sábado, 23 de junho de 2018

Histórias Mágicas - (3)


PEDRO PINOTE E O VELOCINO
Capítulo I
Notícias de Tião

  Tião não aparecera nas costumeiras reuniões de início de noite, após o jantar, e não fora à escola, o que agora causava estranheza.
  - Alguém viu o Tião hoje? – perguntou Edu.
  - Eu não! – respondeu prontamente Jorge.
  - Também não! – respondeu igualmente Antônio Carlos, enquanto os demais faziam sinal negativo de cabeça.
  - Que será que aconteceu! – indagava ainda Edu.
  - Vai ver ele saiu! – aventurou-se Jorge.
  - Mas assim sem avisar e nem ir pra escola? – Edu insistia.
  - Ué! E precisa avisar? – perguntou Zecão, fingindo desinteresse - Às vezes acontece de repente e não dá tempo.
  - É...! - concordou Dino – E depois, como é que ele ia avisar pra todo mundo. Ia ser um trabalho danado!
  - Avisava um e aquele ia avisando todo mundo! – ensinou Jorge.
  - Quem, por exemplo? – a curiosidade de Edu era agora maior.
  - O Zecão! – apontou secamente Jorge.
  - Eu? Por que eu? – reclamou alto.
  - Você não vive dizendo que é o líder do grupo? Então tinha de ser você – continuou Jorge.
  - Eu não sou empregado do Tião! – respondeu bruscamente começando a ficar vermelho - Tem graça sair por aí, de casa em casa, ou lá na escola: olha o Tião viajou. Fulano, o Tião mandou dizer..., tem graça! – já se indignava
  - Tem nada de mais – comentou Antônio Carlos, sentando-se e encostando-se ao muro.
  - Tem sim, eu não sou empregado de ninguém! – Zecão fazia questão de repetir, desta vez falando mais alto.
  - Calma, Zecão, assim a rua inteira vai ouvir que você não quer ajudar o Tião – disse Dino debochando da situação.
  - Dane-se, não quero mesmo! – gesticulou jogando a mão adiante.
  - Vai ver é por isso que ele não avisou que ia viajar – falou Antônio Carlos na mesma posição, olhando para o chão, evitando encarar Zecão.
  - Isso o quê? – fingiu-se de desentendido Dino.
  - Que ninguém ia mesmo ajudar, nem o Zecão – completou Antônio Carlos. Zecão não se conteve e esbravejou:
  - Até você, Tonho, que quase não fala, resolveu hoje pegar no meu pé? Antônio Carlos levantou os olhos e deu um riso meio amarelo.
  - Oi, turma! – saudou Japonês, se aproximando.
  - Oi! – responderam dois deles.
  - Já souberam do Tião? – ele passou os olhos em todos.
  - É..., ele viajou e nem quis avisar pro... - Dino parou de repente, mas completou rapidinho - pra ninguém.
  - Viajou? – Japonês conseguiu franzir a testa – Viajou?
  - Mas ninguém sabe direito pra onde – explicou Jorge.
  - Como é que pode? – Japonês se mostrava pra lá de surpreso.
  - Podendo, ué! – Dino deu de ombros.
  - Mas..., mas como é que ele não me disse nada? – Japonês parecia inconformado e coçava a cabeça.
  - Pra nós também não, aquele careta prosa. Vai ver até pegou um trem lá pro interior e está agora numa boa. Ele não dizia que era da roça? – afirmava e perguntava Jorge.
  - Dizia - respondeu Edu – contou umas mentiras por aí; disse que o pai dele antes de morrer era fazendeiro e outras coisas.
   - Mas..., mas... – gaguejava Japonês.
  - Que nada! – interferiu Dino – vai ver ele foi mesmo é de ônibus. E já deve ter chegado!
  - Ônibus anda menos que trem. O meu pai falou que por estrada de ferro é mais rápido – afirmou Edu.
  - Aí depende – intrometeu-se Zecão, parecendo ter um coelho na cartola – se o trem tiver de subir montanha ele vai quase parando. Neste caso o ônibus pode andar mais depressa.
  - Nem sempre. Tem ônibus que sobe também muito devagar – informou Jorge.
  - Mas na hora de descer o trem se manda e deixa o ônibus, ó, longe! – afirmou de novo Edu, fazendo gesto com a mão e estalando os dedos.
  - Ele vai contar que até caçou onça – disse Zecão, voltando à Tião.
  - Que tomou banho no açude e mergulhou sei lá quantos metros – adivinhava Dino.
  - Mas..., ele não pode! Ele... - Japonês tentou informar qualquer coisa, movendo negativamente o dedo indicador da mão direita.
  - Por que não? Ele sabe nadar. Bem, quer dizer..., pelo menos vive contando que sabe – lembrou Edu.
  - Conversa, ele nada mal pra burro! – Zecão voltava a criticar - Eu já vi lá no lago, um dia. Ele quase afundou. Eu tive que tirar ele de dentro d’água.
  - No lago, Zecão? Mas não é proibido? Tem até guarda tomando conta, por causa dos peixes – admirou-se Jorge e confirmando o motivo.
  - É que..., bem, foi num dia desses aí, depois do jogo do Brasil. Tinha ninguém, nenhuma alma viva por lá – respondeu sem graça.
  - Viva alma! – corrigiu-o Antônio Carlos de seu canto. Zecão já ia de novo protestar, mas Japonês interrompeu:
  - Ele não foi, turma, eu...
  - Foi sim! Não sou mentiroso, não, ouviu! – Zecão reagiu novamente.
  - Desta vez é verdade sim. O Tião me contou que já tinha mergulhado no lago – confirmava Dino – mas esta história de se afogar ele não me contou.
  - Que afogar? Quem falou em afogar? – Zecão já estava pra lá de irritado – Eu disse só que ele quase afundou, não falei nada de afogar!
  - Ah bem...! – fez Dino com cara fingida, como se somente agora tivesse entendido tudo.
  - Quando ele voltar de viagem vai ter tanto lê-lê-lê, que eu não vou querer nem ouvir – afirmou Jorge com certo desânimo.
  - Mas ele não viajou!!!  – berrou Japonês, assustando todos, logo tentando retomar o tom de voz normal - Quero dizer..., se viajou antes já voltou, mas não me disse nada – Japonês se atrapalhava nas explicações.
  - Como é que você sabe? – perguntou Zecão.
  - Eu estou vindo da casa dele. Ele está doente, lá na cama – falou finalmente, aliviado.
  - Doente? – surpreendeu-se Edu.
  - É..., com problemas gastos... – tentava explicar.
  - Gastos? Que é isso? – perguntou Dino.
  - É aqui, ó..., na barriga, dói muito né! – mostrou batendo com a mão aberta no estômago.
  - Gástricos, seu burro! – corrigiu-o Antônio Carlos.
  - Então é... Ele pediu pra eu avisar todo mundo, e a professora dele na escola, só que amanhã não tem aula.

  Silêncio. Zecão olhou para o chão e coçou a orelha. Edu lançou olhar para Antônio Carlos e depois também para o chão. Jorge e Dino somente miravam Japonês. Como ninguém falasse Japonês recomeçou:
  - A mãe dele disse que ele vai precisar ir ao médico, mas ela não pôde ainda levar ele – os meninos voltaram todos a encarar Japonês.
  - Por que não? – perguntou Jorge.
  - Porque ela não pode faltar ao trabalho. Aliás, ele ficou sozinho na casa todo o dia.
  Antônio Carlos pensou em corrigir as últimas palavras de Japonês, mas diante da situação perdeu o ânimo.
  - Mas eu acho que é outra coisa – prosseguiu Japonês.
  - O quê – perguntou Dino bastante curioso.
  - Ela não tem dinheiro pra pagar o doutor – completou, olhando novamente para todos.
  - Chi.... – lamentou Dino.
  - Mas não tem o hospital do I..., INES... – gaguejava Jorge
  - INSS! – ajudou-o Antônio Carlos.
  - É, esse daí! – apontou para o colega.
  - Já se esqueceu da greve? Está dando na televisão. Tem cada fila que não tem mais tamanho! – lembrou Edu.
  - É mesmo! – concordou Jorge desanimado.

  Novamente silêncio. Ninguém tinha qualquer outra ideia. Passou quase um minuto até que Dino quebrou aquele vazio:
  - Será que isto mata?
  - O que? O problema do Tião? Não sei! – perguntou e respondeu Jorge.
  - Acho que não – respondeu Edu.
  - Acho que sim – Japonês surpreendeu a todos.
  - Como é que você sabe? – perguntou Jorge.
  - Saber direito eu não sei, mas pela cara dele... – ele encolheu os ombros, afundando mais ainda o pequeno pescoço, passando uma ideia muito dramática.
  - Que é que tem a cara dele? – Jorge hoje estava realmente muito perguntador.
  - Bem..., tava esquisita, né!
  - Esquisita, como? – a curiosidade era geral, mas Dino perguntou primeiro.
  - Assim..., parada. Depois ele me disse que doía a barriga quando comia, e não podia comer.
  - Só por isso? – A inquirição de Dino simplificava tudo.
  - É, né..., quem não come morre! –Japonês de novo complicava o problema.
  - Mas demora – resolveu Edu – meu pai disse que pra morrer de fome a pessoa precisa ir desfinando.
  - Desfinando? Como é? – interrogou-o Jorge.
  - É ir ficando fino, ora! – respondeu Edu com absoluta certeza.
  - É definhando, cavalgadura! – Antônio Carlos mais uma vez não aguentou.
  - Coitado do Tião... – lamentava Jorge ignorando o resto.
  - Olhe Turma, eu tive uma ideia - falou Dino subitamente - topa a gente ir lá agora visitar o Tião?
  - É mesmo, a gente até que podia – Edu gostou da ideia.
  - Então vamos? – convidava Dino.
  - Péra aí, péra aí! – interrompeu Jorge com energia – todos o olharam. Ele ficou sem graça, mas continuou – a gente não sabe se a doença dele pega. E se pegar...?  Eles se entreolharam. Jorge podia ter razão.
  - É mesmo! – concordou meio desanimado Dino, o autor da ideia da visita.
   - Se todo mundo pegar podemos morrer! – A lembrança de Edu já era uma ameaça.
   - O Japonês teve lá e não pegou! – lembrou Dino, embora antes tivesse concordado com Jorge.
  - É cedo ainda pra saber, ele já pode estar contaminado – continuava Edu –  depois, têm certas doenças que aparecem mais tarde. A pessoa ta toda ruim e não sabe. Meu pai que falou.
  - Besteira! – interrompeu Zecão depois de seu longo silêncio, talvez com um pouco de remorso por ter criticado Tião.
  - Besteira nada! Pode perguntar pra quem sabe – confirmava Edu com infalível certeza.

  Japonês, agora assustado, perdera a fala. Olhava de um para outro dos meninos enquanto discutiam, já começando a sentir alguma coisa estranha que não sabia direito o que era. Zecão resolveu explicar seu pensamento:
  - A gente só se contamina se fica muito tempo no quarto com o doente, ou se come com ele. Assim, de uma vez só é difícil.
  - Será? – duvidava Jorge.
  - Claro, continuou Zecão, não é assim também não – sua certeza parecia desafiadora –  escute, Japonês, quanto tempo você ficou lá com o Tião?
  - Ah..., eu..., meia hora! – respondeu nervoso.
  - Meia hora? – repetiu interrogativamente Zecão.
  - Aí já dá! – afirmou Dino com segurança.
  - É..., meia hora – repetia pensativo Zecão – mas só no quarto?
  - É né... – mordia o dedo Japonês – mas..., mas – gaguejava e não conseguia explicar – a mãe dele também estava lá! – finalmente completou.
  - Ué, e que é que tem a mãe dele? – interferiu Edu – Mãe é mãe. Nelas essas coisas não pegam. Pegam mesmo é na gente!
  - Será que eu vou morrer também? – Japonês já mostrava certo desespero. Eles todos deram um passo atrás e Japonês se sentiu definitivamente morto.
  - Se eu fosse você, Japonês, corria pra casa e contava tudo pra sua mãe – aconselhou-o com toda a fé Antônio Carlos.
  - É, de repente ela tem um remédio lá pra ajudar – Edu mostrava imensa camaradagem. Não precisou mais nada. Japonês rodopiou nos calcanhares e saiu em grande carreira, quase atropelando Magriça que neste instante chegava.
  - Que houve com o Japonês?  Por que ele está com cara de choro?
  - Ele foi pra casa se tratar, coitado, pegou a doença do Tião – respondeu Dino.
  - Ninguém sabe ainda. Pode ter pegado e pode não ter! – Jorge não tinha tanta certeza.
  - Que doença? O Tião está doente?
  - É, com problemas gás..., no estômago, pode até morrer. Não está comendo nada – tentava explicar Edu.
  - Chi... – Magriça fez careta.

