CAPÍTULO III
DE NOVO CALUNGA
Dia seguinte à indisposição Rosinha voltava
às aulas. À tarde fez os deveres que Marga tinha passado; depois saiu a correr
e passear pelo bosque e pomar, entrando em casa duas vezes. Luiza via-a agir
com normalidade, e como sempre naquele horário retomava a tricotar. À noite,
Almeida, pontual, chegou e realizou os mesmos movimentos e após o jantar
inquiriu-a sobre seus estudos e atividades. Manhã seguinte, quase tudo se
repetia, e à tarde e à noite.
Passada uma semana, Rosinha quase se
conformava em não mais ver Calunga. Julgava que ela não gostara mesmo de seus
modos e nunca mais retornasse. As imagens daquele encontro, no entanto, por
vezes mexiam-se e falavam-na, demonstrando que ainda insuflavam seu mundo anímico
com alguma vida. Apesar de tudo – meio desacreditada meio não – vez por outra,
ainda esperançada, a procurava pelas árvores. Numa oportunidade, tendo
percorrido a distância que se estendia paralela ao muro, chegou a escalar uma
árvore, um tanto desajeitada, escorregando por causa de seus sapatos, buscando
apressar-se para não ser surpreendida por ninguém, e tentou olhar sobre o muro
na intenção de vê-la pelos arredores. No entanto, conseguiu enxergar somente
árvores e telhados e longínquas montanhas sob névoa azulada, tão inalcansáveis
quanto era sua liberdade. A mentira não mais se arremessava em seus
pensamentos, nem ecoavam-lhe aos ouvidos palavras chamejantes que a haviam
queimado tantas vezes num só dia. Sabe-Tudo com sua sabedoria e conselhos lavara-lhe
a alma!
Luiza deixara de lado aquele assunto do
pomar, não mais evocava a mentira da criança e seu insurgimento às costumeiras
ordens. Domingo, ao levá-la a passear pelo parque e observá-la com maior
interesse enquanto ela se divertia com escorregas e balanços, a cena do pomar
retornou-lhe à lembrança. Com desagrado procurou afastá-la da mente.
Veio a segunda-feira. Rosinha suportou como
pode as lições com Marga e ao almoço sua companhia à mesma mesa. À tarde, após
os deveres de casa, saiu a correr pelo bosque, a conversar com Áurea e a
visitar o pomar. Sansão e Hércules escarafunchavam o capinzal do fundo do
terreno, enquanto ela caminhava próximo ao muro. Entretanto, uma surpresa a
aguardava. Sobre o muro, protegido por um volumoso galho de uma pereira a
alguns metros dali, um vulto negro, sentado, chamou-a:
- Ei, Rosinha, estou aqui!
Era a mesma voz, a mesma presença. Rosinha
deu um salto de alegria e exclamou:
- Calunga!
- Eu mesma. E quede os dois vira-lata?
- Estão lá no meio do capim! – respondeu
emocionada apontando para aquela direção.
- Então não posso pular pra aí, senão eles me
vê e faz de novo aquele barulho todo!
- É, não pule não, fique aí mesmo! Espere!
Por que você não dá a volta por fora e pula lá no fundo, no bosque? Lá podemos
conversar mais a vontade! – sugeriu agitada.
- Lá o muro é alto e cheio de caco de vidro,
além do mais não tem fruta!
Rosinha olhou-a com uma ponta de decepção a
empanar o brilho de seus olhos.
- Você então veio aqui... ,por causa das frutas?
Calunga, elevando os olhos de sobre Rosinha,
correu o antebraço sob o nariz esfregando-o e mirou um dos parreirais mais
adiante carregado de uvas brancas, respondendo com medido desinteresse.
- É pelas fruta...
Rosinha sentiu o coração apertar. A negrinha
prosseguiu após a pequena pausa:
-
...pra lhe ver também. Afinal quase não deu pra gente falar daquela vez!
Rosinha sorriu largamente, os olhos emitiram
brilho de rara beleza!
- Por mim também?
- Ué, por que não? Pelo que sei fruta é
fruta, a gente come e ela acaba, mas gente é gente! Ainda mais como você!
- Como eu? – perguntou surpresa e curiosa.
