quinta-feira, 3 de março de 2016

Rosinha - (1)

  Resolvo reeditar Rosinha em capítulos. Não desejei postar toda a obra de uma só vez, mas em partes, embora completa. Rosinha é muito especial para mim, pois me foi projetada em arquétipo há muitos anos, bem antes de pensar escrevê-la. E passa mais uma vez por revisão.

                                                                         INTRODUÇÃO

  “Essa obra não é mediúnica. Assim não há e nem haverá qualquer assinatura de espíritos ou entidades invocando o ditado.

  Admito, no entanto, o exercício da intuição ou da inserção da alma sobre meus pensamentos, e vez por outra faço um jogo com a alma: ela mostra-me claramente algumas cenas e eu as recubro com palavras, com minha pobre semântica. Dou um rumo bem definido àquelas projeções deixando fluir as idéias passo a passo.

  Nunca me agrada o que escrevo e a custo trago a público.

  Rosinha não escapou dessa hesitação. Ficou guardada muito tempo em minhas gavetas e estantes, sob a forma compacta de um livreto. A esqueci de fato, principalmente porque a dramaticidade dos personagens sempre me tocou profundamente e não gosto de abordar o sofrimento dessa maneira e nem recomendar. Algo difícil explicar: amá-la e negá-la.

  Mas não houve jeito, o mesmo impulso que me leva a escrever me levou a relembrar Rosinha e prometi mudar alguns argumentos da história, abrandando o sofrimento dela, trazendo-lhe um final feliz. E de novo esbarrei em conceituações mentais-emocionais: que é um final feliz? Assim, pouco mudei no desenho da obra e nem um pouco de seu final.

  Como adendo, desejo chamar a atenção aos fatos aparentemente irreais que envolvem e circundam Rosinha, aos seus passos e situações julgadas inverossímeis, sabendo que a inteligência sensível do leitor entenderá que tratamos de um personagem especial, de alma avançada num corpo infantil. Sua excepcionalidade e memória são inatas à própria alma, não importando a pouca experiência da tenra e delicada personalidade que assim se manifesta.

  Mesmo à Calunga, noutro plano e contexto, podemos atribuir-lhe certa capacidade e instantes de excepcionalidade. Os demais personagens foram trabalhados no sentido de não obstaculizar a consecução dos fatos, nos momentos em que não deveriam interferir. Ou seja, pode-se julgar estranho Rosinha tão cuidada e vigiada em casa, ficar mais de uma hora sem ser vista ou ouvida e isso, sem dúvida, não escapa às reflexões do leitor atento. Assim, o tempo no seu andamento normal passaria a ser sentido em parâmetros diferentes, permitindo a Rosinha realizar o que precisava ser realizado.

  Haverá mesmo mensagem importante ou pelo menos aproveitável na obra? Não sei, sinceramente. O que eu entendo é que quando nos propomos a escrever nos apropriando da técnica da linguagem e comunicação, temos o dever de tentar trazer a qualquer público uma mensagem construtiva. Pelo menos assim eu tentei".

                                                                                                                        Rayom Ra.

                                                                                ///////

                                                                             CAPÍTULO I
                                                                   ENCONTRO INSÓLITO

  Sansão e Hércules, desesperados, latiam no pomar. Pela direção dos latidos era de supor que estariam a um canto do aprazível lugar próximo ao muro. Luiza, uma negra de meia idade, absorta nos rápidos e precisos movimentos das agulhas longas e prateadas, tricotava qualquer coisa numa cadeira de balanço em treliça. A lã vermelha subindo enrabichada do rolo no chão dispunha-se sem nós em diversas camadas sobre suas pernas.

  A grande, confortável e ricamente mobiliada sala de estar, submergia no mesmo silencioso marasmo de toda a mansão. Unicamente o tic-tac do carrilhão suíço entalhado em ouro, encostado a uma das paredes, ali, nesse momento, quebrava a vazia atmosfera. Contudo, o ritmo contínuo e repetitivo de seus mecanismos vinha trazer-lhe a quase indução ao sono. Luiza resistia. Assim, qualquer outro ruído mais significativo produzido dentro da mansão ou fora dela punha-a mais desperta a aguçar-lhe os sentidos.

  A maneira matronal e a preocupação que se assentava em seus pensamentos em estar vigilante, produziram-lhe à personalidade relevos definitivos nos dez anos em que aqui trabalhava como governanta e, principalmente, desde há oito anos, ao ser incumbida de também cuidar da criança. Incomodada com os dobbermans ela gritou:
  - Rosinha, chame o Pedro, mande-o ver porque os cães estão latindo!
  Os passos da menina estrondaram pelo largo corredor e ela passou zunindo diante do pórtico, em cuja dependência da sala Luiza se encontrava.
  - Não corra tanto, menina, você pode cair – repreendeu-a.
  Confiante em suas pernas ela continuou no mesmo embalo. Logo atingiu o jardim de inverno, cruzando-o e descendo os três degraus do róseo mármore, pisando o pátio do fundo, ganhando o trecho que a separava da esquina da casa, e, já sob palmeiras, começou a chamar:
  - Pedro! Pedro! Pedro!
  O jardineiro não respondia e Rosinha, ainda correndo, seguia pela rua principal internante ao bosque.