  De novo silêncio. Jorge foi sentar-se ao lado de Antônio Carlos, se encostando ao muro, e os demais o seguiram, exceto Magriça. Este olhava para o extremo da rua tentando enxergar Japonês. Mas ele já havia desaparecido.
  - Sabem quem eu vi inda pouco? – recomeçou Magriça. Ninguém respondeu, talvez achando que não era mais importante do que a doença do Tião.
  - Seu Leal! – resolveu então dar a notícia.
  - Seu Leal? Ele já está de volta? – animou-se Dino.
  - É... – confirmou simplesmente Magriça. Porém nada mais falaram. Magriça ainda meio sem ambiente olhava de novo para a distância e murmurava:
  - Coitado do Tião, será que é grave mesmo?

                                                   CAPÍTULO II
                                                      A VISITA

  Dia seguinte pelas nove da manhã eles de novo se encontraram. Só que desta vez pelos lados da casa velha, sem que houvessem combinado. Cumprimentavam-se com um “oi” desconfiado, e ficavam por ali. O último a juntar-se foi Dino. Somente faltava Tião e, naturalmente, Japonês.

  A casa velha, por sinal, não era mais velha. O nome permanecera, mas ela houvera rejuvenescido. Naqueles trinta dias em que Leal se ausentara, a casa passara por reformas. Todos os dias bem cedo um grupo de homens chegava e começava a trabalhar. Às tardes, perto das seis horas, largavam tudo, tomavam banho e se iam, voltando na manhã seguinte. Como o tempo ajudasse, não chovesse neste mês, exceto por uma ou outra garoa rápida e não houvesse interrupções, o trabalho fora concluído. A casa agora, com tábuas novas substituindo as velhas e apodrecidas, com portas, janelas e telhado recuperados, fora pintada.

  E não ficara somente nisto: uma nova calçada fora feita em redor da casa e criaram jardins com tijolos decorativos pintados à mão, margeando o muro; aplanaram o chão, plantaram grama, fizeram pequenos alpendres para trepadeiras e estenderam a calçada até o portão principal. O muro, da mesma forma, passara por reforma de cabo a rabo: buracos tinham desaparecido. Ganhara bem maior altura e recebera excelentes demãos de tinta. Tudo cheirava a novo..., ou a novidade!

  O dia estava claro e o sol gostoso; isto dava um sabor especial ao sábado. Mas eles já começavam a inquietar-se com aquela situação de calma e tranqüilidade.
  - Você tem certeza que era mesmo o seu Leal? – finalmente perguntou Jorge, olhando para Magriça.
  - Claro! Então eu não conheço ele?
  - Podia se enganar; prosseguiu Jorge, foi de dia ou de noite?
  - De tarde – respondeu Magriça simplesmente, com certa ironia.
  - Ele lhe viu? – indagou agora Edu.
  - Não, ele estava com pressa.
  - E nem falou com você? – a pergunta agora vinha de Dino.
  - Se ele não me viu como é que ia falar comigo? Você faz cada pergunta!
  - Sei lá... –  desculpou-se – podia ter visto e você não saber.
  - Ah...! – fez Magriça mal humorado.
  - Bom dia, garotada! – eles se viraram e para surpresa geral era Leal, bem atrás deles, como uma saca de compras à mão.
  - Bom dia! – responderam timidamente, meio sem graça.
  - Estão passeando? – perguntou sorrindo.
  - É..., a gente passava por aqui – respondeu Edu, bastante embaraçado.
  - Então vamos entrar, lá a gente conversa. Depois de um mês de ausência deve ter muita novidade. Vamos! – insistiu gentilmente, encaminhando-se para o portão.

  Eles o seguiram. Leal adiantou-se em direção da casa a fim de levar as compras. Os meninos se instalaram nos bancos do Teatro Jornada do Amanhã. Logo Esmeralda surgiu à porta, de vestido azul, acenando-lhes. Zecão ficou vermelho, os outros se coçavam após responderem ao aceno. Havia mais gente na casa, podiam perceber isto pelas vozes que ouviam.
  Não demorou e Leal retornou, sentando-se num dos bancos, procurando colocá-los à vontade:
  - Então, o que me contam de novidade?
  - O Tião está doente, pode morrer! – informou Edu de supetão.
  - É capaz do Japonês ter pego a doença dele! – Dino completou a informação.
   - Nossa! – surpreendeu-se Leal – O Tião, aquele escurinho? Mas o que ele tem de tão grave?
  - É... – Edu tentou, mas não falou.
  - Problemas gástricos! – ajudou-o Antônio Carlos.

  Leal solicitou-lhes para que relatassem tudo. Eles foram falando às pressas, às vezes juntos, fazendo com que Leal pedisse-lhes calma. Até Zecão, tímido diante de adultos, falou e explicou. Ao final, Leal ficou pensativo. Depois lhes disse que aguardassem e entrou na casa.

  Minutos depois estava de volta, desta vez acompanhado de outro homem e Esmeralda. Os meninos se sentiram de novo envergonhados.
  - Meninos, este aqui é meu irmão que mora comigo; é pai de Esmeralda.
  - Bom dia, garotada, meu nome é João Leal. Eles responderam ao cumprimento e ficaram atentos. O homem não se parecia nem um pouco com Leal. Era mais jovem, de cabelos pretos e lisos e de bigode bem cheio. Leal prosseguiu:
  - Meu irmão é médico e estudioso da natureza. Contei-lhe o que se passa com o Tião e ele aceitou ir dar-lhe uma olhada. Vamos lá agora?

  Os meninos se entreolharam pelo inesperado, mas nenhum se recusou. O médico entrou e rapidamente voltou, trazendo uma valise abaulada. Saíram. Esmeralda não os acompanhou, o que de certa forma aliviava os meninos. Já na rua Leal ordenou:
  - Alguém de vocês, vá procurar o Japonês e dizer-lhe para ir à casa do Tião. Meu irmão irá examiná-lo também!
  - Eu vou! – prontificou-se de imediato Edu, saindo em disparada.
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  Pouco depois chegavam à casa do Tião – uma casa humilde, porém de material, conservada com algum capricho. Ao portão pararam e Leal perguntou-se:
  - Será que ele está sozinho em casa?

  Resolveu bater palmas. Logo a porta da frente abriu-se e Sebastiana apareceu. Ao ver aquela gente toda se espantou, mas sorriu meio nervosa ao reconhecer Leal, que foi logo falando:
  - Bom dia, dona Sebastiana, desculpe incomodar, mas soubemos que seu filho está doente e viemos cá fazer uma visita. A senhora nos dá licença?

  Ela veio abrir o portão e Leal apresentou-lhe o irmão, explicando-lhe a verdadeira intenção da visita. Ela, satisfeita, mandou-os entrar, indo os adultos à frente e os meninos, ressabiados, atrás, em fila.
  - Tião, tem visita pra você – informou-lhe a mãe da porta do quarto. Tião rapidamente ajeitou-se, encostando-se à cabeceira da cama. Eles foram entrando e se espalhando pelo quarto. Os meninos procuravam ficar o mais longe possível. Ao ver aquele homem que não conhecia Tião arregalou os olhos.
  - Bom dia, Tião, como está hoje? - Leal foi logo perguntando. Ele ainda de olhos arregalados fez gesto com a mão de mais ou menos, passando a olhar fixamente para a valise do doutor João.
  - Este aqui é meu irmão, doutor João, prosseguiu Leal, veio para examiná-lo. Vamos saber agora o que você tem.

  Tião continuava mudo. Sebastiana chegou-se rapidamente, estendendo-lhe as mãos e falando com tal rapidez que quase atropelava todas as palavras:
  - Ande, menino, se arrume logo, o doutor vai lhe examinar – ela puxou-o fazendo-o soltar um ai – senta na beira da cama que eu vou buscar uma cadeira pro doutor.

  Voltou logo com a cadeira colocando-a junto ao médico. Ia sair para buscar outra, para Leal, mas ele não quis. O médico então se sentou, pondo a valise sobre a cama, abrindo-a e retirando o estetoscópio, o termômetro e pequena pá de aço. Os meninos, aos pés da cama, acompanhavam tudo com a maior atenção. Tião se encolhia apertando os braços contra o corpo.

  O médico passou a examiná-lo, mandando-o abrir a boca, introduzindo nela a pequena ferramenta. Os olhos de Tião se arregalaram ainda mais.
  - Calma, relaxe – falava doutor João – ponha agora a língua para fora. Tião obedecia porque não havia outro jeito, porém mais parecia um sapo apertado.

  Doutor João fez exames completos: garganta, olhos, coração. Examinou-lhe a pele, apertou-lhe o estômago, o fígado, colocou-lhe o estetoscópio aos pulmões, mandando-o dizer trinta e três por três vezes, o que causou aos meninos não conterem o riso. Depois, verificou-lhe os ouvidos e colocou-lhe o termômetro sob a axila direita, olhando para o relógio. Passados três minutos retirou-o e constatou:
  - Está com febre: trinta e sete e meio; é pouca, mas precisa ser cuidada – arcou-se então e remexeu dentro da valise. Tião não suportando mais aquela expectativa finalmente indagou assustado:
  - É injeção, doutor?
  - Sossegue. Não é injeção, é só um antitérmico que trago comigo, são comprimidos. Tião pela primeira vez relaxou de verdade e até sorriu olhando para os amigos.

  Doutor João voltou-se para Sebastiana fazendo-lhe perguntas sobre o filho. Ela, nervosa, respondia a tudo, às vezes até repetindo. Depois, ele retirou um bloco da valise e começou a escrever. Sebastiana nem o esperou terminar:
  - É grave, doutor?
  - Não é nada grave, ele vai ficar bom – respondeu tranqüilamente sem desviar os olhos do que escrevia.
  - Graças a Deus! – exclamou Sebastiana juntando as mãos. Neste exato instante surgem à porta Edu e Japonês, este último de cabeça baixa, olhando por cima.
  - Oi, turma, chegamos – saudou Edu com ar vitorioso, como alguém bem sucedido numa importante missão.
  - Muito bem, Edu, que bom ter trazido Japonês – falou Leal, logo apontando de mão aberta em direção aos outros meninos – entrem, juntem-se aos demais.
  - Qual é a doença dele, doutor? – voltava a perguntar Sebastiana.
  - Não é doença. Ele deve ter comido ou bebido qualquer coisa que lhe fez mal: frutas ácidas ou verdes, refrigerantes, guloseimas em geral – coisas em excesso. Isto lhe atacou o estômago causando-lhe problemas em todo o aparelho digestivo. Como a flora intestinal dele ficou prejudicada, precisamos dar-lhe medicamentos para recuperá-la. Porém, nada fabricado, exceto um purgante logo de início. Os remédios nós mesmos vamos preparar.

  O que Sebastiana entendeu de verdade foi que Tião comera demais, de gulodice, tivera uma baita dor de barriga, que estava tudo preso e precisava botar para fora. Agora doutor João ia fazer os remédios para curá-lo de vez. João começou a explicar-lhe o que fazer, lendo para ela o que escrevera. Disse que iria arranjar os ingredientes para que ela mesma fizesse os remédios. Não ia gastar nada.

