domingo, 6 de março de 2016

Rosinha - (4)


                                                                      CAPÍTULO IV
                                                          A TENTAÇÃO DE ROSINHA

  Os dias que se seguiram foram de certa forma rotineiros para Rosinha. A coisa mais importante em sua vida passou a ser a amizade com Calunga que começava a criar raízes. A cada encontro uma descobria na outra uma nova face. Rosinha chocava-se com algumas narrativas da amiga; suas resoluções e peripécias. Achava-a, em ocasiões, excessivamente violenta e vingativa, e, como já antes acontecido, temia-a. Mas como ela lhe dedicasse atenção e a apreciasse, interessando-se por seus problemas, mesmo encontrando neles uma natureza irreal e fantástica, Rosinha tranquilizava-se, vendo confirmarem-se os verdadeiros sentimentos de estima e atração que Calunga lhe endereçava. Não podia analisar, por inexperiência, as profundezas dos  seus conflitos, mas conseguia senti-los e isso representava-lhe uma soma de contrastes e indefinições, coisas dela ao mesmo tempo sinceras e sagazes, espontâneas e tempestuosas. Essa massa informe ao seu entendimento, a inteligência inata dela, a esperteza, a vibração de vida e o permanente desejo de desafiar o mundo, criavam-lhe torvelinhos e trepidações em sua imaginação, atiçando mais ainda sua igual fome de experiências além muros!

  Não era sem razão que às noites sonhava com Calunga, vendo-se a correr pelas ruas da cidade, a conhecer lugares e a visitar escolas. Era extraordinária aquela sensação de liberdade, de traquinar e decidir. Como se fora na vida real, via-se nas cenas com ela a observar-lhe as reações, a condená-la intimamente quando brigava, mas de novo satisfeita e feliz quando tomavam novos caminhos.

  Calunga, por seu turno, ao voltar regularmente, vinha atraída também pela amizade sincera e leal que, em troca, Rosinha igualmente retribuía-lhe. Os incríveis amigos dela, as histórias que lhe eram contadas, a docilidade, o jeito de ser, a generosa distribuição das frutas, e sua surpreendente ingenuidade, tudo isso tocavam-na de maneira a provocar-lhe crescente curiosidade pelas coisas de seu mundo misterioso e profundo. A prisão domiciliar, cruel e desumana, revoltava a ela própria, inadaptável por natureza. Como é que podia – vivia a inquirir-se – uma menina assim sem nenhuma distração fora desse lugar, sem conhecer praticamente nada lá de fora, saber falar tantas coisas complicadas? Se ela fosse igual àquelas que usam óculos grossos, desajeitadas no andar, que não falam com ninguém a não ser com seus livros, vá lá! Mas não, Rosinha era diferente, era delicada, atenciosa, bonita, cheia de vontades como tantas de sua idade e até mais, para dizer a verdade. Será que aprendia mesmo daquele pessegueiro e da tal roseira?

   - Rosinha, você me deixa eu falar com o Sabe-Tudo?
  Ela olhou-a estranhamente e fez um trejeito de quem nada tem a opor.
  - Se você quiser a gente dá um jeito de você ir lá, mas acho que não vai dar certo. Ele me disse que somente fala comigo.
  - E a Áurea?
  - Também!
  - Por que, Rosinha?
  Ela encolheu os ombros, apertou as negras sobrancelhas, abrindo as mãozinhas brancas:
  - Eu não sei bem por quê. Só sei o que eles me dizem. Além do mais, eles me contaram que vieram juntos de um lugar muito distante onde não há muros e nem maldades, só para tomar conta de mim e ensinar. Depois de tudo, nós voltaremos para lá!
  - Eles disseram isso? Um pesseguero...., e uma rosera? E você acreditou, Rosinha?
  - Por que não? Sabe-Tudo me disse que a prova das coisas que não enxergamos está no coração. Se o coração aceita é verdade, se não aceita é mentira. E eu aceitei porque meu coração disse que era verdade!
  - Mas você escutou o coração dizer: “Rosinha, pode acreditar que tudo é verdade!” – falou-lhe tentando engrossar a voz a fim de parecer sobrenatural.
  Rosinha riu, o rostinho iluminou-se, seus olhos azuis cintilaram, e respondeu:
  - Não, claro que não. A voz do coração não é assim. Áurea me disse certa vez que o coração é uma caixinha com divisões. Certa ocasião a gente abre-a e faz soltar perfume, noutra faz soltar música, noutra alegria, noutra poesia e assim por diante. Se o dono da caixinha não tiver a mão suave para abri-la ou interesse para fazer isso, ela cria teias. A mão sendo pesada, a caixinha se encolhe e fecha como ostra e se apertar demais ou bater muito, ela quebra e se esparrama em pedacinhos. Depois, para encontrar cada pedacinho a pessoa vai ter de se arrastar pelo chão dia e noite com lanterna na mão!
  Calunga, visivelmente preocupada, levou a mão ao coração e com todo o cuidado tateava a região. Como nada trouxesse, olhou para o chão em atitude de busca.
  - Gozado – falou olhando o rosto de Rosinha – eu sempre pensei que o coração fosse como a criançada desenha no caderno..., mas uma caixinha!
  - É..., eu também, mas Áurea falou que isso da caixinha é simbólico!
  - Sim...,o quê?
  - Simbólico, quer dizer, imaginado para ajudar a gente entender uma coisa invisível olhando para outra coisa visível, entendeu?
  - Nadinha!

