CAPÍTULO V
O MUNDO AOS
OLHOS DE ROSINHA
Rosinha ia andando, vendo e observando. A rua
estava quase deserta; um ou outro carro passava ou uma pessoa caminhava. Havia
muitas propriedades; viam-se lotes sob a vegetação rasteira ou sob árvores. Havia mansões cercadas de outras belas e luxuosas residências. Rosinha já passara muitas vezes por aqui
na Mercedes guiada por Frederico, mas não se interessara em reparar nessas coisas; da janela do carro tudo pareceu-lhe sempre muito distante. Hoje, porém, era diferente; as coisas se mostravam com um
toque especial, prazeroso, algo excitantemente irreal, bem próximo, exalante de uma vida cheia e plena. As
residências, os jardins, os matagais, a rua; o ar fresco e o Sol rutilante sob
um céu exageradamente anil, a figura de Calunga – tudo se sobrelevava,
dimensionando-se para além de uma realidade cotidiana. Eram tais o
desprendimento, o gozo íntimo, a satisfação de andar com seus próprios pés que
se esquecera da luta íntima de antes. Agora a vida se descortinava ante seus olhos
como nunca, como jamais houvera visto ou sentido, uma estrada sem fim,
desconhecida e excitante!
O silêncio descera sobre ambas. Levantava-se
nesse momento em Rosinha outra alma, uma face ainda prematura, mas pronta a ser moldada e lapidada com novas
experiências. A voz de Calunga veio interromper o silêncio, devolvendo-lhe o ar
e atitudes infantis:
- A escola fica naquela rua – ela apontou.
- O recreio vai demorar?
- Muito não, é às três e meia!
- Agora
deve ser três horas, falta meia hora. Por que não aproveitamos e não me leva a
sua casa para eu conhecer sua família?
- Hum! Na minha casa? – Calunga
desconcertou-se.
- É, puxa! O passeio está gostoso, mas eu ia
gostar de conhecer seu pessoal!
Calunga não se decidia, Rosinha, incomodada
com a demora, voltou à carga:
- Eu
sei que você é pobre e...
- Mendiga! – atalhou-a com azedume.
- Tanto
faz, Calunga. Para mim só interessa você. Eu não estou querendo ir lá para
reparar na sua pobreza, eu quero é conhecer sua família.
- Eles não têm nada de mais, são mendigo
igualzinho os outro.
Rosinha atenta às respostas da companheira,
em súbita atitude adulta resolveu encerrar:
- Está bem, deixe para lá. Outro dia, quem
sabe, você me convide.
Poucos passos tinham dado, Calunga repentinamente
parou. Com a fisionomia séria e cabeça meio baixa, olhando Rosinha por cima
quase juntando as ralas sobrancelhas, perguntou:
- Você não vai reparar de verdade?
- Juro! – confirmou dessa maneira.
- E se não for aquilo que você imagina, você
vai continuar sendo minha amiga?
- Que pergunta, Calunga! Eu não imagino nada!
- Promete? – insistiu.
- Prometo! - Rosinha sorriu fazendo iluminar
o rostinho com significativo brilho de seus olhos azuis.
Mudaram de direção tomando outra rua. Pularam
uma valeta em cujo interior corria esgoto, penetraram por um terreno baldio
andando sobre fino e sinuoso caminho que rasgava capins rasteiros e saíram numa
área ampla e descampada, onde poucas casas eram vistas à pequenas distâncias. Seguiram
por um trecho de terra preta e macia na qual suas pegadas se calcavam,
atingindo uma ponte sobre águas barrentas de um rio de relativo volume. Rosinha
julgou que a cruzariam, mas Calunga apontou para baixo deixando a estrada.
Rosinha parou a observá-la enquanto ela dava os primeiros passos no declive, em
estreito caminho margeado de touceiras e capins. Calunga fez-lhe sinal com a
mão e ela, hesitante, temendo escorregar, a seguiu com excessivo cuidado. Forte
cheiro de carne a ser cozida e tênue faixa de fumaça deslizando em sua direção
fizeram-na olhar atentamente para sob a ponte, e ela viu mais adiante uma
panela de barro apoiada sobre quatro tijolos empilhados. O fogo ardia entre os
tijolos consumindo pequena tora e lascas de madeira, enquanto de dentro da
panela escapavam filetes de espuma, escorrendo entre um ou outro requebro da fina e amassada
tampa de alumínio.
Calunga já atingira a base do declive ao passo que
Rosinha continuava descendo. Na medida em que o caminho se abria para a
esquerda, ela ia enxergando melhor o interior da ponte à direita, até que chegando
junto à Calunga obteve visão global do lugar.
- É aqui que eu moro – disse Calunga como
alguém que se desculpa.
Rosinha com o coração agitado numa
indefinível soma de reações correu os olhos rapidamente sobre todas as coisas
que ali existiam.
Sentado e apoiado com as costas numa das
sapatas de concreto de onde um pilar se levantava, um homem de cinquenta anos
presumivelmente, de cabelos esbranquiçados, ao surgimento de ambas,
lançara-lhes o olhar abrindo sorriso para Rosinha. Ao seu lado, deitado sobre
trapos, com ambas as mãos sob a nuca, um jovem de talvez vinte anos olhava para
cima sonhando acordado. As vestes de ambos, quase idênticas, eram velhas e
encardidas, com rasgos e remendos grosseiros. A um canto, viam-se lenha, panos
velhos, uma corda esticada dependurando uma camisa rôta e prateleiras de tábuas
sobre tijolos, enquanto noutro canto havia outras prateleiras iguais guardando
quinquilharias, como panelas, vidros, pratos, latas e muitas outras coisas. O
chão, embora de terra dura e ressequida, era bem varrido e limpo, e para além
dos dois pilares, próximo de onde os dois homens se encontravam, existia outra
área menor que ia terminar nas águas do rio.
