CAPÍTULO II
ÁUREA E SABE-TUDO
Rosinha
permaneceu em seu quarto pouco mais de meia hora. Sentada no chão, apoiando as
costas na travessa da cama, sentindo o contato da colcha e a maciez do colchão,
ficara a cismar. Ora encolhia as pernas e encostava a testa nos joelhos, ora
apoiava o queixo sobre eles, enlaçando as pernas num abraço quebrado e
apertado.
À frente, preso à parede forrada de papel
róseo salpicado de raminhos e diminutas flores, seu rostinho colorido
sorria-lhe na ampliação emoldurada. Pendurados nesta e noutras paredes, bichinhos
e quadrinhos povoavam os limites de seu mundo restrito, sob os olhares mudos e
complacentes de bonecas sobre o reluzente guarda-roupas, e expressão humanizada
de urso peludo e cachorro de pelúcia a um canto. Atrás, a bambinela abria-se
deixando penetrar pela janela escancarada uma aragem fresca impregnada de
evolante perfume agreste e agradável, misturada aos incessantes cantos de
pássaros, agora distantes da percepção da criança.
Durante o tempo crítico em que aqui permanecia
ela agitava-se; a figura de Calunga arrojava-se e polarizava-lhe a atenção. Revia-a
sorrindo e a admoestando, a contar aquelas histórias incríveis. Em certos
momentos, súbitos tremores vinham sacudir as imagens febris, rasgando-as,
fazendo-a alternar a postura há pouco adotada e retratar na fisionomia uma
angústia mesclada à indignação. Espelhava-se, então, no pálido e gracioso
rostinho, faiscante expressão que em seguida se diluía. Esses abalos,
subiam-lhe à alma ou desciam-lhe quando se lembrava da mentira contada a Luiza
e na suposição do castigo que àquilo adviria. O pensamento voava em direção a
Sabe-Tudo. A essa altura, sem qualquer dúvida, ele já havia tomado conhecimento
de sua mentira, da língua batráquia que cuspira a baba pegajosa sobre Luiza.
Ante a conjetura, um gosto amargo fermentava-lhe a boca e com repugnância
engolia a saliva que a sentia engrossar.
Nesse desfile de imagens também revia o rosto
redondo e negro de Luiza, a penetrante ação daqueles olhos argutos e o ar de
dúvida que mostrara. Teria realmente acreditado? Nunca mentira antes e
experimentara, além de gigantescas dificuldades, incomensurável resistência
para declará-la. Por outro lado, teria Calunga conseguido evadir-se do pomar e
saltado o muro por onde certamente viera? E como conseguiria? Certa vez ouvira
Pedro falar a um dos empregados que o muro tinha mais de dois metros de altura
e o terreno vizinho era mais baixo um metro. Contava revê-la para de novo
conversarem sossegadas, sem o medo de serem surpreendidas. Mas como isso
aconteceria se nada sabia dessa criatura, onde morava, o que realmente fazia ou
se retornaria ao pomar? E se não lhe tivesse agradado e a julgasse só uma
menina boba, certamente não voltaria! E também, por que iria querer voltar,
arriscando-se a ser estraçalhada pelos cães, que certamente não os sabia
existirem ao ingressar no pomar, se tinha tantas diversões, amigos e o guarda
Félix para aconselhá-la. Se essas suspeitas se concretizassem teria mentido e
se sacrificado a toa!
Ante a acerba possibilidade, ela empurrou as
pernas para adiante, em gesto repentino e áspero, estranho a sua natureza dócil
e delicada, e largou ambas as mãos ao chão com certa violência, sentindo as
palmas arder ao impacto. Não se contendo na exaltação, que se aproximava de uma
indômita atribulação e inconformismo, levantou-se e se lançou para fora do
quarto, indo apressadamente pelos corredores em direção da maciça e artisticamente
trabalhada porta de jacarandá, a principal da mansão, que estava entreaberta.
Tendo ultrapassado o pórtico, continuou resolutamente sob magnífica e
alpendrada varanda, em cujas colunas abraçavam os finos galhos de uma
trepadeira carregada de botões e flores silvestres, e se esgueirou ao fundo,
como que flutuando graciosamente o corpo infantil envolto por vestido azul.