- É, cheia de novidade, de esquisit..., eh...,
de história e dona de um lugar grande como esse.
- Mas isso aqui não é meu, é do meu pai. Ele
é dono também de uma fábrica de tecidos!
- É a mesma coisa, ora – soltou aquele riso
debochado – se o seu pai é dono de alguma coisa você também é. É a mesminha
coisa!
- Ele nunca me disse que eu era dona de nada
– exclamou inocentemente com ar atarantado.
- É preciso dizer, Rosinha? O que é do pai é
da filha, sempre foi assim. Bem, eu acho que sempre foi.
Rosinha pensou um pouco levando o dedo ao
queixo e apontou-o para Calunga.
- Estou me lembrando que Sabe-Tudo me disse
que nós de verdade não somos donos de nada, nem do nosso corpo, porque ele vem,
cresce e se acaba e nós não conseguimos detê-lo e nem entender direito como ele
funciona, quanto mais sermos os donos dele!
- Chiii....! – fez Calunga com cara de tédio.
-Chi, o quê? – perguntou Rosinha, piscando
vivamente.
-
Nada..., nada! É que..., bem esse Sabe-Tudo, é um bocado complicado né?
- Ele é
filósofo, já disse isso. Ele fala assim mesmo, só para deixar a gente pensando.
Calunga refletiu. Em seguida voltou a encarar
o rosto pálido de Rosinha.
- Sabe de uma coisa, Rosinha, eu tive
pensando noutro dia do que você me contou desse tal Sabe-Tudo e daquela
roseira, a...,a...
- Áurea! – acudiu-a Rosinha
- É, dessa aí! É que...,eu também conheço
duas pessoa que diz coisa parecida. Um é o Príncipe, que mora com a gente. Ele
vive sonhando. De vez em quando diz umas coisa estranha; o outro é o Gregório,
meu pai de criação, que fala coisa difícil, mas só sobre a miséria. Só que eles
não é árvore, é gente de carne e osso como nós!
Rosinha, comovida, não percebeu a proposital
mensagem de Calunga.
- Quer dizer que eles também falam coisas
para você pensar? – excitou-se pela provável coincidência.
- Pra
dizer a verdade eu nem ligo quando eles começa a abrir a boca falando e
falando. Quem aguenta eles é a Janú!
- Janú?
- Minha mãe de criação, ela se chama mesmo é
Januária, mas todo mundo chama ela de Janú!
- Eu também não tenho mãe – falou Rosinha com
naturalidade – quem me criou foi a Luiza..., aquela que me chamou da outra vez,
lembra-se?
- Eu não cheguei a ver ela. Eu pulei fora da
ameixera, corri lá pra aquele telhado de maracujá, subi nele e me mandei por
cima do muro!
- Como é que você consegue pular para fora de
um muro tão alto, ninguém até hoje conseguiu?
Ela riu e olhou para trás, apontando para
baixo:
- É que um tronco de árvore despencou e
encostou no muro. Eu aproveito e subo nele até aqui, então agarro aqui em cima
e pulo. Ainda bem que desse lado não tem caco de vidro senão eu não ia
conseguir!
-
Ah...! – fez Rosinha entendendo.
Nesse instante, Hércules e Sansão surgiram
ferozes, latindo e pulando, querendo atacar Calunga. Rosinha assustada gritou:
- Vá embora, Calunga! Os empregados vão lhe
descobrir e eu nunca mais vou poder conversar com você!
- Mas eu não comi fruta nenhuma! – respondeu
Calunga sem se alterar.
- Vá, por favor! – suplicou-lhe – vá, eu jogo
algumas pelo muro e amanhã eu encho uma cesta todinha para você levar, depois
do almoço!
Os cães, como da outra vez, latiam furiosamente
e pulavam, ignorando as ordens de Rosinha para se acalmar.
- Ta bem, Rosinha, amanhã eu volto, mas veja
se me arranja mesmo uma cesta com fruta!
Com
habitual agilidade ela pôs-se de pé, andando dois passos sobre a estreita borda
do muro, agachando-se e se lançando para baixo. Seu corpo foi descendo, a
cabeça desapareceu, e finalmente as mãos. Respirando aliviada Rosinha gritou
mais energicamente com os cães que ainda insistiam em latir. Então tomou uma
pêra caída, e a lançou para longe, provocando-lhes correrias naquela direção.
