domingo, 6 de março de 2016

Rosinha - (5)

                                                                       CAPÍTULO V
                                                 O MUNDO AOS OLHOS DE ROSINHA

  Rosinha ia andando, vendo e observando. A rua estava quase deserta; um ou outro carro passava ou uma pessoa caminhava. Havia muitas propriedades; viam-se lotes sob a vegetação rasteira ou sob árvores. Havia mansões cercadas de outras belas e luxuosas residências. Rosinha já passara muitas vezes por aqui na Mercedes guiada por Frederico, mas não se interessara em reparar nessas coisas; da janela do carro tudo pareceu-lhe sempre muito distante. Hoje, porém, era diferente; as coisas se mostravam com um toque especial, prazeroso, algo excitantemente irreal, bem próximo, exalante de uma vida cheia e plena. As residências, os jardins, os matagais, a rua; o ar fresco e o Sol rutilante sob um céu exageradamente anil, a figura de Calunga – tudo se sobrelevava, dimensionando-se para além de uma realidade cotidiana. Eram tais o desprendimento, o gozo íntimo, a satisfação de andar com seus próprios pés que se esquecera da luta íntima de antes. Agora a vida se descortinava ante seus olhos como nunca, como jamais houvera visto ou sentido, uma estrada sem fim, desconhecida e excitante!

  O silêncio descera sobre ambas. Levantava-se nesse momento em Rosinha outra alma, uma face ainda prematura,  mas pronta a ser moldada e lapidada com novas experiências. A voz de Calunga veio interromper o silêncio, devolvendo-lhe o ar e atitudes infantis:
  - A escola fica naquela rua – ela apontou.
  - O recreio vai demorar?
  - Muito não, é às três e meia!
  - Agora deve ser três horas, falta meia hora. Por que não aproveitamos e não me leva a sua casa para eu conhecer sua família?
  - Hum! Na minha casa? – Calunga desconcertou-se.
  - É, puxa! O passeio está gostoso, mas eu ia gostar de conhecer seu pessoal!
  Calunga não se decidia, Rosinha, incomodada com a demora, voltou à carga:
  - Eu sei que você é pobre e...
  - Mendiga! – atalhou-a com azedume.
  - Tanto faz, Calunga. Para mim só interessa você. Eu não estou querendo ir lá para reparar na sua pobreza, eu quero é conhecer sua família.
  - Eles não têm nada de mais, são mendigo igualzinho os outro.
  Rosinha atenta às respostas da companheira, em súbita atitude adulta resolveu encerrar:
  - Está bem, deixe para lá. Outro dia, quem sabe, você me convide.

  Poucos passos tinham dado, Calunga repentinamente parou. Com a fisionomia séria e cabeça meio baixa, olhando Rosinha por cima quase juntando as ralas sobrancelhas, perguntou:
  - Você não vai reparar de verdade?
  - Juro! – confirmou dessa maneira.
  - E se não for aquilo que você imagina, você vai continuar sendo minha amiga?
  - Que pergunta, Calunga! Eu não imagino nada!
  - Promete? – insistiu.
  - Prometo! - Rosinha sorriu fazendo iluminar o rostinho com significativo brilho de seus olhos azuis.

  Mudaram de direção tomando outra rua. Pularam uma valeta em cujo interior corria esgoto, penetraram por um terreno baldio andando sobre fino e sinuoso caminho que rasgava capins rasteiros e saíram numa área ampla e descampada, onde poucas casas eram vistas à pequenas distâncias. Seguiram por um trecho de terra preta e macia na qual suas pegadas se calcavam, atingindo uma ponte sobre águas barrentas de um rio de relativo volume. Rosinha julgou que a cruzariam, mas Calunga apontou para baixo deixando a estrada. Rosinha parou a observá-la enquanto ela dava os primeiros passos no declive, em estreito caminho margeado de touceiras e capins. Calunga fez-lhe sinal com a mão e ela, hesitante, temendo escorregar, a seguiu com excessivo cuidado. Forte cheiro de carne a ser cozida e tênue faixa de fumaça deslizando em sua direção fizeram-na olhar atentamente para sob a ponte, e ela viu mais adiante uma panela de barro apoiada sobre quatro tijolos empilhados. O fogo ardia entre os tijolos consumindo pequena tora e lascas de madeira, enquanto de dentro da panela escapavam filetes de espuma, escorrendo entre um ou outro requebro da fina e amassada tampa de alumínio.

  Calunga já atingira a base do declive ao passo que Rosinha continuava descendo. Na medida em que o caminho se abria para a esquerda, ela ia enxergando melhor o interior da ponte à direita, até que chegando junto à Calunga obteve visão global do lugar.
  - É aqui que eu moro – disse Calunga como alguém que se desculpa.     
  Rosinha com o coração agitado numa indefinível soma de reações correu os olhos rapidamente sobre todas as coisas que ali existiam.

  Sentado e apoiado com as costas numa das sapatas de concreto de onde um pilar se levantava, um homem de cinquenta anos presumivelmente, de cabelos esbranquiçados, ao surgimento de ambas, lançara-lhes o olhar abrindo sorriso para Rosinha. Ao seu lado, deitado sobre trapos, com ambas as mãos sob a nuca, um jovem de talvez vinte anos olhava para cima sonhando acordado. As vestes de ambos, quase idênticas, eram velhas e encardidas, com rasgos e remendos grosseiros. A um canto, viam-se lenha, panos velhos, uma corda esticada dependurando uma camisa rôta e prateleiras de tábuas sobre tijolos, enquanto noutro canto havia outras prateleiras iguais guardando quinquilharias, como panelas, vidros, pratos, latas e muitas outras coisas. O chão, embora de terra dura e ressequida, era bem varrido e limpo, e para além dos dois pilares, próximo de onde os dois homens se encontravam, existia outra área menor que ia terminar nas águas do rio.

