sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

A Cidade do Mal

  As pedras eram escuras, as paredes da casa úmidas de uma umidade indefinível. A água escorria sem cessar e sem que se soubesse de onde. Portas carcomidas; um hálito de morte e terror penetrava todas as coisas.

  Batemos na primeira casa. A porta entreaberta deixou ver uma criatura horripilante que nos fitava desesperada. Cabelos desgrenhados e olhos esgazeados. A face descarnada dava-nos a ideia de alguém dominado pela lepra. Era uma mulher. Desfigurada, só de longe nos lembraria de um ser humano. Começamos a perceber porque Atafon nos dissera que eram espíritos maus que ainda pensam que são pessoas.

  A mulher não nos disse nada; Sabíamos, no entanto, que havia nela o desespero sem nome. A luz de Atafon, provavelmente, deixara-a a distância e garantia-nos a visita. Retiramo-nos silenciosos.

  - Viu? Não lhe disse que se preparasse para o pior? Eu devia estar terrivelmente pálido porque me sentia tremer intensamente.

  Orcus abraçou-me com afeição e dele uma corrente eletromagnética desprendeu-se, alcançando-me todo o espírito. Prosseguimos os três na ruela escura e fétida.

  - Se a humanidade soubesse o que existe aqui em baixo! – exclamei com um profundo suspiro.

  - A humanidade já foi informada do que existe – esclareceu Orcus – o que ela acredita, porém, é que isso constitui um inferno eterno. Não há eternidade no mal. A Lei de Deus não fez o inferno eterno. O que existe são zonas infernais onde as consciências culpadas se reúnem atraídas por imposição inexorável da Lei de Afinidade. O espírito sob o impulso da Lei de Evolução, aperfeiçoa, adquire leveza e sobe. Da mesma forma, se estaciona no mal, se embrutece, torna-se pesado e desce. Essa é uma lei ainda desconhecido dos homens mas que funciona rigorosamente nos planos espirituais, e tanto atinge o espírito encarnado quanto o desencarnado. É o que poderíamos chamar peso específico do períspirito. O responsável, no entanto, por isso, é a mente. Quando a mente abriga pensamentos de baixa vibração os determinam o nascimento de sentimentos inferiores de natureza materializante que agem diretamente sobre os fios que constituem a rede vibratória do períspirito, produzindo correntes mais lentas, o que o tornará mais pesado e mais grosseiro. O fenômeno contrário, isto é, quando a mente abriga pensamentos de ordem superior ou de alta vibração, nascem os sentimentos de projeção superior que produzem correntes vibratórias, mais velozes, trazendo como consequência direta maior leveza do períspirito. Como um balão, o espírito busca então, as alturas espirituais ou desce às profundezas do abismo...

  Orcus calou-se. Uma interrogação pairava, contudo, no meu espírito.

  - E depois?

  - Depois – continuou Orcus – a lei da maternidade terrestre determina que o espírito que desceu às profundidades estacione nas trevas enquanto a Terra em seu selo amoroso e amigo, como enorme útero, lhe dê novamente o impulso de vida que não cessa. E o espírito caído recomeça a marcha da ascensão para alcançar um dia à luz da superfície...

  As palavras de Orcus repercutiam ainda no meu ser como estranha sinfonia de ensinamentos profundos. Minha mente lutava desesperadamente para compreender tudo aquilo que me parecia um sonho fantástico e mau. Na sombra, percebíamos que à medida que avançávamos, seres esquisitos se escondiam nos ângulos mais escuros dos caminhos. Evidentemente, a cidade inteira era habitada. Atafon nos conduziu por estreitos e terríveis caminhos. Uma abertura em rocha viva deu-nos passagem para extenso corredor mais úmido ainda, onde iríamos nós.

  Orcus manteve-se silencioso e Atafon, ganhando um pouco nossa frente, deixou que de súbito suave luz de luar se lhe irradiasse do ser. Branda e pura, a luminosidade derramava-se-lhe dos tecidos como tênue claridade através de lâmpada fluorescente. O caminho iluminou-se francamente, mas de modo a permitir-nos a marcha em perfeita segurança. Orcus cochichou-me paternalmente:

    - Atafon está usando apenas um pouco mais de sua vibração com o objetivo único de facilitar nossa caminhada. Os seres inferiores, todavia, que habitam as trevas já sabem que estamos aqui. Se Atafon usasse mais luz causaria enorme perturbação nestes domínios porque estas criaturas sentem-se queimar à incidência da luz. De resto, você já viu isto...

