosto redondo um ar mais velho, embora tivesse chegado somente aos trinta e cinco.

  Em relação à Rosinha, Almeida não tinha mesmo com o que se preocupar, porque lhe implantara invariável rotina, rigorosamente supervisionada pela fiel Luiza. O cerne de tudo era a formação da criança. Conversara com educadores, desejava-lhe ensino mais do que eficiente, muito além do encontrado nas escolas. Por isso, ela passara a aprender em casa com maior aproveitamento, tendo demonstrado inteligência acima da idade e fácil assimilação, o que era sem dúvida animador. Mais tarde, iria requerer exames de níveis que proporcionariam à filha todos os certificados possíveis e necessários. Então a mandaria para Europa e lá ela se prepararia para uma universidade de maior envergadura cultural. Voltaria, definitivamente, anos depois, se possível para assumir a fábrica ou estabelecer-se competentemente numa escolhida profissão. Contratara Marga para iniciá-la nos estudos. Após Marga, outros mestres capacitados viriam com novos e sólidos conhecimentos. Não a queria vulgarizada, não desejava vê-la noutros ambientes até que pudesse guiar-se com auto-suficiência. Faria isso pela esposa, jurara no seu leito de morte.  Educar Rosinha da melhor maneira possível era mais que obrigação, era uma divisa – o juramento que cumpriria! Lá onde a esposa estivesse iria orgulhar-se dele!

  Dia seguinte, Rosinha foi ao fundo do bosque onde existia o galpão. Abriu a porta e adentrou. Estava escuro e nada conseguia divisar resolvendo acender a luz, encostando a porta a fim de não ser vista. Um forte cheiro recendia – era mistura de mofo com suores das roupas dos homens, exalação de inseticidas, de vitaminas para a terra, de ração dos cães e de outros produtos usados na conservação da propriedade. O comprido e amplo galpão guardava, além daquelas coisas, muitos caixotes, sacos, galões, baldes, ferramentas e diversos outros acessórios. Rosinha lançou olhar em derredor e  caminhou entre prateleiras, desviando-se de recipientes no chão. Adiante enxergou o que procurava: duas coleiras e respectivas correias. Arrastou até ali um banco de madeira e subiu nele, esticando o braço para alcançar as coleiras dependuradas em pregos. A seguir, ficou a remexer pelos cantos, terminando essa segunda busca próximo da janela, de onde levantou sacos de estopa que encobriam pequena pilha de cestos de fibra, escolhendo um deles, e correu para o pomar. Uma vez lá, foi em direção ao capinzal, escondendo o cesto nos seus entremeios, indo para os lados do muro.

  Tendo realizado essas coisas, sentia-se mais leve. Seria incômodo ser surpreendida com o cesto e precisar outra vez mentir. Felizmente nada disso acontecera e agora caminhava junto ao muro, ao envolvimento azul de seu vestido, ao afago da aragem amiga, sob a aclamação dos trinares de pássaros e zunidos festejantes de besouros e outros insetos aéreos.

  Uma cigarra explodia em vibrações de cantiga, aproveitando o calor solar. De novo aquele delicioso aroma do pomar navegava de um lado a outro sob o leme da aragem, e de novo a vida ali imanente transcendia seus limites em naturais expansões e liberdade. Rosinha, semi-ausente daquelas impressões etéreas, polarizava-se num só pensamento, numa única preocupação. Logo os cães vieram acompanhá-la andando aos flancos e à frente, e ela, olhando para cima, chamava cautelosamente:
  - Calunga...! Calunga...!

  Não ouvia respostas ou sinais e parou de chamar. Indefinido impulso levou-a para o interior do pomar a procurar pelas árvores, logo vendo a tênue esperança diluir-se e se desfazer, concluindo que Calunga realmente não teria ainda chegado. De volta ao capinzal, tomou o cesto e o depositou a um canto do muro, pondo-se a enchê-lo com frutas. Pouco depois, observada a cuidadosa escolha, tinha-o cheio e sortido, com apetitosos cachos de uvas brancas por cima, disfarçado sob galhos e folhas que catara pelas redondezas.