Descendo o degrau único da extremidade da
varanda, alcançou a serpenteante e principal rua insinuada por todo o bosque e
deparou-se com Pedro, vindo em sentido oposto, segurando à mão direita a tesoura
de jardinar. Ao vê-la, sorriu, parando a informar-lhe:
- Os
cães estão soltos novamente. Não consegui encontrar nenhum gato ou outra coisa
qualquer. Se escutar os dois latirem não vá lá sozinha, procure-me. São ordens de seu pai!
Rosinha que nada sabia das buscas de Pedro
arregalou os olhos e ainda curiosa perguntou:
- Você
viu direito nas ameixeiras?
- Se tinha alguma coisa nas ameixeiras o
Sansão e o Hércules não acharam nada e se era o gato tinha fugido. Eu só notei
que eles procuraram numa das macieiras e depois se afastaram.
Pedro prosseguiu e Rosinha ficou pensativa.
Bem que gostaria de ir lá de novo para olhar na ameixeira e tirar as dúvidas,
mas não tinha coragem por causa de Sabe-Tudo. Com que cara iria olhá-lo
novamente se passasse por perto dele? Mesmo que evitasse olhá-lo, ele
certamente a olharia e perguntaria por que mentira depois de tudo o que lhe
ensinara. Ante essa possibilidade, um calor subiu-lhe ao rosto e seu corpo foi
sacudido por leve tremor. Ela era a culpada, a mentirosa; Sabe-Tudo teria toda
a razão de ralhar com ela, pedir explicações. Quanto a Calunga, era possível
que estivesse mesmo longe daqui, mas se não estivesse poderia fugir a noite,
quando os cães patrulhavam não só o pomar bem como se afastavam em direção ao
bosque. E se a descobrissem antes disso e dessem o alarme, ou a atacassem no
chão? Ai, sim, estaria tudo perdido!
Sob esses torturantes pensamentos e indagações
ela atravessou diagonalmente a bela rua, tomando um daqueles caminhos que
entrecortavam diminutos hortos, arrodeando quadras ou acompanhando voluptuosas
trepadeiras. Chegando ao jardim, imensa área frontal onde canteiros
espalhavam-se ordenadamente sob a proteção de sombras de altas e copadas
árvores, alcançou os roseirais que tão bem conhecia e sistematizava.
A deslumbrante beleza das rosas oferecia-se
debaixo de matizes transpirantes de frescor enlaçando-a com inebriantes
perfumes, desejando atraí-la para compartilhar de seu encantamento infantil.
Porém, envolta por tremulante bandeira azul, seu peito fremia em sucessivas
ondas de temores e preocupações que a assaltavam e nada percebia exteriormente,
presa que estava a um único pensamento. Ao pé da roseira predileta, cuja
especial fragrância imperceptível para tantos, não o era para sua sensibilidade
extra-sensorial, estendeu a mão um tanto rígida, acariciando as pétalas de uma
rosa branca, e a cumprimentou quase em sussurro:
- Boa tarde, Áurea!
Evolante onda a perfumou e ela, sentindo
deliciosa tontura, aliviou-se de certa carga de preocupações, sobrevoando com o
pensamento a coroa daquela alta roseira.
“Boa tarde, Rosinha, que alegria
revê-la!” A voz soou para a criança de
forma doce e melodiosa como sempre, como de uma mulher jovem e meiga, que
imaginava, seria a voz de sua mãe.
-
Áurea, você é minha amiga não é? Quero dizer, continua sendo?
“Claro criança, como pensar em deixar de
sê-la?”
- É
que, bem..., então você nunca vai deixar de me amar, mesmo que eu cometa
faltas?
“Por que eu faria isso? Todos cometem faltas!
Se eu deixasse de amá-la por causa de uma falta cometida eu não teria amor,
seria um juiz impiedoso!”
- Então você continua me querendo como
sempre?
“Como
sempre não, a cada dia mais. O amor precisa crescer todos os dias, como eu,
como você. Somente assim assume maiores belezas e experimenta novos sabores”
Rosinha ficou pensativa por alguns segundos,
depois perguntou, deixando entrever na fisionomia o peso que lhe afligia a
consciência.