Em seguida, passou a catar do chão as frutas
em boas condições as lançando sobre o muro, na expectativa de que Calunga as
pegasse. Afora os erros na pontaria, em que as frutas esborrachavam-se de volta
ao pomar, conseguiu acertar três lançamentos e estancou os movimentos ao ouvir
vozes, afastando-se do local. Eram Pedro e um dos empregados.
* * *
Rosinha mais se distraia do que comia.
Almeida, calado e de rosto sério, parecendo somente preocupado com seus
pessoais problemas não a observava. Vestia robe verde e tinha os negros cabelos
irrestritamente penteados para trás sem nenhuma divisão. Alguns poucos fios
brancos entremeavam-lhe a farta cabeleira e os óculos de aros finos davam-lhe
ao rosto redondo um ar mais velho, embora tivesse chegado somente aos trinta e
cinco.
Em relação à Rosinha, Almeida não tinha mesmo
com o que se preocupar, porque lhe implantara invariável rotina, rigorosamente
supervisionada pela fiel Luiza. O cerne de tudo era a formação da criança. Conversara
com educadores, desejava-lhe ensino mais do que eficiente, muito além do encontrado
nas escolas. Por isso, ela passara a aprender em casa com maior aproveitamento,
tendo demonstrado inteligência acima da idade e fácil assimilação, o que era
sem dúvida animador. Mais tarde, iria requerer exames de níveis que
proporcionariam à filha todos os certificados possíveis e necessários. Então a
mandaria para Europa e lá ela se prepararia para uma universidade de maior
envergadura cultural. Voltaria, definitivamente, anos depois, se possível para
assumir a fábrica ou estabelecer-se competentemente numa escolhida profissão. Contratara
Marga para iniciá-la nos estudos. Após Marga, outros mestres capacitados viriam
com novos e sólidos conhecimentos. Não a queria vulgarizada, não desejava vê-la
noutros ambientes até que pudesse guiar-se com auto-suficiência. Faria isso
pela esposa, jurara no seu leito de morte.
Educar Rosinha da melhor maneira possível era mais que obrigação, era uma
divisa – o juramento que cumpriria! Lá onde a esposa estivesse iria orgulhar-se
dele!
Dia seguinte, Rosinha foi ao fundo do bosque
onde existia o galpão. Abriu a porta e adentrou. Estava escuro e nada conseguia
divisar resolvendo acender a luz, encostando a porta a fim de não ser vista. Um
forte cheiro recendia – era mistura de mofo com suores das roupas dos homens, exalação
de inseticidas, de vitaminas para a terra, de ração dos cães e de outros
produtos usados na conservação da propriedade. O comprido e amplo galpão
guardava, além daquelas coisas, muitos caixotes, sacos, galões, baldes, ferramentas
e diversos outros acessórios. Rosinha lançou olhar em derredor e caminhou entre prateleiras, desviando-se de
recipientes no chão. Adiante enxergou o que procurava: duas coleiras e
respectivas correias. Arrastou até ali um banco de madeira e subiu nele, esticando
o braço para alcançar as coleiras dependuradas em pregos. A seguir, ficou a
remexer pelos cantos, terminando essa segunda busca próximo da janela, de onde
levantou sacos de estopa que encobriam pequena pilha de cestos de fibra,
escolhendo um deles, e correu para o pomar. Uma vez lá, foi em direção ao
capinzal, escondendo o cesto nos seus entremeios, indo para os lados do muro.
Tendo realizado essas coisas, sentia-se mais
leve. Seria incômodo ser surpreendida com o cesto e precisar outra vez mentir.
Felizmente nada disso acontecera e agora caminhava junto ao muro, ao
envolvimento azul de seu vestido, ao afago da aragem amiga, sob a aclamação dos
trinares de pássaros e zunidos festejantes de besouros e outros insetos aéreos.