  Saindo daquela outra área surgiu repentinamente uma mulher alta e esbelta, maltrapilha também, de trinta e cinco anos mais ou menos, que ao vê-las arregalou os olhos não conseguindo disfarçar a surpresa. Rosinha identificava-os a todos pelas descrições feitas por Calunga e permaneceu imóvel, qual Calunga. Foi Gregório, com o mesmo sorriso simpático e voz pausada e sonora, quem veio trazer outra vida àquele quadro e as boas vindas à inesperada visitante:
  - Seja bem-vinda minha filha a casa é pobre, porém acolhedora. Venha, aproxime-se!

  Rosinha, timidamente, com acentuada palidez novamente hesitou, embora a voz cordial de Gregório houvesse-lhe agradado. Calunga permanecia sem iniciativa em atitude completamente estranha à sua natureza dinâmica, e não esboçou qualquer movimento. Gregório, percebendo a hesitação de Rosinha, continuou:
  -Você deve ser a Rosinha. Não se impressione com nossa miséria, nem com nada daqui e não tenha medo. Faz tempo que desejávamos conhecê-la. Calunga fala todos os dias em você. Venha, não fique aí parada!

  Príncipe, a essa altura, acordara de seus sonhos e elevava o corpo sobre os antebraços, virando-se preguiçosamente, mostrando seu belo e magro rosto, piscando os grandes e sonhadores olhos verdes. Ele era o único de cor branca entre os quatro. Rosinha então andou e todo o quadro ganhou maior vida. Calunga acompanhou-a e Janú voltou a mexer-se dando um passo. Príncipe sentou-se e se apoiou noutro lado da larga e cilíndrica pilastra onde Gregório também permanecia e encolheu as pernas.

  Os olhares dos três nesse instante se fixaram no azul do vestido de Rosinha. Eles olhavam seu vestido e contemplavam seu rostinho. Príncipe logo a imaginou uma miragem, um anjo descido dos céus feito criança, porém guardou para si essas figuras poéticas. Calunga, emergindo da estática, reassumiu em parte a vivacidade, apressando-se em apontar para Gregório:
  - Esse aqui é...
 - Gregório, seu criado – adiantou-se tomando as rédeas das apresentações, apontando para os outros – aquela é Janú, minha mulher, e esse aqui é o Príncipe!
  Rosinha ainda presa às reações iniciais conseguiu dizer:
  - Muito prazer!
  - Eu trouxe ela por que ela queria conhecer vocês – explicou Calunga apelativamente.
  - Você queria conhecer-nos? – retomou Gregório e sem esperar pela resposta prosseguiu – Nós também desejávamos conhecê-la. Aliás, já a conhecíamos um pouco por Calunga, como lhe disse. Esteja à vontade, quero dizer, se lhe for possível, pois não deve estar acostumada a ver misérias!
  - Eu também já conheço vocês um pouco – falou Rosinha um pouco mais solta, ignorando a observação do outro – Calunga já me falou de vocês.
  - E não sentiu repugnância pela miséria? – perguntou Gregório.
  - O quê? – ela franziu o cenho.
  - Nojo pela miséria! – explicou-lhe melhor.
  - Não senhor. Além do mais Sabe-Tudo me disse que o homem não vale pelo que veste, porque ricos e pobres vestem-se de trapos. A veste verdadeira do homem é tecida pelos seus atos. Assim, ele se tornará verdadeiramente rico entre ricos ou pobre entre pobres!

  Príncipe estremeceu ao ouvir tais palavras olhando-a com imensa surpresa, piscando seguidamente, devorando-a com os olhos. Gregório tornou-se inesperadamente sério, buscando interpretar o que ouvira. Durou pouco isso, porque a inquiriu em seguida:
  - Quem é esse Sabe-Tudo?
  Rosinha, olhando para Calunga, se deu conta de que eles não sabiam de nada e ela, por seu turno, não podia dizer-lhes. Calunga acudiu-a em tempo com sua vivacidade e intuição:
  - É um amigo dela, Gregório, ele é filósofo!
  - Filósofo? Você tem um amigo filósofo?
  - Tenho, sim senhor. Eu tenho também uma amiga que é prosadora – respondeu com naturalidade após o susto.
  - Prosadora? – surpreendia-se novamente.
  - Prosadora? – repetiu Príncipe, falando pela primeira vez, com voz lenta e também agradável – O que ela prosa?
  - Ela conta histórias sobre tudo o que é belo. Em todas as coisas ela enxerga beleza, ela é formidável!
  - Não diga! – surpreendeu-se mais uma vez, Gregório – Será que ela consegue enxergar beleza na miséria?
  - Eu nunca perguntei isso a ela.  Só o Sabe-Tudo me falou a respeito com seu modo de ensinar.
  - Que mais então falou esse Sabe-Tudo sobre os pobres? – retomou Gregório bastante curioso.
  - Sobre os pobres? – pensou a criança elevando o rosto, pousando os olhos nas estruturas obscurecidas de concreto – Sobre os pobres, ah! Ele disse que a pobreza dos homens não é uma praga, nem uma injustiça de Deus, é antes a forma de equilibrar a balança dos débitos em aberto. Uns sobem da pobreza para a fartura, porque vêm mesmo de baixo com impulso para cima, outros retornam e pagam porque não quiseram dar quando deviam e roubaram de quem pouco possuía!
  - Que absurdo, nem todos os pobres são ladrões! – reagiu Gregório, embora sem alterar-se.
  - Eu acho que ele não quis dizer isso, seu Gregório. É que ele às vezes fala em outras vidas, na volta à Terra! – desculpou-se a criança.
  - Reencarnações! Eu já ouvi falar disso! – inferiu Príncipe.
  - Mas como ele explica essas coisas? – inquiriu-a Gregório.
  - Ele não explica muito, somente fala de vez em quando. Ele diz que o mundo é um campo de provas e para cá viemos para aprender e evoluir. Todo aquele que erra por ignorância, ambição, comete crimes ou se desvia por qualquer outro motivo, vai a julgamento no Tribunal Celeste após a morte. Então volta para apagar o erro de muitas maneiras, até aprender pela experiência ou pelo sofrimento. Todos erram e todos aprendem, embora os íntimos sejam diferentes!