                                                                            *     *     *

  Três meses se passaram. Nesses últimos dias chovera muito. Depois veio uma garoa intermitente e com ela um vento frio que costumava assobiar pelos cantos da mansão. Montes de folhas acumulavam pelo bosque e pomar esvaziando as árvores. Os homens se lançavam sobre elas a fim de retirá-las da propriedade. Mas as manobras eram ingratas porque demandavam-lhes maior rapidez e desembaraço em amontoá-las do que, em contrapartida, o acúmulo organizado realmente se fazia, e por diversas vezes eles perdiam nesse jogo. A garoa também atrapalhava e mais o vento frio, e tinham de parar em certos momentos porque a garoa se transformava em breve chuva.

  No interior da mansão as atenções se voltavam para Rosinha. Por causa da mudança climática ela fora acometida de forte resfriado que se complicara em febre alta e ataques asmáticos. Ela ardia em meio às crises e nada queria comer, alimentando-se basicamente de sucos – o que preocupava seriamente devido sua propensão para a anemia. No auge das crises ela variava, dizia coisas sem nexo e suava, necessitando que Luiza trocasse-lhe as roupas mais vezes.

  Almeida andava pelos corredores fumando avidamente o cachimbo, pensando já em interná-la. Luiza consumia-se, trazia os olhos vermelhos de chorar, temia coisas mais graves. Sabiam da saúde delicada da criança; lembravam que com um ano e meio quase a tinham perdido, depois com três. O médico da família vinha acompanhando o seu crescimento e por causa de sua fraqueza orgânica aconselhara vida livre e natural, o que Almeida imaginava proporcionar-lhe na propriedade.

  Uma tosse seca e nervosa viera acossá-la; ela gemia e lacrimejava, sentindo faltar-lhe o ar, emitindo chiados no peito necessitando ingestões nebulizadoras que Luiza aplicava-lhe ou à bombinha broncodilatadora. O termômetro subia e descia. Almeida já a levara à clínica indicada pelo médico a fim de tirar radiografias e fazer novos exames, mas felizmente nada de grave fora constatado. No entanto, seu estado não se estabilizava e o médico estabelecera o limite de mais vinte e quatro horas para que o quadro começasse a mudar. Não havendo indícios de melhoras, aconselharia a internação.

  Nesse comenos o céu limpou. O Sol veio bater à vidraça do seu quarto, chamando-a para a saúde! O calor brando veio aquecendo o frio prematuro e a temperatura mudou. Concomitante ao aparecimento do Sol, à fuga do vento e o aquecimento atmosférico, a febre de Rosinha desceu em definitivo voltando à normalidade. A tosse diminuíra consideravelmente e ela não mais teve falta de ar! Todos respiraram aliviados, e passadas as vinte e quatro horas ela mergulhara em calmaria. Dia seguinte, sentava-se apoiada na cabeceira da cama e comia, ainda que relutantemente, sendo à tarde visitada e consultada pelo médico. Com satisfação, ele declarou que as crises tinham sido vencidas, ela reagira e se recuperaria, mas todos os cuidados dali para diante seriam necessários. Passou-lhe alimentação especial e na primeira oportunidade requisitaria exames gerais e completos.

  Rosinha já caminhava pela mansão e como o tempo outra vez bruscasse ela teve o pedido de sair negado. Amuada, ensimesmou-se, porém teve de obedecer. À noite, perto das oito horas, tendo permanecido por pouco tempo a assistir televisão com Luiza, enjoada daquilo, veio para o quarto e deitou-se encostando a cabeça no travesseiro, abraçada a uma boneca.  Luiza, pouco depois, surgiu à porta e ao vê-la deitada com aspecto desalentador, aproximou-se e levou a mão à sua testa. Nada sentindo de febre tranquilizou-se, beijando-a e a deixando.

  Três batidas na vidraça a tiraram daquela apatia e sentou-se na cama. Como estivesse escuro lá fora e não conseguisse divisar com nitidez, permaneceu como estava. Novamente as batidas e ela percebeu uma mão negra e pequena, seria possível? Pôs-se de pé num só pulo e levantou a vidraça.
  - Calunga..., que loucura! - exclamou boquiaberta.
  A negrinha rindo, olhava-a descontraída sob a luz indifusa, na pequena faixa que se deitava ao chão do quintal.
  - Você sumiu, Rosinha, e eu fiquei preocupada.
  - Eu estava doente...,ainda estou, não posso sair.
  - É sarampo?
  - Não, eu tive febre e tosse. Eu sofro também de asma e tudo isso me atacou! Fora a anemia que eu tenho de cuidar.
  - Puxa, quanta coisa! Eu não sabia que você era doente. Isso pega?
  - Eu não tenha nada de contagioso, eu já nasci com isso.  Logo passa e eu fico boa de novo – Súbito ela lembrou-se dos cães e foi tomado de grande temor – Você não pode ficar aí, os cães vão lhe ver e podem lhe estraçalhar!
  - Eu sei..., eu esperei eles ir pro bosque e fechei o portão. Eu não deixo eles me pegar, eu sou mais esperta. Olhe, Rosinha, eu só vim hoje pra saber de você. Amanhã eu volto, ta legal?
  Antes mesmo de Rosinha protestar, ela rodopiava nos calcanhares e saía lépida por entre as árvores, desaparecendo dentro da escuridão naquele vestido vermelho. Rosinha, atônita, mirava ainda as brumas e ao acusar uma aragem mais fria, cerrou a vidraça, recolhendo-se à cama. Fora tudo tão súbito que nem parecia ter acontecido.