- Sabe-Tudo pensa como você?
“A respeito das faltas humanas?”
- Sim,
também sobre o amor. Ele é um filósofo, é diferente de você.
“Ouça, Rosinha, um filósofo sem amor e não
tendo a compreensão dos mistérios do coração é uma voz sem calor e uma mente
sem luz. Se a sabedoria de Sabe-Tudo cala profundamente em você, então a
resposta você mesma pode dá-la. De mim somente sei falar da beleza. Afinal,
quem verdadeiramente pode julgar?”
De novo Rosinha mergulhou em reflexões. Como
a criança custasse a retornar, Áurea recomeçou:
“Já olhou hoje para o céu, Rosinha?”
- Hem,
o céu? Que tem ele?
“Veja como o azul está sempre presente lá e
como se reflete no seu próprio vestido. Já lhe disse alguma vez que o azul do
céu é um véu muito longo que a Mãe Celestial veste para ornar seu vestuário?”
- Um véu, daquele tamanho?
“E todo bordadinho de lantejoulas e contas.
As lantejoulas tremeluzentes que os súditos vêm bordar depois de muito
trabalhar são as estrelas”.
- Os súditos trabalham muito?
“Muito. Trabalham tantos anos para bordar as
lantejoulas e as contas que se fossem anotar esse tempo ficaria um número desse
tamanho! Mas não é só bordar, não!”
- Que mais então?
“É fabricar de acordo com o modelo; é do
aparente nada para o tudo ser. E que alegria quando está tudo terminado, como
eles cantam e comemoram, e como elas brilham!”
- Eles são como os anjos?
“Maiores ainda, os anjos os auxiliam em
outras tarefas menores, os obedecem. Eles são indescritíveis!”
- Fale mais das lantejoulas e das contas,
Áurea!
“As lantejoulas que piscam são, como disse,
estrelas ou sóis que vão surgindo. Há sóis azuis, amarelos, verdes, violetas, e
de todas as cores conhecidas e ainda desconhecidas. Ao redor de um sol, sem o
esplendor de seu brilho, são bordados pequenos ornamentos – as contas coloridas
– chamados planetas que girando sem cessar fazem um desfile sempre igual carregando
neles a Vida. Quando o tempo passa e todas as coisas que neles existem chegam a
um final, a Mãe Celestial vem e recolhe tudo daquele pedacinho do véu. Então a
lantejoula e as contas se escondem detrás do véu e lá ficam por algum tempo.
Tempos depois, volta a lantejoula com as contas e os súditos fazem festas e
cantam!”
- Que bonito Áurea. Quer dizer então, nessa
história, que o planeta Terra é uma conta e o Sol uma lantejoula?
“Isso mesmo, criança, presos num único fio!”
- E
nós, o que somos?
“Isso é outra história. Talvez Sabe-Tudo
deseje contá-la um dia, filosoficamente”
- Ah, conte você Áurea! Eu quero ouvir de
você! – pediu com veemência.
“Está bem, criança, mas vou contar-lhe
somente um pedacinho, está certo?”
- Está!
“Antes mesmo de as lantejoulas surgirem e
também as contas, os súditos preparam as sementes que virão plantar. Elas ficam
guardadas em enormes estufas, descansando e recebendo alimentos...”
- Sementes? E elas comem?
“Elas não comem como você, Rosinha, elas
recebem alimentação por ondas de energia, para se manter hibernadas. Você sabe
o que é hibernação?”
-
É...,é..., dormir no gelo!
“Mais ou menos. Só que lá não há gelo, é uma
hibernação ao natural. Então os súditos usando aparelhos, lentes e as próprias
mentes vão incutindo nas sementes os seus deveres e obrigações,
descrevendo-lhes também toda a história de suas vidas e contando-lhes como
apagar os seus erros...”
- Mas como é isso? Que história é essa,
Áurea?