  Cansada de chamar e não obtendo resposta, ela parou e resolveu tomar outra direção, deixando a rua principal, ingressando por via secundária em terra firme, assinalada e margeada por pedras pintadas em branco. Altas em ambos os lados, viçosas e em tamanhos aproximadamente iguais, dobravam-se verdes folhagens de samambaias, que vinham terminar, como a via, alguns metros depois, junto à margem de um lago. No centro do lago havia um chafariz, constituído de enorme cálice circundado por três estátuas de divindades gregas, de cujos cântaros tombados sobre os ombros jorravam filetes de água. O cálice, entretanto, fazia projetar contínuos e múltiplos esguichos ao seu redor que turvavam a superfície da água. O lago, inserido entre espécimes de árvores estéreis, ensombrado por nódoas diversas, vinha evocar a imperfeita, mas feliz lembrança, de um oásis numa propriedade belissimamente bem conservada.

  Os persistentes latidos despertaram mais fortemente a curiosidade infantil, sobrelevando-lhe a atenção acima da obrigação imediata. Em casos assim, a proibição era explícita: somente Pedro, a quem os cães conheciam muito bem, poderia investigar a origem de um alarme – ou na ausência dele a própria Luiza! E Rosinha, esquecendo-se propositalmente da ordem, deu meia volta e contornou a margem do lago, enfiando-se por caminho cercado por pendentes folhas de tinhorões.

  Sempre correndo, ela de novo atingiu os meandros da rua principal, deixando-a por outra via, tão bela quanto as anteriores, ao longo da qual porções de cedrinho principiavam formação compactada. Ao cabo de instantes, já um pouco ofegante, divisava ao longe o portão que permitia ingresso ao pomar.

  Na mesma incontida ânsia ela prosseguiu, negando-se completamente a todas as recomendações paternais e de sua ama, sentindo vibrar no peito incompreensível e desconhecida emoção. Já não era mais a curiosidade infantil que a movia, mas um estímulo de argúcia. Seu vestidinho azul pregueado ia balouçando na medida de seus acelerados passos, como um estandarte que prenuncia a metamorfose de uma vida que se adestra na inocência e recolhimento, para outro universo maior e desconhecido.

  Ali chegando elevou a mão e apoiou-a sobre a tranca, virando-se instintivamente, circunvagando o olhar nervosamente pelos arredores para ter a certeza de que ninguém a surpreenderia. Um calor assomou-lhe à face branca e pálida, colorindo-a de um rubor recalcado de culpa ou vergonha. Como nada visse ou pressentisse, pressionou a tranca para cima, empurrando levemente o portão que rangeu. Ela, então, se enfiou pelo estreito vão, o menor possível, ultrapassando-o com todo o cuidado e fez o portão retornar à posição anterior, movendo a tranca para baixo.

  A fúria dos cães continuava; um pensamento súbito assaltou-a e seu inexperiente coração bateu descompassadamente. Um tremor tomou-a da cabeça aos pés. E se fosse um bicho mau? Ou um ladrão? Sendo menina frágil nada poderia fazer para se defender, e o bicho podia comê-la, ou o ladrão levá-la! Sabe-Tudo vivia alertando-a e aconselhando-a acerca dos perigos. Era sempre preferível evitá-los a combatê-los. Mas ele não dissera também, certa vez, que se conhecendo a forma do perigo, e os meios de contorná-lo, o medo decresce e assume posição de estratégia e prudência? E como poderia saber e experimentar se não visse do que se tratava? Se encontrasse Pedro e assustada ficasse a espera do resultado, jamais experimentaria a emoção de haver conhecido por conta própria. Não, dessa vez não! Além de tudo, sentia-se empurrada, impelida a ver o que acontecia!

  Levantou a fronte aguçando a audição e fez balançar a negra e pequena trança que morria pouco abaixo da nuca, adornada na extremidade superior por estreito laço azul. A direção dos latidos, sem dúvida, indicava a proximidade do muro e reiniciou a correr, parando de vez em quando, roçando a mão numa casca de árvore ou liso tronco, hesitante ainda.

  A beleza significativa do pomar e o cuidado que a ele dispensavam tornavam-no primoroso recanto. As árvores frutíferas, carregadas e coloridas, encarreiravam-se por qualidades em áreas e locais próprios. Havia laranjais, pés de tangerinas, limoeiros, jabuticabeiras, caramanchões de maracujás, macieiras, pereiras! Em espaços regulares, ao longo de todo o terreno, espalhavam-se parreirais carregados de muitos cachos de variadas uvas, além de ameixeiras, figueiras e outras dádivas da mãe natureza!  Ao fundo, via-se um capinzal semi trabalhado, deixando a antever que novas mudas de plantas substituiriam a inóspita vegetação, tão logo as trouxessem e as plantassem! Os caminhos por entre árvores, ou sob a proteção enramada e emaranhada das trepadeiras em caramanchões, mostravam, aqui e ali, ranhuras de piaçabas e sulcos de ancinhos que regularmente usavam-nos para varrer e fazer a juntada de folhas ou frutos caídos, ou eram marcados por trilhas de rodas dos carrinhos de mão.