  Dia seguinte foi a repetição do dia anterior e Rosinha não pode fazer nada, a não ser descansar. Ainda sentia-se fraca, apesar de desejar demonstrar o contrário e teve sua intenção de sair novamente negada. A temperatura não mudara nem o panorama do céu. Não chovera, mas um vento começou a soprar com maior constância. Rosinha, ociosa, tinha todo o tempo para pensar e lembrava a cada instante do inusitado encontro logo mais a noite, admirando-se mais uma vez da audácia de Calunga.

  Quando a noite chegou, vieram-lhe uma ansiedade e um medo indefiníveis.  Ela mal jantou na companhia de Luiza, apesar das recomendações e insistência da governanta. Almeida mandara avisar que teria reunião após o expediente e não jantaria em casa; melhor assim, pensou a criança, menos um perigo de Calunga ser surpreendida! Pelas oito, Rosinha se enfiou no quarto enquanto Luiza permanecia na sala assistindo televisão. Fechou-se à chave, deixado a vidraça entreaberta. Minutos se passaram e nada de Calunga aparecer, preocupando-a. Logo, porém, a inconfundível voz a chamou e ela abriu de vez a vidraça.
  - Olhe, Rosinha – começou Calunga olhando para todos os lados – eu não vou poder demorar porque os vira-lata ta rondando perto do pomar e eu não consegui fechar o portão. Eu só quero lhe dar essa lembrança, segure aí! – ela esticou-se e estendeu a mão, Rosinha, nas pontas dos pés, arcou o corpo tomando o que lhe era oferecido.
  - Que linda, uma concha! – exclamou satisfeita. Calunga sorriu e seus olhos demonstraram  igual ou maior satisfação.
  - Eu catei na praia ..., e achei que você ia gostar!
  - É linda! – repetiu Rosinha – trazendo-a mais para a luz. Não sei como lhe agradecer!
  - Não precisa. Se achar outra bonita assim, eu lhe dou também.
   Preocupada, Rosinha olhou através da janela, girando a cabeça para ambos os lados,  acompanhada nesses movimentos por Calunga.
  - Vá embora agora, estou morrendo de medo que eles lhe descubram – implorou-lhe – daqui a dois dias eu acho que já posso caminhar lá no pomar, você vai?
  - Na mesma hora?
  - Na mesma hora!
  - Ta combinado, tchau!
  - Tchau!

  Dois dias depois ambas se reencontravam e nos subsequentes dias. Os assuntos, entretanto, começavam a repetir-se e uma já conhecia as histórias da outra e a maneira de nelas inserirem-se.  Coincidentemente a isso, Calunga veio trazer uma notícia que muito desagradou Rosinha.
  - O tronco ta apodrecendo, logo eu não vou conseguir subir nele pra alcançar o muro.
  - E o que você vai fazer?
  - Não sei. Eu não tenho força pra arrancar uma árvore e encostar ela no muro.
  - Então a gente não vai mais poder se ver?
  - Só se for no parque da praça. Mas lá não dá por causa da Luiza.
  - Chi..., como é que vai ser? – mais ainda se preocupava Rosinha.
  - Além de tudo, ta chegando o inverno e vem um frio de lascar e quando vem frio e chuva eu fico me esquentando na fogueira o dia todo.
  - É...? – fez Rosinha surpresa e você não usa agasalho?
  - Que agasalho? Eu não tenho nada, só esse vestido velho e uns saco de estopa pra me enrolar!
  - Só? Quer dizer que no frio você só usa isso? -  ela mais ainda se espantava.
  Ela meneou a cabeça afirmativamente e Rosinha correu os olhos pelo seu corpo a notar com admiração como ela suportava tamanho castigo sem adoecer. Fosse consigo certamente ficaria gravemente doente, pois qualquer friozinho lhe fazia mal.
  - Eu vou lhe dar um agasalho, eu tenho muitos!
  - Não, isso não! Eu não vou aceitar. Eu sempre fui assim, não é agora que vai mudar! – recusou com veemência.
  - Eu quero lhe dar um, Calunga, para você se aquecer. Eu tenho muitos, tenho tantos que nem sei quantos!
  Silêncio. Calunga ficara vexada. Ficava assim sempre que falava de seus problemas ou de sua obscura origem. Rosinha retomou o problema inicial inquirindo-a mais uma vez:
  - E como vão ser os nossos encontros depois que o tronco não servir mais?
  - Por que você não dá um jeito e foge pra rua? – sugeriu Calunga levianamente, reassumindo de repente a usual maneira de ser. Rosinha estanhou os olhos com exagero e o azul plácido transmutou-se em ardência.
  - Fu...gir? – balbuciou.
  - É, se manda daí. Se eles lhe obriga a fazer o que você não gosta, mostre pra eles!
  Rosinha, aturdida, acompanhava as palavras de Calunga. Aquilo jamais lhe havia passado pela cabeça!
  - Mas eu não posso!
  - Pode sim, Rosinha, é só querer! Depois ninguém precisa saber. A gente combina uma hora dessa e eu lhe espero aqui fora, então levo você onde você quiser!
  - Na escola também?
  - Também!
  A idéia era tentadora, porém o temor à desobediência era ainda maior e Rosinha agitava-se relutando
  - Não..., eu não posso, se eles descobrirem....
  - O que eles vão fazer? Eles bate em você?
  - Não! – negou com energia.
  - Eles põe você de castigo?
  - Também não. Mas eu também nunca fiz nada igual.
  - Esquece essa coisa de obediência. Você não pode ficar toda vida nesse mundo de árvore e planta aí, cheia de muro por todos os lado e de gente que você ta careca de conhecer. Não tem um portão lá no fundo?
  - Mas ele fica fechado!
  - Roube a chave, abra ele e saia!
  - Roubar a chave? É loucura! Eu não posso fazer isso!
  - Por que?
  - Sabe-Tudo me disse que o roubo é ilegal, é produto de ambições loucas!
  - Ah..., esse Sabe-Tudo, mande ele pra...., bem esqueça ele pelo menos uma vez!
  - Nunca, ele é meu amigo, eu não posso esquecê-lo!
  - Ta bem, Rosinha. Então não roube, pegue emprestado ora, depois você devolve, ou...
  - Ou o quê?
  - É isso! Mande fazer uma igual, só pra você!
  - Mas como é que eu vou mandar fazer?
  - Escute bem, Rosinha. Você tem algum dinheiro guardado?
  - Tenho um cofre, está cheio de moedas...
  - Faça o seguinte: tire o dinheiro do cofre e rou..., digo pegue a chave emprestado e me entregue as duas coisa. Então eu vou num homem que conheço e mando ele fazer outra chave igualzinha. Pago ele e lhe trago chave. É facinho da silva, é só você querer!
  Ante a idéia Rosinha tremia e arfava. Era tentador o pensamento de sair por aí com Calunga, conhecer a escola! Não obstante, a manobra pareceu-lhe gigantesca e incrível, jamais havia pensado em tal coisa: era algo mais do que ousado, simplesmente muito perigoso!
  - É o único jeito, prosseguiu Calunga já vendo a indecisão da outra, se não for assim acho que a gente só vai poder se ver mesmo é lá no parque, aos domingos, e de longe. O tronco ta apodrecendo!
  Rosinha somente olhou-a, mas seu rosto claro espelhou o drama que Calunga nela houvera instalado. Calunga lançou uma última cartada:
  - Eu preciso ir embora. Se você topar traga amanhã a chave e o dinheiro que eu saio em disparada e em meia hora volto com as duas chave. Aí a gente combina e sai um dia. Tchau, Rosinha!