“Você tem razão em me perguntar, criança,
porque eu comecei a narrar pelo meio, mas vou explicar-lhe: essas sementes são
aquelas que foram recolhidas pela Mãe Celestial e mandados os súditos as levar
para as estufas. Nessa ocasião, elas já haviam se esquecido de quase tudo de
suas vidas, restando somente pequenas lembranças e enquanto elas dormem, os
súditos as ajudam a...”
- Áurea, essas sementes afinal são de
plantas?
“De plantas, de bichos, de pedras e de
gente!”
- Nossa mãe! Agora é que eu não estou
entendendo mais nada!
“Então preste bastante atenção: cada semente
vive num reino da natureza vestida de um corpo qualquer. Assim é uma árvore, um
animal, uma pedra e um ser humano. Por milhares de anos as sementes viventes no
mesmo reino vão recebendo as lições que a Mãe Celestial ensina através da
natureza e dos súditos. Depois, as sementes que aprenderam direito e realizaram
o que tinham de realizar pularão para outro reino, ganhando outros corpos e os
mudando sempre que necessário. As que se atrasaram precisarão permanecer para
repetir as lições, aprender o que tinham de aprender e realizar o que antes se
recusaram. Chegando o tempo de a Mãe Celestial de novo as recolher do véu todas
as sementes, atrasadas ou não – especialmente aquelas sementes de homens e
mulheres que não conseguiram alcançar o reino dos anjos – elas todas voltarão
para as estufas. Mais tarde, noutra volta ao véu, quando lantejoulas e contas
forem outra vez bordadas, as sementes voltarão cada uma ao respectivo lugar de
onde haviam saído, ou de onde foram retiradas!”
- Onde fica a semente de homem?
“Fica no seu coração”
- Quem
tem o coração duro é castigado?
“O castigo é o próprio coração quem
determina. Todo o coração que pulsar pela maldade receberá de volta a maldade,
como aquele que pulsar pelo amor receberá de volta o amor. Somente corações
amorosos fazem suas sementes ficar mais leves do que a pluma, assim as sementes
conseguem voar mais alto ainda que os anjos”.
- Que história engraçada você me contou,
Áurea!
“Engraçada, Rosinha, por quê?”
- Porque nessa história parece que todo mundo
está numa escola.
“Acertou, criança, o mundo é uma escola e
somente os tolos não percebem isso e gazeteiam aulas. A inteligência do Pai e
da Mãe Celestial está presente em tudo e graças a eles a vida prossegue sem
parar!”
* * *
O gostoso cheiro do jantar sobrevoava a ampla
e longa cozinha, exageradamente espaçosa para o movimento diário da mansão. A
cozinheira dava últimas mexidas nas panelas e abrandava o fogo de duas bocas de
gás. A um canto, relaxadamente, a auxiliar descansava porque não tinha muito a
fazer nesse momento, ao passo que a outra responsável pela limpeza da casa,
agora uniformizada de copeira, olhava para o céu através da porta aberta,
buscando alcançar as últimas projeções do tom róseo já carregado em roxo quase
escurecido.
Na sala de jantar a mesa estava posta para
três. Rosinha, recém-saída do banho, se instalara na varanda e lá ficara a ler
uma revista em quadrinhos enquanto aguardava a chegada do pai. Luiza – a
terceira – que compartilhava da honra de jantar com a diminuta família, tendo
inspecionado o banho de Rosinha e verificado que se ensaboara e enxugara direito,
voltara para a cadeira de balanço e lá permanecia tricotando.
As dezoito e quarenta e cinco em ponto, a
Mercedes cinza claro dirigida por Frederico penetrou a rua principal do bosque,
iluminando profunda faixa da propriedade, provocando com seus possantes faróis
projeções ensombradas e fantasmagóricas de galhos ou troncos. O veículo parou
junto ao degrau e Frederico, já sob o banho de luz da varanda, apeou e
apressou-se em abrir a porta para o patrão. O corpo cheio e não muito alto de
Almeida surgiu do carro. Rosinha correu e pulou-lhe ao pescoço, ele a beijou e
a acariciou, trazendo-a pela mão, fazendo-lhe corriqueiras indagações acerca do
dia. Passaram da varanda para o corredor e ali se separaram. Rosinha correu
para a sala de jantar enquanto Almeida dirigia-se para o seu quarto. As
dezenove e cinco estavam todos jantando.