  As fruteiras menores, ainda em crescimento, tinham a proteção de armações de telas, e em alguns trechos, uns poucos compridos cestos de palhas em fibras ali estavam, servindo para o armazenamento de folhas varridas, de pequenos galhos secos ou frutas estragadas. Espalhados, jaziam outros poucos cestos menos fundos, especialmente usados para o quase diário transporte das frutas colhidas diretamente das árvores. Tudo no lugar transpirava viço e extraordinária vida, e o perfume de todos os frutos vinha por vezes navegar em evolante onda ao esbarro da aragem, aliciando insistentemente os sentidos para a irresistível prova do bocado!

  O Sol como áureo manto vestia copas e ombros de árvores, arrastando-se pelas costas dos parreirais e caramanchões, jogando-se ao generoso solo. O lugar, nesse dia, achava-se diferentemente iluminado. Havia um dinamismo! As cigarras explodiam em cantigas, os pássaros afinavam-se em gorjeios, as abelhas zuniam nervosamente, outros insetos se lançavam desprendidos e borboletas coloriam o ar! Um mundo de festas, um gigantesco salão para muitos comensais!

  No centro de tudo, majestosamente postado sem o séquito de iguais, havia enorme pessegueiro - o único ali existente!

  Rosinha já enxergava os cães debaixo de alta macieira próximo ao muro. Latiam e rosnavam fremindo as ameaçadoras mandíbulas, nervosos por não poderem abocanhar o objeto de suas perseguições. Ora rodeavam a árvore, ora pulavam e agarravam-se ao tronco tentando galgá-lo! Temerosa, ela estancou a poucos metros da árvore, olhando para cima, coração aos pulos, desejando ver e ao mesmo tempo não desejando. Os cães, ao perceberem-na, se alvoroçaram com duplicada ferocidade, pulando e latindo. De repente, uma carcomida maçã atingiu a cabeça de Hércules e uma inteira pegou Sansão pelo flanco. Eles se irritaram mais, espumaram, saltaram ambos para o tronco arranhando-o com suas fortes unhas. Rosinha trouxe a mão ao peito e tremeu.
  - Fora seus danado, vai embora! – gritou uma voz áspera, mas infantil.

  Um misto de susto e crescente curiosidade fizeram Rosinha, num deslize vacilante, dar um passo a frente. Em medido gesto, olhou para o alto e viu dentre as folhagens um pedaço de pano vermelho. Arfante e com olhos exageradamente abertos, encorajou-se a mais um passo e deu-o, parando, porém, estupefata, ao notar um pequeno corpo negro que apoiava os pés num galho mais grosso, segurando-se com ambas as mãos noutro mais fino.
  - É uma menina! – exclamou finalmente ao ver o rosto da aparição.
  - Claro que sou uma menina, e esses dois vira-lata não me deixa sossegada! – falou a outra em tom rude e alto.
  - Vira-latas? – redarguiu Rosinha surpresa.
  Os cães não haviam amansado e por causa da voz da invasora continuavam a latir alvoroçados.
  - É vira-lata! Não sabe o que são vira-lata? – reclamou no mesmo tom autoritário.
  - Mas eles não são vira-latas, eles se chamam Hércules e Sansão!
  - E daí? É Hércules e Sansão vira-lata, ora essa! – replicou escarnecendo.
   Rosinha, sem saber o que responder ou fazer, ficou ali parada, fitando-a com seus olhinhos azuis, sentindo uma sensação estranha abraçá-la.
  - Ei, menina! Vai ficar aí me olhando o dia todo? Eu quero descer!
  - O que eu faço? – perguntou estonteada, ainda envolta pela admiração, sem se importar com o alvoroço dos cães.
  - Ora, prenda os diabinho! – apontou para os cães com mão aberta.

  Ela então baixou o rosto e mirou os cães, dando-se conta de que eles eram a real ameaça.
  - Sansão, Hércules, venham, venham! – eles cessaram os latidos e olharam-na -- Venham, me acompanhem! – saiu a correr para o fundo do pomar, sendo imediatamente seguida por eles. Chegando ao portão do fundo abriu-o, e os cães nem parecendo as mesmas feras de há pouco, cruzaram o vão correndo mansamente ao seu lado, até amplo canil com barras de ferro no meio do bosque, sob densa e agradável vegetação. Ela escancarou a porta semiaberta e os mandou entrar. Os cães a obedeceram e ela travou a porta com o ferrolho, girando nos calcanhares reiniciando uma correria de volta.

  Não se refizera da surpresa de uma negrinha invadindo o pomar! Ansiosa pelo reencontro, passou velozmente pelo limiar do portão, encaminhando-se por entre as árvores. Chegando debaixo da macieira não a viu e seu coração acelerou, sobrevindo-lhe um estremecimento, incompreensível para seu infantil entendimento, mas suficiente para uma alma intuitiva que se revolvia dentro dela.