Saindo daquela outra área surgiu
repentinamente uma mulher alta e esbelta, maltrapilha também, de trinta e cinco
anos mais ou menos, que ao vê-las arregalou os olhos não conseguindo disfarçar
a surpresa. Rosinha identificava-os a todos pelas descrições feitas por Calunga
e permaneceu imóvel, qual Calunga. Foi Gregório, com o mesmo sorriso simpático
e voz pausada e sonora, quem veio trazer outra vida àquele quadro e as boas
vindas à inesperada visitante:
- Seja bem-vinda minha filha a casa é pobre,
porém acolhedora. Venha, aproxime-se!
Rosinha, timidamente, com acentuada palidez
novamente hesitou, embora a voz cordial de Gregório houvesse-lhe agradado.
Calunga permanecia sem iniciativa em atitude completamente estranha à sua
natureza dinâmica, e não esboçou qualquer movimento. Gregório, percebendo a
hesitação de Rosinha, continuou:
-Você deve ser a Rosinha. Não se impressione
com nossa miséria, nem com nada daqui e não tenha medo. Faz tempo que
desejávamos conhecê-la. Calunga fala todos os dias em você. Venha, não fique aí
parada!
Príncipe, a essa altura, acordara de seus
sonhos e elevava o corpo sobre os antebraços, virando-se preguiçosamente,
mostrando seu belo e magro rosto, piscando os grandes e sonhadores olhos
verdes. Ele era o único de cor branca entre os quatro. Rosinha então andou e
todo o quadro ganhou maior vida. Calunga acompanhou-a e Janú voltou a mexer-se
dando um passo. Príncipe sentou-se e se apoiou noutro lado da larga e
cilíndrica pilastra onde Gregório também permanecia e encolheu as pernas.
Os olhares dos três nesse instante se fixaram
no azul do vestido de Rosinha. Eles olhavam seu vestido e contemplavam seu
rostinho. Príncipe logo a imaginou uma miragem, um anjo descido dos céus feito
criança, porém guardou para si essas figuras poéticas. Calunga, emergindo da
estática, reassumiu em parte a vivacidade, apressando-se em apontar para
Gregório:
- Esse
aqui é...
- Gregório, seu criado – adiantou-se tomando
as rédeas das apresentações, apontando para os outros – aquela é Janú, minha
mulher, e esse aqui é o Príncipe!
Rosinha
ainda presa às reações iniciais conseguiu dizer:
- Muito prazer!
- Eu trouxe ela por que ela queria conhecer
vocês – explicou Calunga apelativamente.
- Você queria conhecer-nos? – retomou
Gregório e sem esperar pela resposta prosseguiu – Nós também desejávamos
conhecê-la. Aliás, já a conhecíamos um pouco por Calunga, como lhe disse.
Esteja à vontade, quero dizer, se lhe for possível, pois não deve estar
acostumada a ver misérias!
- Eu
também já conheço vocês um pouco – falou Rosinha um pouco mais solta, ignorando
a observação do outro – Calunga já me falou de vocês.
- E não sentiu repugnância pela miséria? –
perguntou Gregório.
- O
quê? – ela franziu o cenho.
- Nojo
pela miséria! – explicou-lhe melhor.
- Não senhor. Além do mais Sabe-Tudo me disse
que o homem não vale pelo que veste, porque ricos e pobres vestem-se de trapos.
A veste verdadeira do homem é tecida pelos seus atos. Assim, ele se tornará
verdadeiramente rico entre ricos ou pobre entre pobres!
Príncipe estremeceu ao ouvir tais palavras
olhando-a com imensa surpresa, piscando seguidamente, devorando-a com os olhos.
Gregório tornou-se inesperadamente sério, buscando interpretar o que ouvira.
Durou pouco isso, porque a inquiriu em seguida:
- Quem é esse Sabe-Tudo?
Rosinha, olhando para Calunga, se deu conta de
que eles não sabiam de nada e ela, por seu turno, não podia dizer-lhes. Calunga
acudiu-a em tempo com sua vivacidade e intuição:
- É um
amigo dela, Gregório, ele é filósofo!
-
Filósofo? Você tem um amigo filósofo?
-
Tenho, sim senhor. Eu tenho também uma amiga que é prosadora – respondeu com
naturalidade após o susto.
- Prosadora? – surpreendia-se novamente.
- Prosadora? – repetiu Príncipe, falando pela
primeira vez, com voz lenta e também agradável – O que ela prosa?
- Ela conta histórias sobre tudo o que é
belo. Em todas as coisas ela enxerga beleza, ela é formidável!
- Não
diga! – surpreendeu-se mais uma vez, Gregório – Será que ela consegue enxergar
beleza na miséria?
- Eu
nunca perguntei isso a ela. Só o
Sabe-Tudo me falou a respeito com seu modo de ensinar.
- Que mais então falou esse Sabe-Tudo sobre os
pobres? – retomou Gregório bastante curioso.
- Sobre os pobres? – pensou a criança
elevando o rosto, pousando os olhos nas estruturas obscurecidas de concreto –
Sobre os pobres, ah! Ele disse que a pobreza dos homens não é uma praga, nem
uma injustiça de Deus, é antes a forma de equilibrar a balança dos débitos em
aberto. Uns sobem da pobreza para a fartura, porque vêm mesmo de baixo com
impulso para cima, outros retornam e pagam porque não quiseram dar quando
deviam e roubaram de quem pouco possuía!
- Que
absurdo, nem todos os pobres são ladrões! – reagiu Gregório, embora sem
alterar-se.
- Eu acho que ele não quis dizer isso, seu
Gregório. É que ele às vezes fala em outras vidas, na volta à Terra! –
desculpou-se a criança.
- Reencarnações! Eu já ouvi falar disso! –
inferiu Príncipe.
- Mas como ele explica essas coisas? –
inquiriu-a Gregório.