Rosinha comeu pouco. Almeida por trás das
lentes observou-a com seus olhos azuis. Ao término, trouxe-a para a poltrona da
biblioteca e tendo-a colada à perna, fumava belo e envernizado cachimbo
irlandês.
- Por que você jantou pouco, andou comendo
coisas depois das quatro?
- Não comi nada, pai, é que estava mesmo sem
fome
- Verdade?
- Verdade! – respondeu-lhe olhando-o num
súbito relance.
Almeida silenciou começando a dar seguidas
baforadas, lançando o olhar para a estante, desligando-se de Rosinha.
- Pai, mentir é feio? – ela tirou-o da
abstração.
- Hem? O
que?
- Mentir é feio?
- O que você comeu antes do jantar?
- Nada, pai, já disse. O que eu queria saber
é se um dia eu contasse uma mentira o senhor ia me castigar.
- Qual foi a mentira que você me contou? – o
rosto redondo do pai mostrou maior curiosidade ao encarar o rostinho belo e
pálido.
- Não menti nunca. Eu só queria saber se um
dia eu mentisse o senhor ia me castigar.
- Depende – respondeu sem qualquer interesse
ou convicção, relançando o olhar em direção da estante, se desligando novamente.
Rosinha voltou à carga:
- O senhor já mentiu alguma vez?
- Hem?
- Mentir, pai! O senhor já mentiu? Almeida tirou
o cachimbo da boca emborcado-o sobre o cinzeiro de vidro, batendo-o de leve e o
fazendo soltar cinza. Depois, sacou o pequeno isqueiro dourado do bolso e supostamente
reacendeu o cachimbo, dando novas baforadas. Então, como se estivesse muito
ocupado ordenou:
- Agora deixe-me sozinho, eu preciso pensar
sobre um assunto.
Rosinha imediatamente girou nos calcanhares e
andou em direção da porta. Ao cruzar o pórtico lançou-lhe derradeiro olhar. Almeida
novamente se distanciara sob tênue e azulada nuvem de fumo.
* *
*
Rosinha fugia de sombras e coisas que queriam
agarrá-la. Ela corria e tropeçava; as formas a perseguiam. Apavorada, presa ao
chão, quase não conseguia mover-se. De repente, galgou a cerca do bosque e ao
saltar caiu num buraco largo e meio profundo que Pedro cavara, batendo no fundo.
Depois, foi conversar com Áurea, que tinha as flores murchas e os galhos
carregados de longos espinhos. Com voz rouca e lúgubre Áurea abriu-se e gritou:
“venha!”, tentando agarrá-la. Rosinha, apavorada, pulou para trás enquanto a roseira
gargalhava sinistramente, se sacudindo toda, deixando cair aquelas rosas
murchas. Em seguida, arrancou-se da terra, e como ameaçador monstro com galhos
abertos veio em sua direção. Rosinha, gritando, fugiu correndo, se lançando
pelos caminhos do bosque a pedir socorro, porém ninguém aparecia. As plantas e
árvores, nas marginais dos caminhos, riam e zombavam de sua fuga e ela
sentiu-se abandonada. Com muito esforço, alcançou o portão do pomar abrindo-o,
correndo para os lados de Sabe-Tudo. Porém, ao contrário do que esperava,
Sabe-Tudo não lhe deu acolhida, antes, se balançando como fosse cair, a
acusava: “você mentiu, você mentiu, vai ser castigada!”, querendo também
agarrá-la!
Com a testa coberta de suor, trêmula e
assustada, Rosinha verificou que tudo não passara de um sonho ruim e se enrolou
na fina colcha para tentar dormir novamente. Partes desconexas desse mesmo pesadelo
repetiram-se por duas vezes, torturando-a.
Pela manhã, Luiza assustou-se ao entrar no
quarto e ver-lhe a palidez. Ela, acordada, nada falou da agitada noite,
estando, ademais, enfraquecida. A governanta pousou-lhe a mão na testa acusando
febre. Nervosa, correu ao doutor Almeida, que, à mesa da copa, lendo o jornal que
Frederico trouxera, aguardava a presença da filha para o café, e relatou-lhe o
fato. Almeida veio vê-la imediatamente, constatando a febre, ordenando a Luiza
telefonar ao médico, e perguntou à filha o que ela sentia. Mediante respostas
pouco conclusivas, deixou-a e aguardou a chegada do médico.