  Outro estremecimento mais forte, mais enérgico, veio tocá-la em meio a um pequeno susto. A voz da negrinha, de outro galho, soou no tom desdenhoso e agreste, porém encontrando em seus ouvidos uma acústica favorável que lhe causava o estranho prazer de ouvi-la:
  - Prendeu os diabinho?
  - Já, pode descer sem susto!
  - Vê lá se eles vai aparecer de novo por aqui e me fazer pular outra vez pra cima dessa árvore. Eu não to aqui pra sobe e desce o dia inteiro! – foi falando ousadamente ao mesmo tempo em que agilmente escorregava de um galho para outro, deslizando pelo tronco fazendo gavinhas com pés e mãos. Atenta, Rosinha acompanhava a todos esses precisos movimentos e quando ela tocou o solo, ficou a fitá-la com intensa curiosidade.
  - Ei, por que ta me olhando desse jeito, nunca viu outra menina? – falou franzindo a testa.
  - Desculpe, eu..., eu já vi sim, mas nunca conversei com uma de fora. Quero dizer... assim como você!
  - Você nunca conversou com uma criolinha como eu? Essa não, menina! Quer que eu acredite nessa história? – disse agora rindo, fazendo engraçados trejeitos.

  Rosinha não conseguia esconder seu estado de espírito. A negrinha de cabelos encaracolados, de testa larga e sorriso escarninho, deixando à mostra dentes alvos e esmaltados, que tão rápido se mostravam acobertavam-se por lábios proeminentes, cuja boca repuxada nos cantos emprestava-lhe ousados reflexos de orgulho indômito e infantil, causava-lhe profunda impressão. Tão forte que nem se fixara direito no seu mal enjambrado vestido vermelho, largo em seu esbelto e ébano corpo a dar-lhe um ar caricato. Tudo isso, longe de provocar em Rosinha outro sentimento avesso qualquer, inspirava-lhe, ao contrário, atração, curiosidade e mistério!

  Esse emaranhado sentir que lhe atravessava os sentidos e se encravava em sua impressionável e acolhedora alma, modelada a um mundo insólito cercado de muros e pessoas de poucos atrativos espirituais, colhia-a com volúpia, estremecimentos e avalanche. Não definia uma só daquelas impressionantes comunicações, antes, somente as sentia. A linguagem não pronunciada da indizível intuição, fazia-se ali indiscutível arauto, enriquecendo-a num súbito e profético momento, naquilo que por oito longos anos haviam-na cruelmente negado!

  E Rosinha, aparvalhada e vexada, continuava a fitá-la com espanto, mesmo depois da admoestação, do escárnio e do deboche. Como não recebesse a réplica de suas infiltrantes palavras, a negrinha retomou:
  - To esperando menina, será que não me ouviu?

  Rosinha corou, dando-se conta do absurdo do momento, ao que lhe parecia vergonhoso diante daquela figura viva e estranha que chegara de um mundo distante, para ela completamente desconhecido. Ela baixou a cabeça e não respondeu. A negrinha, percebendo-lhe o embaraço, teve súbita reação, procurando a seu modo pouco polido e enérgico modificar o rumo da conversa:
  - Ta bem, se não quer responder não faz mal, dexa pra lá!

  Rosinha, cabisbaixa ainda, segurava agora as mãozinhas às costas, olhando o sapatinho preto que mexia de um lado a outro, em atitude engraçada de completa timidez e vergonha infantil. A negrinha, por seu turno, vendo a demorada reação de Rosinha, começou a inquietar-se, coçando atrás da orelha e sobre a nuca, fazendo trejeitos com a boca e nariz. A menina à sua frente, limpa, impecavelmente vestida e surpreendentemente tímida, causava-lhe também curiosidade e reflexão. Sempre vira crianças ricas, filhas de gente importante que não curvavam a fronte para olhar os pobres ou mendigos, julgando-as todas iguais e pernósticas, cheias de caprichos e envaidecimentos. Eram sempre autoritárias e muitas cruéis. Quantas vezes, gostosamente, pregara-lhes peças à porta da escola, sujara-lhes os uniformes ou desmanchara-lhes os cabelos. Isso, invariavelmente, valia-lhe correr do guarda Félix que vigiava o movimento escolar, e passar boa temporada sem lá voltar, pelo menos naqueles horários.

  Ela ria-se quando outras crianças mais dadas, escutando os comentários na porta da escola, vinham contar-lhe que as mães de narizes arrebitados, faziam queixas à diretora do estabelecimento, exigindo que a pegassem e a castigassem. Mas ninguém a segurava, nem mesmo o moleirão do guarda Félix; ela era muito mais ligeira e esperta, e percebia de longe quando armavam-lhe emboscadas. Sabia que pretendiam levá-la à força para uma instituição, sem mesmo consultar Gregório e Janú, seus responsáveis. Ela espionava, escondia-se, não se apresentava. Vira duas ou três vezes um carro negro pintado com faixas brancas chegar à escola com dois homens sisudos dentro dele, a ficar estacionado na rua lateral. Tinha certeza de que estavam por ali para agarrá-la, e de vigiada passava a vigiá-los, de longe, de sob as árvores ou detrás de muros. Depois tudo se normalizava e até o guarda Félix voltava a conversar com ela, dando-lhe conselhos, dizendo-lhe não desejar vê-la castigada, e que não fizesse arruaças, pois também não gostava de ser advertido. Seu comportamento moderado durava não mais do que duas semanas, por que não suportando a empáfia e as provocações dos riquinhos, dava-lhes novas lições!