- Ele
não explica muito, somente fala de vez em quando. Ele diz que o mundo é um
campo de provas e para cá viemos para aprender e evoluir. Todo aquele que erra
por ignorância, ambição, comete crimes ou se desvia por qualquer outro motivo,
vai a julgamento no Tribunal Celeste após a morte. Então volta para apagar o
erro de muitas maneiras, até aprender pela experiência ou pelo sofrimento.
Todos erram e todos aprendem, embora os íntimos sejam diferentes!
Nesse instante a madeira que ardia no fogo
estalou. Rosinha assustou-se olhando para trás.
- É do fogo, não tenha medo! – falou Janú,
com voz meio rouca, sorrindo e mostrando a falta de dentes em ambas as
dentaduras.
- Eu bem que achei no sonho que hoje íamos
ter novidades – falou Príncipe olhando para adiante.
- Que
novidade, você vive pra sonhar! – retrucou Janú, em seguida convidando Rosinha
– Venha, minha filha, procure um canto e sente-se, não fique aí em pé!
Rosinha olhou em derredor e não viu nenhum
assento.
- Aguenta aí, Rosinha, vou arranjar alguma
coisa pra você sentar – disse Calunga, trazendo três tijolos largos,
forrando-os com uma folha de papel verde. Ante o sinal convidativo ela foi e
sentou-se, ficando de costas para o rio, de frente para a panela e de lado para
Príncipe e Gregório, entre Janú e Calunga.
- O cesto de fruta que você mandou chegou na
horinha naquela vez. Nós não tinha arranjado nadinha pra comer naquele dia –
reiniciou Janú indo para o lado de Gregório e sentando-se. Calunga aproveitou e
sentou-se também. Rosinha esforçou-se para se lembrar da ocasião, mas admitiu
que se tratasse da primeira vez que isso acontecera.
- E o vestido e mais o agasalho que você deu
pra ela, serviu tudo direitinho! – prosseguiu, encostando a cabeça na sapata de
concreto.
- Foi um sonho maravilhoso! – suspirou
Príncipe com olhos enlevados, alheio a tudo o que dissera Janú. Rosinha virou-se
olhando-o no rosto, notando agora sua beleza e delicadeza de traços e forma.
- Não
repare, Rosinha, ele é assim mesmo! – cochichou Calunga, alertando-a. Rosinha,
no entanto, interessada no sonho, nem precisou perguntar a respeito porque
Príncipe foi narrando com olhos ainda perdidos no vazio. Nesse instante, porém,
Rosinha percebia-lhe uma luz branca a tomar-lhe o rosto e algo de azul
envolver-lhe o corpo.
- Saíamos todos do castelo. A ponte elevadiça
lentamente retornava e o povo acenava. A caçada seria um sucesso sem dúvida.
Meu fogoso cavalo branco luzia e os arreios dourados rebrilhavam aos raios do
Sol. Minhas vestes eram mais belas ainda com adereços de ouro e prata, e do meu
chapéu pendia magnífica pluma que eu mandara meu lacaio retirar de rara ave
oriental em cativeiro, presenteada ao rei por um mandarim chinês. Meus dois
escudeiros seguiam pelos flancos, rijos, brandindo as longas lanças cujas
extremidades pareciam querer riscar o céu. E lá ia minha comitiva, com damas e
servos, convidados e cavaleiros. Os cães, adiante, latiam e se excitavam presos
por fortes correias, seguros pelas mãos dos experientes batedores. Eram mais ou
menos uma dúzia.
Um cantor começou a entoar uma canção em meu
louvor, tocando a viola, realçando minha beleza, meu gosto pela opulência,
pelas belas mulheres e excelentes festas. Era grande a graça daqueles que tinham
a sorte de serem meus amigos ou protegidos. Isso era amplamente demonstrado
nesse instante, quando o rei, meu pai, ausentara-se para tratar de negócios com
o governador de outras distantes terras do reino. O rei tinha prazer nos
negócios e gostava de tudo administrar enquanto eu apreciava a melhor parte: as
festas e diversões!
E a comitiva ia seguindo sob um Sol que me
vinha reverenciar e aos meus caminhos iluminar. A poesia enchia os campos e
bosques, tornando-os mais alegres após minha passagem e os aldeões paravam seus
labores para nos saudar, porque o seu futuro rei e senhor os honravam com sua
presença, respirando do mesmo ar. De repente os cães começaram a latir
furiosamente, quase arrastando pelo chão os batedores que à minha ordem os
soltaram. Furiosos, lançaram-se floresta adentro, seguidos dos batedores, de
mais dois homens a cavalo e de um de meus escudeiros. Uma segunda parte da
comitiva de caça seguiu logo atrás, ficando uma terceira parte a aguardar, e
embrenhamo-nos pela floresta. “Por aqui Vossa Alteza!” gritava o escudeiro que
havia seguido adiante e voltava para me conduzir.
Os latidos estavam agora muito próximos, com
toda a certeza os cães haviam encontrado uma caça. Sem dúvida, poucos metros
adiante, encurralado entre os cães e um barranco, um magnífico veado se
defendia dando marradas e mantendo-os à distância como podia. Aproximei-me e o
escudeiro estendeu-me um arco e uma flecha. Era a honra real de atirar
primeiro. Segurei o arco, enfiei a flecha e retesei-o ao máximo, fazendo
pontaria na caça. Porém, no justo instante em que ia soltar a flecha, uma
menina graciosa, envolta em vestes azuis, surgiu ao meu lado, vindo não se sabe
de onde e falou:
- Para
que matar o pobre do bicho, Príncipe! - falou Rosinha interrompendo a
narrativa.
Príncipe estremeceu e olhou-a aparvalhado,
abrindo bem os belos olhos verdes.
- Foi exatamente o que...ela falou. Mas como
você sabe?
-
Adivinhei, só isso! – respondeu Rosinha, encolhendo os ombros com graça –
Príncipe continuava a olhá-la com cara atoleimada e Rosinha perguntou – e o que
aconteceu depois?