  Compreendi o que Orcus me dizia. Realmente, era um fato impressionante aquele. Os espíritos que vivem nas trevas e têm a treva em si mesmos não suportam a luz. Ofuscam-se e sofrem ao mesmo tempo queimaduras dolorosas. Por isso, imenso cuidado mantem as entidades mais elevadas a fim de não surpreende-las com o seu poder. Assim como Deus, oculto no infinito, não exibe escandalosamente a sua força e o seu poder, também os espíritos superiores envolvem na humildade o seu conhecimento e as suas conquistas. Ninguém pode ou tem o direito de estabelecer a desordem na “Casa do Pai”.

  Jesus ensinou-nos a humildade de tal forma que o homem não descobriu que nos mais longínquos recantos do universo a humildade é Lei.

  Lei de vida e evolução, progresso e ascensão espiritual. Sem ela nada se conquista nas esferas da vida imortal.

  Continuamos penetrando através da rocha com Atafon à frente. De repente, enorme salão, todo de rocha avermelhada como imensa fogueira descortinou-se-nos aos olhos. Uma figura estranha de anão com um só olho na testa, segurando nas poderosas mãos enorme molho de chaves de mais de dois palmos de tamanho cada uma, veio até nós. Aterrorizei-me e senti um apavorante impulso para fugir, mas Atafon conteve-me com um gesto. A criatura aproximou-se lhe humildemente.

  - Que quereis Anjo do Abismo? Aqui estou para servir-vos. O anão vestia roupa de tecido semelhante ao couro. A cabeça grande de macrocéfalo balançava-lhe nos ombros como um globo oscilante e os braços excessivamente longos contrastavam-lhe com o corpo curto. As pernas grossas, no entanto, suportavam-lhe a esquisita estrutura.

  - Venho em visita de inspeção – disse Atafon – e trago amigos.

 Não pude conter um grito de terror. Pelos cantos da gruta úmida, frouxamente iluminada por uma lanterna esverdeada, seres patibulares jaziam acorrentados. O anão mantinha as chaves daquelas correntes. Orcus abafou-me os soluços abraçando-me com paternal amor. As lágrimas insopitáveis saltavam-me aos olhos incontroláveis. Era insuportável aquela visão. Meus sentimentos ainda não submetidos a uma disciplina capaz de dar-me a compaixão sem o desvairamento traiam-me à condição inferior.

  O anão contemplou-me por um minuto como se estivesse em dúvida, mas as presenças de Orcus e Atafon salvaram-me. Enquanto Atafon se adiantava para os seres horripilantes nas sombras, Orcus murmurou:

  - Se por acaso você pudesse ter chegado aqui sozinho, as suas lágrimas que na superfície são prova de sublimidade e amor, aqui seriam motivo para que você também fosse acorrentado junto com aquelas criaturas.

  Acompanhei com o olhar o gesto de Orcus expresso em sua mão estendida e recebi em todo o meu organismo um arrepio medonho de pavor. Compreendi que naquelas regiões só duas condições credenciavam o espírito: ou imensa elevação espiritual ou prodigioso atraso próximo da inconsciência. Os espíritos de sublime perfeição eram respeitados e os espíritos maus que governavam as trevas podiam se mover. O resto era impiedosamente escravizado. Uma lágrima nos olhos era sinal de perigo. Poderíamos ser arrastados a sofrimentos inauditos.

  A serena superioridade dos que sabiam amar sem se perder mantinha os verdugos à distância. A fraqueza dos simplesmente bem intencionados não os amedrontava. Quão difícil me era aproximar daquelas criaturas acorrentadas! Um cheiro nauseabundo tresandava-lhes dos organismos. Os membros pareciam putrefatos e os olhos injetados, perdidos na face, semelhavam duas pálidas e pequeninas luas. Chamei a atenção de Orcus para o fato de possuírem dois olhos. Orcus esclareceu:

  - Estes são espíritos que desceram recentemente às profundezas deste abismo. Todavia, repare bem que trazem os olhos vidrados ou opacos. Não possuem visão. Gastaram os olhos na “Terra” naquilo que os homens poderiam denominar “hipnotismo sensual”. O desejo e a sensualidade exercidos pelas vistas na ânsia do desejo da mulher do próximo ou a aplicação do magnetismo visual para a conquista e amor de baixo padrão, desgastam as fibras do períspirito e cegam a criatura por muitos milênios. São cegos de amor e paixão.

  Quedei-me pensativo e silencioso. Nunca havia suposto lá na superfície que os olhos que ardem na paixão desenfreada dos sentidos estavam condenados à destruição. O amor cheio de maldade destrói o próprio veículo pelo qual se transmite. Orcus demonstrou com um olhar compreender minhas profundas reflexões e aduziu aos meus pensamentos:

  - O que você está pensando, meu filho, corresponde a mais exata realidade, todavia é bom esclarecer o olhar carinhoso e amigo, verdadeiramente sincero, aplicado no amor verdadeiro que obedece ao cumprimento da Lei, constrói pupilas luminosas para a imortalidade. É a mesma Lei que estabelece as probabilidades de subida e decida que estudamos anteriormente. O amor ao mal e às coisas da matéria materializa. O amor ao bem e às coisas do espírito espiritualiza. Tudo em toda a parte toca-se de luz e sombra. A mesma energia depende apenas de direção. É por isso que o Evangelho é bússola...