  Nesse instante a madeira que ardia no fogo estalou. Rosinha assustou-se olhando para trás.
  - É do fogo, não tenha medo! – falou Janú, com voz meio rouca, sorrindo e mostrando a falta de dentes em ambas as dentaduras.
  - Eu bem que achei no sonho que hoje íamos ter novidades – falou Príncipe olhando para adiante.
  - Que novidade, você vive pra sonhar! – retrucou Janú, em seguida convidando Rosinha – Venha, minha filha, procure um canto e sente-se, não fique aí em pé!
  Rosinha olhou em derredor e não viu nenhum assento.
  - Aguenta aí, Rosinha, vou arranjar alguma coisa pra você sentar – disse Calunga, trazendo três tijolos largos, forrando-os com uma folha de papel verde. Ante o sinal convidativo ela foi e sentou-se, ficando de costas para o rio, de frente para a panela e de lado para Príncipe e Gregório, entre Janú e Calunga.
  - O cesto de fruta que você mandou chegou na horinha naquela vez. Nós não tinha arranjado nadinha pra comer naquele dia – reiniciou Janú indo para o lado de Gregório e sentando-se. Calunga aproveitou e sentou-se também. Rosinha esforçou-se para se lembrar da ocasião, mas admitiu que se tratasse da primeira vez que isso acontecera.
  - E o vestido e mais o agasalho que você deu pra ela, serviu tudo direitinho! – prosseguiu, encostando a cabeça na sapata de concreto.
  - Foi um sonho maravilhoso! – suspirou Príncipe com olhos enlevados, alheio a tudo o que dissera Janú. Rosinha virou-se olhando-o no rosto, notando agora sua beleza e delicadeza de traços e forma.
  - Não repare, Rosinha, ele é assim mesmo! – cochichou Calunga, alertando-a. Rosinha, no entanto, interessada no sonho, nem precisou perguntar a respeito porque Príncipe foi narrando com olhos ainda perdidos no vazio. Nesse instante, porém, Rosinha percebia-lhe uma luz branca a tomar-lhe o rosto e algo de azul envolver-lhe o corpo.
  - Saíamos todos do castelo. A ponte elevadiça lentamente retornava e o povo acenava. A caçada seria um sucesso sem dúvida. Meu fogoso cavalo branco luzia e os arreios dourados rebrilhavam aos raios do Sol. Minhas vestes eram mais belas ainda com adereços de ouro e prata, e do meu chapéu pendia magnífica pluma que eu mandara meu lacaio retirar de rara ave oriental em cativeiro, presenteada ao rei por um mandarim chinês. Meus dois escudeiros seguiam pelos flancos, rijos, brandindo as longas lanças cujas extremidades pareciam querer riscar o céu. E lá ia minha comitiva, com damas e servos, convidados e cavaleiros. Os cães, adiante, latiam e se excitavam presos por fortes correias, seguros pelas mãos dos experientes batedores. Eram mais ou menos uma dúzia.
  Um cantor começou a entoar uma canção em meu louvor, tocando a viola, realçando minha beleza, meu gosto pela opulência, pelas belas mulheres e excelentes festas. Era grande a graça daqueles que tinham a sorte de serem meus amigos ou protegidos. Isso era amplamente demonstrado nesse instante, quando o rei, meu pai, ausentara-se para tratar de negócios com o governador de outras distantes terras do reino. O rei tinha prazer nos negócios e gostava de tudo administrar enquanto eu apreciava a melhor parte: as festas e diversões!
  E a comitiva ia seguindo sob um Sol que me vinha reverenciar e aos meus caminhos iluminar. A poesia enchia os campos e bosques, tornando-os mais alegres após minha passagem e os aldeões paravam seus labores para nos saudar, porque o seu futuro rei e senhor os honravam com sua presença, respirando do mesmo ar. De repente os cães começaram a latir furiosamente, quase arrastando pelo chão os batedores que à minha ordem os soltaram. Furiosos, lançaram-se floresta adentro, seguidos dos batedores, de mais dois homens a cavalo e de um de meus escudeiros. Uma segunda parte da comitiva de caça seguiu logo atrás, ficando uma terceira parte a aguardar, e embrenhamo-nos pela floresta. “Por aqui Vossa Alteza!” gritava o escudeiro que havia seguido adiante e voltava para me conduzir.
  Os latidos estavam agora muito próximos, com toda a certeza os cães haviam encontrado uma caça. Sem dúvida, poucos metros adiante, encurralado entre os cães e um barranco, um magnífico veado se defendia dando marradas e mantendo-os à distância como podia. Aproximei-me e o escudeiro estendeu-me um arco e uma flecha. Era a honra real de atirar primeiro. Segurei o arco, enfiei a flecha e retesei-o ao máximo, fazendo pontaria na caça. Porém, no justo instante em que ia soltar a flecha, uma menina graciosa, envolta em vestes azuis, surgiu ao meu lado, vindo não se sabe de onde e falou:
  - Para que matar o pobre do bicho, Príncipe! - falou Rosinha interrompendo a narrativa.
  Príncipe estremeceu e olhou-a aparvalhado, abrindo bem os belos olhos verdes.
  - Foi exatamente o que...ela falou. Mas como você sabe?
  - Adivinhei, só isso! – respondeu Rosinha, encolhendo os ombros com graça – Príncipe continuava a olhá-la com cara atoleimada e Rosinha perguntou – e o que aconteceu depois?
  - Ela..., eu folguei o arco olhando-a surpreso e ela sorriu mostrando-me seus....olhos...azuis – ele olhou-a nos olhos notando a coincidência – então, quando eu ia perguntar quem era ela e por que aquela ousadia, ela falou de novo: “Não o mate, Príncipe, ele não lhe fez mal algum!” “Quem é você?”, perguntei-lhe finalmente, sentindo a essa altura as coisas começarem a nublar, percebendo unicamente um borrão azul de suas vestes adiante, ouvindo sua voz que aos poucos se apagava: “Uma velha amiga, breve nos veremos!”. E acordei estremecendo.
  - Outro sonho sem pé nem cabeça! – comentou Janú trazendo todas as atenções para ela, exceto do Príncipe.
  - Mas foi bonito, Janú – defendeu-o Rosinha.
  Príncipe não se incomodava nem um pouco acerca das opiniões e olhava fixamente Rosinha tentando entender como ela fora parar em seu sonho!
  - É a única coisa que  o pobre faz sem se humilhar ou ter de pedir licença – falou Gregório, metendo a mão no bolso e retirando um cigarro de palha, desamassando-o e passando-lhe a língua.
  - O que seu Gregório? – perguntou Rosinha.
  - Sonhar, minha filha, sonhar! – enfatizou, levantando-se e indo até o fogo acender o cigarro, dando duas baforadas e voltando ao seu lugar. Rosinha reparou como ele era alto e como realizara aqueles movimentos com elasticidade. Ele continuou – Mendigos como nós não são gente, são mendigos. Nascem assim e morrem assim. Para tudo precisam pedir, rastejar. Hoje comem, amanhã não. Adoecem, mas não morrem, só mesmo quando o diabo chama, caso contrário vão ficando por aí, como lixo que apodrece até não sobrar mais nada. Não têm direito de frequentar lugares públicos, nem bares, nada, nem mesmo andar normalmente pelas ruas sem causar aversão às pessoas.  São indesejáveis mesmo estando limpos e de banho tomado; as pessoas têm asco, viram os rostos, cospem no chão. Não, mendigos não são gente, são mendigos!