-
Ela..., eu folguei o arco olhando-a surpreso e ela sorriu mostrando-me
seus....olhos...azuis – ele olhou-a nos olhos notando a coincidência – então,
quando eu ia perguntar quem era ela e por que aquela ousadia, ela falou de
novo: “Não o mate, Príncipe, ele não lhe fez mal algum!” “Quem é você?”, perguntei-lhe
finalmente, sentindo a essa altura as coisas começarem a nublar, percebendo
unicamente um borrão azul de suas vestes adiante, ouvindo sua voz que aos
poucos se apagava: “Uma velha amiga, breve nos veremos!”. E acordei
estremecendo.
- Outro
sonho sem pé nem cabeça! – comentou Janú trazendo todas as atenções para ela,
exceto do Príncipe.
- Mas
foi bonito, Janú – defendeu-o Rosinha.
Príncipe não se incomodava nem um pouco acerca
das opiniões e olhava fixamente Rosinha tentando entender como ela fora parar
em seu sonho!
- É a
única coisa que o pobre faz sem se
humilhar ou ter de pedir licença – falou Gregório, metendo a mão no bolso e
retirando um cigarro de palha, desamassando-o e passando-lhe a língua.
- O que seu Gregório? – perguntou Rosinha.
- Sonhar, minha filha, sonhar! – enfatizou,
levantando-se e indo até o fogo acender o cigarro, dando duas baforadas e
voltando ao seu lugar. Rosinha reparou como ele era alto e como realizara
aqueles movimentos com elasticidade. Ele continuou – Mendigos como nós não são
gente, são mendigos. Nascem assim e morrem assim. Para tudo precisam pedir,
rastejar. Hoje comem, amanhã não. Adoecem, mas não morrem, só mesmo quando o
diabo chama, caso contrário vão ficando por aí, como lixo que apodrece até não
sobrar mais nada. Não têm direito de frequentar lugares públicos, nem bares,
nada, nem mesmo andar normalmente pelas ruas sem causar aversão às
pessoas. São indesejáveis mesmo estando
limpos e de banho tomado; as pessoas têm asco, viram os rostos, cospem no chão.
Não, mendigos não são gente, são mendigos!
Uma ponta de tristeza veio nublar o
espontâneo brilho dos olhos da criança e ela buscou o que dizer para
consolá-lo:
- Áurea falou que todos nós temos valor ante
os olhos de quem enxerga a beleza. Corações fechados, olhos vendados. Quem
somente vê a beleza das formas e de trapos coloridos, nada vê de fato. Quem
atravessa as formas com o olhar e pressente a alma das coisas, enxerga a beleza
verdadeira.
Príncipe agora prestava atenção no que dizia
Rosinha, o mesmo fazendo Janú e Calunga. Gregório levava o cigarro aos lábios
deixando passar entre eles irônico sorriso, murmurando imperceptivelmente:
- Onde estarão essas pessoas que sabem ver a
alma das coisas?
De novo as duas caminhavam. Rosinha trazia na
memória algumas lembranças do que havia presenciado sob a ponte. O passeio já
não a atraia tanto quanto de início.
- Há quanto tempo você mora lá?
- Não sei, acho que sempre morei naquele
lugar.
- Você não se lembra de antes?
- Muito pouco. Janú me pegou pra criar muito
pequena.
- E de seus pais, não se lembra deles?
- Só da minha mãe. Ela era também mendiga
estava muito doente e vivia sozinha pela aí. Como tava assim, me deu pra Janú e
depois morreu.
- A
escola é muito longe daqui? – Rosinha mudou de assunto.
- É na outra esquina. Tomara que o recreio
não tenha ainda terminado.
Ante essa perspectiva o coração de Rosinha
voltou a ansiar e ela excitou-se. Ao chegarem à esquina Calunga agarrou-a de
súbito pelo braço, gritando nervosa:
- É eles, corra Rosinha, eles já viu a gente!
Virando-se, ela arrastou Rosinha num puxão,
largando-a e correndo velozmente. Rosinha, sem saber do que se tratava,
atônita e temerosa seguiu-a, mas ela se
distanciava.
- Corra
Rosinha, corra! – gritava-lhe Calunga olhando para trás e se distanciando cada
vez mais.
Devido ao susto, a excitação e a correria,
Rosinha começou a sentir falta de ar e as pernas fraquejarem. Levando a mão ao
peito e arfando, ela parou cambaleante. As coisas giravam diante de seus olhos,
ela arfava e se angustiava e vendo tudo escurecer deu dois passos em direção
ao meio fio e ali sentou-se. Calunga gritou:
- Levante Rosinha, corra!
Um violento cantar de pneus atraiu-lhes a
atenção para uma camionete negra pintada com uma faixa branca que dobrou pela
esquina e acelerou em direção de ambas. Calunga, desesperada ante o dilema de
correr e deixar Calunga ou ficar e ser pega, via a caminhonete diminuir a
distância. Rosinha, sem mesmo conseguir distinguir Calunga, imersa nas sombras
de sua visão, fez-lhe sinal para que se fosse, pois era a ela que perseguiam.
Calunga gritou sentindo as lágrimas molhar seu rosto:
- Fique aí, Rosinha, eu volto pra lhe buscar!
Em poucos segundos o veículo com dois homens
passava por Rosinha, ignorando-a completamente, indo à perseguição de Calunga.
Rosinha tremia muito e mal respirava.
Os minutos se passaram e nem sinal de
Calunga. Sentindo-se quase recuperada Rosinha resolveu caminhar esquecendo-se
da recomendação da companheira. Estava preocupada e com medo, que teria
acontecido? Entrando pela primeira rua passou a prestar atenção em derredor na
esperança de encontrá-la. Estava desorientada, pouco sabia do lugar. Se
tivessem pegado Calunga como iria voltar para casa? Qual era mesmo a rua que
antes haviam tomado? Seu corpo estava agora quente e o rosto ardia-lhe.