  Mas ali estava uma menina diferente: tímida, estranha, que a olhava como se de verdade nunca tivesse conversado com uma negrinha. Era rica, isso era fácil entender, pelo trato que dera aos cães que só podiam pertencer-lhe, pela roupa que vestia e onde morava! Estranha, estranha mesmo essa menina, mas simpática. De novo fez tentativa para modificar aquele abismo entre ambas, ao mesmo tempo sutil e tênue como um fio de aranha.
  - Como é que você se chama, menina?
  - Rosinha! – respondeu sem alterar a postura.
  - Eu me chamo Isabel, mas eles só me conhece por Calunga. Aliás, por causa disso, eu tive de dar um soco no olho dum guri enjoado, lá na frente da escola!
  - Você surrou um menino? – Rosinha se assustara piscando os olhinhos azuis, levantando a cabeça, soltando as mãos e perdendo o ar tímido.
  - Surrar eu não surrei, eu só dei um soco no olho dele; bem que ele merecia uma surra. Ele ficou me enchendo por causa de meu apelido achando que era nome. Então eu disse pra ele que me chamava Isabel e ele quis saber de quê. Ora, Isabel, só isso, respondi pra ele. Sabe o que ele fez? Começou a gritar: Isabel só isso! Isabel só isso! Aí eu mandei ele calar a boca, mas ele não calou. Então eu fui pra cima dele e bum...!
  - Ele se machucou? – perguntou Rosinha bastante interessada, levando as pontas dos dedos de uma das mãos aos lábios.
  - Machucô nada, foi só manha. Ele gritou tanto que a escola inteira ouviu. Então eu tive de me mandar porque a diretora veio também doidinha pra me segurar. E ninguém me pega, nem a polícia!
  - Polícia também? - Rosinha ia de espanto a espanto.
  - Só de vez em quando – respondeu apoiando a mão no tronco da macieira, fazendo de novo aquele trejeito – é o guarda Félix, que toma conta da criançada da escola. Ele no fundo é meu amigo e vive me dando conselho.
  - Eu também tenho um amigo que me dá conselhos – aventurou-se, Rosinha, soltando-se um pouco mais.
  - Ele também é guarda da escola? – perguntou atenta, descolando-se da árvore.
  - Não, é o Sabe-Tudo,  ele mora ali! – mostrou para o meio do pomar.
  - Onde? – ela olhou acompanhando o gesto de Rosinha.
  - Ali, bem no meio, depois daquela última laranjeira.
  - Mas eu não to vendo nada, só árvore! – falou a negrinha se abaixando e apertando os olhos, querendo enxergar mais longe.
  - É isso, ele é um pessegueiro! – confirmou com inocência e simplicidade.
  Calunga virou a cabeça para Rosinha com espanto e interrogação, como se não houvesse entendido.
  - Pesseguero? Você ta querendo dizer, aquele negócio que dá pêssego?
  - É ele mesmo, é o Sabe-Tudo, mas chi...., ele não queria que ninguém soubesse! – ela encolheu os ombros levando a mão à boca em reprovação.
  Calunga replicou prontamente, demonstrando com suas palavras a rudeza de quem está acostumada a arreliar e brigar:
  - Que é isso, menina! Ta me achando com cara de troxa, desde quando pesseguero abre a boca pra falar?

  Rosinha novamente chocou-se com a incredulidade e desconfiança da negrinha. O rubor subiu-lhe à face e com o rostinho expressando aquela mesma graciosa timidez, olhou para o chão fechando o cenho, murmurando palavras de lamento e arrependimento:
  - Bem que ele me preveniu. Ele disse que ninguém ia acreditar!
  - Ta bem, ta bem! É que eu nunca ouvi dizer que árvore falasse, muito menos um pesseguero. Faz de conta que eu não ouvi nada, ta legal?
  - Mas é verdade – replicou Rosinha com energia, levantando a cabeça e mostrando lágrimas nos olhos – eu não menti, ele sempre me diz para sustentar a verdade em qualquer situação. A mentira é como língua de sapo: sai da boca como gosma repelente e pegajosa e volta trazendo o alimento que produz mais gosma. Ele diz isso e diz coisas bonitas também!
  Calunga, espantada, olhava-a agora com ar apatetado.
  - Ele disse isso, da língua? – ela abriu bem os olhos.
  - Disse! – confirmou Rosinha.

  Calunga fez trejeitos com o nariz e olhos, e com expressão que a tornava jocosa e esquisita pôs a língua para fora envesgando, procurando vê-la à extremidade. Em seguida, cuspiu e abaixou-se para olhar.
  - Ele não disse que quem mente cospe sapo, disse? – perguntou preocupada, levantando-se e a olhando.
  - Não, mas se a mentira escapar por nossos lábios esteja o coração adoçado para não azedarmos a alma alheia. A mentira e a maldade juntas produzem maiores males do que uma doença que atira sobre o leito!
  - E o sapo?
  - Que tem o sapo?
  - Como é que ele entrou nessa história, ele já foi gente?
  - Não sei, isso ele não explicou. Mas acho que sapo é sapo, gente é gente!
  - Eu também acho, confirmou aliviada, eu ouvi falar lá na porta da escola que tem gente que cospe sapo e vira sapo quando mente, mas é história boba, não é?
  - Sabe-Tudo disse que a imaginação pode ser construtiva e destrutiva; que o medo das coisas imaginadas para causar medo, luta contra a coragem das coisas imaginadas para criar coragem – Rosinha agora falava sem ressentimentos.