                                                                            *     *     *

  - Sabe-Tudo, a desobediência é ruim?
  “A obediência é a maneira respeitosa de se reconhecer o direito alheio. A desobediência é a rebeldia e negação às ordens que lhe pareçam injustas. Essa última será ruim a partir do instante em que venha causar prejuízos a outros por seus direitos adquiridos. Quando a obediência estiver afinada com a natureza de quem obedece terá sido um ato natural, porém quando for obrigatória e violentar a natureza se chamará escravidão, porque o espírito entenderá que é livre para decidir ou aceitar. O bom senso e o sentido de proporção de todas as coisas sugerem, ao invés de extremos, acordos bilaterais, evitando-se desse modo conflitos desnecessários e soluções injustas.
  - Que complicação, Sabe-Tudo, não entendi nada!
  “Obediência e desobediência estão intimamente relacionadas com o direito de viver e desfrutar, por isso é complicado. Porém, nem todos sabem mandar e nem todos sabem obedecer e é esse o motivo que faz a resposta ser complicada, minha menina!”
  - Eu só queria saber se eu desobedecesse meu pai, isso seria ruim?
  “Essa questão eu não posso responder por você. A resposta você mesma precisará encontrá-la.”

  Rosinha, insatisfeita, correu para Áurea.
  - Áurea, é feio desobedecer?
  “Criança atribulada, que a faz crer que almas belas e puras tornem algo feio? Há entre oposições experiências e resultados. Há enriquecimentos, um maior horizonte a descortinar para a expansão de qualidades. Falo de almas que se consagram nas virtudes da beleza porque essas eu as conheço melhor, como conheço você, Rosinha. Se é feio desobedecer eu não sei dizer-lhe de outra maneira!”
  - Mas todas as coisas não têm as suas sombras, e o feio não é a sombra do belo? Assim a obediência é o belo e a desobediência é o feio!
  “Depende de quanto de beleza seja obedecer. Depende de que lado se esteja e a forma como a alma enxergue o ato, e depende, principalmente, de quem nos mande obedecer ou desobedecer. O belo e o feio estarão na intimidade do coração. A sombra se deita quando a luz também deriva. Se a luz iluminar da cabeça aos pés não haverá sombras como ao meio dia de Sol a pino. Em outras palavras, criança, se precisar desobedecer seja por uma causa que seu coração acredite ser verdadeira a fim de que a experiência seja autêntica e válida!”

  Em chegando a noite Rosinha sentou-se para jantar, a incômoda sugestão de Calunga agitava-lhe os pensamentos tirando-lhe a concentração. Com isso, causava seguidos e desajeitados pequenos acidentes. Comeu pouco e permaneceu alheia a quase tudo, sendo repreendida por Almeida, porém de nada adiantou. Cedo foi para o quarto e lá ficou pensativa e solitária até que o sono chegou e adormeceu.