  Tião voltara a encostar-se à cabeceira da cama e observava os companheiros que cochichavam algo. Terminada a conversa entre o médico e Sebastiana, o doutor levantou se dirigindo a Tião:
  - Quanto a você, menino, permaneça ainda em repouso por uns dois dias. Logo estará bom de novo!
  - Seu Leal! – chamou Dino, mal o médico encerrara as recomendações a Tião – quando o senhor vai contar outra história do Pedro Pinote? Leal sorriu como sempre, isto lhe causava satisfação.
  - Bem, podemos combinar de novo, que tal neste domingo?
  - Oba, legal! – aplaudiu Dino. Todos riram e se alegraram, menos Tião. Ele cruzou os braços e ficou carrancudo. Leal percebeu de imediato.
  - Bem, um momento – coçou o queixo e pensou. Eles aguardaram em silêncio – como o Tião está doente e não vai poder ir ao teatro, eu tenho outra ideia.  Tião já se animava, descruzando os braços e abrindo bem os olhos – Dona Sebastiana, a senhora se incomoda da gente ficar aqui conversando um pouco sobre o Pedro Pinote?
  - Virgem Maria! Claro que não seu Leal, podem ficar à vontade, o senhor, o doutor e os meninos!
  - Ótimo.  João fica? – perguntou ao médico.
  - Não, obrigado. Já conheço as histórias do Pinote. E como não preciso examinar o Japonês porque o problema do Tião não pega em ninguém, eu vou indo. Até logo pra todos! Japonês voltara a sorrir. Doutor João os deixou acompanhados de Sebastiana. Ela voltou, logo falando da porta:
  - Escute seu Leal, tem um banco de madeira ali na varanda do fundo, é só buscar que dá pros meninos sentar.
  - Boa ideia. Venham, garotada, vamos lá buscar!

  O banco foi trazido e cinco dos meninos o ocuparam. Japonês e Zecão sobravam, mas não se importaram, indo sentar-se no chão, encostando-se à parede. Sebastiana trouxe uma cadeira para ela e Leal sentou-se na mesma que seu irmão utilizara. A janela estava aberta, o sol entrava e iluminava. Leal então começou.

                                                  CAPÍTULO III
                                              DE NOVO ARMOU

  Tendo cumprido com sucesso a missão que lhe confiara Armou, o Mago do Tempo, Pedro Pinote voltara à vida normal. Ia à escola, fazia os deveres de casa e descansava. Sossegara um pouco de sua vontade de viajar pelos espaços. Talvez se recuperasse da última aventura em que passara por maus bocados.

  Quinze dias decorreram sem qualquer novidade. Certa noite, porém, Pedro sonhou que o Mago do Tempo acenava-lhe, chamando-o. Dizia-lhe algo de certa distância, mas não conseguia entender. Ao acordar, recordou-se do sonho e na escola a todo o momento se lembrava.

  Na noite seguinte teve outro sonho com Armou. Mas ele agora o trazia para uma alta montanha, colocava-lhe o dedo na testa e o menino passava a ver um vale ao longe. Começou a perceber uma tempestade de areia. Na medida em que se concentrava nisto um vão ia se abrindo através da tempestade. Ele, cada vez mais se aprofundando neste vão, passou a ver imagens que se moviam. Eram homens que lutavam numa guerra..., e acordou!

  As estranhas imagens o acompanharam durante o dia na escola, como acontecido da outra vez. À noite, em casa, tomou então uma decisão, comunicando-a aos companheiros Teovaldo e Petisco:
  - Amanhã à tarde viajaremos novamente. Após fazer os deveres, darei uma desculpa para sair e partiremos. Acho que Armou me chama!
  - Currupáco! - fez somente Teovaldo, andando de um lado para outro no puleiro. Petisco latiu e pulou alegremente.

  Na tarde seguinte ele lançou mão de seu cofre, abriu-o e retirou do estojo o cinto que guardava o disco. Apesar de ser um cofre, Pedro sentia que não era o lugar mais seguro para guardar aquelas coisas tão importantes. Mas no momento não podia fazer nada, nenhuma outra ideia o socorria. Aproveitou e tomou também o peixe de prata que lhe dera Djayan, colocando-o no bolso, afinal poderia necessitá-lo! Em seguida, foi até o armário, abriu a gaveta e retirou dali outro objeto, guardando-o consigo.

  Saiu com seus amigos. Na primeira oportunidade, pelas imediações da mata, tomou Petisco num braço, tendo Teovaldo no ombro, e colocou o disco pouco acima do umbigo, recitando:
  - Senhor do Espaço, eu quero viajar, me leve no tempo pra outro lugar, me leve pra Armou! E foram surgir no salão de enorme castelo.
  - Chegamos!
  - Currupáco!
  - Que lugar bonito, Cabelos de Ouro! - admirou-se Petisco, chamando-o pelo nome que atendia neste lado, devido a cor de seus cabelos.
  - É um castelo de cristal – falou-lhe o menino enquanto o soltava no chão e abotoava o disco de ouro no estojo preso ao cinto.

  O castelo era realmente magnífico. As paredes, o teto, o chão, tudo era cristal de várias tonalidades. Brilhavam e iluminavam. Havia ali alguns móveis: mesas, cadeiras, armários, quadros nas paredes e um trono também de cristal, que brilhava muito. Não havia guardas ou empregados pelos arredores.

  - Cabelos de Ouro, sinto uma energia estranha no meu corpo – falou Petisco.
  - Também sinto, porém fico mais forte e com leveza. É algo gostoso! – Cabelos de Ouro abria os braços e se examinava.
  - Eu também, currupáco!

  Os cristais vibravam diversos e agradáveis sons. Súbito, os sons pararam, mas em seguida recomeçaram. A corrente de energia que os visitantes tinham sentido, parecia percorrer o interior de todos os cristais do salão.

  Din-don, din-don, din-don! Ding-ding-don, din-don, din-don! Ding-ding-don, din-don, din-don!

  - É Armou! – exclamou o menino.

  Eis que diante deles surge o Mago do Tempo, naquelas mesmas vestes negras e com o mesmo cajado onde as pedras verdes rebrilhavam.

                                             Venho saudar-vos amigos leais,
                                             Aqui bem chegando pra me visitar,
                                             Alegre eu estou que aqui já estais,
                                             Humilde castelo, uma casa, meu lar!

                                             Comigo sonhaste sei disto daqui,
                                             Menino esperto, valente, audaz,
                                             Chamei-te, mostrei-te, outra vez insisti,
                                             Nova luta venceres, porque sei, és capaz!

  - Nova luta senhor Armou? – interessou-se Cabelos de Ouro.

                                              Milênio que vai sem qualquer solução,
                                              Homens lutando e nada a fazer,
                                              Porque velocino alguém lançou mão,
                                              Guerras sem fim isso veio trazer!

  - Velocino? Que é isto? – perguntou Petisco.
   - É um símbolo da antiga mitologia. Uma estátua de carneiro – explicou o menino a sua maneira – que mais senhor Armou?

                                              Grande importância um povo lhe dera,
                                              Riqueza, afirmavam, viera existir,
                                              Outro povo acusou ao roubo fizera,
                                              A paz lá se foi nada pôde impedir!

                                              Lutaram e lutam a mais não poder,
                                              Para a Terra do além o seu ódio carregam,
                                              Renascem pra guerra até sem querer,
                                              Se juntam de novo a quem os esperam!

  - O que o senhor acha que eu deveria fazer, se puder é claro? – perguntou abrindo as mãos.

                                              Menino valente perigos terás,
                                              Se a missão aceitares e fores saber,
                                              A razão disto tudo, e ali estarás,
                                              E a guerra, enfim, a puderes conter!

  - Isto quer dizer que terei de me meter na luta para descobrir quem tem razão? E ainda acabar com a guerra? Armou somente assentiu com a cabeça e seus verdes olhos lançaram faíscas. Cabelos de Ouro continuou a perguntar com certa agitação – Mas onde é isto? Como chegar lá? O que terei de fazer exatamente?

                                               Ao local de batalhas a ti enviarei,
                                               E a teus companheiros contigo também,
                                               Dali em diante não mais eu farei,
                                               Não posso, não devo, somente outro alguém!

                                               O tempo é meu reino aqui meu reinado,
                                               Um fato já disse não posso mover,
                                               Por obra de ti possa ser alterado,
                                               Em ti já existe esse tal de poder!

                                               Qual noutra jornada aqui estiveste,
                                               É direito de teu desta cá recusar,
                                               De sair, de voltar, o poder te investe,
                                               E ninguém vai por isto a ti condenar.

  - Eu quero! – afirmou bravamente Cabelos de Ouro.
  - Eu também! – afirmou em seguida Petisco. Teovaldo nada falou, Cabelos de Ouro olhou-o de esguelha sobre o ombro. Os olhos de Armou novamente brilharam de satisfação, e recomeçou:

                                              Os perigos, falei-vos, que lá vós tereis,
                                              Se por mim tu gritares convosco serei,
                                              Uma vez e somente aqui voltareis,
                                            E levar-vos de novo jamais poderei!

                                            O teu disco de ouro a ti servirá,
                                            Se demais não entrares no tempo pra trás,
                                            Pois assim tão distante poder não terá,
                                            Só Armou estarei onde tu estarás!

  - Como da outra vez a missão estará perdida se voltarmos antes do tempo – comentou Cabelos de Ouro – estou pronto senhor Armou, pode me enviar para o local da missão!
  - Eu também! – confirmou Petisco.

                                              Tua mente que li, bem de lá percebi,
                                              Por isto algo bom tenho cá, te darei,
                                              O teu disco me dá, dá-me o disco aqui,
                                              Olha bem, olha só, o que então eu farei!

  Confiante, Cabelos de Ouro de imediato puxou o disco do estojo e o estendeu ao Mago do Tempo. Ele o tomou e o observou. As pedras começaram a rebrilhar porque uma corrente passava de uma a outra pedra. Armou passou o disco da mão direita para a esquerda, e em movimento rápido elevou o braço direito acima da cabeça. Fez outros movimentos e trouxe a mão adiante, aberta, à altura do peito. Surpresa, um objeto surgira em sua mão!
  - Um cinto de ouro! – exclamou o menino, admirando-se daquele ato mágico.

  Sem distrair-se Armou juntou o disco de ouro ao cinto e começou a esfregar os dedos sobre ambos. Fazia isto com tal rapidez que os três mal conseguiam acompanhar os movimentos. Tendo terminado, viram que o disco havia se encaixado perfeitamente no cinto. Não havia sinal ou marcas; era como se um tivesse derretido no outro!

  Armou fez sinal com a cabeça e Cabelos de Ouro se aproximou. O mago então se arcou e envolveu o cinto à cintura do menino. Ao encostar uma extremidade à outra, o cinto ligou-se e se mostrou numa única peça, totalmente lisa, sem a menor separação. Neste exato instante Cabelos de Ouro sentiu uma corrente de energia percorrer todo o seu corpo.

  Ele baixou o rosto e passou a examinar o que recebera. O cinto era largo à frente, afinando nas laterais e fechando atrás com menor largura. Tinha linhas em ambos os lados, que à distância ele não pudera notar. Pareciam sinais ou símbolos. O disco ficara exatamente acima de seu umbigo. O menino voltou a olhar para o Mago do Tempo. Armou logo levantou o dedo indicador da mão direita adiante do rosto e pronunciou:

       “Alah-bha-thar!”

  Com espanto o menino e seus companheiros viram o cinto desaparecer.
  - Sumiu! – disse simplesmente Cabelos de Ouro, passando a mão onde o cinto estivera nada ali sentindo. Armou sorriu e novamente levantou o dedo indicador, pronunciando:

       “Rah-tah-bha-lá!”

   E o cinto surgiu novamente na exata e anterior posição com o disco de ouro.
  - Voltou! – exclamou o menino novamente maravilhado.

                                           O cinto de ouro de ti sumirá,
                                           Bastando somente a palavra falar,
                                           Ao contrário dirás e outra vez surgirá,
                                           Embora em ti para sempre há de estar!