- Rosinha! – mais um sussurro do que um
chamado fez Rosinha estancar. Ela olhou em todas as direções e nada viu, teria
imaginado? – Aqui em cima!
Então Rosinha viu-a metida atrás do
frontispício de uma casa, sobre o telhado.
- Calunga! – exclamou Rosinha com imensa
alegria – como é que você subiu aí?
- Na hora do aperto a gente até voa! – falou
rindo – eles ainda ta por aqui?
- Acho que não, eu não vi mais aquele carro!
– informou olhando para as extremidades da rua.
- Então
faz o seguinte: vai nessa rua até o final. Lá tem uma praça. Olhe bem e veja se
eles ta por lá. Se tiver, disfarce e venha me avisar. Senão me espere lá, ta
bem?
- Ta! – fez simplesmente, Rosinha, saindo
imediatamente.
Poucos metros havia caminhado viu a
caminhonete surgir adiante, descendo lentamente. Ela pensou em voltar para
avisar Calunga, mas não havia tempo e se tentasse eles a descobririam. Com o
coração descompassado prosseguiu, vendo o veiculo aproximar-se cada vez mais em
direção contrária. Eles parariam? Rosinha tremia e quase perdia o fôlego! Não podia
demonstrar medo senão iriam desconfiar e perguntar, ou mandá-la entrar na
caminhonete. Ao passar rente a ela, sentiu os olhares dos homens cravando-se em
si, seria agora? Eles não pararam e Rosinha continuou os passos em direção da
praça sem olhar para trás.
Lá chegando sentou-se, sentia-se exausta.
Calunga certamente iria demorar; como é que ia sair do esconderijo com eles a
rondar por aí? Havia prometido ficar, agora não tinha outro jeito! A praça estava
vazia, somente ela ali estava. Uma ou outra pessoa casualmente transitava pelas
ruas sem parar. O tempo passava e muitos pensamentos povoavam-lhe a cabeça.
Será que Luiza tinha dado falta dela e a estaria procurando? Será que tinham
descoberto Calunga e a levado? Não pudera mais ver a caminhonete, pois evitara
olhar para trás e daqui nada conseguia enxergar. E se a tivessem pego? A todo o
instante girava a cabeça em expectativa de vê-la.
- Venha, Rosinha, vamos cair fora daqui! – A
voz de Calunga se fez ouvir no lado oposto, numa outra esquina da praça. Ela
foi em direção à companheira e ambas correram, chegando finalmente no fundo da
propriedade. Calunga explicou:
- Eu não posso aparecer na escola tão cedo,
por isso você vai ter de esperar até as coisa se acalmar. Mas se você quiser amanhã
ir noutro lugar eu lhe espero aqui na mesma hora. Você bate três vezes no lado
de lá e eu respondo daqui. Então você abre e se tudo tiver bem a gente se
manda!
- Você não vai mais ao pomar?
- Talvez.
É que aquele tronco ta desmanchando e ta difícil subir nele.
Rosinha
entrou com todo o cuidado e trancou o portão. Não havia ninguém à vista e andou
até as proximidades de uma árvore de casca áspera, metendo a mão no bolso,
trazendo a chave e a enfiando no pequeno buraco no tronco, rente ao chão.
Muitas vezes ali guardara pequenos objetos em suas brincadeiras de faz-de-conta
na solidão de seu mundo. Nem tinha alcançado a via principal do bosque Luiza
surgiu de um dos lados apressadamente.
- Rosinha!
Ela sobressaltou-se sentindo súbito tremor.
- Que é Luiza!
- Você não me ouviu chamar? Está na hora do
lanche!
- Ah! –
suspirou aliviada – Não ouvi nada, mas já estou indo!
Os olhos de Janú não escondiam a ansiedade na
medida em que retirava as coisas de dentro da bolsa. Viera lotada e com certo
peso, tendo sido necessário a ambas as crianças segurarem-na para conseguir
trazê-la. Rosinha, junto a Calunga, ficara de lado observando com satisfação.
Gregório, sentado, esticava o pescoço procurando adivinhar o que conteria cada
embrulho mal feito ou saco mal dobrado, ao passo que Príncipe, de cara
sonolenta, não tirava os olhos de Rosinha ignorando o resto.
- Ah, Rosinha, quanta coisa boa, quanta
bondade! – falou Janú sem olhá-la, atenta ainda ao desenrolar e separar dos
suprimentos.
- Ora, isso não é nada Janú. Eu só não peguei
mais coisas porque não íamos conseguir trazer. De outra vez a gente combina e
vocês esperam lá no portão.
- Mas a
sua gente não gosta de mendigos, como é que vai ser? – interferiu Gregório não
suportando a curiosidade, se levantando para ver o que conteriam os embrulhos e
sacos que Janú espalhara ao redor.
- Eles
não precisam saber seu Gregório, deixe que eu dou um jeito!
- Hum..., carne seca, bacalhau, arroz,
feijão, farinha, conserva, coisas boas! – ele a tudo examinava com satisfação.
- A menina é muito generosa, não Gregório? –
disse Janú quase entusiasmada.
- Sem
dúvida, sem dúvida! Calunga descobriu uma jóia perdida no meio de uma floresta!
- Perdida? – inquiriu Rosinha e Calunga
olhou-o de cara amarrada.
- Perdida? Claro que não! Eu quis dizer...,
não foi isso que eu quis dizer. O fato é que a miséria de nossas vidas comoveu-a,
o que raramente acontece com outras pessoas; eles não sentem nada por nós – ele
agora recuperava aquele ar mais grave, falando com a pausa habitual, virando-se
e sentando de novo com a mesma elegância que Rosinha antes havia nele observado
– porém Deus, se é que ele existe, haverá de estar olhando por aqueles que
sofrem e certamente nos reservará um lugar no céu.