Uma cigarra explodia em vibrações de cantiga,
aproveitando o calor solar. De novo aquele delicioso aroma do pomar navegava de
um lado a outro sob o leme da aragem, e de novo a vida ali imanente transcendia
seus limites em naturais expansões e liberdade. Rosinha, semi-ausente daquelas
impressões etéreas, polarizava-se num só pensamento, numa única preocupação.
Logo os cães vieram acompanhá-la andando aos flancos e à frente, e ela, olhando
para cima, chamava cautelosamente:
-
Calunga...! Calunga...!
Não ouvia respostas ou sinais e parou de
chamar. Indefinido impulso levou-a para o interior do pomar a procurar pelas
árvores, logo vendo a tênue esperança diluir-se e se desfazer, concluindo que
Calunga realmente não teria ainda chegado. De volta ao capinzal, tomou o cesto
e o depositou a um canto do muro, pondo-se a enchê-lo com frutas. Pouco depois,
observada a cuidadosa escolha, tinha-o cheio e sortido, com apetitosos cachos
de uvas brancas por cima, disfarçado sob galhos e folhas que catara pelas
redondezas.
Caminhando mais uma vez pela trilha marginal
ao muro chamou pela ausente visita, mas desiludida veio para o interior do
pomar aproximando-se de Sabe-Tudo. Ao parar em frente a ele, tomou-a a vertigem
que já conhecia, que logo em seguida a deixava imersa e embalada num
indescritível bem estar.
-
Sabe-Tudo, por que as pessoas são diferentes?
“As razões estão nas necessidades. O que lhe
causa estranheza minha menina?”
- A riqueza e a pobreza. Marga me disse que a
pobreza é castigo de Deus. Por que Deus castiga?
“Cada um pensa o que quer. Eu penso que Deus
jamais castiga, são os homens que se castigam e levam com sua ignorância a
miséria a outros!”
- E por que os homens não fazem o certo para
não acontecer essas coisas?
“As trevas do pensamento endurecem corações e
cegam a visão clara. Se assim muitos querem assim serão. Quem sofre pelos erros
alheios mais adiante será recompensado.”
- Como, Sabe-Tudo?
“Vidas
após vidas são necessárias para ajustes e acertos. Eventualmente, faz parte da
evolução humana aprender sofrendo. Ao final, o sofrimento aproxima das
realizações verdadeiras”
- O que são realizações verdadeiras?
“Primeiro
de tudo é o saber. É existir com a visão clara, bem ao contrário de conviver
com as trevas. É fazer pelo bem dos demais sem esperar recompensas. É amar para
apagar os erros. É perdoar para avançar. É construir com inteligência. É ser
livre de todos os preconceitos. É jogar as âncoras dos pensamentos imperfeitos
e obscuros para o fundo do mar da ignorância e lá deixá-las”
- Não entendi nada Sabe-Tudo!
“Vai entender, Rosinha, cada dia aprenderá
mais um pouco onde quer que esteja, porque não são meras palavras!”
Pouco depois ela voltava junto ao muro. Como
nada visse sentou-se por ali, sobre um diminuto colchão de folhas por ela mesmo
arranjado, encostando-se e esticando as pernas. Ao longe, entre dois limoeiros,
Sansão e Hércules brincavam pulando um sobre o outro, mordendo-se e rosnando.
Seu olhar um tanto distendido oscilava dos cães para os brilhosos sapatos.
Movia os olhos maquinalmente, às vezes acompanhando os sulcos de suas brancas
meias. Não pensava em nada somente deslizava o olhar. Pouco durou aquilo porque
súbito estremecimento sacudiu-a:
- Rosinha!
Ela pôs-se de pé sorridente, embelezando mais
ainda o rostinho angelical.
- Eu demorei um pouco, não foi? É que passei
na escola pra ver como ia as coisa e me distraí – Calunga falava e caminhava
sobre o muro com relativo cuidado, vindo sentar-se diante da outra, jogando as
pernas para o lado de dentro, ajeitando o vestido vermelho berrante, procurando
inutilmente compor-se.
- Não
faz mal, Calunga, o importante é que você veio. Olhe, aguarde aí só um pouco
que eu vou prender o Hércules e o Sansão lá no fundo do pomar para eles não lhe
ver.