  - Deixe-me experimentar!  Cabelos de Ouro então pronunciou a palavra e o cinto sumiu. Pronunciou-a ao contrário e o cinto reapareceu.
  - Funcionou! Viva! Acabaram-se minhas preocupações. Não preciso mais esconder o disco! – ele voltou-se para Armou – Estou muito satisfeito com o presente, senhor Armou, não sei como agradecer! Armou somente sorriu.
 - Estamos prontos, falou novamente, pode nos mandar para o local das batalhas. Faremos todo o possível para cumprir a missão com sucesso!

  Armou levantou o braço direito e o cajado surgiu em sua mão. Eles notaram com surpresa que o cajado houvera sumido sem que tivessem percebido. O Mago do Tempo sacudiu-o sobre suas cabeças e as pedras verdes soltaram uma poeira de mesma cor. Ele então invocou:

                                             Oh! Seres do ar que a vós eu invoco,
                                             Pelo espaço aos amigos convosco levai,
                                             Deixai-os pousar onde ali os coloco,
                                             E no tempo, ordeno, vigilantes ficai!

  Imediatamente desapareceram dali, indo reaparecer noutro lugar.

                                                  CAPÍTULO IV
                                             A MISSÃO SE INICIA

  - Chegamos! – falou Cabelos de Ouro, soltando Petisco ao chão. O cãozinho rapidamente correu pelo local farejando tudo.
  - Não vi nada, Cabelos de Ouro, estamos sós – falou voltando.
  - Lugar deserto, lugar deserto! – resmungava Teovaldo.
  - Vejo algo ali adiante, olhem! – o menino apontou para o meio de dois altos arbustos.
  - Uma cidade! – admirou-se Teovaldo.
  - Uma cidade? – perguntou Petisco, que do chão nada podia enxergar. Cabelos de Ouro tomou-o nos braços mostrando-lhe o que vira.
  - Vamos até lá. Usemos o disco de ouro, pois me parece distante daqui!

  O céu estava nublado e não viam o Sol. Cabelos de Ouro virou-se para um lado pronunciando as palavras que os fariam viajar.
  - Falhou! – disse Petisco vendo que não saiam do lugar.
  - Esperem! – disse o menino colocando Petisco no chão e remexendo num dos bolsos, trazendo na mão um objeto.
  - Que é isto? – perguntou Teovaldo.
  - Uma bússola - achei que nos serviria - explicou-lhes ao mesmo tempo em que abria a tampa redonda e a observava atentamente. Começou então a girar procurando a posição leste, que é o nascente.
  - Pronto, creio que agora poderemos viajar – informou guardando o objeto, tomando Petisco novamente nos braços, pensando no lugar, e sem mesmo saber o motivo, resumiu tudo simplesmente em:
  - Senhor do Espaço, a cidade desconhecida!

   Sumiram dali, aterrissando no meio de uma praça.
  - Não há ninguém – falou Petisco.
  - Realmente, olhando daqui parece uma cidade deserta – confirmou o menino colocando Petisco no chão.

  Vaaapt! De repente algo caiu a dois passos deles.
  - Uau! Cuidado! – espantou-se Teovaldo.
  - Uma flecha! Mas quem...?  Nem bem Cabelos de Ouro se perguntava, vaaapt! Outra e mais outra!
  - Vamos! Corra Petisco! – gritou assustado. Mais flechas continuaram a ser lançadas. Eles corriam desesperados, mas não achavam um local a salvo. E as flechas caíam de todos os lados.
  - O disco, o disco! – falava Teovaldo.
  - Não há tempo..., não consigo! – tentava explicar o menino enquanto corria.

  Eles corriam em torno da praça, contornando um enorme monumento com muitos degraus circundantes. Era a estátua de um guerreiro de saiote como os antigos gregos, trazendo uma lança na mão direita, um escudo retangular na outra mão, e às costas um arco com um saco de flechas.
  - Petisco..., procure... uma saída, fareje! Senão..., caire...mos de can...sa...dos! – falava Cabelos de Ouro ainda correndo.

  Petisco saiu em disparada em direção dos prédios ao redor, recebendo uma saraivada de flechas, porém nenhuma o atingiu. Chegando ao outro lado, começou rapidamente a farejar e a procurar. Ainda assim se desviava das flechas.
  - Cuidado! Cuidado! – era só o que dizia Teovaldo, enquanto novas flechas caiam sobre ambos na praça. Petisco latiu do outro lado, junto a um prédio.
  - Petisco está nos chamando, temos de ir. É a nossa única chance. Segure-se! – disse o menino partindo a toda velocidade em direção de Petisco. Dezenas de flechas foram arremessadas sobre eles; uma atingiu de raspão o braço de Cabelos de Ouro, rasgando sua camisa. Ele nem teve tempo de olhar, chegando junto a Petisco.
  - Ali tem uma saída! – indicou-lhe o cão.
  - Uma...rua...estreita! Estamos...salvos! – comemorou Cabelos de Ouro ainda cansado, correndo para lá.

  A rua era de paralelepípedos. Começava sob um arco entre dois prédios, prosseguindo espremida entre vários outros prédios, passando debaixo de novos arcos e passarelas. Mas eles não seguiram imediatamente. Cabelos de Ouro sentou-se ali mesmo, encostando-se a uma parede, esticando as pernas para frente, procurando recuperar o fôlego. Petisco ficou ao seu lado, jogando as patas adiante, soltando o corpo no chão. Teovaldo voou do ombro de Cabelos de Ouro e foi pousar aos seus pés, andando de um lado a outro, resmungando:
  - Quase morremos, quase. Só entramos pelo cano, só isso!

  O menino e o cão não lhe davam ouvidos. Passados minutos Petisco perguntou:
  - Quem eram, afinal?
  - Não sei, mas pelo jeito não nos querem aqui! – respondeu Cabelos de Ouro.
  - Ou querem acabar conosco de vez, currupáco!
  - Estranho – começou Cabelos de Ouro se levantando, olhando para a praça e para o alto dos prédios – por que não aparecem e não vêm atrás de nós? E onde estará o povo da cidade?
  - Currupáco.
  - Precisamos sair daqui. Sigamos por esta rua tentando descobrir algo.
  - Não, não! Vamos embora de vez! – reagiu Teovaldo, voando para o ombro do menino.
  - Antes me deixem providenciar uma coisa – disse Cabelos de Ouro, sem prestar atenção à Teovaldo, metendo a mão no bolso e retirando a bússola. Tendo se orientado para o lado certo fechou-a na palma da mão esfregando o cinto de ouro para ter a certeza de que ele ali estava, embora nada sentisse. 
  - Prossigamos!  - ordenou.
  - Uau! Pensei que íamos viajar, mas você diz prossigamos. É perigoso, muito perigoso, currupáco!
  - Quieto, Teovaldo! Vamos caminhar em silêncio. Petisco vá farejando tudo o que puder, mas não se distancie muito!

  Petisco entrou logo pela rua e Cabelos de Ouro vinha dois passos atrás. Olhavam para todos os lados e para o alto, mas não percebiam qualquer movimento. Estava tudo quieto sem qualquer sinal de vida; isto os deixava cismados. A rua era comprida e ensombreada; os paralelepípedos não eram do tipo conhecido, porém mais largos e irregulares: lembravam placas de pedra. Havia espaço entre alguns deles, embora a maioria se juntasse e lhes permitisse andar sem problemas. Estavam lisos e gastos!
  - Cabelos de Ouro, farejo algo! – parou de súbito o cão.
  - O quê?
  - Gente, muita gente!
  - Pra que lado?
  - Pro final da rua – respondeu fungando e deixando aparecer alguns dentes.
   - Que mais Petisco? – ao mesmo tempo em que perguntava, o menino encostava-se a um prédio, apoiando um ombro, procurando enxergar melhor.
  - Só isso, nada mais.

  Cabelos de Ouro permaneceu nesta posição por alguns segundos; em seguida endireitou-se esfregando o rosto no corpo de Teovaldo, levantando um pouco o ombro e o sacudindo.
  - Teovaldo, precisamos de seu auxílio.
  - Já sei, já sei, lá vem abacaxi. Vou ter de voar lá pra frente pra contar o que tem; é a mesma história de sempre, currupáco, é...
  - Psiu! - fez Cabelos de Ouro trazendo o dedo aos lábios – não esbraveje tanto, podem nos escutar!
  - Currupáco – fez ele baixinho.
  - Vá, Teovaldo, mas cuidado, não se exponha muito. Vá!

  Teovaldo bateu asas e partiu. Cabelos de Ouro abaixou-se ficando de cócoras, com calcanhares levantados, estendendo a mão e trazendo Petisco, colocando-o ao seu lado. Poucos minutos depois Cabelos de Ouro já estava de pé, percebendo que Teovaldo voltava com rapidez.
  - Nada, nada, tudo deserto, ninguém à vista!
  - Mas eu sinto o cheiro! – confirmou Petisco.
  - Devem estar dentro das casas. Mas serão os mesmos que nos atacaram?  – perguntava-se o menino, voltando-se de novo para Teovaldo     - Que existe adiante?
  - A rua termina logo ali; depois tem outra praça também redonda. Tem um prédio enorme bem no meio dessa praça, mas todo fechado. Eu voei por tudo e me escondi. Está silêncio, não ouvi nenhum barulhinho. Fiquei com medo e voei de volta. Parece até cemitério, currupáco!

  Cabelos de Ouro trocou a bússola de mão, enxugando-a na roupa. Depois abriu e fechou a mão livre para ajudar na circulação e se decidiu:
  - Temos de continuar até descobrirmos por que se escondem.

  Continuaram a avançar. Na medida em que se adiantavam naquela rua estreita Petisco mais ainda se agitava, farejando sem parar.
  - Estão pertos, muito pertos! – repetia nervosamente o cão.
  - Depois desta curva termina a rua e vem a praça, cuidado! – alertou Teovaldo.
  - Esperem! - falou Cabelos de Ouro parando e abrindo novamente a bússola, virando-se para o lado onde seria o nascente – Petisco venha! – chamou-o e o abraçou, colando-o contra o corpo. O coração de Petisco batia mais rápido e seu corpinho tremia de nervosismo. Teovaldo, descontrolado, andava sobre o ombro de Cabelos de Ouro, abria e fechava as asas, mexendo a cabeça com enorme rapidez.
  - Agora vamos! - falou Cabelos de Ouro com disposição, reiniciando os passos, chegando ao final da estreita e descolorida rua, frente à praça mencionada por Teovaldo.

  Os prédios em volta eram parecidos com aqueles que os amigos haviam visto da primeira praça onde foram atacados com flechas. Eram, porém, todos brancos e bem cuidados. No centro desta praça havia longos patamares em pedra formando degraus e bem no meio dos patamares tinha o enorme prédio de que Teovaldo falara, mas diferente de todos os demais. Este era alto e comprido, possuindo colunas adiante.
  - Um templo! - exclamou Cabelos de Ouro – e belíssimo! Sem mais distrair-se, Cabelos de Ouro olhou de novo a bússola reorientando-se. Depois colocou Petisco no chão, dizendo-lhe:
  - Ande sempre ao meu lado nesta posição, nem à frente nem atrás, exatamente aqui. Petisco entendeu e foi colocar-se onde o menino indicara.
  - Que fazemos? - mexia-se ainda nervosamente o papagaio.
  - Vamos caminhar em direção do templo, mas prestando atenção a todos os lados. Entretanto, mal tinham dado três passos, ouviram:
  - É ele! Peguem-no! Agarrem-no!