Nesse comenos, Luiza trocou-lhe a roupa,
notando que a criança suara em demasia. Rosinha obedecia a tudo como um robô,
realizando movimentos lentos e sem ânimo. Pelas oito e trinta, Frederico
chegava com o médico – um senhor crestado, de uns cinquenta anos, com os
cabelos e bigode quase completamente encanecidos. Consultando Rosinha, nada
constatou de grave, diagnosticando um mal passageiro, prescrevendo-lhe
comprimidos vitaminados e repouso, dando-lhe um anti-térmico que trouxera na
valise. Almeida e Luiza então voltaram para a copa em companhia do médico.
No momento em que os três se preparavam para
deixar a mansão, a empregada anunciou a chegada da preceptora de Rosinha, com
alguns minutos de atraso, raro acontecimento. Ao saber da indisposição da menina
Marga deu mostras de aborrecimento, mordendo os lábios e apertando os olhos sob
aquelas lentes claras e sem aros, porque não fora comunicada a tempo. As gordas
e macilentas bochechas coloriram-se, e como hábito levou a mão à cabeça,
ajeitando ao penteado. Almeida, sem mesmo ter-lhe percebido a irritação,
convidou-a a irem juntos na Mercedes, prometendo deixá-la onde indicasse. O
convite excitou-a e foi com outra disposição ao quarto beijar a testa de
Rosinha desejando-lhe melhoras, pedindo a Luiza que lhe desse notícias bem cedo
na manhã seguinte. A criança, mergulhada ainda no marasmo, ao ver a antipática
mestra indo embora, sentiu grande alívio.
Naquela manhã Rosinha realmente descansou e
dormiu. Não teve sonhos e acordou pelas onze e meia. Luiza, tão logo a viu
desperta, veio correndo de copo na mão, enfiando-lhe goela abaixo dois
comprimidos que o médico receitara, dando-lhe água para melhor engoli-los.
Rosinha, amuada, levantou-se assim que a governanta deixou o quarto e trocou de
roupa vestindo outro de seus vestidos azuis. Nada mais sentia e estava faminta.
Luiza protestou ao encontrá-la no corredor e quis obrigá-la a voltar para a
cama, onde lhe traria o almoço. Rosinha
esquivou-se da ama correndo para a mesa. Luiza foi atrás insistindo que ela
voltasse para o quarto, mas Rosinha, já sentada, reagiu:
- Não vou e pronto!
O almoço foi-lhe servido mais cedo e sozinha
diante daquela comprida mesa ela comeu menos do que esperava. Achou
interessante a situação, mais ainda por não ter a companhia desagradável de Marga. Ao término, saiu em
direção do bosque sob os protestos de Luiza que a queria ainda descansando. Mas
como a criança parecesse recuperada, deixou-a livre, indo também almoçar.
Era meio-dia e os homens se recolhiam para o
refeitório onde todos os empregados faziam as refeições. Rosinha, pela rua
principal do bosque, ia encontrando os três empregados externos e eles a
saudavam. Sem rumo certo ela entrava e saia pelos caminhos. O Sol estava
quente, mas a temperatura era amainada pelas rajadas de suave brisa a balouçar
galhos e copas. Folhas caiam, Rosinha as pisava a passos descuidosos enquanto
seu pensamento novamente se aferroava a preocupações. Chegou ao lago
contornando-o, e súbito lembrou-se dos latidos dos cães que dali a arrastaram
ao pomar. Reviu Calunga e desejou voltar lá para talvez reencontrá-la.
Sabe-Tudo interpôs-se a ambas e ela tremeu. Lembrou-se do pesadelo. Não o via
mais como uma figura imponente e bela, com voz grave e senhoral, a dizer-lhe
das coisas e a ensinar-lhe do mundo. Via-o agora como na madrugada,
horripilante, querendo agarrá-la e a gritar: “você mentiu, você mentiu, vai ser
castigada!”