Sem perder mais um segundo ela saiu em
disparada, chamando os guardiões da propriedade. Chegando ao capinzal, pôs-lhes
as coleiras e os prendeu numa árvore fina detrás da folhagem de uma amoreira,
de onde os cães nada podiam enxergar do muro, retornando à Calunga.
- Eu já colhi as frutas para você – informou
meio resfolegada – eu vou pegar o cesto. Como não conseguisse trazê-lo por
causa do peso, dividiu as frutas e trouxe a primeira parte. Calunga sorriu de
satisfação e seus olhos repuxados brilharam.
- Como é que eu vou lhe entregar, eu não
alcanço aí.
- Faça o seguinte: jogue um por um que eu vou
pondo aqui no muro, depois..., depois...
- Eu
jogo o cesto vazio! – completou Rosinha, abaixando-se e tomando desde logo um
cacho de uvas.
- Você
vai me dar o cesto também?
- Claro, como é que você ia levar tudo?
- Espere!
Eu tenho outra idéia. Você esvazia o cesto e me joga ele. Depois joga as fruta
que eu coloco todas aqui.
Rosinha
imediatamente esvaziou o cesto e com ele em mãos mandou Calunga aguardar.
Correu de volta ao capinzal armazenando mais frutas. Depois uma terceira vez.
Terminadas as viagens lançou o cesto para cima, errando dois lançamentos,
acertando um terceiro. Tendo Calunga o apoiado sobre o muro, ordenou a Rosinha
jogar-lhe as frutas. Ela atirou o primeiro cacho de uvas com grande cuidado
para não machucá-lo. Inútil intenção porque Calunga agarrou-o sem jeito,
esmagando uns bagos enquanto outros se soltavam e se esborrachavam no chão.
Lançou outro e mais outro.
- E como é que estava tudo por lá? –
perguntou Rosinha em certo instante, retendo um figo na mão.
- Onde?
- Na escola!
- Tudo certo, mas eu tive de dar um
cascudo numa engraçadinha, filha de uma bacana.
-
Cascudo? O que é?
A negrinha olhou-a meio desconcertada
- Ué, você não sabe o que é um cascudo?
- Não, nunca vi! – respondeu gentilmente.
Calunga abriu largo sorriso e explicou:
- É de
bater assim, ó! Bem no cocuruto da cabeça!
- Você bateu na engraçad..., na menina? –
perguntou espantada.
- Tinha de bater, né? Ela ficou debochando do
meu vestido e do meu cabelo. Depois ficou lá gemendo e chorando. Bem feito,
minha mão chegou a doer. Ela deu sorte que eu não puxei o vestido dela até
rasgar!
Rosinha empalideceu e gelou, apertando o figo
na mão. Calunga era tão má assim? Então... Porém a perspicácia da negrinha era
admirável e percebeu num relance o pensamento da outra. E fingindo nada ter
notado comentou:
- Mas
eu não gosto de fazer essas coisa e me arrependo depois – ela procurou estudar
a reação de Rosinha que permanecia estarrecida – eu só dei o cascudo nela
porque ela ameaçou...é...me jogar uma pedra!
Rosinha reagiu embora ainda abalada:
- Ela
ia fazer isso?
Calunga abriu bem os olhos e com a cara mais
séria deste mundo confirmou:
- Ia, ora senão ia! Ela já estava se
agachando pra pegar uma e eu não sou nenhuma Judas pra ser apedrejada!
Rosinha ia de surpresa a surpresa. Calunga
aproveitou o bom momento e bateu as mãos em sinal de pedida do fruto e Rosinha
acordando, lançou-o. O figo estava amassado.
- Eu nunca entrei numa escola! – disse
Rosinha se abaixando e segurando outro figo.
- Nunca? – surpreendeu-se a outra.
- Meu pai não quer. Ele manda a Marga vir
aqui para me dar aulas – atirou o figo certeiramente – como é uma escola?
-
Ora..., tem portão, tem muro e...
- Não é
isso – interrompeu Rosinha – eu digo, como é que eles fazem...., a criançada!
Eles correm e conversam muito?
Calunga olhava-a ainda incrédula. Seria mesmo
possível que esta menina rica vivesse prisioneira e tudo o que contava era
verdade?
- Você nunca viu mesmo? – arriscou novamente.