- Deus está em nossas mentes e não no céu –
atalhou Príncipe, falando maciamente sem desviar os olhos de Rosinha.
- E no coração! – acorreu a criança – Áurea
falou que a salvação do mundo não está nas mãos práticas do homem, nem na
ciência, nem nas religiões que creem num Deus soberbo e distante, porém nas
mentes iluminadas pelo saber e em corações aquecidos no amor. Mente e coração:
um não pode equilibrar-se sem o outro!
- E o que sobra para Deus? – perguntou
Gregório com verdadeira curiosidade.
- Áurea falou que bastaria essas coisas
estarem purificadas que Deus se mostraria e dali em diante guiaria cada pessoa
assim transformada.
- Foi como eu sonhei, não falei? – disse
Príncipe, excitando-se subitamente ao lembrar-se de fato – Naquela noite que
choveu muito, ele prosseguiu sem alterar a postura, lembram-se? Foi aquele
sonho que eu contei! – ele sorria e tornava seu rosto mais formoso.
- Ora, todos os dias você nos conta um ou
dois sonhos, como é que vamos nos lembrar? – respondeu Gregório meio
impaciente.
- Aquele foi diferente. Era uma emissária das
estrelas que surgia na Terra diante de minha magnificência, entrando
resolutamente pelo palácio real em cujo reino, na ausência de meu pai, o rei,
eu a tudo comandava!
Rosinha
de novo notava-lhe a transformação na fala e expressão facial.
- Ah,
aquele sonho! – relembrou Gregório amuado.
- Eu
lembro, Príncipe! – falou Calunga com surpreendente memória e energia. O rosto
de Príncipe enchia-se de satisfação pelas lembranças de ambos e pelas
recordações das cenas coloridas.
- Ela
dizia coisas assim – reiniciou sem ainda tirar os olhos de Rosinha – estava
toda azul, etérea, sorria muito. Mas o que mais ela dizia? – ele agora olhava
para o chão tentando se lembrar.
- Rosinha, não deixa o Príncipe encher sua
paciência e nem o Gregório com a conversa deles de botequim.
Príncipe sequer ouviu o que Janú dissera,
preso ainda à busca de seu sonho. Gregório, no entanto, já ia replicar quando
Rosinha falou:
- Deixe Janú, é bom escutar essas coisas.
Na volta à mansão, Calunga solicitou à
Rosinha com tristeza:
- Você não precisa ta dando essas coisa pra
nós. Não foi pra isso que eu levei você lá em casa.
- Ora, Calunga, eu faço isso porque vocês
precisam. Não é como seu Gregório disse das outras pessoas. Lá em casa tem
muito.
Calunga calou-se e Rosinha não tinha mais o
que dizer. Pensou então em Áurea e Sabe-Tudo até que lhe fluíram melhores
palavras aos lábios:
- Eu
até lhe admiro, Calunga. Com todas as coisas que eu possuo não tenho direito a
nada, eles decidem tudo por mim. Com você é diferente. Nunca precisou sair
escondida, não tem ninguém vigiando nem precisa estudar o que não gosta. E
mesmo assim é inteligente e entende o que se passa comigo. E a Janú que lhe
está criando como sua mãe? E o seu Gregório e o Príncipe que falam coisas e
mais coisas sem nunca ter estudado?
- Eles vive lendo jornal e livro velho...e
revista também! – tentou explicar.
- Mas você não, Calunga! Você disse que ainda
não sabe ler porque quer aprender na escola, mas é tão inteligente quanto eles,
e acho que até mais, e é minha amiga de verdade, com o eu nunca tive!
- Você acha mesmo? – animou-se como num passe
de mágica.
- Claro
que sim! Eu nunca vou lhe esquecer, mesmo morrendo!
-
Morrendo? Calunga parou de supetão.
- É...
– Rosinha embaraçou-se – ah, não sei
explicar!
*
* *
O céu de novo bruscou, o Sol desapareceu e a
temperatura caiu. A ameaça de chuvas tornou-se permanente atravessando o sábado
e o domingo. Um pequeno ataque de asma veio atrapalhar o sono de Rosinha na
noite de sábado e pela madrugada. Domingo de manhã Rosinha recebeu ordens do
pai de não por os pés fora de casa, e, evidentemente, não gostou. Almeida logo
em seguida ausentou-se prometendo voltar ao cair da noite.
Nessa tarde, devido à folga de todos os
empregados, exceção de Luiza, Rosinha aproveitou para subtrair mantimentos com
maior facilidade, escondendo-os no seu quarto. Depois, enquanto Luiza assistia
televisão, entrou sorrateiramente no quarto dela retirando do guarda-roupas,
dentre uma pilha dobrada, um vestido marrom e uma blusa branca. Repetiu a mesma
manobra no quarto de Almeida, separando um terno azul-marinho completo dentre
mais de uma dezena variada que se enfileiravam nos cabides e mais uma calça,
duas camisas e dois pares de sapatos. Ele jamais acharia falta dessas coisas,
tinha tantas que nem chegaria a usar tudo, supusera convictamente, estendendo
essa certeza à Luiza.
O volume de roupas escondera-os sobre o
guarda-roupas e os alimentos empurrara-os para debaixo da cama. Mas era muito
perigoso e Luiza podia encontrá-los, que fazer? Por longos minutos quedou-se no
chão recostada na cama a pensar. Vinham-lhe à mente várias opções, mas nenhuma lhe
valia porque de tão pouco inventivas seriam logo descobertas. Uma coisa era
certa: precisaria retirar tudo de seu quarto o mais depressa possível!
