sábado, 5 de março de 2011

As Trevas Exteriores


                                           Alphonse Louis Constant - Eliphas Levi -1810-1875

       Dissemos que o fenômeno da luz física se opera e se realiza unicamente nos olhos de quem a veem. Isto é, que a visibilidade não existiria para nós sem a faculdade da visão.

       O mesmo acontece com a luz intelectual: ela só existe para as inteligências que são capazes de vê-la. É a luz interior fora da qual nada mais existe a não ser as trevas exteriores, onde, conforme a palavra do Cristo, há e haverá sempre prantos e ranger de dentes. Os inimigos da verdade se assemelham a crianças teimosas que derrubassem e apagassem todas as luzes para melhor gritar e chorar nas trevas.

       A verdade é de tal forma inseparável do bem que toda má ação livremente consentida e realizada sem que a consciência proteste, apaga a luz da nossa alma e nos lança nas trevas exteriores. É isto que constitui a essência do pecado mortal. O pecador é figurado na fábula antiga por Édipo que, tendo matado seu pai e ultrajado sua mãe, acabou por furar seus próprios olhos.

       O pai da inteligência é o saber e sua mãe é a crença! Havia duas árvores no Éden: a árvore da ciência e a árvore da vida. É o saber que pode e deve fecundar a fé; sem ele se gasta em abortos monstruosos é só se produz fantasmas. É a fé que deve ser a recompensa do saber e o fim de todos os seus esforços; sem ela, ele acaba por duvidar de si mesmo e cai num desânimo profundo que logo se muda em desespero.

       Assim, de um lado, os crentes que desprezam a ciência e desconhecem a natureza, e do outro, os sábios que ultrajam, repelem e querem aniquilar a fé, são igualmente inimigos da luz e se precipitam, cada qual mais depressa, nas trevas exteriores em que Proudhon e Veuillot fazem ouvir sua voz mais triste que o pranto e passam rangendo os dentes. (1)

       A verdadeira fé não poderia estar em contradição com a verdadeira ciência. (2) Por isso, toda explicação do dogma cuja falsidade a ciência demonstrasse, devia ser reprovada pela fé. Não estamos mais nos tempos que se dizia: creio porque é absurdo. Devemos dizer agora: creio porque seria absurdo não crer. Credo quia absurdum non credere. A ciência e a fé não são mais duas máquinas de guerra pronta a entrechocar-se, mas são as duas colunas destinadas a sustentar a frente do templo de paz. É preciso limpar o ouro do santuário, ordinariamente tão desluzido pela imundície sacerdotal.

       O Cristo disse: “As palavras do dogma são espírito e vida e para ele a matéria nada vale.” Disse também: “Não julgueis para não serdes julgados, pois o juízo que fizerdes vos será aplicado e sereis medido com a medida que empregardes”. Que esplêndido elogio da sabedoria da dúvida! E que proclamação da liberdade da consciência! De fato, uma coisa é evidente para quem gosta de ouvir o bom senso; é que, se existisse uma lei rigorosa, aplicável a todos e sem cuja observação fosse impossível ser salvo, era preciso que essa lei fosse promulgada de modo que ninguém pudesse duvidar de sua promulgação. Em semelhante matéria, uma dúvida possível é uma negação formal, e se um único homem puder ignorar a existência de uma lei é porque essa lei não é divina.

       Não há duas maneiras de ser homem de bem. Seria a religião menos importante que a probidade? Não, sem dúvida, e é por isso que jamais houve uma religião no mundo. As dissidências são apenas aparências, Porém, o que sempre houve de irreligioso é horrível, é o fanatismo dos ignorantes, que se danam uns aos outros.

       A religião verdadeira é a religião universal, e é por isso que somente a que se chama católica traz o nome que indica a verdade. Esta religião, aliás, possui e conserva a ortodoxia do dogma, a hierarquia dos poderes, a eficácia do culto e a magia verdadeira das cerimônias. É, pois, a religião típica e normal, a religião mãe à qual pertencem de direito as tradições de Moisés e os antigos oráculos de Hermes. Sustentando isso, apesar do papa, se necessário for, seremos talvez mais católicos que o papa e mais protestantes que Lutero (3).

       A verdadeira religião é, principalmente, a luz interna e as formas religiosas se multiplicam a miúdo e se esclarecem pelo fósforo espectral nas trevas exteriores; porém, é preciso respeitar a própria forma nas almas que não compreendem o espírito. A ciência não pode e não deve empregar represálias contra a ignorância. O fanatismo não sabe por que a fé tem razão, e a razão, ao mesmo tempo em que reconhece que a religião é necessária, sabe perfeitamente em que a superstição se engana.