- Bem, já vi de longe uma escola vazia, e
pela televisão, mas assim de perto como vejo você, nunca. Eu já pedi para o meu
pai me deixar ver uma, mas ele não deixa.
- Poxa vida, Rosinha, que pai diabo você tem!
- Rosinha arregalou os olhos, mas ela não ligou, prosseguindo – Olhe, é uma
bagunça danada! Perto do meio dia é um tal de gente saindo e chegando que você
nem imagina. Uns grita e corre, outros brinca de roda, sei lá; outros fica
implicando e discutindo. Tem gente que leva figurinha pra trocar. Olhe é uma
confusão medonha! Só fica silencio depois que toca o sinal, então eles entra em
forma. Aí, vai todo mundo pra sala estudar!
Rosinha
escutava a tudo com a maior atenção, procurando imaginar as cenas.
- Que mais? – insistiu.
- Ah..., tem muitas coisa, depende do dia!
- Puxa, é formidável. Quem me dera eu pudesse
ir para a escola! E você? – perguntou repentinamente.
- Eu o quê?
- Não estuda na escola também?
Ela desarmou-se e murchou. No entanto
procurou logo recuperar aquele ar brejeiro e importante, sem conseguir:
- Sabe como é, eu...- baixou os olhos – não,
eles não me aceitou.
- Não lhe aceitaram? – Rosinha se espantara
ingenuamente.
-
Porque sou mendiga e não tenho família!
- Mas..., mas – gaguejava Rosinha – e o
Gregório que você falou, e a...., a Janú, eles não seus pais emprestados?
- Só isso. Eles não têm papel de documento
nem pra eles, nadinha, nem pra provar que eles existe, quanto mais eu....
Rosinha ficou triste e calou-se. De repente a
negrinha recuperou a vivacidade, falando com raiva incontida:
- Mas eles se engana comigo. Eu aprendo mais
coisa na rua que eles dentro daquelas sala. E se eles me chateia eu taco o
braço neles, até nos menino. Ninguém lá pode comigo, nem a professora. Eu sou
Calunga!
Rosinha atordoada com aquela explosão de
raiva via o rosto da negrinha se transformar, tornando-se revolto e duro.
Desaparecia dela o olhar escarninho e a expressão de esgar tão característicos,
e Rosinha temeu-a.
* * *
Rosinha penetrara os caminhos do jardim
parando diante de Áurea.
- Conte-me uma história alegre e bonita,
Áurea.
“Era uma vez uma rosa. Quando ainda botão,
ardia em aspirações de logo abrir-se, mostrar sua formosura ao mundo, ser
visitada por abelhas e beija-flores. Queria ver o Sol, receber a saudação
matinal e os sussurrantes galanteios do vento. Queria e desejava contemplar de
seu fino caule as plantas rasteiras, pender-se e balançar-se em ostentação,
abrir largos sorrisos de superioridade. Sonhava com a mão do jardineiro
enlevado e satisfeito acariciando-lhe as pétalas, a orgulhar-se dela – a mais
bela entre todas!
E veio
o dia em que a irresistível pressão da natureza excitou-a e a fez irromper de
botão a rosa. Tão logo suas pétalas lançavam-se e se abriam, ela procurava
olhar para o céu e ver o Sol, sentir as carícias do vento e sobrepor-se às
plantas inferiores. Porém, sua visão embaçou e seu corpo inteiro foi
arremessado com violência, quase sendo arrancado do pé. Naquele exato instante,
em que nem ainda respirava direito o ar do mundo, um temporal de chuva e vento
desabava e escurecia o céu. Raios e relâmpagos riscavam o espaço, trovões
ribombavam assustadoramente; o vento uivava carregando coisas com seus
impetuosos açoites e a custo ela conseguia manter-se presa ao pé. Naquela
agitação, pode ver que era a única rosa que se abrira na roseira.
A noite veio e a tempestade diminuiu, porém
chovia ainda e ventava. Ela sozinha, tremendo e se angustiando, aguentava
temerosamente aquele castigo sem ter ninguém com quem conversar ou amparar-se.