  Uma ponta de tristeza veio nublar o espontâneo brilho dos olhos da criança e ela buscou o que dizer para consolá-lo:
  - Áurea falou que todos nós temos valor ante os olhos de quem enxerga a beleza. Corações fechados, olhos vendados. Quem somente vê a beleza das formas e de trapos coloridos, nada vê de fato. Quem atravessa as formas com o olhar e pressente a alma das coisas, enxerga a beleza verdadeira.

  Príncipe agora prestava atenção no que dizia Rosinha, o mesmo fazendo Janú e Calunga. Gregório levava o cigarro aos lábios deixando passar entre eles irônico sorriso, murmurando imperceptivelmente:
  - Onde estarão essas pessoas que sabem ver a alma das coisas?

  De novo as duas caminhavam. Rosinha trazia na memória algumas lembranças do que havia presenciado sob a ponte. O passeio já não a atraia tanto quanto de início.
  - Há quanto tempo você mora lá?
  - Não sei, acho que sempre morei naquele lugar.
  - Você não se lembra de antes?
  - Muito pouco. Janú me pegou pra criar muito pequena.
  - E de seus pais, não se lembra deles?
  - Só da minha mãe. Ela era também mendiga estava muito doente e vivia sozinha pela aí. Como tava assim, me deu pra Janú e depois morreu.
  - A escola é muito longe daqui? – Rosinha mudou de assunto.
  - É na outra esquina. Tomara que o recreio não tenha ainda terminado.
  Ante essa perspectiva o coração de Rosinha voltou a ansiar e ela excitou-se. Ao chegarem à esquina Calunga agarrou-a de súbito pelo braço, gritando nervosa:
  - É eles, corra Rosinha, eles já viu a gente!
  Virando-se, ela arrastou Rosinha num puxão, largando-a e correndo velozmente. Rosinha, sem saber do que se tratava, atônita  e temerosa seguiu-a, mas ela se distanciava.
  - Corra Rosinha, corra! – gritava-lhe Calunga olhando para trás e se distanciando cada vez mais.
  Devido ao susto, a excitação e a correria, Rosinha começou a sentir falta de ar e as pernas fraquejarem. Levando a mão ao peito e arfando, ela parou cambaleante. As coisas giravam diante de seus olhos, ela arfava e se angustiava e vendo tudo escurecer deu dois passos em direção ao meio fio e ali sentou-se. Calunga gritou:
  - Levante Rosinha, corra!
  Um violento cantar de pneus atraiu-lhes a atenção para uma camionete negra pintada com uma faixa branca que dobrou pela esquina e acelerou em direção de ambas. Calunga, desesperada ante o dilema de correr e deixar Calunga ou ficar e ser pega, via a caminhonete diminuir a distância. Rosinha, sem mesmo conseguir distinguir Calunga, imersa nas sombras de sua visão, fez-lhe sinal para que se fosse, pois era a ela que perseguiam. Calunga gritou sentindo as lágrimas molhar seu rosto:
  - Fique aí, Rosinha, eu volto pra lhe buscar!
  Em poucos segundos o veículo com dois homens passava por Rosinha, ignorando-a completamente, indo à perseguição de Calunga. Rosinha tremia muito e mal respirava.