Uma ardência no estômago a fez parar e levar
a mão ao local, sentindo ligeira vertigem e o corpo a esfriar. Não devia estar
pensando nessas coisas, faz mal depois da comida! Sentou-se ali mesmo sobre a
grama verde e viçosa que orlava todo o lago e decidiu que não mais iria ao
pomar. Algo a tomou, obrigando-a a fazer enorme esforço a fim de apagar a
imagem espectral criada pelo pesadelo, levando-a a observar as sinuosidades das
serpentinas líquidas lançadas pelo belo repuxo no centro do lago e à marolante
água. Como resultado, seus lábios rosados, de pouco em pouco, iam afrouxando da
tensão, permitindo a boca pequena de cantos suavemente voltados para baixo, se
mostrar quase ao natural. O brilho dos olhos transmutava-se do vívido e excitado
para o diáfano e contemplativo. Os braços já se soltavam e o pensamento deixava
adormecer, num torpor quase completo, o rumor da tempestade que a estremecera e
nela ficara.
O estereótipo das serpentinas e o das marolas
que vinham morrer na beira do lago ajudaram-na num efeito relaxante, quase
hipnótico, paralisante das preocupações. Acusava agora o odor refrescante da
água, o aroma da terra e o cheiro das plantas. Sentiu sono e deitou-se ali
mesmo – rente a baixa mureta que acompanhava o desenho do lago – e dormiu mais
uma vez. Foi um sono leve e delicado que a enviava aos limites de dois mundos,
o do corpo e o da alma. Ouvia ao longe os ruídos que se apagavam na distância,
desejando desprender-se e voar, mas ao mesmo tempo querendo ficar.
Não saberia quanto tempo assim permaneceu e
ao acordar num súbito estremecimento, ante o bravio arreliar de um bando de
irrequietas maritacas sobre as palmeiras, sentou-se não atinando com o que
fazia ali. Deu um pulo e levantou-se, lembrando-se que passeava. Resolvida a sair
dali, abandonou o bosque, buscando o corredor principal da mansão,
refugiando-se em seu quarto. Luiza ao vê-la chegar deixou de estar preocupada.
No quarto, andou de um lado a outro, indo
diversas vezes à janela a sondar a vegetação do bosque. Ouvia em momentos
isolados um ou outro distante latido dos dobermanns e prestava desusada
atenção. A brisa tinha ido; em seu lugar um vento soprava com mais vigor e
intensidade, sacudindo a galhagem fina das árvores, a levantar os longos e
pendentes chorões e às samambaias dos caramanchões. Apesar do relaxante sono de
há pouco, seu ânimo não se levantara e de novo a conduzia para pensamentos
sombrios. A presença sempre marcante de Calunga perambulava-lhe nas imagens
mentais e novos instantâneos temores eram atraídos por essa aparição. Sabe-Tudo
surgia-lhe a todo instante associado ao eco da mentira.
Angustiada, passada uma hora, decidiu sair.
Suspeitando que Luiza estivesse tricotando na sala de estar, rumou pelo
corredor em direção oposta, para a porta principal, ganhando a varanda,
descendo o degrau único e arrodeando a casa. Metendo-se por um dos caminhos,
surpreendeu-se a se ver acionando a tranca do portão de acesso ao pomar.
Correndo rija e tensa para debaixo da macieira, olhava somente para adiante,
temendo ver o que não queria. Sansão e Hércules correram para ela,
embaraçando-se a sua frente, atrapalhando-lhe os passos. Ela afugentava-os, mas
eles faziam-lhe festa. Já debaixo da fruteira olhou para cima, ansiosamente,
volvendo a cabeça sobre o fino e branco pescoço, buscando em todas as direções,
indo a seguir para debaixo da ameixeira. Um rápido relance pela circunvizinhança
a fez, sem querer, esbarrar em Sabe-Tudo e pretendeu ignorá-lo, porém nele se
prendeu sentindo o coração acelerar. No entanto, uma névoa de clara luz
desceu-lhe ao pensamento, o penetrou e o transpassou. Ela sentiu-se dominada e
invadida por incitações reflexivas. Sabe-Tudo era exatamente o mesmo, pensou!