  De todos os lados começaram a surgir homens correndo em sua direção, com armas e paus à mão. Eram tantos que pareciam formigas saindo de formigueiros.
  - Petisco, venha! – gritou Cabelos de Ouro. O cão pulou-lhe aos braços e ele gritou:
  - Senhor do espaço, a floresta! E sumiram, deixando aqueles que haviam pulado sobre os três, com caras de tolos sem saber o que tinha acontecido.
                                                       CAPÍTULO V
                                                        A CABANA

  - Ufa, escapamos por um triz! - falou Cabelos de Ouro colocando Petisco no chão.
  - Por pouco, muito pouco mesmo, currupáco!
  - Estamos noutra parte da floresta, não é mais aquela – farejou Petisco, se afastando para fazer novo reconhecimento.
  - É verdade, aqui a mata é mais fechada e escura, mal se consegue enxergar o céu.  Alguns segundos depois Petisco voltou.
  - Nada de estranho, tudo normal - disse simplesmente.
  - Então vamos caminhar um pouco, talvez achemos algo interessante – falou o menino já começando a se movimentar.

  A floresta ali era realmente fechada; em certos trechos o cão e o menino andavam com dificuldade. Chegaram a um rio num local mais aberto com grama espalhada, sentando-se à margem, e Cabelos de Ouro molhou a testa e a nuca. Isto provocou respingos em Teovaldo que se arrepiou e se sacudiu reclamando. Petisco descobriu lugar melhor e meteu-se por ali, indo beber água. Depois se juntou aos dois, perguntando:
  - Que lugar é esse? Que fazemos?
  - Não sei, Petisco, mas se para aqui viemos é por algum motivo.
  - Cuidado, cuidado, ele é mau! - alertava e se agitava Teovaldo.

  Eles se viraram, vendo surpresos, bem atrás deles, um pigmeu com uma lança enorme à mão. Apontava-a em posição de arremesso, chegando passo a passo. Era negro, vestia-se tão somente com uma tanga escura e tinha braceletes feitos de pequenos dentes de animais. Ao pescoço, trazia um colar de conchas com um dente maior parecendo de javali; nos tornozelos tinha adornos de palha entrelaçada. Petisco rosnou, mas Cabelos de Ouro acalmou-o:
  - Quieto, Petisco, não faça nenhum movimento, ele pode atirar-nos a lança – e foi se levantando lentamente, sorrindo para o pigmeu – ei, somos amigos, não lhe queremos mal! Mas o pigmeu parecia não escutar, continuava a avançar com a lança apontada.
  - Ele quer nos matar, currupáco!

  O pigmeu parou a três metros fazendo sinal com a outra mão, indicando para um lado, fazendo gesto para que caminhassem.
  - Ouça, amigo, nós... Porém o pigmeu não deixou Cabelos de Ouro continuar, mexeu a lança nervosamente e trouxe o braço mais para trás, como se fosse arremessá-la.
  - Está bem, está bem! - Cabelos de Ouro mostrou-lhe as mãos abertas - vamos caminhar!
  - Use o disco, Cabelos de Ouro! – lembrou-lhe Teovaldo.
  - Ainda não, esperemos para saber o que ele deseja.
  - É nos matar, fazer churrasco. Droga de curiosidade!
  - Será que ele é canibal? – perguntou Petisco.
  - Não sei, mas agora é melhor obedecer e andar.

  Assim fizeram saindo do lugar, entrando por um caminho de terra batida. Isto fez Cabelos de Ouro concluir que deveriam existir muitas pessoas vivendo por aqueles lados, usando aquela trilha. Continuaram. Petisco caminhava ligeiramente adiante. Teovaldo ia dando a Cabelos de Ouro a posição do estranho, virando-se a todo o momento em seu ombro, falando-lhe ao ouvido:
  - Ele continua com a lança apontada. Baixinho atrevido, currupáco!

  Em certo instante, ouviram um ruído atrás, se voltando. O pigmeu batera a lança três vezes num tronco para chamar-lhes a atenção. Em seguida, indicou-lhes para que entrassem à direita. Eles assim fizeram, indo Petisco sem dificuldade, mas Cabelos de Ouro afastava com ambas as mãos os finos galhos de árvores ou arbustos que pendiam pela trilha; às vezes se arcava ligeiramente.

  Deram mais alguns passos e pararam ao perceber uma cabana de palhas. Era como uma tenda que possuísse somente duas partes, uma apoiada na outra, formando duas paredes inclinadas. O pigmeu pulou-lhes adiante como um felino, fazendo sinal para que esperassem. Começou a andar de costas, sempre apontando a lança, e parou tão logo sentiu que estava sob a proteção da cabana. Alguém lá dentro falou-lhe alguma coisa e ele imediatamente saiu indicando para que entrassem.
  - Não devemos! – temeu Teovaldo.
  - Não temos escolha, ele nos aponta a lança, temos de ir. Petisco venha! Petisco pulou-lhe aos braços e Cabelos de Ouro entrou naquela estranha construção.

  Estava um tanto escuro ali dentro e o menino teve de forçar um pouco as vistas para enxergar melhor. No fundo da cabana notaram uma pessoa sentada e pararam.
  - Aproxime-se, não tema! – disse a voz cansada e meio rouca.

  Cabelos de Ouro carregando os companheiros aproximou-se e de perto pode vê-lo melhor. Era um negro e velho. Sentava-se num cepo de árvore, tendo adiante, no chão, uma peneira de palha. Segurava às mãos uma espiga de milho que parecia ter parado de debulhar. No interior da peneira havia alguns grãos. O velho estava de cabeça baixa e não conseguiram ver-lhe a fisionomia.
  - Sente-se – apontou para o outro cepo a sua frente sem levantar o rosto. Cabelos de Ouro obedeceu, colocando Petisco no chão, ao seu lado.
  - Então você é o menino que veio para descobrir o mistério do roubo do velocino – falou com a mesma voz cansada, porém agora menos rouca.
  - Como sabe, senhor?
  - Eu sei, eu sei..., eles me contam – respondeu sem se mexer.
  - Eles quem?
  - Currupáco! – fez Teovaldo impaciente.
  - Os grãos! – respondeu simplesmente.
  - Os grãos? – surpreendeu-se o menino, olhando-os dentro da peneira.
  - Os grãos? – repetiu Teovaldo.
  - Sim, menino, os grãos me contam tudo o que eu desejo saber.
  - Eu heim! Cada uma, grão que fala, ora essa! – Teovaldo começou a ficar nervoso. Petisco somente ganiu.
  - Esses grãos de milho daí? Como podem? – insistiu Cabelos de Ouro.
  - Não acredita? – perguntou o velho levantando o rosto pela primeira vez e os assustando. Era cego e tinha os olhos completamente brancos.
  - Currupáco! – assustou-se o papagaio.
  - Eu..., bem... – gaguejava o menino, ainda surpreso.
  - Eu não acredito, é conversa! – disse logo Teovaldo, já recuperado do meio susto. Cabelos de Ouro tentou explicar:
  - É que..., eu nunca vi nada disso antes. Como eles fazem pra contar?
  - Magia, meu filho, magia – respondeu delicadamente o velho. Aliás, aquele velho falava de maneira amigável e após o susto causado pelos seus olhos, Cabelos de Ouro já se recuperava.
  - Poderia mostrar-nos, senhor?
  - É, mostre que eu quero ver, currupáco!
  - Menino e seus companheiros - começou o velho levantando o dedo indicador direito, movendo-o – como passaram no teste de coragem vou provar-lhes o que digo.
  - Teste de coragem?
  - Sim menino. O pigmeu os assustou de propósito. Ele é manso, mas fingiu que era feroz para ver-lhes a reação. Sei que podia ter usado este disco aí e desaparecido no momento em que desejasse, mas preferiu ficar até o final. Parabéns pela coragem!
  - Isso mesmo, ficamos até o final, currupáco!
  - Então prestem atenção e observem! - Ele apertou a espiga de milho que segurava e liberou um grão. Tendo-o na mão direita falou:

                                   Poderes da luz que na luz se refletem,
                                   Ao grão outra vez façam a luz penetrar,
                                   Para o ar lanço o grão bem aqui no espaço
                                   E no ar quero ver os amigos andar!

  E o lançou para cima, soprando-o. Imediatamente formou-se um globo de luz branca, explodindo. Os três amigos começaram então a ver um desfile de suas próprias imagens, desde o momento em que haviam chegado à cidade desconhecida. Ouviam suas próprias vozes, mal conseguindo acreditar naquilo. Assim, as cenas foram se passando e reviram o ataque de flechas, a corrida para tentar escapar, a caminhada pela estreita rua e tudo mais que lhes tinha acontecido até este momento. Estas cenas não duraram mais que um minuto, sumindo tudo ao final.
  - Incrível, como isto pode acontecer?
  - Magia, já disse. A magia é capaz de coisas realmente incríveis. Mas diga-me filho: está ainda disposto a tentar acabar com esta guerra absurda?
  - Sim, senhor, estou!
  - É, estamos! – enchia-se de coragem Teovaldo.
  - Eu também! – afirmou Petisco.
  - Então terá muitas coisas a fazer. Não lhe serão fáceis, enfrentará muitas dificuldades e perigos, você e seus companheiros.
  - Quais perigos e dificuldades?
  - Vários, mas estas coisas você terá que descobri-las sozinho. Porém, vou ajudá-lo – dizendo isso ele passou a mão no fundo da peneira e trouxe um punhado de grãos do milho. Abriu a mão e os mostrou, eram sete! – guarde estes grãos com muito cuidado por que são mágicos. Lance-os ao ar, um de cada vez a cada situação de perigo, sopre-os e virá imediata ajuda sempre que precisar. Em sete ocasiões poderá ser salvo, após isto somente você próprio terá de resolver.

  Cabelos de Ouro os tomou da mão do velho e os examinou: eram comuns, não possuíam nada de especial..., então os guardou num bolso das calças.
  - Somente posso adiantar-lhe uma coisa – o velho prosseguiu com o rosto voltado para ele como se o estivesse enxergando – quem possui o velocino está ao sul. Ande sempre para o sul se quiser chegar onde vive tal personagem. Agora vá e boa sorte!

  Ao sair da cabana com seus amigos o pigmeu os aguardava. Estava parado com a lança apoiada no chão, como uma sentinela. Ao ver o menino sorriu e arcou a cabeça em saudação. Cabelos de Ouro respondeu da mesma maneira, mas Teovaldo reclamou:
  - Agora faz gentileza, quase nos matou. Este baixinho...
  - Quieto, Teovaldo, ele só estava cumprindo ordens. Já passou tudo.

  O pigmeu indicou-lhes a saída e foi caminhando atrás. Ao alcançarem de novo à trilha por onde haviam chegado ele se adiantou, parou e passou a mostrar com a lança qual direção Cabelos de Ouro deveria tomar. Às vezes se arcava indicando com a outra mão. Como não pronunciasse uma única palavra, o menino concluiu que ele seria mudo.

  Prosseguiram sem o pigmeu. Petisco ia um pouco à frente farejando, e assim se embrenhavam cada vez mais na floresta. Após algum tempo, sentindo-se meio desorientado, Cabelos de Ouro resolveu conferir se continuavam na direção certa. Meteu a mão no bolso e tirou a bússola. Abriu-a e girou lentamente, verificando que estava fora do rumo, caminhando quase a leste. Reorientou-se e reiniciou os passos em direção ao sul.
  - Socorro, ajudem!
  - Que foi isto? - ele parou.
  - É pedido de socorro, mas nada consigo farejar! – agitou-se Petisco.
  - Socorro, ajudem! De novo ouviram. Cabelos de Ouro desta vez conseguiu localizar de onde vinha a voz, entrando pelo mato, seguido de Petisco. Um pouco adiante começou a ouvir ruído de águas.
  - Socorro, ajudem! Voltaram a ouvir o mesmo apelo.
  - É por aqui, vamos! – indicou Petisco já à frente, correndo ligeiro.