  Calunga passou as costas da mão sobre os lábios tendo nos olhos luzidio brilho. Essa menina era muito mais estranha do que antes supusera. Falava coisas diferentes, sabia-as na ponta da língua, mas de repente ficava toda caída  e desarmada feito uma criancinha de três anos. A história do pessegueiro falante não a engolira, nunca vira árvore gemer quanto mais falar. Ah! Isso deve ser a tal imaginação que se referira. Com certeza alguém lhe ensinara essas besteiras e ela, bobinha, achava que o pessegueiro era quem falava. Será que era birutinha? Nunca conversara com outra negrinha, um pessegueiro que fala e ensina, ora bolas! Vai ver é mesmo, birutinha da silva! Mas apesar dessas esquisitices, era-lhe agradável, longe de ser pedante como aquelas bestas ambulantes, filhos de papais e mamães ricos, que cavalgavam para a escola. Ela não, e não tinha a menor vontade de pregar-lhe uma peça!
  - Escute, Rosinha, esse Sabe-Tudo aí, ele anda também, vai passear, fala com otras pessoa? – perguntou tanto quanto possível com teatral garridice, procurando esconder uma dose de malícia. Rosinha, sem perceber-lhe a intenção, respondeu prontamente com humor recuperado, achando que a negrinha realmente se interessava pelo pessegueiro sem mais dúvidas:
  - Não, ele é uma árvore já disse, e árvores não andam! De vez em quando ele brilha, treme um pouco, mas é só isso. Você é a primeira pessoa a saber disso e eu vou contar-lhe uma outra também, é sobre a Áurea!
  - Áurea, quem é?
  - É minha amiga. Sabe-Tudo disse-me que ele é filósofo e Áurea disse-me que ela é prosadora. Ela fala tanta coisa bonita...!
  - Essa Áurea também é..., é... – gaguejou Calunga, apontando com o dedo para os lados do pessegueiro com nova cara de espanto, sem saber direito como perguntar.
  - É uma roseira – respondeu com naturalidade – ela mora lá no bosque, num canteiro do jardim!

  Calunga olhava-a abismada! Dessa vez ela ultrapassara sua previsão. Julgara-a birutinha, mas via agora que ela era muito mais que isso, era doidinha. Primeiro a história da menina, depois o pessegueiro, agora essa da roseira. No entanto, mesmo cismada com as faculdades mentais da outra sentia-se curiosa por saber detalhes, por escutar o que sua doidera tinha para dizer – algo a instigava a isso!
  - E o que ela conta?
  - Bem, muitas coisas, depende do assunto.
  - Você quer dizer que tem de levar um assunto pra ela falar?
  - Mais ou menos. Às vezes eu estou passando e ela me chama, então começa a falar sobre as coisas. Noutras, eu vou lá e puxo conversa.

  A negrinha comia-a com os olhos. Como é que podia uma menina tão engraçadinha e meiga estar falando esses disparates, essas besteiras? Será que ficando a escutar essas coisas sem pé nem cabeça ia repetir também e ficar igualzinha? À esse pensamento seus olhos se arregalaram e mostrou transtorno na fisionomia que foi prontamente notado por Rosinha.
  - Está sentindo alguma coisa? – perguntou-lhe preocupada.
  - Eu? Não... ora essa! Por que ia sentir? Eu só to ouvindo, não falei nadinha!
  - Uma vez ela disse-me o seguinte – prosseguiu Rosinha ignorando os sintomas da outra – o perfume das flores são jorros de essência que os anjos trazem do alto e derramam nos cálices. O perfume não serve somente para aspirarmos e sentirmos prazer, nem para encher nossos ambientes e torná-los atrativos. Ele tem coisas maiores e misteriosas e quando as descobrimos, os segredos passam a nos pertencer e nós a eles. Porém, somente corações puros e sem nódoas conseguem desvendar esses segredos e deleitar-se nos seus eflúvios!
  - Rosinha! Rosinha! – gritaram-lhe ao longe. Ela reconheceu de imediato a voz da governanta.
  - É Luiza, depressa, se esconda! – falou nervosamente.
  - Pra que tanto medo, Rosinha?
  - Ela vai contar para o meu pai que eu estive conversando aqui com uma menina de fora. Depressa, corra e se esconda!

  Sem muito pensar, Calunga resolveu atender-lhe ao apelo e com incrível agilidade saiu correndo para a direção de uma ameixeira, subindo em seguida no tronco, pulando para um galho e se acocorando acobertada pelas folhas. Rosinha, vendo que a negrinha havia se escondido foi ao encontro de Luiza, parando junto ao portão no momento em que ela o abria.
  - Que houve, menina, onde está o Pedro? – ela franzia a testa, juntando as sobrancelhas ralas e finas.
  - O Pedro? Ele, ele, eu não o encontrei!
  - E os cães, onde estão, por que latiam tanto?
  - Eu os prendi, eles estavam fazendo escarcéu por nada, quero dizer, por uma coisa à toa!