  A observação judiciosa de Orcus calou-me fundo. Atafon dirigia-se mais para o interior e notei que se aproximava daquelas criaturas “desencarnadas”, expressão que usamos a fim de dar uma ideia de condição delas. Verificamos que os seus períspíritos, conquanto de organismos de natureza eletromagnéticas e infinitamente distanciados daquilo que chamamos carne, apresentavam-se dilacerados exibindo membros onde faltavam pedaços enormes. A maioria exibia órbitas vazias. E dizemos maioria porque ali se alinhavam em verdadeira multidão de alguns milhares O salão como imenso platô lembrava prodigiosa laje sobre a qual as criaturas inconscientes ou semiconscientes, permaneciam abandonas em um estado que se não era a morte também não era a vida.

  Uma mulher cujos membros dilacerados e enfraquecidos lembravam árvore seca, desgalhada, batida pela fúria de tempestade, falou-nos ininteligivelmente. Paramos tentando ouvi-la.

  - Sabem quem é esta? – interrogou Orcus.

  Olhei a mulher como quem contempla uma ruína inimaginável e não pude me recordar daquelas feições monstruosas. Quem seria?

  - A mulher de César...

  Meu olhar ansioso buscou Orcus. Quis saber mais. Ele compreendeu mas não me disse nada. Vi que não lhe convinha me revelar mais. Uma estranha força, contudo, desde aquela hora me atraiu para aquela mulher. Teria sido eu aquele Cesar? Mas qual? Tomei-me de compaixão. Orcus, porém, alertou-me:

  - Por mais que tenhamos amado alguém algumas vezes, a criatura se lança em precipícios tão profundamente que nada podemos fazer em seu favor. Só a Lei de Deus, inexorável, dura, mas misericordiosa salva os que estão aparentemente perdidos. Cada um se salva por si mesmo ao influxo da misericórdia do Pai. “Descer e subir” são forças da vida.

  Caminhei olhando para trás. Orcus arrastava-me pela mão. Entre os mulambos e o horror daquela forma caída no mal eu sentia um coração que não me amara mas a quem eu sempre amei.

  - Você não foi César – acrescentou Orcus – apenas alguém que a amou. Ela que sempre sonhou com o esplendor das cortes e dos reinados, renunciando ao verdadeiro amor, foi caindo de queda em queda até o ponto que você viu. Naqueles olhos vidrados e na sua inconsciência ela ainda sonha com as multidões e com os palácios dos césares. Está coberta de ouro e púrpura. Para nós, entretanto, só exibe podridão e lama. Contudo, um dia retornará ao Paraíso. O Reino de Deus, meu filho, é feito de simplicidade e amor. Os tesouros desse Reino são apenas afeição verdadeira e amor imortal.

  Orcus cessou de falar. Atafon que se distanciara acenou-nos com a mão. Apressamo-nos. Um grupo de “homens” amontoados uns sobre os outros como uma pilha de capim ou palha, aguardava-nos para estudo. Pareciam esqueletos de formas patibulares; Embora não exibissem revestimento na ossada lisa, gemiam como se possuíssem garganta e língua. Estranhos gemidos saíam do monturo! Contemplamos o espetáculo inaudito. Em meio à ossada vozes murmuravam palavras de paixão e dor.

  - Que criaturas são essas? – perguntei profundamente surpreendido.

  - São os espíritos daqueles que acreditaram firmemente que após a morte nada restaria deles e seriam apenas esqueletos abandonados. Tão grande foi a mentalização nesse sentido que adquiriram a forma que você vê.

  A resposta de Orcus de certa maneira deixou-me aterrorizado. Jamais imaginara tão grande a força do pensamento.

  - Sentem-se! Eles realmente pareciam como se fossem esqueletos. O períspírito moldou-se à nova forma e provavelmente se andassem pelo mundo seriam vistos por alguns como assombrações em formas esqueléticas. Muitos têm saído assim na superfície.

  Um calafrio percorreu-me a coluna... Estava diante de fatos novos para mim. Nunca Dante me surgiu tão respeitável na consciência. Compreendi o verdadeiro sentido de sua história e fiquei imaginando quão enorme foi o seu sofrimento por não ser compreendido na superfície da Terra. Acreditaram no mundo que ele houvesse sido somente um artista. É certo que ninguém supôs que o assunto de seus poemas fosse verdadeiro, real. Provavelmente, eu encontraria resistência maior ou semelhante na Crosta. Valeria a pena?