  Chegaram numa clareira e viram uma bonita jovem com longo vestido branco, amarrada a uma árvore. Ao ver Cabelos de Ouro pediu-lhe:
  - Por favor, tire-me daqui! - ele se aproximou e começou a desamarrá-la – Pensei que ia morrer – disse como quem vai desmaiar, abraçando-se ao menino e quase caindo.
  - Calma moça! – disse Cabelos de Ouro sem saber direito o que fazer. Petisco ganiu e Teovaldo foi pousar num galho da árvore – Que houve, quem a prendeu aqui?
  - Foram eles! – a moça apontou para adiante e ele se virou para a direção indicada, nada vendo senão a beirada de um abismo.
  - Eles quem?
  - Eles, que moram lá embaixo! – ela continuava a apontar já se afastando do menino. Petisco latiu e falou:
  - Alguma coisa me cheira mal. Não gosto disto, Cabelos de Ouro!
  - Mas quem são? O que fazem? – insistiu o menino.
  - Venha, vou mostrar-lhe – ela se adiantou um passo, segurando-lhe a mão, levando-o para a direção do abismo.

  Teovaldo veio de novo pousar em seu ombro e Petisco caminhava ao lado, ganindo. O ruído de águas tornava-se cada vez mais forte à medida que se aproximavam do abismo.
  - Lá no fundo, veja! – ela apontou para o rio, já a dois passos do abismo. Cabelos de Ouro deu mais um passo e olhou para baixo. Viu um redemoinho que subia e descia, provavelmente formado pelas correntezas.
  - Somente vejo o redemoinho. Cabelos de Ouro forçava as vistas tentando enxergar para onde ela apontara.
  - Olhe bem, concentre-se – disse a jovem largando-lhe a mão e dando um passo atrás, se colocando às suas costas. Cabelos de Ouro procurava concentrar-se conforme ela solicitara, mas de repente ela levou as mãos adiante e o empurrou para baixo. Em seguida deu um pontapé em Petisco, lançando-o também ao abismo.
  - Uaauuu! – gritou o menino enquanto caia junto com o cão e eram devorados pelas rodopiantes águas.
  - Currupáco, currupáco! – gritava desesperado o papagaio se equilibrando no ar e vendo os dois amigos desaparecerem.
                                                       
                                                    CAPÍTULO VI                                       
                                                 ÁGUAS E VENTO

  As águas giravam violentamente formando um buraco que aparecia e desaparecia. O redemoinho movia-se assustadoramente. Teovaldo voando sobre ele recebia respingos e resmungava. De repente, Cabelos de Ouro reapareceu lutando ferozmente, batendo os braços e tentando nadar. Mas o giro do redemoinho era muito forte e o menino logo afundava. Já perdia as forças, cuspia água, mal se aguentava. Petisco vinha atrás dele, lutando com a mesma dificuldade.

  Teovaldo tentava se aproximar, mas a violência das águas não permitia e subia novamente. Súbito, lembrou-se de algo e tentou falar com Cabelos de Ouro. Inútil tentativa, pois o menino preocupado em manter-se sobre as águas nem lhe percebeu a presença. E ambos começaram a afundar, girando e descendo com maior velocidade.
  - Eles vão morrer, preciso tentar e novo!

  Teovaldo então subiu com enorme velocidade e com incrível valentia mergulhou de asas fechadas em direção dos amigos. Conseguiu encontrar a cabeça de Cabelos de Ouro antes que afundasse completamente, agarrando-se aos seus cabelos.
  - O peixe de prata..., o peixe de..., glub! Uma quebrada violenta de água lançou-o fora da cabeça do menino, vindo cair na correnteza a se debater.

  Cabelos de Ouro mal se aguentava, entretanto ouvira o que lhe dissera Teovaldo. Meteu a mão no bolso conseguindo tocar no pequeno peixe de prata que lhe dera Djayan. Porém, afundou e rodopiou para o interior do redemoinho, bebendo mais água, quase desfalecendo. No entanto, teve ainda forças para trazer o peixe aos lábios e soprá-lo.

  Como num passe de mágica surgiram em torno deles alguns peixes-cavalos, enormes e belos. Tinham cores esverdeadas, com largas listas douradas pelos corpos. Imediatamente começaram a girar em sentido contrário ao movimento das águas, com velocidade extraordinária, provocando estabilidade na correnteza e acalmando tudo. Os três heróis ficaram ainda girando lentamente, levados agora pelo fraco deslocamento das águas, movendo-se feito astronautas no espaço.

  Surgiram sereias colocando sobre suas cabeças redomas transparentes, cheias de ar, e eles começaram a respirar. Tossiam e cuspiam expelindo alguma água pelas bocas e narizes.

  Tendo se recuperado, as sereias ajudaram Cabelos de Ouro montar no dorso de um dos peixes-cavalos. Ele chamou Petisco colocando-o diante de si, com as patinhas apoiadas no pescoço de sua montaria. Teovaldo veio apoiar-se na ponta de seu ombro, enfiando as unhas em sua camisa xadrez, se encolhendo todo. A sereia que comandava as demais apontou para o fundo das águas e os peixes-cavalos mergulharam rapidamente. Na velocidade com que viajavam Cabelos de Ouro mal conseguia observar as coisas que iam encontrando. Em certo instante, Teovaldo começou a soltar as garras da camisa do menino, ameaçando largar-se. Cabelos de Ouro então o trouxe com uma das mãos, enquanto a outra segurava uma das corcovas do peixe-cavalo, e o apoiou de encontro ao peito, mantendo-se curvado para frente.

  Após certo tempo os peixes-cavalos pararam. Aquele em que montavam prosseguiu lentamente em linha reta e parou mais adiante, com parte do corpo já fora d’água. As redomas que tinham envolvido as cabeças dos três passageiros de imediato sumiram e eles começaram a respirar normalmente. Vieram então para a direção da margem do rio, antecedida por um banco de areia. Desmontaram. As águas mansas alcançavam a cintura de Cabelos de Ouro e ele agarrou Petisco, trazendo-o para debaixo do mesmo braço cuja mão segurava Teovaldo. Com a mão livre ele alisou a cara do peixe-cavalo dizendo-lhe:
  - Muito grato amigo e a todos vocês que nos salvaram na hora exata.

   O peixe-cavalo somente piscou os grandes olhos e girou se afastando, desaparecendo de vista.
  - Vamos para a margem, estou exausto – falou o menino colocando Teovaldo no ombro, dando alguns passos, mas parando no banco de areia. Largou Petisco e se deitou de costas, fazendo com que Teovaldo pulasse de seu ombro.

  Um forte vento o despertou minutos depois, e a Petisco. Teovaldo não dormira, ficando o tempo todo a vigiar.
  - Dormimos Petisco. Não devemos nos atrasar mais, precisamos ir em frente! Ele se pôs de pé e seus cabelos ainda molhados se levantaram ante a força do vento. Teovaldo já no ar tentava alcançar o ombro do menino, mas o vento dobrou em força e lançou-o longe. Ele rodopiou e caiu mais adiante, na areia da margem do rio.
  - Socorro, socorro! - gritava

  Cabelos de Ouro lançou-se em sua direção, espalhando com os pés os pequenos lagos de água rasa após o banco de areia. Desequilibrava-se ante o vento e quase caia. Petisco, mais a frente, começou a ser arrastado na areia, fechando os olhinhos que não conseguia mantê-los abertos.
  - Segure-se, Teovaldo, estou indo! – gritou o menino, mais preocupado com o papagaio.

  Teovaldo bem que tentava segurar-se, mas não conseguia. Ainda mais que folhas, galhos secos, poeira e areia, vinham voando de todos os lados atrapalhando-lhe os movimentos. Ele procurava abrir as asas a fim de se equilibrar, mas o vento o empurrava para trás e ele de novo era arrastado e rolava.

  Nesta luta veio chocar-se de encontro a um tronco de árvore caído e ali parou. Isto deu tempo para Cabelos de Ouro alcançá-lo, tomando-o nas mãos. Entretanto, o vento tornou-se mais forte e o menino tinha maior dificuldade de se equilibrar. Teve então a ideia de colocar Teovaldo dentro de sua camisa, fazendo isto rapidamente. Seu corpo era sacudido e seus cabelos arremessados. Ele, porém, nada quis com o disco de ouro e ao invés de usá-lo ainda pronunciou:
  - Alah-bha-thar!  E o cinto desapareceu. Petisco neste instante rolou e se embaraçou em seus pés. Ele arcou-se e o tomou nas mãos.
  - Precisamos sair daqui! - gritou.
  - Mas pra onde? - gritou também Petisco.

  As árvores da floresta balançavam furiosamente; algumas estalavam e se quebravam, caindo umas sobre as outras. Grossos e enormes galhos se soltavam, arrastavam-se ou ficavam presos nos troncos e galhos de outras árvores. Milhares de folhas já cobriam parte do banco de areia e margem do rio. O vento uivava e uivava!

  Cabelos de Ouro olhou para o rio e não teve coragem de voltar, ainda mais que suas águas estavam revoltas levantando perigosas e altas ondas. Tudo estava contra eles!  Sem outra escolha resolveu procurar terra firme, caminhando na mesma direção do vento.

  Conseguiu agarrar-se ao tronco de uma árvore com um dos braços, enquanto o outro segurava Petisco. Teovaldo, dentro de sua camisa, o arranhava por que era também arremessado de um lado para outro, e resmungava. Mais forte ainda tornou-se o vento, um verdadeiro tufão. Cabelos de Ouro tropeçou, caindo de joelhos e na queda largou Petisco que saiu rolando. Teovaldo subiu-lhe pela camisa e meteu a cabeça para fora do colarinho. Cabelos de Ouro rolou e virou, ficando estatelado de costas no chão. Teovaldo começou a gritar:
  - Cuidado, cuidado, ela vai cair!

  Gigantesca árvore de grossíssimo tronco balançava e ameaçava tombar bem em cima deles. Cabelos de Ouro a viu, mas estava sem forças para se levantar. Ela se moveu para frente e veio despencando, trazendo junto outras altas árvores que encontrava pelo caminho.
  - Está caindo, socorro! – gritou Teovaldo.

                                                 CAPÍTULO VII
                               PRISIONEIROS DOS ANÕES MACACOS

  E aqui terminamos por hoje! – falou Leal olhando para o relógio, verificando que faltavam cinco minutos para o meio dia.
  - Ah, logo agora! – reclamou Edu.
  - Conte mais, seu Leal! – pediu Jorge.
  - Não, não! – fez sinal negativo com a mão aberta – por hoje chega. Precisamos deixar dona Sebastiana sossegada para tratar da vida dela e cuidar da saúde do Tião.
  - Vige, como o tempo correu. Que história mais perigosa, gente! – ela comentou.
  - Perigosa não, mãe, cheia de perigos – corrigiu Tião.
  - Ué, e não dá no mesmo, menino? Leal riu e se levantou.
  - Amanhã tem mais, seu Leal? – perguntou Japonês.
  - Bem...  – olhou para Sebastiana – depende da dona da casa, se ela deixar tem, senão vamos ter de resolver.
  - Deixa aqui, mãe, amanhã! – implorou Tião.
  - Mas claro, uái! É só combinar a hora pra eu fazer um cafezinho antes. A casa é sua seu Leal, pode abusar.
  - Tio Leal! – Esmeralda o chamou da rua. Ele foi atender. Ela lhe entregou um embrulho – papai mandou, é pra mãe do menino fazer remédios.

  Leal o levou para Sebastiana informando-lhe do que se tratava. Os meninos não saiam do quarto e conversavam acerca desta aventura de Cabelos de Ouro. Leal da porta perguntou:
  - Vamos combinar um novo encontro para amanhã às três da tarde?
  - Pode ser de manhã, seu Leal? Estou morto de curiosidade pra saber o que vai acontecer – pediu Edu.
  - É morrendo de curiosidade! – corrigiu-o Antônio Carlos, fazendo beiço.
  - Os chineses já diziam que o melhor da festa é a sua espera. Além do mais amanhã é domingo. Três da tarde é um horário ideal, está bem assim?
  - Ta!
  - Ta bem! Leal então se despediu e se foi com Esmeralda.

  Os meninos comentaram com seus familiares da reunião acontecida na casa do Tião e da nova marcada para domingo. Houve surpresa de parte dos adultos que Leal não os tivesse chamado ao Teatro Jornada do Amanhã, como noutras oportunidades. Os meninos explicaram-lhes porque Leal mudara de local, pois Tião não tinha condições de ir ao Teatro. Seu Vincenzo não aceitou as explicações e reclamava:
  - Mesmo assim. Ele devia ter dado outro jeito!