Não tinha mil garras sinistras, era somente um pessegueiro, um grande
pessegueiro! E do temor recalcado saltava-lhe agora o antigo sentimento de
amizade ao grande amigo. Ele era o mais sábio de todos, do mundo inteiro, não
iria querer-lhe mal algum, por que não enxergara isso antes?
Envergando novo ânimo, mesclado a uma súbita
coragem, partiu resolutamente em sua
direção, ao meio do pomar. Todavia, ao aproximar-se, seu rosto afogueou; um
resquício do temor recalcado, misturado ao sentimento de vergonha e
arrependimento, pretendeu tomá-la e ela, emudecida, olhou-o um tanto de cabeça
baixa e assim ficou.
Uma soma de faiscantes raios projetou-se do
tronco, formando rápidos e multicoloridos contornos em derredor. Eram efeitos
que deixavam entrever uma estranha e misteriosa presença ali ancorada, ou trazida num faz-de-conta perfeito e
insuspeitável. Os efeitos se apagaram e a voz ecoou na mente da criança,
tornando-a gostosamente leve como se não possuísse corpo.
“Boa tarde minha menina, já estava
saudoso!” Ela, no entanto, continuava
emudecida, olhando o chão, segurando agora as mãozinhas atrás em habitual
atitude de timidez ou consternação.
“Quando uma sombra ameaça e aflige o que
melhor se faz é combatê-la à luz da inteligência. Se as forças faltam por
humanas fraquezas, abre-se o coração com quem merece confiança.” Ela olhou-o
com certo receio, levantando lentamente aquelas safiras azuis, franzindo a
testa:
- Então você já sabe?
“De que, Rosinha?”
- Da
minha falta, da...,da..., mentira?
“É isso somente que a aflige, a mentira?”
- É que..., eu não queria que eles
descobrissem Calunga, por isso menti. E agora, que vai acontecer comigo?
“Criança, criança, a mentira é um mal quando
provoca o mal, porém não faça das palavras um objeto que esteja a torturá-la.
Há idas e vindas na lei da vida e quem poderá julgar o que falou o seu coração?
E o seu coração é leve como uma pluma, amada criança. Não faça da mentira sua
companheira, mas não a deixe golpeá-la mais vezes e inutilmente!”
- Então você não está zangado comigo?
“Por que estaria? Eu sou somente um filósofo,
não sou? E filósofos procuram entender, não julgar. Se lhe dou meu amor e
compreensão não é para retomá-los, são seus. Mas diga-me: como é essa Calunga e
por que a protegeu com tanta coragem?
-
Ela..., ela é formidável – disse com grande entusiasmo – é livre, faz o que
quer, aprende o que quer! É inteligente e sincera, mesmo quando desconfia que
você e Áurea não são verdadeiros...desculpe! – envergonhou-se novamente.
“Está tudo bem, Rosinha, somente contamos
segredos a quem confiamos, não se preocupe!”
- Eu não sei se ela voltará. Talvez não tenha
gostado de mim, me achado uma menina boba. Eu sou boba, Sabe-Tudo?
“Boba, Rosinha? Você é mais preciosa do que a
mais preciosa das virtudes humanas. Não deixe que isso a envaideça, mas saiba
sentir que há um valor inestimável em você e logo o mundo virá conhecê-la. Não
se julgue pelas reações alheias, antes procure conhecer-se!”
- Eles irão conhecer-me? De que jeito,
Sabe-Tudo? - prendeu-se a isso.
“O
destino joga com peças que os homens não sabem controlar. Aliás, eles próprios
na sua inconsciência, não são além de peças de vontades mais poderosas. Cedo,
Rosinha, eles a conhecerão, porém esqueça isso por enquanto, porque de nada
adianta pensar. O que vem, virá!
- Pelo
que você está me dizendo eu me tornarei conhecida por muitas pessoas, então
poderei sair e conversar à vontade?
“Não imagine demais, criança, o que tinha a
dizer disse-o. Deixe tudo por conta do porvir e viva o presente!”.
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Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com.br
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