  Caminhando mais uma vez pela trilha marginal ao muro chamou pela ausente visita, mas desiludida veio para o interior do pomar aproximando-se de Sabe-Tudo. Ao parar em frente a ele, tomou-a a vertigem que já conhecia, que logo em seguida a deixava imersa e embalada num indescritível bem estar.
  - Sabe-Tudo, por que as pessoas são diferentes?
  “As razões estão nas necessidades. O que lhe causa estranheza minha menina?”
  - A riqueza e a pobreza. Marga me disse que a pobreza é castigo de Deus. Por que Deus castiga?
  “Cada um pensa o que quer. Eu penso que Deus jamais castiga, são os homens que se castigam e levam com sua ignorância a miséria a outros!”
 - E por que os homens não fazem o certo para não acontecer essas coisas?
  “As trevas do pensamento endurecem corações e cegam a visão clara. Se assim muitos querem assim serão. Quem sofre pelos erros alheios mais adiante será recompensado.”
  - Como, Sabe-Tudo?
  “Vidas após vidas são necessárias para ajustes e acertos. Eventualmente, faz parte da evolução humana aprender sofrendo. Ao final, o sofrimento aproxima das realizações verdadeiras”
  - O que são realizações verdadeiras?
  “Primeiro de tudo é o saber. É existir com a visão clara, bem ao contrário de conviver com as trevas. É fazer pelo bem dos demais sem esperar recompensas. É amar para apagar os erros. É perdoar para avançar. É construir com inteligência. É ser livre de todos os preconceitos. É jogar as âncoras dos pensamentos imperfeitos e obscuros para o fundo do mar da ignorância e lá deixá-las”
  - Não entendi nada Sabe-Tudo!
  “Vai entender, Rosinha, cada dia aprenderá mais um pouco onde quer que esteja, porque não são meras palavras!”

  Pouco depois ela voltava junto ao muro. Como nada visse sentou-se por ali, sobre um diminuto colchão de folhas por ela mesmo arranjado, encostando-se e esticando as pernas. Ao longe, entre dois limoeiros, Sansão e Hércules brincavam pulando um sobre o outro, mordendo-se e rosnando. Seu olhar um tanto distendido oscilava dos cães para os brilhosos sapatos. Movia os olhos maquinalmente, às vezes acompanhando os sulcos de suas brancas meias. Não pensava em nada somente deslizava o olhar. Pouco durou aquilo porque súbito estremecimento sacudiu-a:
  - Rosinha!
  Ela pôs-se de pé sorridente, embelezando mais ainda o rostinho angelical.
  - Eu demorei um pouco, não foi? É que passei na escola pra ver como ia as coisa e me distraí – Calunga falava e caminhava sobre o muro com relativo cuidado, vindo sentar-se diante da outra, jogando as pernas para o lado de dentro, ajeitando o vestido vermelho berrante, procurando inutilmente compor-se.
  - Não faz mal, Calunga, o importante é que você veio. Olhe, aguarde aí só um pouco que eu vou prender o Hércules e o Sansão lá no fundo do pomar para eles não lhe ver.

  Sem perder mais um segundo ela saiu em disparada, chamando os guardiões da propriedade. Chegando ao capinzal, pôs-lhes as coleiras e os prendeu numa árvore fina detrás da folhagem de uma amoreira, de onde os cães nada podiam enxergar do muro, retornando à Calunga.
  - Eu já colhi as frutas para você – informou meio resfolegada – eu vou pegar o cesto. Como não conseguisse trazê-lo por causa do peso, dividiu as frutas e trouxe a primeira parte. Calunga sorriu de satisfação e seus olhos repuxados brilharam.
  - Como é que eu vou lhe entregar, eu não alcanço aí.
  - Faça o seguinte: jogue um por um que eu vou pondo aqui no muro, depois..., depois...
  - Eu jogo o cesto vazio! – completou Rosinha, abaixando-se e tomando desde logo um cacho de uvas.
  - Você vai me dar o cesto também?
  - Claro, como é que você ia levar tudo?
  - Espere! Eu tenho outra idéia. Você esvazia o cesto e me joga ele. Depois joga as fruta que eu coloco todas aqui.