  Não foi um sono tranquilo, embora sem horríveis pesadelos, apesar de entremeado de estranhas imagens, e ela debateu-se muito. Ao acordar, o lençol encontrava-se amassado e repuxado. Durante a  aula com Marga mal conseguia concentrar-se nas lições, em dado momento quando rabiscava preguiçosamente numa folha de papel, os traços foram configurando o desenho de uma chave. Ao dar-se conta do que havia desenhado teve um sobressalto, cobrindo-a com novos rabiscos.

  Veio o meio-dia. Tensa, Rosinha quase nada almoçou, ouvindo irritada as reclamações de Luiza. Terminado o repasto lançou-se ao bosque. O céu cobria-se completamente de nuvens escuras, a atmosfera pesava a anunciar que novas chuvas aconteceriam dentro em pouco. Ela, hesitante, ao contrário do que sempre fazia, andava ao invés de correr e sob o ingente peso da dúvida não se decidia: obedecer ou desobedecer! Logo Calunga chegaria e perguntaria pela chave e pelo dinheiro, e o que lhe diria? Mas se resolvesse fazer, correria ao quarto, retiraria o dinheiro do cofre, pegaria a chave no galpão, e pronto, tudo resolvido! Depois era sair e conhecer as coisas. Mas se Luiza e o pai descobrissem, o que aconteceria? Seria castigada? Nunca o fora, o que então iriam fazer-lhe; proibir que saísse aos domingos? Obrigá-la a ficar no quarto o dia inteiro? Isso ela não aceitaria de forma alguma, como aguentaria trancada no quarto o dia inteiro sem andar pelo bosque e pomar? Jamais, isso não! Sabe-Tudo dissera que obediência obrigatória era escravidão e ela não era escrava!

  Sem perceber, mergulhada naquelas questões de suma importância para seu mundo, tomara um caminho secundário margeado de cerca viva, acompanhada de pequenas palmeiras, percorrendo-o na totalidade de sua trajetória circular. Absorta, voltou à via principal e retornou para o fundo da mansão, vindo estancar diante do jardim de inverno. Um ligeiro estremecimento a fez despertar daquele estado mental e sem vacilar subiu os degraus caminhando para o quarto, abrindo o guarda-roupas e tomando o cofre de uma das prateleiras, colocando-o sobre a cama com imensa dificuldade quase o soltando. Logo enfiou a pequena chave na fechadura do telhado da casa e a levantou, virando-a. As moedas tilintaram em pequena monta e temendo que Luiza ouvisse apressou-se em fechar a porta. Não sabendo quanto tomar, foi até o guarda-roupas retirando de uma das prateleiras uma blusa branca, pondo-a aberta sobre a cama, depositando ali quase todas as moedas, sobrando umas poucas que as deixou no cofre, e o recolocou no mesmo lugar de antes.

  No entanto, o volume das moedas era demasiado para que pudesse carregá-las sem que caíssem, que fazer? Lembrou-se das toalhas de banho e correu de novo ao guarda-roupas abrindo-o, tomando de lá uma toalha felpuda e amarela, jogando-a dobrada sobre a cama. Rapidamente abriu-a e depositou nela as moedas, segurando-a depois pelas extremidades, torcendo-a e fazendo pequena trouxa. E agora, como sair sem que a vissem? Foi então em direção da janela e a colocou no peitoril. Ela se desmanchou e por pouco as moedas não se esparramaram. Tendo refeito a trouxa com melhores nós voltou-se para o interior da mansão saindo pelo corredor, ansiosa e excitada, andando cautelosamente para não despertar a atenção e alcançou a janela por fora, se espichando toda e puxando a trouxa. Conseguira, afinal! Tendo-a novamente reorganizado lançou-se em direção ao pomar!

  No pomar, enfiou a trouxa entre o capim e correu ao galpão, onde ficava a chave que os homens usavam, retirando-a do prego na parede. Seu coração se agitava como nunca e a respiração quase a fazia convulsionar, parecendo ter na mão uma terrível serpente! Em seguida, manobrou novamente para retirar as coleiras dependuradas lá no fundo, e numa só carreira voltou ao pomar prendendo os cães. Resolveu parar um pouco e descansar, sentia-se enfraquecida, arfava e sobrevinha-lhe uma sensação ruim de falta de ar e um pouco de tonteira. Esperava que os homens ainda demorassem no almoço, pois se vissem os cães amarrados atrás da amoreira iriam estranhar e provavelmente atrapalhariam os seus planos – isso a preocupava!

  - Muito bem, Rosinha, você teve coragem, aguente aí que eu vou pular!
  Rosinha somente olhou-a, sentindo os olhos marejar e uma lágrima quente correr-lhe sobre a face. Calunga não reparou nisso, saindo a se equilibrar pelo muro em direção do maracujazeiro poucos metros dali, logo pulando sobre o caramanchão, apoiando-se nos galhos que envolviam uma das colunas e saltando no pomar. Rosinha foi encontrá-la dando-lhe a chave e a trouxa.
  - Puxa, quanto dinheiro! – admirou-se ao abrir a trouxa no chão.
  - É que eu não sei quanto vai custar, então eu trouxe tudo isso aí.
  - Eu também não sei, mas acho que isso vai dar!
  Ela jogou a chave sobre as moedas refazendo a trouxa, encaixando-a apertadamente num dos ombros, no que foi ajudada por Rosinha; então escalou a coluna, ganhou o muro e desapareceu. Rosinha correu à amoreira e soltou os cães, voltando às proximidades do muro.