       (1) Sim, realmente o fanatismo religioso precipita a razão às profundezas do abismo onde só habita a ignorância. Mas o fanático nem sempre é desprovido da razão intelectual e sim da reflexão corretamente direcionada; é muitas vezes vitima dele mesmo, de sua energia do pensamento em direção de um objeto em que nele deposita todas as suas perspectivas do saber que procura ardentemente cultivar. Noutras vezes, o desprovimento de uma razão mais forte que se sobrepusesse às suas necessidades de afirmações ou apoio emocional, o levam a admitir que a fé religiosa, da maneira como extremamente praticada, conduz ao equilíbrio dos contrários, à recompensa e à felicidade num estado de graça que virá.
       Com as pessoas iletradas e semi-letradas, ou de pouca atividade mental, a crença é mais vigorosa em suas almas. No entanto, esses mesmos princípios se aplicam a uma gama cada vez maior de pesquisadores e aficionados da ciência que não entendendo a alma, a fé e a ciência maravilhosa de Deus, lançam todas as suas energias mentais nas descobertas dessa “outra ciência”. Ao se maravilhar com isso, sem se aperceber da polarização única de seus egos na matéria, se tornam mecânicos e cativos das elucubrações, dos teoremas, postulados e axiomas, transformando-se em céticos acerca de Deus, da alma e do espírito. Porém, por interessante paradoxo, na outra ponta e como fazem os religiosos, vivem os aficionados materialistas seus ritos, preceitos e devoção a esta entidade maior ardorosamente depositada num pedestal infinito, e chamada ciência da matéria. (Rayom Ra)

(2) “A verdadeira fé não poderia estar em contradição com a verdadeira ciência”. Sim, pois seria a mais perfeita incoerência, uma vez que a verdadeira ciência é aquela compreendida na sua justa perfeição das leis e princípios que se fazem manifestar antes da própria matéria, sem a qual a matéria não existiria. Conhecer a ciência, chamada impropriamente de espiritual, e sua extensão natural no mundo material, é o saber da verdadeira ciência, pois a segunda não é segunda, mas simplesmente a face material de uma só realidade. Como uma nota musical que vibra na sua origem e reproduz-se, afastada, num outro recinto, sem deixar de ser ela mesma. (Rayom Ra)

       (3) Creio estar claro que o autor fala explicitamente da religião católica como instituição necessária, depositária de uma pequena parte resumida da verdade iniciática do passado disfarçada em dogmas, simbolismos e credos, e não basicamente da verdade universal e ciência espiritual praticada ‘in totum’ nas cerimônias, ritos, sacramentos, etc., da igreja, o que evidentemente não ocorre, pois a sabedoria universal não caberia em lugar algum, senão nela mesma. (Rayom Ra)

       Toda religião cristã e católica é baseada no dogma da graça, isto é, da gratuidade. Recebestes de graça, daí de graça, diz São Paulo. A religião é essencialmente uma instituição de beneficência. A igreja é uma casa de auxílio para os deserdados da filosofia. Pode-se dispensá-la, porém não convém atacá-la. Os pobres que se dispensam de recorrer à assistência pública, não têm, por isso, direito de o difamar. O homem que vive honestamente sem religião priva-se a si mesmo de um grande auxílio, porém não faz agravo a Deus (4). Os dons gratuitos não se substituem por castigos quando alguém os recusa, e Deus não é um usuário que faça os homens pagarem juros do que não emprestaram. Os homens têm necessidade da religião, porém a religião não tem necessidade dos homens. Aqueles que não reconhecem a lei, diz São Paulo, serão julgados fora da lei. Ora, não fala aqui da lei natural, mas sim da lei religiosa ou, para falar com mais exatidão, das prescrições sacerdotais.