  Leal casualmente pela manhã do domingo, ao voltar da banca de jornal, tomou conhecimento da decepção dos adultos através dos meninos que se encaminhavam a um terreno baldio para jogar bola.
  - Digam-lhes para não ficarem assim. Próximo final de semana nos reuniremos todos no Teatro Jornada do Amanhã para nova história.

  Esta promessa abrandou um pouco seu Vincenzo, que à mesa, diante da travessa de macarronada, ainda assim reclamava:
  - Que pena não poder ser hoje. Adoro ouvir as histórias daquele moleque!
  - Não faz mal, vô. Depois ele conta outra! – Dino tentava consolá-lo.

  Chegava finalmente a hora. Os meninos lá estavam desde mais cedo. Uma novidade: Sebastiana arrumara a sala, espalhara cadeiras e colocara o banco ao canto. Deixara o coador preparado com pó de café e já fervia água na chaleira. Eram três e dez quando Leal apontou no portão. Viera acompanhado de Esmeralda e isto alegrou Sebastiana.
  - Que bom que a menina veio. Entrem, por favor, e não reparem - disse indicando a porta que dava acesso à sala. Ao entrar, Leal cumprimentou os meninos:
  - Boa tarde pessoal!
  - Boa tarde! - responderam.
  - Boa tarde – cumprimentou-os também Esmeralda, ao que eles responderam se entreolhando.
  - Vejo que o Tião está melhor, até levantou da cama!
  - É verdade seu Leal – falou Sebastiana – graças aos remédios do doutor João. Graças a Deus. Eu preparei tudinho como ele ensinou. Está dando certo, o Tião até comeu hoje e não sentiu mais nada.
  - Ótimo, ótimo! – falou Leal satisfeito. Sebastiana apontou para as cadeiras.
  - Vão se sentando, por favor, eu vou trazer um cafezinho pro senhor e pra menina. Num instantinho.

  Leal ficou conversando com os meninos até que Sebastiana trouxesse os cafezinhos e os servisse.
  - Pros meninos eu fiz refresco de maracujá, menos pro Tião que não pode ainda. E saiu novamente para buscar o refresco.

  Terminada a gentileza, e tendo recolhido a louça e os copos ela veio sentar-se ao lado do filho. Leal, tendo Esmeralda à direita, sentava-se bem adiante. Fazia calor e a dona da casa houvera aberto a porta e a janela. O ambiente na sala ficara bastante claro; a luz solar espichava-se pelo assoalho em larga faixa, começando a tocar os pés de Esmeralda. Leal então recomeçou a história:

  - A gigantesca árvore despencava sobre Cabelos de Ouro. Descia arrancando cipós, galhos e tudo o que encontrava. Não havia como escapar. Deitado de costas no chão, o vento o empurrava fortemente, mas assim mesmo, sem conseguir levantar-se Cabelos de Ouro lançara mão de um dos grãos que lhe dera o velho da cabana, trazendo-o junto à boca.  Com imensa dificuldade o soprou.
  - É o fim! É o fim! – gritava Teovaldo no peito de Cabelos de Ouro, vendo a árvore a dois metros deles.

  Imediatamente, após o sopro, aconteceu uma explosão de luz e viram com espanto um gigante azulado sair de dentro da claridade. Ele abriu os enormes braços, agarrou a imensa e grossíssima árvore que caia e a sustentou no ombro. Tendo-a firme, fez sinal para Cabelos de Ouro com o outro braço a fim de que se retirasse imediatamente. Cabelos de Ouro virou-se e começou a se arrastar. O vento uivava; os pequenos galhos, as folhas soltas e a terra doiam-lhe ao chocar-se contra seu corpo. Mas assim mesmo ele se arrastou, afastando-se dali.

  Teovaldo se debatia dentro da camisa do menino e o arranhava. Ele procurou por Petisco, tentando enxergá-lo, mas não conseguiu. Outra árvore estalou e despencou ao seu lado quase o atingindo. Onde estaria Petisco?

  Súbito ouviu um grande estrondo e sentiu a terra tremer. Virou-se para trás, ainda no chão, se apoiando sobre as mãos e de joelhos, mal conseguindo perceber que a gigantesca árvore finalmente despencava no exato lugar onde há pouco estivera. Não agüentando a força do vento ele protegeu Teovaldo, caindo novamente e batendo o ombro no chão, assim ficando.

  O gigante se aproximou dele e criou ao seu redor um muro de proteção. O muro não deixava o vento passar e ele conseguiu levantar-se.
  - Petisco, onde está você? Sua voz era abafada pelos uivos do vento, pelos ruídos de folhas e arrastar de galhos que rolavam ou voavam. Petisco não respondia. Angustiado, ele saiu correndo e se enfiou pelos galhos e folhas no chão, procurando desesperadamente ao amigo.
  - Petisco! Petisco!

  Nada. Não via nem ouvia nenhum sinal do cãozinho e começou a sentir uma grande tristeza. De repente, um jato de luz azul foi lançado do muro, se enfiando lá na frente, debaixo de um galho pesado de uma árvore caída. A luz abriu-se sobre um monte de folhas, formando um pequeno tubo. Cabelos de Ouro correu para lá e passou a remexer na pilha de folhas. Alegrou-se quando finalmente viu a pata do amigo.
  - Petisco, você está bem? – gritou puxando-o.
  - Estou Cabelos de Ouro – respondeu fechando os olhinhos por causa do vento e da poeira – tive de ficar quieto por que não conseguiria mesmo caminhar. Então as folhas me cobriram e o galho que caiu sobre elas me prendeu. Mas o que é isto? – perguntou se referindo ao muro de luz.
  - O grão de milho trouxe um gigante que nos salvou. Mas vamos sair logo daqui! – falou, retirando o cão daquele emaranhado de galhos e folhas e se levantando. Teovaldo subia-lhe ao pescoço tentando se libertar da camisa. Cabelos de Ouro o colocou no ombro, uma vez que ali o vento os alcançava com menos força.

  Um braço estendeu-se do muro e a mão apontou para adiante. Cabelos de Ouro seguiu naquela direção se afastando do local. No entanto, mesmo com a proteção do muro não lhe era fácil caminhar entre as coisas que o tufão derrubara. Tinha de pular sobre troncos, arrastar-se sob árvores caídas e desviar-se de galhos. De novo a mão apontou para a direção de um caminho dentro da floresta. Ele o tomou e viu mais adiante uma pedreira. Ao chegar mais perto pôde perceber uma pequena entrada de caverna que o obrigou a arcar-se para nela entrar.

  Fim da ventania. Lá dentro tudo cessava. A caverna, entretanto, era escura e ele caminhou devagar com todo o cuidado. Estavam de novo sozinhos.
  - Não enxergo um palmo, currupáco.
  - Nada farejo.

  O menino foi andando meio arcado, pois ao tentar levantar o corpo batera com a cabeça no teto. Ele deu mais alguns passos e finalmente percebeu uma luz lá adiante.
                                                                                                                            
  Ao alcançar a claridade viu que a estreita caverna terminava numa enorme gruta. Uma vez dentro da gruta, Cabelos de Ouro sentou-se e descansou.
  - Cabelos de Ouro isto aqui é um grande salão – disse Petisco no chão, após ter observado em redor. Sua voz ecoava, o que os surpreendia.
  - É, Petisco, parece um santuário, que estranho! Vamos examinar melhor - disse se levantando.

  Entraram para o meio da gruta. Cabelos de Ouro viu que existiam várias aberturas no teto, por onde entrava luz. Não havia mais nada, exceto a parede arredondada construída da própria pedra e o chão liso.
  - Tudo aqui foi muito bem trabalhado – mostrou o menino para Petisco que procurava farejar.
  - Sinto cheiro de complicações - disse Teovaldo.
  - Não sinto nada - disse Petisco.
  - Não vejo saída alguma, como pode?

  Realmente era algo misterioso. Teriam de retornar pela estreita caverna? E a ventania, teria passado? Nestas dúvidas, eles percorreram todo o salão circular, andando rente a parede, mas nada encontravam. Em certo local, porém, Cabelos de Ouro viu uma pedra triangular, como um pequeno assento colado à parede e nela sentou-se. A pedra mexeu-se e ele se levantou rapidamente temendo cair.
  - Está solta, quase caio. Vou colocá-la no lugar. Ao fazer força para recolocá-la na sua posição inicial a pedra começou a deslizar para dentro da parede. Para seu espanto um pedaço da parede começou também a deslizar.
  - Uáu! A parede também se move! – falou Petisco igualmente surpreso.
  - Exatamente. Aqui existe uma porta secreta. A pedra onde sentei é uma alavanca!

  Quando aquela parte da parede já havia inteiramente deslizado para dentro, ligou-se a uma ponte. O menino e o cão caminharam pela abertura que se formou, pararam, e viram o que ali havia.
  - Vejo árvores e um gramado. Parece uma nova floresta – observou Cabelos de Ouro - venha Petisco, vamos ver que lugar é este – ele estendeu as mãos para o cão e o segurou.

  Cabelos de Ouro então saiu andando lentamente, alcançando a ponte. Ao dar os primeiros passos verificou que a ponte se deitava sobre um rio, cujas águas corriam alguns metros abaixo. Atravessou sem problemas. Chegando à outra margem pisou em verde relva e prosseguiu entrando por uma larga trilha, ladeada de árvores e mais grama. Pouco adiante encontrou uma névoa azul.
  - Que fumaça esquisita! – reclamou Teovaldo.
  - Não é fumaça é névoa – explicou o menino.
  - Pra mim dá no mesmo, pois não posso enxergar – insistiu o papagaio.
  - Petisco, fareja algo?
  - Nada até agora, Cabelos de Ouro.

  O menino foi penetrando naquela forte névoa sem nada conseguir enxergar. Caminhava com todo o cuidado. De repente, uma ave bateu as grandes asas próximo deles, soltando estridente guincho. Levaram tamanho susto que seus corações dispararam. Mas não se intimidaram, e passado o susto, Cabelos de Ouro prosseguiu. Não demorou, ouviram vozes e risos. As vozes aumentaram e os risos também. Eles não entendiam o que as vozes diziam, mas pareciam estar cada vez mais próximos daquilo. Os risos se transformaram em gargalhadas e as vozes viraram em vaia, fazendo: uuuuu!
  - Quem são? – perguntou nervosamente Teovaldo.
  - Não sei, nada vejo!

  Aquilo continuou aumentando e os perturbava. De tal forma aumentaram as vaias que Cabelos de Ouro se encolheu, ajeitando Petisco entre os braços, procurando tapar os ouvidos com os dedos. Teovaldo enfiava a cabeça sob uma asa e Petisco colocava as patinhas sobre as orelhas.

  Assim mesmo, meio tonto, Cabelos de Ouro continuou a caminhar, mas tropeçou e quase caiu. Equilibrou-se de novo e tentou novamente caminhar. Os risos e as vaias continuavam e o menino mais tonto caiu ao chão, soltando Petisco.
  - Ui, minha cabeça parece que vai estourar, não aguento mais...

  - UUUUUUUUUUUUUUUUU!!!! Aquilo não parava. Petisco e Teovaldo rolavam pelo chão tapando os ouvidos.
  - Calem-se! Parem com isso! – gritou desesperado Cabelos de Ouro. Eles riram mais fortes e gritaram mais alto. Cabelos de Ouro sentiu que tudo girava; tentou manter-se de joelhos, mas caiu novamente e desmaiou.

  Dezenas de anões com caras velhas e enrugadas, semelhantes às caras de chipanzés, rindo e dando vivas, os cercaram. Vestiam-se como nos tempos dos reis e foram logo agarrando Cabelos de Ouro e o virando de costas para o chão. Teovaldo e Petisco levantaram-se. Petisco começou a latir ferozmente, tentando morder os anões. Teovaldo voava sobre suas cabeças, atacando-os com as garras.