  Rosinha imediatamente esvaziou o cesto e com ele em mãos mandou Calunga aguardar. Correu de volta ao capinzal armazenando mais frutas. Depois uma terceira vez. Terminadas as viagens lançou o cesto para cima, errando dois lançamentos, acertando um terceiro. Tendo Calunga o apoiado sobre o muro, ordenou a Rosinha jogar-lhe as frutas. Ela atirou o primeiro cacho de uvas com grande cuidado para não machucá-lo. Inútil intenção porque Calunga agarrou-o sem jeito, esmagando uns bagos enquanto outros se soltavam e se esborrachavam no chão. Lançou outro e mais outro.      
  - E como é que estava tudo por lá? – perguntou Rosinha em certo instante, retendo um figo na mão.
  - Onde?
  - Na escola!
       - Tudo certo, mas eu tive de dar um cascudo numa engraçadinha, filha de uma bacana.
  - Cascudo? O que é?
   A negrinha olhou-a meio desconcertada
  - Ué, você não sabe o que é um cascudo?
  - Não, nunca vi! – respondeu gentilmente. Calunga abriu largo sorriso e explicou:
  - É de bater assim, ó! Bem no cocuruto da cabeça!
  - Você bateu na engraçad..., na menina? – perguntou espantada.
  - Tinha de bater, né? Ela ficou debochando do meu vestido e do meu cabelo. Depois ficou lá gemendo e chorando. Bem feito, minha mão chegou a doer. Ela deu sorte que eu não puxei o vestido dela até rasgar!