A chuva transformava-se no maior obstáculo e
antes que começasse a despencar resolveu tentar algo – fosse o que fosse! Como primeiro ato daria uma escapada ao
galpão a fim de verificar o que existiria por lá que lhe servisse. Tendo isso
em mente, caminhou com cautela em direção da ala secundária da mansão
adentrando pequeno quarto utilizado para a guarda de objetos diversos, e buscou
ansiosamente pela chave, vendo-a num chaveiro de metal sobre um móvel junto com
as chaves do portão de entrada e do fundo do bosque. Sabia que às tardes Pedro
cumpria sempre à mesma rotina, entregando à Luiza as chaves sob sua responsabilidade,
incluindo a do jipe noutro chaveiro. O jipe ficava estacionado ao lado do
galpão, sob a proteção de pequeno telhado, próximo da Mercedes que Frederico
ali deixava às noites.
Com dificuldade destacou-a do chaveiro e não
tendo bolso nesse vestido, segurou-a com firmeza tentando inutilmente escondê-la na
mãozinha. A chave escapava-lhe pelos cantos e sem dúvida seria
percebida por Luiza se lhe cruzasse o caminho. Resolveu correr o risco: tinha
de apressar-se e caminhou de volta ao quarto, atingindo-o sem surpresas.
Estava, porém, excitada e respirava aceleradamente temendo faltar-lhe o ar.
Sentou-se na cama tentando acalmar-se, mas não conseguiu, decidindo que sairia
assim mesmo!
Em poucos minutos via-se diante do galpão a
enfiar a chave no largo buraco da fechadura, dando-lhe duas voltas completas. A
porta rangeu, ela entrou timidamente tateando a parede na meia escuridão,
encontrando o interruptor, acendendo-o e fechando a porta. Esbarrou num pequeno
banco, tropeçou e derrubou um pé-de-cabra que estava apoiado numa das paredes;
aprumou-se e procurou ter mais cuidado. Nada encontrando de imediato que
pudesse utilizar de seguro esconderijo, parou a pensar agora com maior clareza,
dando mostras de raciocínio adulto. Seria muito difícil retirar as coisas
sozinha se as escondesse aqui dentro; teria de entrar e sair inúmeras vezes e
isso despertaria a atenção dos empregados. O galpão não era o lugar ideal!
Noutro correr de olhos viu caixotes de madeira utilizados para o transporte de
frutas, e junto deles uma pilha de sacos plásticos pretos, grandes, tendo uma
idéia salvadora! Saiu a correr dali e meteu-se no fundo do bosque, próximo ao
muro, em local afastado da via principal e caminhos secundários, encontrando um
canto encoberto por plantas arbústeas, longe do vai-e-vem dos empregados: um perfeito
esconderijo que ninguém descobriria!
Retornando ao galpão, escolheu um caixote que
julgou de bom tamanho, jogando dentro dele três sacos plásticos, arrastando-o
para fora. Arfava muito e suava, assim mesmo não quis parar. Apagou a luz e tão
logo se viu do lado de fora trancou a porta. Surpreendente essa sua decisão e
superação mostrando uma têmpera extraordinária, jamais suspeitada por ela
mesma!
Com redobrada dificuldade, arrastou o caixote
para o local escolhido, às vezes sobre plantas e pequenos obstáculos. No local,
parou e descansou sentando-se na beirada do caixote. A testa cobria-se com suor
que também escorria-lhe pelo frágil corpo. Entretanto, não podia deter-se e um
minuto depois pegava a chave no fundo do caixote e se lançava velozmente para o
interior do bosque, em direção da mansão, adentrando-a com a mesma impulsão,
mas se lembrando a tempo de Luiza, refreando os passos, passando a andar com
suavidade pelo corredor, fechando-se no banheiro onde se lavou. Saindo dali foi
ao quarto da ala secundária e recolocou a chave no chaveiro. Na volta, de
passagem, enfiou a cabeça pelo pórtico da sala de estar – onde Luiza assistia
televisão – e viu-a tirando um cochilo, sentada na cadeira de balanço com o
aparelho ligado, e alegrou-se com o fato. Agora nada a atrapalharia, precisava somente
ser rápida; assim adentrou seu quarto e começou a puxar de sob a cama e de
sobre o guarda-roupa tudo o que escondera.
Entrando e saindo com embrulhos, embalagens e
latarias e finamente com as roupas e sapatos, Rosinha cumpriu aquela maratona,
enfiando tudo como pode em dois sacos negros, os arranjando da melhor maneira
no caixote. Sobrara um saco e ela o usou para meio cobrir o caixote a fim de
protegê-lo da chuva. Ao final, exausta, veio novamente ao banheiro, tomando
banho morno, vestindo roupas limpas, metendo-se no quarto. Sentia dores por
todo o corpo, mas estava feliz porque a primeira parte do trabalhoso plano fora
executada a contento.
Almeida chegou às sete, Rosinha já dormia, e
ao examiná-la sentiu-a quente vendo-lhe olheiras. O termômetro viria confirmar
um grau de febre, o que assustou Luiza que a isso não observara, ficando
nervosa a se desculpar. Acordaram-na e deram-lhe remédio. Na verdade, Rosinha
nem chegou a acordar direito; desabava de sono, sendo necessário que Almeida a
segurasse enquanto Luiza a fazia engolir o comprimido e beber dois goles de
água. Almeida, no entanto, preocupara-se, lembrando de mandar Luiza ligar para
Marga cancelando as aulas da segunda-feira.
Rosinha teve sono ininterrupto, embora
acordasse pelas seis da manhã com a mesma febre. Luiza, pela madrugada, controlara seu estado
febril, vindo três vezes a tomar-lhe a temperatura que se mantivera igual.
Deu-lhe novo comprimido e anunciou o cancelamento das aulas. Rosinha exultou,
mas logo se entristeceu porque o pai lhe faria novas e severas recomendações de
permanência dentro de casa, que ela foi obrigada a assentir com a cabeça
demonstrando ter entendido.