  Os minutos se passaram e nem sinal de Calunga. Sentindo-se quase recuperada Rosinha resolveu caminhar esquecendo-se da recomendação da companheira. Estava preocupada e com medo, que teria acontecido? Entrando pela primeira rua passou a prestar atenção em derredor na esperança de encontrá-la. Estava desorientada, pouco sabia do lugar. Se tivessem pegado Calunga como iria voltar para casa? Qual era mesmo a rua que antes haviam tomado? Seu corpo estava agora quente e o rosto ardia-lhe.
  - Rosinha! – mais um sussurro do que um chamado fez Rosinha estancar. Ela olhou em todas as direções e nada viu, teria imaginado? – Aqui em cima!
   Então Rosinha viu-a metida atrás do frontispício de uma casa, sobre o telhado.
  - Calunga! – exclamou Rosinha com imensa alegria – como é que você subiu aí?
  - Na hora do aperto a gente até voa! – falou rindo – eles ainda ta por aqui?
  - Acho que não, eu não vi mais aquele carro! – informou olhando para as extremidades da rua.
  - Então faz o seguinte: vai nessa rua até o final. Lá tem uma praça. Olhe bem e veja se eles ta por lá. Se tiver, disfarce e venha me avisar. Senão me espere lá, ta bem?
  - Ta! – fez simplesmente, Rosinha, saindo imediatamente.
  Poucos metros havia caminhado viu a caminhonete surgir adiante, descendo lentamente. Ela pensou em voltar para avisar Calunga, mas não havia tempo e se tentasse eles a descobririam. Com o coração descompassado prosseguiu, vendo o veiculo aproximar-se cada vez mais em direção contrária. Eles parariam? Rosinha tremia e quase perdia o fôlego! Não podia demonstrar medo senão iriam desconfiar e perguntar, ou mandá-la entrar na caminhonete. Ao passar rente a ela, sentiu os olhares dos homens cravando-se em si, seria agora? Eles não pararam e Rosinha continuou os passos em direção da praça sem olhar para trás.

  Lá chegando sentou-se, sentia-se exausta. Calunga certamente iria demorar; como é que ia sair do esconderijo com eles a rondar por aí? Havia prometido ficar, agora não tinha outro jeito! A praça estava vazia, somente ela ali estava. Uma ou outra pessoa casualmente transitava pelas ruas sem parar. O tempo passava e muitos pensamentos povoavam-lhe a cabeça. Será que Luiza tinha dado falta dela e a estaria procurando? Será que tinham descoberto Calunga e a levado? Não pudera mais ver a caminhonete, pois evitara olhar para trás e daqui nada conseguia enxergar. E se a tivessem pego? A todo o instante girava a cabeça em expectativa de vê-la.
  - Venha, Rosinha, vamos cair fora daqui! – A voz de Calunga se fez ouvir no lado oposto, numa outra esquina da praça. Ela foi em direção à companheira e ambas correram, chegando finalmente no fundo da propriedade. Calunga explicou:
  - Eu não posso aparecer na escola tão cedo, por isso você vai ter de esperar até as coisa se acalmar. Mas se você quiser amanhã ir noutro lugar eu lhe espero aqui na mesma hora. Você bate três vezes no lado de lá e eu respondo daqui. Então você abre e se tudo tiver bem a gente se manda!
  - Você não vai mais ao pomar?
  - Talvez. É que aquele tronco ta desmanchando e ta difícil subir nele.

  Rosinha entrou com todo o cuidado e trancou o portão. Não havia ninguém à vista e andou até as proximidades de uma árvore de casca áspera, metendo a mão no bolso, trazendo a chave e a enfiando no pequeno buraco no tronco, rente ao chão. Muitas vezes ali guardara pequenos objetos em suas brincadeiras de faz-de-conta na solidão de seu mundo. Nem tinha alcançado a via principal do bosque Luiza surgiu de um dos lados apressadamente.
  - Rosinha!
  Ela sobressaltou-se sentindo súbito tremor.
  - Que é Luiza!
  - Você não me ouviu chamar? Está na hora do lanche!
  - Ah! – suspirou aliviada – Não ouvi nada, mas já estou indo!