  - Quem serve por amor ao serviço e tem a Deus por Pai e Jesus por irmão, não pode deter-se para informar-se o que pensam os homens a seu respeito... – falou-me Orcus mansamente como que respondendo às minhas angustiosas interrogações mentais. Palavras sábias que eu não tentaria discutir.

  Atafon prosseguia percorrendo o imenso rochedo onde os espíritos infelizes fizeram por desgraça o seu ninho de sofrimento. Seres estranhos entremeavam-se àquelas formas. Alguns pareciam serpentes, lagartos e dragões menores. Outros exibiam tão horrorosas fisionomias que os enfermos da superfície ao lado deles seriam criaturas de sublimes belezas. Defrontáramos agora uma infinidade de espíritos que exibiam formas dilaceradas. Espantou-me o fato. Nem sempre possuíam as pernas e os braços. Havia os que apenas apresentavam a cabeça e o tronco.

  Estranho reunirem-se eles numa espécie de panela aberta no vasto rochedo em forma de prato. Aninhavam-se uns aos outros como crianças, dominadas por um sono inquieto. Misturavam-se, aconchegavam-se uns nos outros como que procurando calor. A maioria ostentava um crânio limpo, brilhante, sem cabelos; outros apenas recoberto por uma penugem rala. A maioria lembrava crianças com a fisionomia de velhos milenares cujas bocas adquiriam feições de meninos a estar chupando bico; olhos fundos absolutamente fechados.

  Na realidade eram seres voltados para dentro de si mesmos, num esquisito movimento mental interior. O exterior não lhes fazia conta que para eles deixara de existir. Semelhavam a fetos amontoados no útero materno. Não era a primeira vez que eu contemplava criaturas às quais lhes faltavam membros, mas eram sempre pessoas da Terra. O fato de existirem espíritos mutilados impressionava-me profundamente.

  Orcus não deixou de perceber-me as dificuldades interiores e a luta do pensamento para adaptar-se àquela realidade nova.

  - De fato, meu caro, é sempre chocante a observação detalhada da elevação da forma em qualquer reino da criatura no universo. O espírito não retrógrada, todavia a forma tem a possibilidade de desgastar-se, dilacerar-se e degradar-se até se dissolver. Você não se lembra do ensinamento relativamente à Segunda Morte? O princípio não é novo, como vemos, e foi expresso pessoalmente por nosso Excelso Mestre.

  Senti como terrível impacto mental o lembrete de Orcus. Não havia por onde fugir.

  - E é isso a segunda morte? – interroguei-o visivelmente assustado.

  - Não, esta ainda não é a segunda morte, mas pode ser encarada como a agonia....

  Compreendi a profundidade da observação.

  - Quer dizer que esses são enfermos a caminho da dissolução perispiritual?

  - Se não reagirem a tempo, irão decaindo em si mesmos, cada vez mais, até atingirem os limites marcados pela Lei para a garantia da união celular. A desintegração do períspírito pode ocorrer tanto quanto ocorre no mundo a desintegração do corpo físico. A Lei que rege a união celular perispiritual é a mesma que apenas funciona de maneira diferente. Enquanto o corpo físico vive submetido ao equilíbrio da alimentação constituída por alimentos comuns e oxigênio, e a sua manutenção depende somente de um processo da vida, o períspírito que é um intermediário na aglutinação celular do corpo físico que o garante, por sua vez, mantém-se unicamente pelo poder da mente. O desvario mental inicia a destruição do perispírito assim como a elevação da mente dá início à jornada de construção não só do próprio perispírito, mas também de veículos mais elevados. A criatura constrói-se ou destrói-se a si mesma...

  Orcus fitou-me amoroso e o meu pensamento sob o influxo do poder de sua palavra sábia galopou no terreno da meditação pura. As formas estavam ali a nossos pés, dilaceradas, mutiladas, horríveis. E haviam sido “homens”, talvez belos e venturosos um dia, na superfície!

  Na realidade, em nosso mundo, os homens sonhavam com o céu, mas aqueles ali seriam imensamente felizes se pudessem simplesmente atingir a superfície da crosta terrestre. Todavia ainda estavam descendo. E quantos no mundo distraídos e insensatos estavam iniciando a descida para a sua (auto)destruição total ou parcial? Descer ou subir são problemas de direção... – dissera Orcus. De fato, compreendia eu agora a sabedoria da assertiva.

  Só descendo à sombra mais espessa é que podemos entender a luz. Atafon, no entanto, prosseguia, e por isso não pudemos nos deter.

  Fonte: O Abismo, por R.A. Ranieri                           

Rayom Ra 
                                               http://arcadeouro.blogspot.com

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