  O céu estava mais carregado. Era quase certo que logo choveria. Era também quase certo que a temperatura viria cair e Rosinha ia ser obrigada a permanecer dentro da mansão. Se Calunga não se apressasse, a chuva chegaria antes dela e não ia estar aqui para recebê-la. Um sopro mais frio do inconstante vento provocou-lhe arrepio e lembrou-se de que prometera a amiga o agasalho. Sem delongas, correu para o interior do pomar, avançando em direção do portão, ultrapassando-o e entrando pela casa. No corredor caminhou, cuidando de não fazer ruídos. Era-lhe desagradável andar quando precisava correr, e ao passar diante do pórtico da sala onde Luiza se encontrava, ouviu-a recomendar:
  - Rosinha, não sai mais porque vai chover!
  Irritada, não respondeu, pretendendo não tê-la ouvido. A voz de Luiza, contudo, ressoou novamente, desta feita mais imperativa:
  - Ouviu, Rosinha, não saia agora! Eu ia mesmo procurá-la!

  Ela apressou os passos e entrou no quarto, fechando a porta, dando uma volta na chave. Abrindo o guarda-roupas começou a remexer nas prateleiras e nas gavetas, encontrando um pulôver azul-marinho, que o jogou sobre a cama, e buscou um vestido dentre tantos dependurados nos cabides, a maioria azul por sua exigência, a sua cor favorita. Lembrando-se de que Calunga usava vestido vermelho, procurou em vão um de mesma tonalidade, e resolveu tomar dali um cor de rosa, que quase nunca o usara, e o enrolou junto com o pulôver. Destravando a porta meteu-se pelo corredor andando apressadamente para a porta da frente, passando pela varanda. Contornando a mansão e chegando debaixo da janela, esticou-se toda e pegou as roupas de sobre o peitoril, girando e saindo a toda velocidade em direção ao muro.

  O vento soprava mais forte, Rosinha sentia nele o odor da umidade anunciadora da chuva. Apressou-se em esconder as roupas a um canto, ficando por ali, preocupada, olhando a todo o instante para o céu e alto do muro.
  - Rosinha! Rosinha!
  A voz de Luiza veio incomodá-la e, nervosa, correu para debaixo do caramanchão a esconder-se detrás do véu de folhas de maracujá meio secas, agachando-se e se encolhendo.

  Luiza prosseguiu chamando, passando a poucos metros de onde ela estava, em direção ao fundo do pomar. Os cães vieram atraídos pelos chamados de  Luiza e a acompanharam latindo e rosnando, parecendo a Rosinha desejarem contar algo para Luiza. Quando a voz da governanta morria na distância e os latidos dos cães tornavam-se cada vez mais fracos, indicando que teriam deixado o pomar, Rosinha saiu e voltou para as proximidades do muro. Calunga demorava deixando-a cada vez mais nervosa, ela aguardava e temia! Precisava reaver a chave senão daqui a pouco os homens dariam pela falta. Pouco mais de meia hora tinha decorrido desde que Calunga partira e para Rosinha aquele tempo representava-lhe uma eternidade. Seu martírio chegou ao fim quando viu Calunga surgir sobre o muro com a trouxa na mão.
  - Foi mais rápido que esperava e custou muito menos que você botou aí – disse enquanto sentava-se. O vento arremessava-se nos galhos e folhas fazendo-os ruidar, mexendo com seu vestido vermelho e provocando-lhe caretas.
  - Quer dizer...que deu tudo certo? – Rosinha buscava a confirmação como se não acreditasse, tendo seu vestido também jogado pela força do vento e sua pequena trança a balançar.
  - Claro, ora! – reafirmou Calunga com indisfarçável orgulho – Não disse que era tudo fácil? O homem que fez a chave nem quis saber pra que era, bastou ver o dinheiro e pronto, trabalho feito, tome!
  Pendendo ligeiramente o corpo largou a trouxa para os braços de Rosinha, que não conseguiu agarrá-la, deixando-a cair ao chão abrindo-se. As duas chaves ali estavam e grande número de moedas que sobrara. Rosinha tomou a nova chave e a examinou, comparando-a com a outra.
  - É igualzinha – disse Calunga observando-a com satisfação.
  Rosinha colocou as chaves no bolso e olhando para Calunga fez sinal com a mão:
  - Espere aí que eu tenho uma coisa para lhe dar! – saiu correndo para onde deixara as roupas, retornando em menos de um minuto – Aqui um pulôver que lhe prometi e mais um vestido!
  - Mas eu...! – embaraçou-se Calunga.
  - Vou jogar, segure!
  E lançou-os enrolados e certeiramente. Calunga os examinou, porém seus olhos ao invés de alegria espelharam tristeza. Rosinha, ao contrário, satisfeita, virou-se e se despediu;
  - Eu preciso ir correndo, tenho de levar a chave e as coleiras no galpão e guardar essas coisas no quarto. Vai chover e Luiza já andou por aqui me procurando. Quando o tempo melhorar você volta, está bem?
  Sem mesmo aguardar a resposta da amiga foi agarrando a toalha, mal arranjando a trouxa e lançando-se velozmente para o fundo do pomar. Calunga imóvel, com o rosto ainda entristecido, acompanhou-a com o olhar até não poder mais enxergá-la.