       (4) Em que pese a Igreja vir sendo muito mais fortemente contestada por não religiosos, pelos escândalos sexuais, conluios, e mercantilismo, a instituição permanece com seus poderes espirituais acumulados ao longo de séculos sob invejável egrégora. Nestes tempos de grande materialidade da ciência e colheita da humanidade, em que as forças negativas dos submundos terrenos e as alienígenas que com aquelas se juntam, agem de forma avassaladora, faz-se cada vez mais necessário o resguardo e proteção espiritual. Os preceitos e energia da igreja são sólidos para a fé bem como o conhecimento do espírito e suas inalienáveis verdades. Haja vista, grandes inteligências que foram mestres do passado, terem trabalhado para edificar a igreja de Cristo e assim mantê-la por dois milênios.
       A ciência material está dominada pelas mentes céticas e pelos poderes das grandes organizações capitalistas mundiais que detêm não somente lucros cada vez mais astronômicos, através do controle de todas as atividades humanas, como lutam para ter as rédeas políticas de todas as nações. Há muitas razões para isso, coisas diabólicas e inacreditáveis.
       E a religião é ainda um porto seguro para homens de bem se fortalecer e buscar resguardo da família e de seus valores espirituais, o que a ciência atualmente com sua apregoada racionalidade não traz às almas, mas bem ao contrário, estimula ao consumismo absurdo e ao sofisma das verdades espirituais. Com a inobservância da fé e da religiosidade, cada dia mais assistimos a decadência moral do homem - perigosa em todos os sentidos - mormente quando se sabe que a Terra daqui a pouco não poderá mais abrigar almas recalcitrantes no mal e no ócio espiritual, que terão de deixá-la. E nesta grande romaria de degredados, estarão filósofos, cientistas, professores, intelectuais céticos, artistas, poetas, etc., ausentes do verdadeiro acolhimento do espírito, pois assim preferiram. (Rayom Ra)

       Fora destas verdades tão suaves e tão puras, só há trevas exteriores onde choram aqueles que a religião mal compreendida não poderia consolar, e onde os sectários, que tomam o ódio pelo amor, rangem os dentes uns contra os outros.

       Santa Teresa teve um dia uma visão formidável. Parecia-lhe estar no inferno e achar-se fechada entre duas paredes viventes que sempre se apertavam, sem nunca poderem esmagá-la. Essas paredes eram feitas de materiais palpáveis e nos fizeram pensar nestas palavras ameaçadoras de Cristo: “As trevas exteriores”. Imaginemos uma alma que, por ódio da luz, se tornou cega como Édipo; resistiu a todas as atrações e, em toda parte, a vida a repele assim como a luz. Ei-la lançada fora da atração dos mundos e da clareza dos sóis. Está só na imensidão escura para sempre real só para ela e para os cegos voluntários que a ela se assemelham. Está móvel na sombra e sofre um esmagamento eterno na noite. Parece que está aniquilada, exceto seu sofrimento capaz de encher o infinito. Ó dor! Dor! Ter podido compreender e ter-se obstinado no idiotismo de uma fé insensata! Ter podido amar e ter atrofiado o coração! Oh! Uma hora somente, ao menos um minuto, um minuto apenas das alegrias mais imperfeitas e dos mais fugitivos amores! Um pouco de ar! Um pouco de sol! Ou ao menos um luar e um tablado para dançar! Uma gota de vida ou menos que uma gota, uma lágrima!

       E a eternidade implacável lhe responde: “Como falas tu de lágrimas, se nem mesmo podes chorar? As lágrimas são o orvalho da vida e a destilação da seiva de amor; tu te exilaste no egoísmo e te fechaste na morte!” Ah, quiseste ser mais santo que Deus! Ah! Cuspiste no rosto da senhora vossa mãe, a casta e divina natureza! Ah! Amaldiçoaste a ciência, a inteligência e o progresso! Ah! Acreditaste que para viver eternamente era preciso assemelhar-se a um cadáver e dissecar-se como uma múmia!

       Eis-vos tais como vos fizeste, gozai em paz a eternidade que escolheste! Porém, não pobres gentes, aqueles a quem chamáveis pecadores e malditos, irão salvar-vos. Aumentaremos a luz, iremos furar vossa parede, arrancar-vos-emos da vossa inércia. Um enxame de amores ou, se quiserdes, uma legião de anjos (são feitos da mesma maneira) lutareis em vão como o Mefistófeles do belo drama filosófico de Goethe. Apesar vosso, apesar das vossas disciplinas e vossos rostos pálidos, vós revivereis, vós amareis, vós sabereis, vós vereis e, sobre os restos do último convento, vereis dançar conosco a roda infernal de Fausto!

       Felizes, no tempo de Jesus, aqueles que choravam! Felizes, agora, os que sabem rir, por que rir é próprio do homem, como disse o grande profeta Rabelais, o messias da Renascença. O riso é a indulgência, o riso é a filosofia. O céu se acalma quando ri e o grande arcano da onipotência divina não é mais que um sorriso eterno!

                                               [O grande Arcano – Eliphas Levi]
Rayom Ra

[ Leia Rayom Ra (Rayom_Ra) on Scribd | Scribd em páginas on line ou em downloads completos ]

[ Os textos do Arca de Ouro, por Rayom Ra, podem ser reproduzidos parcial ou totalmente, desde que citadas as origens ]

Nenhum comentário:

Postar um comentário