  Rosinha empalideceu e gelou, apertando o figo na mão. Calunga era tão má assim? Então... Porém a perspicácia da negrinha era admirável e percebeu num relance o pensamento da outra. E fingindo nada ter notado comentou:
  - Mas eu não gosto de fazer essas coisa e me arrependo depois – ela procurou estudar a reação de Rosinha que permanecia estarrecida – eu só dei o cascudo nela porque ela ameaçou...é...me jogar uma pedra!
  Rosinha reagiu embora ainda abalada:
  - Ela ia fazer isso?
  Calunga abriu bem os olhos e com a cara mais séria deste mundo confirmou:
  - Ia, ora senão ia! Ela já estava se agachando pra pegar uma e eu não sou nenhuma Judas pra ser apedrejada!
  Rosinha ia de surpresa a surpresa. Calunga aproveitou o bom momento e bateu as mãos em sinal de pedida do fruto e Rosinha acordando, lançou-o. O figo estava amassado.
  - Eu nunca entrei numa escola! – disse Rosinha se abaixando e segurando outro figo.
  - Nunca? – surpreendeu-se a outra.
  - Meu pai não quer. Ele manda a Marga vir aqui para me dar aulas – atirou o figo certeiramente – como é uma escola?
  - Ora..., tem portão, tem muro e...
  - Não é isso – interrompeu Rosinha – eu digo, como é que eles fazem...., a criançada! Eles correm e conversam muito?
  Calunga olhava-a ainda incrédula. Seria mesmo possível que esta menina rica vivesse prisioneira e tudo o que contava era verdade?
  - Você nunca viu mesmo? – arriscou novamente.
  - Bem, já vi de longe uma escola vazia, e pela televisão, mas assim de perto como vejo você, nunca. Eu já pedi para o meu pai me deixar ver uma, mas ele não deixa.
  - Poxa vida, Rosinha, que pai diabo você tem! - Rosinha arregalou os olhos, mas ela não ligou, prosseguindo – Olhe, é uma bagunça danada! Perto do meio dia é um tal de gente saindo e chegando que você nem imagina. Uns grita e corre, outros brinca de roda, sei lá; outros fica implicando e discutindo. Tem gente que leva figurinha pra trocar. Olhe é uma confusão medonha! Só fica silencio depois que toca o sinal, então eles entra em forma. Aí, vai todo mundo pra sala estudar!
  Rosinha escutava a tudo com a maior atenção, procurando imaginar as cenas.
  - Que mais? – insistiu.
  - Ah..., tem muitas coisa, depende do dia!
  - Puxa, é formidável. Quem me dera eu pudesse ir para a escola! E você? – perguntou repentinamente.
  - Eu o quê?
  - Não estuda na escola também?
  Ela desarmou-se e murchou. No entanto procurou logo recuperar aquele ar brejeiro e importante, sem conseguir:
  - Sabe como é, eu...- baixou os olhos – não, eles não me aceitou.
  - Não lhe aceitaram? – Rosinha se espantara ingenuamente.
  - Porque sou mendiga e não tenho família!
  - Mas..., mas – gaguejava Rosinha – e o Gregório que você falou, e a...., a Janú, eles não seus pais emprestados?
  - Só isso. Eles não têm papel de documento nem pra eles, nadinha, nem pra provar que eles existe, quanto mais eu....
  Rosinha ficou triste e calou-se. De repente a negrinha recuperou a vivacidade, falando com raiva incontida:
  - Mas eles se engana comigo. Eu aprendo mais coisa na rua que eles dentro daquelas sala. E se eles me chateia eu taco o braço neles, até nos menino. Ninguém lá pode comigo, nem a professora. Eu sou Calunga!
  Rosinha atordoada com aquela explosão de raiva via o rosto da negrinha se transformar, tornando-se revolto e duro. Desaparecia dela o olhar escarninho e a expressão de esgar tão característicos, e Rosinha temeu-a.

                                                                               *     *     *

  Rosinha penetrara os caminhos do jardim parando diante de Áurea.
  - Conte-me uma história alegre e bonita, Áurea.
  “Era uma vez uma rosa. Quando ainda botão, ardia em aspirações de logo abrir-se, mostrar sua formosura ao mundo, ser visitada por abelhas e beija-flores. Queria ver o Sol, receber a saudação matinal e os sussurrantes galanteios do vento. Queria e desejava contemplar de seu fino caule as plantas rasteiras, pender-se e balançar-se em ostentação, abrir largos sorrisos de superioridade. Sonhava com a mão do jardineiro enlevado e satisfeito acariciando-lhe as pétalas, a orgulhar-se dela – a mais bela entre todas!

  E veio o dia em que a irresistível pressão da natureza excitou-a e a fez irromper de botão a rosa. Tão logo suas pétalas lançavam-se e se abriam, ela procurava olhar para o céu e ver o Sol, sentir as carícias do vento e sobrepor-se às plantas inferiores. Porém, sua visão embaçou e seu corpo inteiro foi arremessado com violência, quase sendo arrancado do pé. Naquele exato instante, em que nem ainda respirava direito o ar do mundo, um temporal de chuva e vento desabava e escurecia o céu. Raios e relâmpagos riscavam o espaço, trovões ribombavam assustadoramente; o vento uivava carregando coisas com seus impetuosos açoites e a custo ela conseguia manter-se presa ao pé. Naquela agitação, pode ver que era a única rosa que se abrira na roseira.