  Luiza sobressaltou-se lançando o brilho das negras e grandes pérolas sobre aquele rostinho de rara delicadeza, vestido agora com disfarces e dissímulos. Rosinha, ansiosa, sentia a respiração pesar-lhe no peito a querer agitá-la, mas procurava conter-se a fim de não demonstrar que encobria um fato, um segredo. Aqueles olhos negros e mais vividos incomodavam-na!
  - Rosinha, por que me desobedeceu? Você não sabe que essas coisas são tarefas de adultos?
  - Mas eu não encontrei o Pedro!
  - Então resolveu ir ver sozinha. E que coisa à toa os fazia latir tanto?

  Rosinha emudeceu. Se contasse era mais do que certo que Luiza a delataria ao pai. Recebia poucas visitas, não tinha amiguinhas e não ia à escola. Seu pai queria zelar por sua formação, educá-la sem a influência de pessoas de outras classes. Os únicos amigos secretos eram Sabe-Tudo e Áurea. Eles a amavam e a ensinavam, faziam gravar em sua privilegiada memória cada palavra, cada exemplo, e ela nunca mais esquecia. Apesar deles, de seus carinhos e sabedoria, ainda assim não podia evitar se sentir confinada e vigiada. E o que aconteceria se o pai viesse a saber daquela estranha invasora do pomar e sua conversa com ela?

  Uma luta jamais experimentada deflagrou-se em seu íntimo, fazendo agora descompassar seu infantil coração. Não dizia mentiras e repetira ainda há pouco importante adágio de Sabe-Tudo, porém a realidade era mais dura que as palavras! Sabe-Tudo ensinara-lhe que era hábil e válido ocultar e dissimular, mas quanto a mentir, fora bem claro, que fazer?
  - Ande Rosinha, conte logo, o que os fazia latir tanto? – A voz de Luiza parecia declarar-lhe que a tudo já conhecia, querendo unicamente a confissão.
  - Era um gato! – respondeu a criança, corando e desviando o rosto do percuciente olhar.
  - Um gato?
  - É, um gato grande, mas ele fugiu – confirmou dolorosamente sentindo os olhos umedecerem, lutando para que as lágrimas não viessem à tona.

  A governanta olhou em torno buscando perceber algo estranho. Evidentemente Rosinha mentira e isso era surpreendente. Olhou de novo para a criança e constatou sua angústia, apiedando-se dela. Desgrudando-lhe os olhos perpassou-os novamente pelos arredores e deu dois passos à frente, fingindo acreditar no que ouvira.
  - Bem, se o gato já foi podemos soltar de novo os cães.
  - Não, espere – sobressaltou-se a criança – ele pode estar ainda por ai, então os cães o verão e farão outro escarcéu.
  - Está bem, vamos então procurar o gato pelo pomar, se o encontrarmos o afugentaremos.
  - Agora, Luiza? –  ela mostrara apreensivo brilho nos olhos azuis.
  - Não deseja? Se estiver com medo eu vou sozinha.
  - Não é isso, Luiza, é que... bem, para que se preocupar: é somente um gato, não é?
  Luiza, verdadeiramente curiosa, percebia que a luta e a resistência da criança a crucificavam e resolveu mudar de tática.
  - Muito bem, então deixemos o gato para lá. Vamos entrar, depois mandamos soltar os cães.

  Rosinha aliviou-se exalando uma quantidade de ar retido e isso de certa maneira aliviou também Luiza. Deixaram o pomar e entraram. Rosinha deu um jeito e fugiu de Luiza. A governanta, achando providencial a fuga da criança, correu à cozinha e mandou uma das empregadas se apressar em avisar Pedro de que havia qualquer coisa pelo pomar. Ele verificasse e tomasse as providências; logo mais o procuraria para saber. Dadas as ordens voltou para a cadeira de balanço.

  Embora severa e prestimosa na obediência ao patrão em relação à disciplina da menina, Luiza muito a amava e afora o cumprimento dessas obrigações era paciente com ela. Fazia de tudo para vê-la sorrir e atirar-se em seu pescoço. Isso era bom e sentia-se nesses instantes possuidora de um pedaço daquele anjo inocente e esperto, que para tristeza e preocupações, passava temporadas sob cuidados médicos por sua bronquite asmática e inclinações congênitas para a anemia. Contudo, a disciplina e o rigor na obediência ao patrão impunham-se como escopo principal e não se permitia descuidar-se e se arriscar a receber advertências. Horrorizava-se somente em pensar na possibilidade de falsear no trabalho, ver-se substituída, estar longe de Rosinha. Esses temores, no entanto, eram insulsos. Doutor Almeida jamais pensou em tal hipótese; para ele Luiza era perfeita e insubstituível. Apreciava-a como sabia levar a cabo uma ordem, desembaraçando-se habilmente de todos os pormenores com suficiência e objetividade. Seus relatórios, tão a gosto de um industrial como ele, eram práticos e concisos, pois evitava cansá-lo.

  Nada faltava na dispensa desde a estocagem de alimentos e especiarias a vinhos e outras bebidas nacionais ou importadas, empilhadas na adega do subsolo. Os uniformes da cozinheira, da auxiliar, copeira, de Pedro e dois outros empregados responsáveis pela jardinagem, bosque e pomar eram limpos e à hora; idem, as roupas do próprio doutor Almeida, as dela própria e de Rosinha. Preocupava-se com as costuras, indo pessoalmente aos ateliers para mandá-las fazer ou ajustar, ou às boutiques para roupas prontas. O pagamento quinzenal dos empregados ficava sob sua responsabilidade, fazendo necessárias anotações, destacando e arquivando recibos. Nada a abafava ou a sobrecarregava. Sendo experiente e adestrada nas ocupações, rapidamente se despachava, voltando à tepidez das tardes e a Rosinha.