  Os olhos de Janú não escondiam a ansiedade na medida em que retirava as coisas de dentro da bolsa. Viera lotada e com certo peso, tendo sido necessário a ambas as crianças segurarem-na para conseguir trazê-la. Rosinha, junto a Calunga, ficara de lado observando com satisfação. Gregório, sentado, esticava o pescoço procurando adivinhar o que conteria cada embrulho mal feito ou saco mal dobrado, ao passo que Príncipe, de cara sonolenta, não tirava os olhos de Rosinha ignorando o resto.
  - Ah, Rosinha, quanta coisa boa, quanta bondade! – falou Janú sem olhá-la, atenta ainda ao desenrolar e separar dos suprimentos.
  - Ora, isso não é nada Janú. Eu só não peguei mais coisas porque não íamos conseguir trazer. De outra vez a gente combina e vocês esperam lá no portão.
  - Mas a sua gente não gosta de mendigos, como é que vai ser? – interferiu Gregório não suportando a curiosidade, se levantando para ver o que conteriam os embrulhos e sacos que Janú espalhara ao redor.
  - Eles não precisam saber seu Gregório, deixe que eu dou um jeito!
  - Hum..., carne seca, bacalhau, arroz, feijão, farinha, conserva, coisas boas! – ele a tudo examinava com satisfação.
  - A menina é muito generosa, não Gregório? – disse Janú quase entusiasmada.
  - Sem dúvida, sem dúvida! Calunga descobriu uma jóia perdida no meio de uma floresta!
  - Perdida? – inquiriu Rosinha e Calunga olhou-o de cara amarrada.
  - Perdida? Claro que não! Eu quis dizer..., não foi isso que eu quis dizer. O fato é que a miséria de nossas vidas comoveu-a, o que raramente acontece com outras pessoas; eles não sentem nada por nós – ele agora recuperava aquele ar mais grave, falando com a pausa habitual, virando-se e sentando de novo com a mesma elegância que Rosinha antes havia nele observado – porém Deus, se é que ele existe, haverá de estar olhando por aqueles que sofrem e certamente nos reservará um lugar no céu.
  - Deus está em nossas mentes e não no céu – atalhou Príncipe, falando maciamente sem desviar os olhos de Rosinha.
  - E no coração! – acorreu a criança – Áurea falou que a salvação do mundo não está nas mãos práticas do homem, nem na ciência, nem nas religiões que creem num Deus soberbo e distante, porém nas mentes iluminadas pelo saber e em corações aquecidos no amor. Mente e coração: um não pode equilibrar-se sem o outro!
  - E o que sobra para Deus? – perguntou Gregório com verdadeira curiosidade.
  - Áurea falou que bastaria essas coisas estarem purificadas que Deus se mostraria e dali em diante guiaria cada pessoa assim transformada.
  - Foi como eu sonhei, não falei? – disse Príncipe, excitando-se subitamente ao lembrar-se de fato – Naquela noite que choveu muito, ele prosseguiu sem alterar a postura, lembram-se? Foi aquele sonho que eu contei! – ele sorria e tornava seu rosto mais formoso.
  - Ora, todos os dias você nos conta um ou dois sonhos, como é que vamos nos lembrar? – respondeu Gregório meio impaciente.
  - Aquele foi diferente. Era uma emissária das estrelas que surgia na Terra diante de minha magnificência, entrando resolutamente pelo palácio real em cujo reino, na ausência de meu pai, o rei, eu a tudo comandava!
  Rosinha de novo notava-lhe a transformação na fala e expressão facial.
  - Ah, aquele sonho! – relembrou Gregório amuado.
  - Eu lembro, Príncipe! – falou Calunga com surpreendente memória e energia. O rosto de Príncipe enchia-se de satisfação pelas lembranças de ambos e pelas recordações das cenas coloridas.
 -  Ela dizia coisas assim – reiniciou sem ainda tirar os olhos de Rosinha – estava toda azul, etérea, sorria muito. Mas o que mais ela dizia? – ele agora olhava para o chão tentando se lembrar.
  - Rosinha, não deixa o Príncipe encher sua paciência e nem o Gregório com a conversa deles de botequim.
  Príncipe sequer ouviu o que Janú dissera, preso ainda à busca de seu sonho. Gregório, no entanto, já ia replicar quando Rosinha falou:
  - Deixe Janú, é bom escutar essas coisas.

  Na volta à mansão, Calunga solicitou à Rosinha com tristeza:
  - Você não precisa ta dando essas coisa pra nós. Não foi pra isso que eu levei você lá em casa.
  - Ora, Calunga, eu faço isso porque vocês precisam. Não é como seu Gregório disse das outras pessoas. Lá em casa tem muito.
  Calunga calou-se e Rosinha não tinha mais o que dizer. Pensou então em Áurea e Sabe-Tudo até que lhe fluíram melhores palavras aos lábios:
  - Eu até lhe admiro, Calunga. Com todas as coisas que eu possuo não tenho direito a nada, eles decidem tudo por mim. Com você é diferente. Nunca precisou sair escondida, não tem ninguém vigiando nem precisa estudar o que não gosta. E mesmo assim é inteligente e entende o que se passa comigo. E a Janú que lhe está criando como sua mãe? E o seu Gregório e o Príncipe que falam coisas e mais coisas sem nunca ter estudado?
  - Eles vive lendo jornal e livro velho...e revista também! – tentou explicar.
  - Mas você não, Calunga! Você disse que ainda não sabe ler porque quer aprender na escola, mas é tão inteligente quanto eles, e acho que até mais, e é minha amiga de verdade, com o eu nunca tive!
  - Você acha mesmo? – animou-se como num passe de mágica.
  - Claro que sim! Eu nunca vou lhe esquecer, mesmo morrendo!
  - Morrendo? Calunga parou de supetão.
  - É... –  Rosinha embaraçou-se – ah, não sei explicar!

                                                                           *     *     *

 O céu de novo bruscou, o Sol desapareceu e a temperatura caiu. A ameaça de chuvas tornou-se permanente atravessando o sábado e o domingo. Um pequeno ataque de asma veio atrapalhar o sono de Rosinha na noite de sábado e pela madrugada. Domingo de manhã Rosinha recebeu ordens do pai de não por os pés fora de casa, e, evidentemente, não gostou. Almeida logo em seguida ausentou-se prometendo voltar ao cair da noite.

  Nessa tarde, devido à folga de todos os empregados, exceção de Luiza, Rosinha aproveitou para subtrair mantimentos com maior facilidade, escondendo-os no seu quarto. Depois, enquanto Luiza assistia televisão, entrou sorrateiramente no quarto dela retirando do guarda-roupas, dentre uma pilha dobrada, um vestido marrom e uma blusa branca. Repetiu a mesma manobra no quarto de Almeida, separando um terno azul-marinho completo dentre mais de uma dezena variada que se enfileiravam nos cabides e mais uma calça, duas camisas e dois pares de sapatos. Ele jamais acharia falta dessas coisas, tinha tantas que nem chegaria a usar tudo, supusera convictamente, estendendo essa certeza à Luiza.

  O volume de roupas escondera-os sobre o guarda-roupas e os alimentos empurrara-os para debaixo da cama. Mas era muito perigoso e Luiza podia encontrá-los, que fazer? Por longos minutos quedou-se no chão recostada na cama a pensar. Vinham-lhe à mente várias opções, mas nenhuma lhe valia porque de tão pouco inventivas seriam logo descobertas. Uma coisa era certa: precisaria retirar tudo de seu quarto o mais depressa possível!