  A noite veio e a tempestade diminuiu, porém chovia ainda e ventava. Ela sozinha, tremendo e se angustiando, aguentava temerosamente aquele castigo sem ter ninguém com quem conversar ou amparar-se. Nem coragem reunia de olhar para baixo em direção dos capins e plantas rasteiras, temendo uma vertigem e desfalecimento. Pela madrugada esfriou horrivelmente, ela trepidava e se encolhia, vendo, afinal, em certo momento de maior desespero, como embaixo as plantas rasteiras e os capins se acolhiam e se amparavam. E ela estava só e abandonada, ninguém se apiedava dela! Quem dera tivesse ali um amigo ou companheira para juntos suportar as intempéries. Sofria horrores, nem um minuto sequer de sua vida conhecera a alegria. Tolo orgulho: de que lhe servira se de nada lhe valia agora! Tivesse antes se despetalada ou fosse lançada ao solo, servido de alimento para um bicho, ou misturada ao capim que pelo menos era unido!

   Mas como não há mal que sempre dure e nem bem que nunca acabe, a noite terminou e novo dia veio raiando. O céu mostrava poucas nuvens que haviam permanecido – eram finas e insignificantes – deixando-se trespassar pela luz arroxeada, começando a ganhar tons róseos e belos. Ao ver o atraente dia que se anunciava, o desejo de viver com volúpia e os sonhos sonhados retornaram à sua imaginação. Veria o Sol, sentiria a carícia da brisa da manhã, saberia realmente o que é a beleza de viver e se mostraria a todos!

  Mal esses desejos começaram a ser acalentados e se preparava para receber os primeiros raios do Sol, uma mão firme segurou-a e afiada faca ceifou-a do pé. Uma dor súbita a entorpeceu e a enristou, e um grito abafado congelou-se. A mão carregou-a juntando-a a três palmas e ramos ciprestes. Imensa tristeza veio acompanhá-la, porém agora se consolava por estar junto de outros. Um papel celofane as enleou, um barbante as amarrou e foram levadas num só molho. Após curta viagem, em que nada viu, pode perceber, afinal, gente de todos os tipos, vestindo roupas escuras, chorando desesperadamente e dentro do cemitério iam seguindo ao enterro. A atmosfera de opressão e os uivos de dor feriam sua sensibilidade, ao mesmo tempo sentia sua própria vida ir aos poucos escoando. O sofrimento das pessoas a compungia e mesmo estando colada às palmas e ramos ciprestes não desejava consolar nem ser consolada, porque morria também.

  O ataúde foi descido sob gritos e desmaios e a rosa e seus acompanhantes, despidos do celofane, viram-se arrojados para o túmulo, chocando-se à tampa da madeira, quase desfalecendo ao impacto. A rosa que já morria, foi  de repente impedida de ver aqueles rostos tristes ou curiosos, ficando inteiramente abafada e sufocada sob a escuridão do túmulo que era lacrado. Inconformada de ter nascido para um fim tão inglório e injusto ela soluçava. Logo o último suspiro arrancou-lhe a alma do frágil e sofrido caule e viu-se transportada para outro mundo, outra dimensão. Uma alva e fina mão, bela e formosa, segurou-a graciosamente e um nariz perfeito cheirou-a. A rosa olhou-se e viu que estava inteira, suas pétalas mostravam-se vivas e cheias de cintilações. Uma alegria invadiu-a e ela constatou não haver morrido. Ao seu consentimento telepático a mesma mão retirou-a do caule sem qualquer dor, elevando-a com graça e poesia, prendendo-a cuidadosamente aos cabelos de moça linda que sorria, há pouco deixada morta no ataúde. Era a ressurreição de ambas e o início de nova vida, sob as vistas e atenção dos anjos que ali as recebiam!”
  -Puxa, Áurea, que história triste. Eu pedi uma alegre e bonita!
  “Não, Rosinha, a história é bela. Não reparou como o sofrimento da vida quebrantou o orgulho da vaidosa flor? Não percebeu como, ao final, morrendo inglória e injustamente, segundo ela, veio a soluçar? As dores da vida purificam dos erros e os pungentes soluços fazem externar a sabedoria humilde da alma".

                                                                         Segue Capítulo 4

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