  Rosinha saiu do pomar e percorreu os caminhos do bosque olhando para todas as direções, temendo ser vista. Não encontrou ninguém, embora escutasse não longe dali uma tesoura aparando galhos. Chegando ao galpão guardou os objetos retirando-se imediatamente. Retornando ao interior do bosque, observou que os cães estavam no canil. Luiza, com certeza, prevendo um temporal, os havia guardado. Depois, certamente, tão logo o temporal acabasse e os homens se fossem, os soltaria. Retornando para os lados da mansão, ela cuidadosamente chegou-se à janela e depositou a trouxa no peitoril. Entrando em casa, as empregadas em rebuliço vieram encontrá-la, perguntando-lhe onde estivera. Respondeu-lhe, simplesmente, um “por aí”, se desvencilhando delas, correndo para o quarto, escondendo a trouxa debaixo da cama, e manobrando pequena escada de alumínio que ficava atrás do guarda roupas, na qual subiu, largando a chave no teto daquele mesmo móvel.

  Luiza, tendo sido avisada por uma das empregadas, entrava no quarto alguns minutos depois, molhada e aflita. A chuva nesse instante desmoronava fartamente e o vento uivava. A governanta correu para a janela ainda aberta e a fechou, acendendo a luz, interrogando a criança:
  - Ah, Luiza, estive por aí, pelo bosque e pomar. Onde mais eu ia estar? Veja, estou seca, não me molhei nem um pouco!
  - Você não me ouviu chamar, Rosinha?
  - Ouvi e me escondi! – respondeu cruzando os braços sobre o peito, fazendo cara de importante, causando tremendo espanto à aplicada governanta.

  Pela madrugada, o temporal atingira um auge, chegando a um vendaval de certa proporção. Algumas árvores eram quase arrancadas do solo, milhares de folhas, gravetos e galhos pequenos voavam pela força do vento; galhos maiores eram quebrados, pendendo ou caindo. Flores do jardim também não escapavam, sendo arremessadas para longe ou desmanteladas. Frutos no pomar estatelavam-se às dezenas. Quando o vento passou, novo pé d’água desceu com maior intensidade enchendo lugares e ruas da cidade. A temperatura caiu bastante, permanecendo o intenso frio pela manhã. Os homens nesse dia e nos próximos estariam muito ocupados para limpar a propriedade e reparar os estragos.

  Almeida, de capa e guarda-chuva, saíra bem cedo a inspecionar a propriedade, retornando uns quarenta minutos depois, deixando ordens para Luiza comunicar aos homens.

                                                                             *     *     *

  - Você concorda, Marga, que a obediência é a maneira respeitosa de se reconhecer o direito alheio e a desobediência é a negação do espírito às regras ou ordens que lhe pareçam injustas?
  O rostinho de Rosinha assumia ar adulto, copiado dela própria, a preceptora, e a boca pequena deixava escorrer pelos cantos irônico sorriso, a custo contido. Marga baixou o livro de textos e olhou-a com severidade e raiva, como sempre fazia ante as eloquentes inquisições da discípula em seus lampejos de excepcionalidade. Ela levantou o livro para dar continuidade ao ditado.  Rosinha, porém, voltou à fala e aos provocadores trejeitos:
  - É verdade também que a obediência sendo obrigatória, violentando a natureza, não se chamará escravidão, por que o espírito entenderá que é livre para decidir?
  O rosto da mestra tornara-se carmim, ela mordia os lábios e tremia as bochechas fazendo hercúleo esforço a fim de não explodir, mandando a filha do ilustre doutor Almeida às favas.
  - Rosinha – começou tremendo a voz entre dentes – isso não é assunto de seu nível. Fique quieta e continue a escrever!
  - Mas eu queria saber, Marga!
  - Não tem nada para saber! – respondeu com energia, olhando para os lados, levando a mão ao alto da cabeça afofando os cabelos – isso não é assunto de aula!
  - Você nunca desobedeceu ninguém, Marga, sempre fez tudo o que lhe mandaram?
  - Rosinha....! - rosnou entre dentes.
  - Ah, já sei! Se você sempre obedeceu é por que estava afinada com quem mandava, todo mundo, e foi uma escolha voluntária!
  - Chega! – falou com energia e torturante esforço para não jogar-lhe o livro em cima – se você não calar a boca imediatamente vou passar-lhe um teste agora mesmo e tenho certeza de que esse teste especial será um fracasso. E é mais do que certo que doutor Almeida não irá gostar e eu não farei o menor esforço para defendê-la, entendeu?
  Rosinha baixou os olhos e fez trejeitos, fingindo-se assustada. Por hoje bastava, já provocara o suficiente a antipática mestra e ela se irritara demais. Ah, que boa peça lhe pregara!

  Naquela tarde ela não pode sair nem no dia seguinte. Ainda chovia e o frio permanecia. Ela andava toda agasalhada para não adoecer. No terceiro dia, já pela manhã o céu se abriu e o Sol se apresentou, começando a secar a terra, trazendo alegria. Aquela manhã foi terrível para Rosinha a olhar a cara gorda de Marga, ser obrigada a conviver com ela enquanto lá fora a beleza voltava. Depois do almoço nova angústia. Marga deixara-lhe muitas tarefas, como vinha deixando nesses dois últimos dias, provavelmente por vingança das provocações; assim era bem melhor primeiro se despachar com as lições para ficar livre em definitivo.