  Como o ritmo das atividades em todos os quadrantes da propriedade e dentro da própria mansão fosse sistemático, somente uns poucos dias a agitavam por conta daqueles encargos. O restante do mês era levado tranquilamente, mergulhado em calmaria, só eventualmente perturbado por excepcionais problemas. A mansão e tudo o que em redor dela existia silenciava, poucas vezes eram ouvidas vozes pelas dependências; as conversas fúteis, por ordem, eram proibidas e somente um ou outro ruído mais significativo nesses dias rasgava ou feria a atmosfera plácida de seu interior. Em ocasiões, Rosinha corria e gritava pelos corredores e salões, movida por uma necessidade de agitar e trepidar, ou por livre escolha e provocações, a fim de ouvir os ralhos de Luiza e dela se esconder, deixando-a procurá-la por algum tempo.

  Três a quatro vezes ao ano Pedro e os dois homens cuidavam do horto que rodeava a propriedade, produzindo movimentação extra-rotineira, tratando de acertar e modelar o enorme anel vegetal. Os craques das tesouras, as penetrantes incursões da moto serra nos galhos do arvoredo, as farfalhantes quedas, os arremates por cordas, o varrer deles pelo chão quando puxados a mãos, ou atrelados ao trazeiro do jipe, os posteriores aparos em tamanhos adequados, o rebuliço corriqueiro, os chamados de atenção, os gritos de alerta e toda uma gama adicional de ruidosas ações daqueles homens atentos e por vezes nervosos, ecoavam por vezes – quando  trabalhando mais próximos – pelos cômodos da periferia da mansão, eventualmente pelos corredores. Luiza deveras apreciava a tudo aquilo e vigilante permanecia como a supervisionar às ordens do patrão, sentindo-se fazer parte do sucesso das execuções.

  Afora esse bulício em épocas espaçadas no ano, unicamente os rangidos e trepidações de carrinhos de mãos, o roncar e rolar do jipe e um ou outro rumorejar de vozes como regulares e diárias propagações, animavam e atuavam na monotonia ordenada da vida humana daquela gente da mansão. Como complemento ainda das rotineiras ações, havia, duas vezes por semana, na época da colheita, o jipe guiado por Pedro a sair carregado de caixas abarrotadas de frutas, que eram levadas para ser comercializadas em mercados.

  Assim, os homens que figuravam como componentes temporários do panorama da propriedade, não contavam de maneira alguma no âmbito das emoções e afetos de um lar como aquele. Pedro conhecia cada árvore do bosque ou pomar, cada roseira, os pés de avencas, dálias, margaridas, amores-perfeitos, girassóis, as plantas ornamentais, os cedros e cedrinhos, gramas e gramíneas, e tudo mais que a terra ali produzia. Tratava-os, dava ordens para que os tratassem, amparava-os, podava, regava e vitaminava! Com todo esse labor, essa administração quase perfeita, era um profissional, fazia-o em troca de numerários, como seus ajudantes.

  Às empregadas da casa, em escalas e medidas, como não podia deixar de ser, era-lhes tributada igual apatia e ausência em relação direta ao âmago verdadeiro do lar. Embora corretas no proceder, não podiam fazer parte das pulsações e têmpera da família – mesmo Luiza – ainda que isso ali quase não existisse. Faltava, no estrito sentido, a inserção, o ser e estar, os limites e posses do teu e do meu, o sangue, as emoções atávicas; aquelas coisas e objetos que iludem e enganam, mas que enlaçam, fazendo um lar verdadeiro amar e conflitar! E somente Rosinha e o pai, figurantes da diminuta família, inseridos num universo de reinos e espécies vegetais, com simples pessoas em redor, possuíam laços consanguíneos autênticos, mas vidas afastadas!

  Voltemos à Luiza. A governanta sentada na cadeira de balanço não consegue concentrar-se nos alinhavos do tricô. Meia hora já é passada e não aguentando mais o esforço em permanecer em expectativa, ela se levanta em gesto brusco, jogando ao assento a porção trabalhada com a lã vermelha; desembaraça-se da linha e sai da sala. Procurando não fazer ruídos para não despertar a atenção de Rosinha, alcança o pátio, ruma para o pomar, abre o portão e envereda pelos caminhos chamando a Pedro. Não ouvindo resposta e não o vendo, desloca-se para o fundo da propriedade em direção ao portão que acessa ao bosque. Antes mesmo de ali chegar, Pedro surge-lhe ladeado pelos cães, fazendo-os penetrar no pomar. Luiza, ansiosa, aguarda o relatório e Pedro a informa nada ter encontrado, após cuidadosa busca por todos os cantos, estando de volta para novamente soltar os cães naquela área. Desapontada, ela retorna pelo mesmo caminho remoendo na lembrança a cena passada com Rosinha e sua estranha reação.

                                                                   Segue Capítulo II 

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                                                                         Rayom Ra
                                                http://arcadeouro.blogspot.com.br


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