Não chovera, embora o ar se mantivesse úmido
e a temperatura caísse obrigando a todos vestir agasalhos. Rosinha observava o
panorama externo através das janelas, indo de uma ala a outra da mansão. A
febre descera, porém um mal estar não a largava pedindo-lhe repouso. Seu
pensamento, no entanto, voava para além da mansão, atrelado a um sentido mais
forte de inquebrantável decisão: iria entregar o caixote de qualquer maneira,
mesmo se arrastando! Em certo momento, a férrea vontade de sua jovem alma em
manter-se alerta e determinada, cedeu aos clamores da delicada constituição
física, e ela foi deitar-se, pretendendo que aquele descanso duraria somente uns
poucos minutos. Luiza, ao vê-la recolhida ao quarto apressou-se a examiná-la,
notando-lhe que se por um lado a temperatura tivesse normalizado, por outro
lado a palidez de seu rosto se acentuara. E como ela pouco se alimentara no
café da manhã, buscou a um fortificante fazendo-a, a contragosto, engoli-lo de
uma colher.
Pelas onze horas Rosinha se levantou, a
sensação de mal estar não a deixara. Não demorou, Luiza veio encontrá-la
próximo à janela verificando-lhe as condições. Rosinha tentava desviar as
atenções procurando animar-se, dizendo-se boa e nada mais estar sentindo. A
dissimulação em parte surtiu efeito e a governanta deixou-a para atender outras
tarefas.
Tão logo almoçou, procurando forçar o
apetite, ainda em seu trabalho dissimulatório, anunciou que iria para o seu
quarto. Luiza continuou sentada e acompanhou-a com o olhar, nada dizendo.
Rosinha foi de fato para o quarto, sentando-se no chão apoiando as costas na cama.
Estava impaciente e quase não aguentava ali permanecer, imaginando que a essa
altura eles lá estivessem aguardando-a. A fim de melhor disfarçar, lançou mão
de uma revista em quadrinhos, de sob a cama, e se pôs a folheá-la fingindo
lê-la. Como demorava essa Luiza! Finalmente, pressentindo-lhe os passos não
descolou os olhos da revista. Luiza parou diante da porta, mas Rosinha
pretendeu estar concentrada na leitura, permanecendo imóvel. Ela se foi e
Rosinha suspirou aliviada, jogando a revista de volta para debaixo da cama,
levantando-se. Agora sim, realizaria a fuga, desse no que desse!
Saindo pelo corredor logo alcançou a maciça
porta de jacarandá, abrindo-a com enorme esforço, deixando-a somente encostada.
Atravessou rapidamente a varanda contornando a casa, atingindo a via principal
se infiltrando pelo bosque. A cada passo seus músculos respondiam com dores.
Teve de diminuir o ritmo porque súbita tonteira embaçou-lhe à visão e procurou
inspirar com maior vigor. De novo os pulmões emitiam chiados, anunciando um
possível ataque de asma. Ela agora andava lentamente, parava e procurava
descansar, mas a ânsia de logo chegar não lhe permitia retardar-se e prosseguia
poucos segundos depois.
Alcançando o fundo do bosque, foi em direção
da árvore que escondia a chave, abaixando-se e a pegando, encaminhando-se ao
portão. Bateu três vezes e a resposta foi imediata, abrindo-o. Gregório foi o
primeiro a saudá-la, sorridente, dizendo-lhe palavras elogiosas; depois Janú, também
com sorriso, mostrando a falta de dentes e finalmente Calunga de vestido rosa e
agasalho.
- Onde está o Príncipe? – perguntou curiosa
meio ofegante.
- Ficou
em casa – foi a pronta resposta de Gregório – nossa miséria é grande, mas assim
mesmo temos algumas coisas. É preciso que alguém fique, senão roubam!
- Ah! - fez a criança entendendo, logo
explicando – olhem, eu escondi as coisas aqui perto, num caixote, ele é pesado
e não posso trazê-lo.
- Pode
deixar, minha filha, é só mostrar que eu trago no ombro.
- Eu
vou mostrar, seu Gregório, têm coisas de comer e vestir, para o Príncipe
também.
- Não se preocupe, a gente divide tudo como
irmãos – tranquilizou-a, lançando furtivo olhar para dentro.
- Então venha depressa, seu Gregório, vamos
aproveitar que é horário de almoço dos empregados!
Gregório acompanhou-a e poucos metros após o
portão parou a admirar a formosura do lugar.
- Magnífico! Soberbo! – exclamava realmente
impressionado.
- Venha, seu Gregório, depressa! – chamou-o
Rosinha, tirando-o da contemplação, acenando-lhe. Ao chegar e ver o caixote
arcou-se para tomá-lo, todavia não conseguiu trazê-lo ao ombro em primeira
tentativa.
- Ufa!
É mais pesado do que pensei – largou o caixote, deitando olhar curioso e
satisfeito para a meia cobertura de negro plástico, tentando adivinhar o que
conteria.
- Eu não posso ajudar o senhor, eu estou
doente.
-
Doente? – exclamou estudando-a não vendo nada de anormal
- É, eu tive febre e tenho asma, estou fraca,
sabe?
- Oh,
não se preocupe filha, está um pouco pesado, mas eu me arranjo sozinho, não se
preocupe! – informou-lhe com o timbrar característico da voz, tomando de novo o
caixote, apoiando um joelho na terra, arrancando-o resolutamente do chão, soltando
um grunhido e o trazendo ao ombro. Rosinha, temerosa, deu um passo atrás, porém
Gregório, bem equilibrado, levantou-se e
se pôs de pé – Vamos em frente, filha!
Uma vez no portão, Rosinha recomendou-lhes
mais uma vez não se esquecerem da roupa do Príncipe.
- Você
não vem, Rosinha? – perguntou Calunga.
- Ela
está doente! – adiantou-se Gregório na resposta.
- De
novo? – surpreendeu-se Calunga.
- É, por causa do tempo. Mas isso logo passa,
não se preocupe. Agora eu tenho de voltar, senão Luiza vem atrás de mim. Até
outro dia!
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