  Terminadas as tarefas, no meio da tarde Rosinha corria livremente pelo bosque e pomar, embora muito agasalhada, o que a incomodava sobremaneira, pesando-lhe nos movimentos. O odor da renitente umidade juntava-se às emanações de flores e plantas, e tudo cheirava a rejuvenescimento e ressurgimento. Rosinha nesses dias em que permanecera sitiada por causa do mau tempo, quase se esquecera do ousado plano que Calunga formulara e não se perturbara. Talvez porque fugir de casa fosse algo tão irreal em sua mente que afastasse de seus pensamentos tal impossibilidade. Além de tudo, a chuva e o frio e a proibição de se ausentar da casa posicionavam-se de tal maneira que formariam possíveis obstáculos para qualquer outra iniciativa e ao que mais decorresse. Entretanto, ao enxergar o galpão ao longe, metido entre árvores, súbita turbulência agitou-a e as pernas tremeram-lhe: teria realmente coragem para desobedecer?

  Correu ao pomar. O Sol esquentava e ela arrancou fora o agasalho, dependurando-o num galho de árvore, sob os olhares de Sansão e Hércules, permanecendo sobre o chão ainda úmido a aguardar. No entanto, Calunga não compareceria naquele dia e tendo esperado um bom tempo resolveu ir conversar com Sabe-Tudo e depois com Áurea. Dia seguinte, nada de Calunga e a criança começou a ficar preocupada.

  No terceiro dia, porém, a figura extraordinária da negrinha ressurgiu sobre o muro. Os cães latiram e Rosinha com dificuldade os prendeu detrás da amoreira.
  - Que houve, Calunga, você desapareceu?
  - Uns pequeno problema na porta da escola e tive de ficar escondida.
  - Que problemas?
  - Ah! Bobagem! Só uns tabefes numa chatinha, lá!
  Rosinha olhou-a com desagrado, mas ela não se importou.
  - Vamo hoje?
  O coração de Rosinha pulou tão forte que parecia querer saltar do peito. Com a respiração opressa ela exclamou:
  - Hoje?
       - Por que não? O dia ta bom, não vai chover, ta tudo em ordem. Quede a chave?
  - A...chave?
  - É, Rosinha, a chave?
  - Rosinha arfava agora, seu corpinho era percorrido de uma corrente elétrica.
  - Ela..., ela...,está lá....,no meu quarto!
  - Então vá busca ela, pra gente se mandar!
  Rosinha tomava-se de indecisões, era-lhe tão difícil fazer aquilo!
  - Vamo, Rosinha, deixe de ser medrosa, não vai acontecer nada, a gente volta logo. Ande, pegue a chave de uma vez!

  Rosinha virou-se e saiu andando lentamente. Em sua cabeça os pensamentos fervilhavam. Desobedecer! Desobedecer! Era a ordem que martelava. Desobedecer! Desobedecer! Aquilo não cessava, já ecoava e ressoava a parecer-lhe que todas as coisas ao derredor cantavam a mesma coisa em coro!

  Sentiu uma onda, qual nuvem, descer e cobri-la e no mesmo instante seus conflitos começaram a perder força. Uma crescente sensação de coragem e um desejo ardente de conhecer vieram tomá-la. Desobedecer! Desobedecer! Já não lhe soava como um pecado, uma desobediência incomum, mas como um desafio, um direito a conquistar! Movida por aquele estranho e novo alento, ela correu e entrou no quarto tomando a chave.
  - Agora eu vou lá no portão lhe esperar. Não se esqueça de soltar os vira-lata senão os outros pode desconfiar!
  Rosinha fez que sim maquinalmente. Fora providencial a lembrança de Calunga. Na verdade, nem lhe ocorrera esse detalhe, carregava somente uma agitação extraordinária e tudo mais parecia-lhe de menor importância.

  O portão de ferro assomou-se monumental construção. Seria aterradora sua escura figura: carrancuda, marrom – a representação indescritível da prisão! Ele era o carcereiro e ao mesmo tempo o delator e Rosinha novamente tremeu a despeito de toda a agitação e coragem despertada. Buscou a chave no bolso e a trouxe apertando-a, ainda sem tirar os olhos do poderoso obstáculo. Abriu a mão e contemplou a chave. Seus belos e infantis olhos azuis tomavam-se de um reflexo adulto e meditativo. E de fato ela refletia em silenciosa e inconsciente inquirição: seria possível uma simples chave proporcionar-lhe a fuga, a desobediência? Por que desejava tanto fazer aquilo, que importância realmente teria?

  A reflexão adulta reassumiu a forma de assustada expressão infantil ao ouvir do lado de fora três batidas que soaram abafadas. Ela aproximou-se mais e enfiou a chave na fechadura dando duas voltas completas, escutando os estalidos da lingueta. Em ato mecânico, como se já estivesse acostumada a isso, dobrou o dedo em forma de gancho e destravou o trinco, puxando o portão. Viu então o rosto de Calunga rindo descontraidamente. Olhou para trás e já ia ultrapassar o umbral quando Calunga lembrou-a:
  - A chave! 
  Fazendo o trejeito de quem se distraíra, ela voltou e a retirou da fechadura, jogando-a no bolso do vestido e puxou o portão que trancou automaticamente. 
 

                                                                   Segue Capítulo 5
  
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