  A chuva transformava-se no maior obstáculo e antes que começasse a despencar resolveu tentar algo – fosse o que fosse!  Como primeiro ato daria uma escapada ao galpão a fim de verificar o que existiria por lá que lhe servisse. Tendo isso em mente, caminhou com cautela em direção da ala secundária da mansão adentrando pequeno quarto utilizado para a guarda de objetos diversos, e buscou ansiosamente pela chave, vendo-a num chaveiro de metal sobre um móvel junto com as chaves do portão de entrada e do fundo do bosque. Sabia que às tardes Pedro cumpria sempre à mesma rotina, entregando à Luiza as chaves sob sua responsabilidade, incluindo a do jipe noutro chaveiro. O jipe ficava estacionado ao lado do galpão, sob a proteção de pequeno telhado, próximo da Mercedes que Frederico ali deixava às noites.

  Com dificuldade destacou-a do chaveiro e não tendo bolso nesse vestido, segurou-a com firmeza tentando inutilmente escondê-la na mãozinha. A chave escapava-lhe pelos cantos e sem dúvida seria percebida por Luiza se lhe cruzasse o caminho. Resolveu correr o risco: tinha de apressar-se e caminhou de volta ao quarto, atingindo-o sem surpresas. Estava, porém, excitada e respirava aceleradamente temendo faltar-lhe o ar. Sentou-se na cama tentando acalmar-se, mas não conseguiu, decidindo que sairia assim mesmo!

  Em poucos minutos via-se diante do galpão a enfiar a chave no largo buraco da fechadura, dando-lhe duas voltas completas. A porta rangeu, ela entrou timidamente tateando a parede na meia escuridão, encontrando o interruptor, acendendo-o e fechando a porta. Esbarrou num pequeno banco, tropeçou e derrubou um pé-de-cabra que estava apoiado numa das paredes; aprumou-se e procurou ter mais cuidado. Nada encontrando de imediato que pudesse utilizar de seguro esconderijo, parou a pensar agora com maior clareza, dando mostras de raciocínio adulto. Seria muito difícil retirar as coisas sozinha se as escondesse aqui dentro; teria de entrar e sair inúmeras vezes e isso despertaria a atenção dos empregados. O galpão não era o lugar ideal! Noutro correr de olhos viu caixotes de madeira utilizados para o transporte de frutas, e junto deles uma pilha de sacos plásticos pretos, grandes, tendo uma idéia salvadora! Saiu a correr dali e meteu-se no fundo do bosque, próximo ao muro, em local afastado da via principal e caminhos secundários, encontrando um canto encoberto por plantas arbústeas, longe do vai-e-vem dos empregados: um perfeito esconderijo que ninguém descobriria!

  Retornando ao galpão, escolheu um caixote que julgou de bom tamanho, jogando dentro dele três sacos plásticos, arrastando-o para fora. Arfava muito e suava, assim mesmo não quis parar. Apagou a luz e tão logo se viu do lado de fora trancou a porta. Surpreendente essa sua decisão e superação mostrando uma têmpera extraordinária, jamais suspeitada por ela mesma!

  Com redobrada dificuldade, arrastou o caixote para o local escolhido, às vezes sobre plantas e pequenos obstáculos. No local, parou e descansou sentando-se na beirada do caixote. A testa cobria-se com suor que também escorria-lhe pelo frágil corpo. Entretanto, não podia deter-se e um minuto depois pegava a chave no fundo do caixote e se lançava velozmente para o interior do bosque, em direção da mansão, adentrando-a com a mesma impulsão, mas se lembrando a tempo de Luiza, refreando os passos, passando a andar com suavidade pelo corredor, fechando-se no banheiro onde se lavou. Saindo dali foi ao quarto da ala secundária e recolocou a chave no chaveiro. Na volta, de passagem, enfiou a cabeça pelo pórtico da sala de estar – onde Luiza assistia televisão – e viu-a tirando um cochilo, sentada na cadeira de balanço com o aparelho ligado, e alegrou-se com o fato. Agora nada a atrapalharia, precisava somente ser rápida; assim adentrou seu quarto e começou a puxar de sob a cama e de sobre o guarda-roupa tudo o que escondera.

  Entrando e saindo com embrulhos, embalagens e latarias e finamente com as roupas e sapatos, Rosinha cumpriu aquela maratona, enfiando tudo como pode em dois sacos negros, os arranjando da melhor maneira no caixote. Sobrara um saco e ela o usou para meio cobrir o caixote a fim de protegê-lo da chuva. Ao final, exausta, veio novamente ao banheiro, tomando banho morno, vestindo roupas limpas, metendo-se no quarto. Sentia dores por todo o corpo, mas estava feliz porque a primeira parte do trabalhoso plano fora executada a contento.

  Almeida chegou às sete, Rosinha já dormia, e ao examiná-la sentiu-a quente vendo-lhe olheiras. O termômetro viria confirmar um grau de febre, o que assustou Luiza que a isso não observara, ficando nervosa a se desculpar. Acordaram-na e deram-lhe remédio. Na verdade, Rosinha nem chegou a acordar direito; desabava de sono, sendo necessário que Almeida a segurasse enquanto Luiza a fazia engolir o comprimido e beber dois goles de água. Almeida, no entanto, preocupara-se, lembrando de mandar Luiza ligar para Marga cancelando as aulas da segunda-feira.

  Rosinha teve sono ininterrupto, embora acordasse pelas seis da manhã com a mesma febre.  Luiza, pela madrugada, controlara seu estado febril, vindo três vezes a tomar-lhe a temperatura que se mantivera igual. Deu-lhe novo comprimido e anunciou o cancelamento das aulas. Rosinha exultou, mas logo se entristeceu porque o pai lhe faria novas e severas recomendações de permanência dentro de casa, que ela foi obrigada a assentir com a cabeça demonstrando ter entendido.