Nem coragem reunia de olhar para baixo em direção dos capins e plantas
rasteiras, temendo uma vertigem e desfalecimento. Pela madrugada esfriou
horrivelmente, ela trepidava e se encolhia, vendo, afinal, em certo momento de
maior desespero, como embaixo as plantas rasteiras e os capins se acolhiam e se
amparavam. E ela estava só e abandonada, ninguém se apiedava dela! Quem dera
tivesse ali um amigo ou companheira para juntos suportar as intempéries. Sofria
horrores, nem um minuto sequer de sua vida conhecera a alegria. Tolo orgulho:
de que lhe servira se de nada lhe valia agora! Tivesse antes se despetalada ou
fosse lançada ao solo, servido de alimento para um bicho, ou misturada ao capim
que pelo menos era unido!
Mas como não há mal que sempre dure e nem
bem que nunca acabe, a noite terminou e novo dia veio raiando. O céu mostrava
poucas nuvens que haviam permanecido – eram finas e insignificantes –
deixando-se trespassar pela luz arroxeada, começando a ganhar tons róseos e
belos. Ao ver o atraente dia que se anunciava, o desejo de viver com volúpia e
os sonhos sonhados retornaram à sua imaginação. Veria o Sol, sentiria a carícia
da brisa da manhã, saberia realmente o que é a beleza de viver e se mostraria a
todos!
Mal esses desejos começaram a ser acalentados
e se preparava para receber os primeiros raios do Sol, uma mão firme segurou-a
e afiada faca ceifou-a do pé. Uma dor súbita a entorpeceu e a enristou, e um
grito abafado congelou-se. A mão carregou-a juntando-a a três palmas e ramos
ciprestes. Imensa tristeza veio acompanhá-la, porém agora se consolava por
estar junto de outros. Um papel celofane as enleou, um barbante as amarrou e foram
levadas num só molho. Após curta viagem, em que nada viu, pode perceber,
afinal, gente de todos os tipos, vestindo roupas escuras, chorando
desesperadamente e dentro do cemitério iam seguindo ao enterro. A atmosfera de
opressão e os uivos de dor feriam sua sensibilidade, ao mesmo tempo sentia sua
própria vida ir aos poucos escoando. O sofrimento das pessoas a compungia e
mesmo estando colada às palmas e ramos ciprestes não desejava consolar nem ser
consolada, porque morria também.
O ataúde foi descido sob gritos e desmaios e
a rosa e seus acompanhantes, despidos do celofane, viram-se arrojados para o
túmulo, chocando-se à tampa da madeira, quase desfalecendo ao impacto. A rosa
que já morria, foi de repente impedida
de ver aqueles rostos tristes ou curiosos, ficando inteiramente abafada e
sufocada sob a escuridão do túmulo que era lacrado. Inconformada de ter nascido
para um fim tão inglório e injusto ela soluçava. Logo o último suspiro
arrancou-lhe a alma do frágil e sofrido caule e viu-se transportada para outro
mundo, outra dimensão. Uma alva e fina mão, bela e formosa, segurou-a
graciosamente e um nariz perfeito cheirou-a. A rosa olhou-se e viu que estava
inteira, suas pétalas mostravam-se vivas e cheias de cintilações. Uma alegria
invadiu-a e ela constatou não haver morrido. Ao seu consentimento telepático a
mesma mão retirou-a do caule sem qualquer dor, elevando-a com graça e poesia,
prendendo-a cuidadosamente aos cabelos de moça linda que sorria, há pouco
deixada morta no ataúde. Era a ressurreição de ambas e o início de nova vida,
sob as vistas e atenção dos anjos que ali as recebiam!”
-Puxa,
Áurea, que história triste. Eu pedi uma alegre e bonita!
“Não, Rosinha, a história é bela. Não reparou
como o sofrimento da vida quebrantou o orgulho da vaidosa flor? Não percebeu
como, ao final, morrendo inglória e injustamente, segundo ela, veio a soluçar?
As dores da vida purificam dos erros e os pungentes soluços fazem externar a
sabedoria humilde da alma".
Segue Capítulo 4
Siga os links: Rosinha - (1)
Rosinha - (2)
Rosinha - (3)
Rosinha - (4)
Rosinha - (5)
Rosinha - (6)
Rosinha - (7)
Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com.br
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