  Não chovera, embora o ar se mantivesse úmido e a temperatura caísse obrigando a todos vestir agasalhos. Rosinha observava o panorama externo através das janelas, indo de uma ala a outra da mansão. A febre descera, porém um mal estar não a largava pedindo-lhe repouso. Seu pensamento, no entanto, voava para além da mansão, atrelado a um sentido mais forte de inquebrantável decisão: iria entregar o caixote de qualquer maneira, mesmo se arrastando! Em certo momento, a férrea vontade de sua jovem alma em manter-se alerta e determinada, cedeu aos clamores da delicada constituição física, e ela foi deitar-se, pretendendo que aquele descanso duraria somente uns poucos minutos. Luiza, ao vê-la recolhida ao quarto apressou-se a examiná-la, notando-lhe que se por um lado a temperatura tivesse normalizado, por outro lado a palidez de seu rosto se acentuara. E como ela pouco se alimentara no café da manhã, buscou a um fortificante fazendo-a, a contragosto, engoli-lo de uma colher.

  Pelas onze horas Rosinha se levantou, a sensação de mal estar não a deixara. Não demorou, Luiza veio encontrá-la próximo à janela verificando-lhe as condições. Rosinha tentava desviar as atenções procurando animar-se, dizendo-se boa e nada mais estar sentindo. A dissimulação em parte surtiu efeito e a governanta deixou-a para atender outras tarefas.

  Tão logo almoçou, procurando forçar o apetite, ainda em seu trabalho dissimulatório, anunciou que iria para o seu quarto. Luiza continuou sentada e acompanhou-a com o olhar, nada dizendo. Rosinha foi de fato para o quarto, sentando-se no chão apoiando as costas na cama. Estava impaciente e quase não aguentava ali permanecer, imaginando que a essa altura eles lá estivessem aguardando-a. A fim de melhor disfarçar, lançou mão de uma revista em quadrinhos, de sob a cama, e se pôs a folheá-la fingindo lê-la. Como demorava essa Luiza! Finalmente, pressentindo-lhe os passos não descolou os olhos da revista. Luiza parou diante da porta, mas Rosinha pretendeu estar concentrada na leitura, permanecendo imóvel. Ela se foi e Rosinha suspirou aliviada, jogando a revista de volta para debaixo da cama, levantando-se. Agora sim, realizaria a fuga, desse no que desse!

  Saindo pelo corredor logo alcançou a maciça porta de jacarandá, abrindo-a com enorme esforço, deixando-a somente encostada. Atravessou rapidamente a varanda contornando a casa, atingindo a via principal se infiltrando pelo bosque. A cada passo seus músculos respondiam com dores. Teve de diminuir o ritmo porque súbita tonteira embaçou-lhe à visão e procurou inspirar com maior vigor. De novo os pulmões emitiam chiados, anunciando um possível ataque de asma. Ela agora andava lentamente, parava e procurava descansar, mas a ânsia de logo chegar não lhe permitia retardar-se e prosseguia poucos segundos depois.

  Alcançando o fundo do bosque, foi em direção da árvore que escondia a chave, abaixando-se e a pegando, encaminhando-se ao portão. Bateu três vezes e a resposta foi imediata, abrindo-o. Gregório foi o primeiro a saudá-la, sorridente, dizendo-lhe palavras elogiosas; depois Janú, também com sorriso, mostrando a falta de dentes e finalmente Calunga de vestido rosa e agasalho.
  - Onde está o Príncipe? – perguntou curiosa meio ofegante.
  - Ficou em casa – foi a pronta resposta de Gregório – nossa miséria é grande, mas assim mesmo temos algumas coisas. É preciso que alguém fique, senão roubam!
  - Ah! - fez a criança entendendo, logo explicando – olhem, eu escondi as coisas aqui perto, num caixote, ele é pesado e não posso trazê-lo.
  - Pode deixar, minha filha, é só mostrar que eu trago no ombro.
  - Eu vou mostrar, seu Gregório, têm coisas de comer e vestir, para o Príncipe também.
  - Não se preocupe, a gente divide tudo como irmãos – tranquilizou-a, lançando furtivo olhar para dentro.
  - Então venha depressa, seu Gregório, vamos aproveitar que é horário de almoço dos empregados!
  Gregório acompanhou-a e poucos metros após o portão parou a admirar a formosura do lugar.
  - Magnífico! Soberbo! – exclamava realmente impressionado.
  - Venha, seu Gregório, depressa! – chamou-o Rosinha, tirando-o da contemplação, acenando-lhe. Ao chegar e ver o caixote arcou-se para tomá-lo, todavia não conseguiu trazê-lo ao ombro em primeira tentativa.
  - Ufa! É mais pesado do que pensei – largou o caixote, deitando olhar curioso e satisfeito para a meia cobertura de negro plástico, tentando adivinhar o que conteria.
  - Eu não posso ajudar o senhor, eu estou doente.
  - Doente? – exclamou estudando-a não vendo nada de anormal
  - É, eu tive febre e tenho asma, estou fraca, sabe?
  -  Oh, não se preocupe filha, está um pouco pesado, mas eu me arranjo sozinho, não se preocupe! – informou-lhe com o timbrar característico da voz, tomando de novo o caixote, apoiando um joelho na terra, arrancando-o resolutamente do chão, soltando um grunhido e o trazendo ao ombro. Rosinha, temerosa, deu um passo atrás, porém Gregório, bem equilibrado, levantou-se  e se pôs de pé – Vamos em frente, filha!

  Uma vez no portão, Rosinha recomendou-lhes mais uma vez não se esquecerem da roupa do Príncipe.
  - Você não vem, Rosinha? – perguntou Calunga.
  - Ela está doente! – adiantou-se Gregório na resposta.
  - De novo? – surpreendeu-se Calunga.
  - É, por causa do tempo. Mas isso logo passa, não se preocupe. Agora eu tenho de voltar, senão Luiza vem atrás de mim. Até outro dia!

                                                                     Segue Capítulo 6

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