  Mas eles eram muitos; se movimentavam com facilidade pela névoa e rapidamente cercaram Petisco, chutando-o e batendo nele. Uma rede foi lançada sobre o cão e outra em Teovaldo. Petisco foi envolvido, mas Teovaldo se desviou e passou a voar ora em círculos ora subindo e descendo com rapidez. Eles lançaram outra rede que passou de raspão.
  - Fuja, Teovaldo, não deixe que lhe peguem...,ui!  Um pontapé fez Petisco se calar e os anões soltaram pragas e grunhidos. Teovaldo desapareceu deixando-os enraivecidos, esmurrando o ar.

  Os anões examinaram os bolsos de Cabelos de Ouro, retirando a bússola. O peixe de prata ele havia perdido no redemoinho. Depois o puxaram dali segurando-o pela camisa, calças, braços e pés, quase lhe rasgando a roupa. Levaram a ambos para fora dali a um povoado na floresta, onde a névoa era mais suave. As pequenas casas eram feitas de troncos e partes de árvores, distribuídas em vários círculos. Ainda arrastando-os, os anões os deixaram no meio de uma área livre. Eles gritavam e festejavam. Os outros moradores que vieram recebê-los, também pulavam, gritando feito macacos.

  Cabelos de Ouro foi amarrado em pé num poste de árvore e Petisco num cepo ao lado, preso a uma coleira. Os feios e disformes anões então se chegaram formando pequena multidão. Um deles, parecendo o chefe, com uma comprida vara começou a cutucar o peito e a barriga de Cabelos de Ouro. Ao ver que o menino não se mexia, fez sinal a outro e grunhiu. Aquele saiu rapidamente furando a multidão logo voltando com um balde cheio d’água. Enquanto isso, o outro anão ficou a atiçar Petisco, batendo-lhe com a vara, provocando risos em todos.
  - Grrr! Seu anão covarde! – Petisco latia e rosnava e isto os fazia rir mais.

  O anão do balde atirou a água na cabeça de Cabelos de Ouro. Ele despertou assustado não entendendo o que acontecia. Mas ao ver Petisco também amarrado entendeu tudo.
  - Teovaldo, onde está?
  - Fugiu! – respondeu simplesmente o cão. Cabelos de Ouro gritou-lhes:
  - Ouçam, não sabemos quem são vocês, mas somos amigos. Soltem-nos, só queremos seguir em frente!

  Uma onda de risos, vaias e grunhidos novamente aconteceu. O anão da vara ainda rindo, avançou dois passos e cutucou a barriga do menino.
       - Uiii! Fez Cabelos de Ouro e ele riu e pulou. Depois o cutucou no peito e pernas. Vendo que o prisioneiro se contorcia, ele pulava mais e se divertia. De repente parou de rir e cutucá-lo, chamando dois outros anões. Um deles ficou de quatro no chão enquanto o outro virava de costas. Então ele subiu nas costas de um e pulou para os ombros do outro. O anão debaixo andou até próximo de Cabelos de Ouro. O que lhe subira aos ombros se espichou, apoiando-se na vara, e segurou uma mecha de cabelos do prisioneiro. Examinou a mecha com curiosidade, depois a camisa. Mandou que o descesse ao chão e passou a examinar também as calças do menino. Fez sinal para o outro, grunhindo e apontando para Cabelos de Ouro. Um anão subiu também aos ombros de outro e começou a desabotoar a camisa do menino.

  Nisto, outro deles se aproximou correndo e jogou ao chão os dois que tentavam desabotoar a camisa do prisioneiro. Bateu no peito, grunhiu e apontou para Cabelos de Ouro. O anão da vara se aproximou dele e o empurrou. Ele reagiu e se prepararam para lutar.
  - Estão brigando por causa de suas roupas – falou Petisco.
  - Sim, que coisa esquisita!

  Engalfinharam-se e rolaram pelo chão. A multidão pulava e gritava, dividindo-se na torcida. Nesta confusão, Teovaldo apareceu e pousou no ombro de Cabelos de Ouro sem que ninguém percebesse. Cabelos de Ouro cochichou-lhe virando ligeiramente o rosto:
  - Entre no meu bolso e retire um grão mágico!  Ele sacudiu a perna direita mostrando qual era o bolso.

  Teovaldo assim fez e desapareceu dentro do seu bolso. Mas de repente, tocados por uma desconfiança, eles pararam de lutar e olharam para o prisioneiro.
  - Quieto agora, Teovaldo, não se mexa! – Teovaldo obedeceu e parou seus movimentos.

  O anão da vara, parecendo ser maior mandante que o outro, fez sinal com a mão mandando que abrissem espaço. A multidão obedeceu em silêncio. Ele grunhiu e fez sinal para que trouxessem alguma coisa. Logo surgiram vários anões puxando cordas. O ruído de rodas fez Cabelos de Ouro entender que traziam um veículo.

  Um rugido feroz fez todos tremerem e se afastarem. Cabelos de Ouro assustou-se pensando no pior. E realmente o pior estava para vir, pois os anões puxavam uma grande jaula feita de paus tendo dentro dela um nervoso tigre.
  - Rápido, Teovaldo, continue, acho que nos querem dar de comer para esta fera. Teovaldo continuou a mexer-se no bolso de Cabelos de Ouro em busca de um grão.

  Os anões abandonaram a jaula a três metros dos prisioneiros e dois deles apoiaram nela uma escada, subindo no teto. O animal vendo aquilo saltava ferozmente dentro da jaula tentando agarrá-los. Os dois anões começaram então a levantar a porta da jaula. Na medida em que faziam isto a multidão ia se afastando. Em redor, vários outros anões se preparavam com redes nas mãos, prontos para qualquer emergência. A porta subia diante de Cabelos de Ouro. Não havia dúvida, a fera se lançaria sobre ele e o comeria.
  - Vamos, Teovaldo, rápido! – dizia nervoso o menino.

  A porta da jaula abriu-se completamente e o tigre veio se encaminhando para fora. Ao ver Cabelos de Ouro ali, indefeso, rugiu e apoiou o corpo nas patas traseiras, calculando o pulo.
  - Não vai dar tempo, Cabelos de Ouro, o tigre vai pular! – gritou Petisco.

                                                    CAPÍTULO VIII
                                              A GEMA DE CRISTAL

  O tigre trouxe o corpo mais para trás e preparou o bote. Teovaldo conseguira encontrar um grão, colocando a cabeça para fora do bolso. Cabelos de Ouro gritou:
  - Para cima, Teovaldo!  Ao ver o tigre preparando o bote, Teovaldo voou sobre a cabeça de Cabelos de Ouro e soltou o grão de milho mágico. A fera pulou, mas o menino soprou e buuum!  Uma luz explodiu.

  Um tigre maior surgiu no espaço e lançou-se sobre o outro feito um raio, agarrando-o no ar. Caíram ambos diante de todos, iniciando terrível luta. Como a luz ainda brilhasse intensamente, os anões se afastaram apavorados, correndo e se jogando ao chão, chorando feito crianças.

  O tigre da luz arremessou seu adversário longe, fazendo-o chocar-se de encontro à jaula. Ao sentir que não podia vencer a luta, o tigre dos anões disparou para o interior da floresta, fugindo covardemente. O tigre da luz aproximou-se de Cabelos de Ouro e roeu-lhe a corda com tal facilidade que parecia de açúcar. O menino, livre, correu para libertar Petisco da coleira. Teovaldo veio pousar-lhe no ombro. O tigre agachou-se e Cabelos de Ouro entendeu que deveria montá-lo. E assim fez com Petisco já em seus braços.

  O tigre com os passageiros às costas levantou-se e rugiu, girando em todas as direções. E foi tão alto e vigoroso o rugido que os anões saíram correndo e rolando. Gritavam desesperadamente e abandonaram o local.

  O tigre carregou-os a salvo pelo interior da floresta, a largos pulos, porém com suavidade. Num local aberto e agradável parou e deixou Cabelos de Ouro escorregar de suas costas, voltando por onde viera.
  - Desta escapamos por pouco! – aliviava-se Cabelos de Ouro, virando-se para examinar o lugar.
  - Aqueles anões macaquinhos. Não é à toa que não gosto de macacos! – desabafou Teovaldo.

  A camisa de Cabelos de Ouro ainda estava fora das calças e ele começou a arrumar-se. Ao meter a mão nos bolsos, surpreendeu-se:
  - A bússola não está comigo!
  - Os anões roubaram, currupáco.
  - Oh! – exclamou decepcionado.
  - Para onde vamos agora, Cabelos de Ouro? – perguntou Petisco.
  - Não cheguei ainda a nenhuma conclusão sobre o nosso trabalho aqui. Até agora só tivemos obstáculos e passamos por perigos. Por isso, acho que não faz nenhuma diferença se caminharmos para qualquer direção. Vamos em frente!

  Ele reiniciou os passos por aquele trecho da floresta. Petisco veio caminhar ao seu lado. Em determinado ponto viram no horizonte uma forte claridade na cor rosa.
  - Que será aquilo? – perguntou-se Cabelos de Ouro.
  - Nem desconfio – falou Petisco.
  - Currupáco – fez somente Teovaldo.
  - Não parece estar muito distante, vamos verificar.

  Enquanto andava Cabelos de Ouro pensou em usar o disco de ouro para chegar mais rápido, porém logo desistiu. Se viajasse pelo espaço poderia deixar de ver alguma outra pista ou descobrir algo importante. Na medida em que avançavam a claridade se tornava maior esparramando em tudo. Ele sentiu que se aproximavam rápido demais. Mas quando pensou estar chegando a claridade diminuiu e todas as coisas em redor voltaram a ter suas cores naturais. Por que aquilo?
  - Que coisa estranha, Cabelos de Ouro, a luz está quase sumindo. Até parece que corre pra trás! – observou Petisco.
  - Creio ter havido um movimento da claridade em nossa direção. Por isto pareceu que andávamos rápido demais. Mas por que agora diminuiu?

  Prosseguiram seguindo a claridade que agora parecia estar escapando. O caminho era fácil de percorrer; havia muito espaço entre as árvores e arbustos em geral, porém em certo instante Cabelos de Ouro parou, estranhando um fato.
  - Não vi qualquer ave ou animal desde que o tigre nos deixou. O silêncio aqui é completo.
  - É mesmo, só nós! – concordou Teovaldo.
  - Não farejo nada – completou Petisco.

  A claridade continuava a se afastar rapidamente. O menino resolveu apressar-se: ora andava a largos passos ora corria. Teovaldo ia se segurando em seu ombro como podia, abrindo e fechando as asas. Petisco às vezes pulava adiante, às vezes corria a seu lado.
  - A claridade agora está novamente se tornando mais forte, mas não avança! – apontou Cabelos de Ouro, parando a fim de tomar fôlego, logo reiniciando os passos.

  A poucos metros dali a vegetação terminava, iniciando-se largo patamar de pedra. Eles se lançaram sobre o patamar que adiante se fechava como uma ponta de lança. Ficaram sem escolha ante um estreito desfiladeiro onde somente uma pessoa a cada vez poderia caminhar. Cabelos de Ouro tomou Petisco nos braços e penetrou por aquela passagem. A claridade havia quase desaparecido, só uma fraca luz iluminava o caminho.

  Mais adiante Cabelos de Ouro se viu ante uma passagem mais larga, pois as altíssimas paredes se afastavam permitindo que andasse com desembaraço. Mal tinha dado poucos passos levou grande susto. Detrás de duas rochas, surgiram duas gigantescas serpentes najas, uma de cada lado da passagem. Levantaram-se sobre seus corpos, movendo as cabeças ameaçadoramente, mostrando suas finas línguas de duas pontas.
  - Currupáco, currupáco! – gritou nervosamente Teovaldo.
  - Cuidado, Cabelos de Ouro, elas vão atacar! – alertou Petisco.

  Quando isto ia acontecer a claridade espalhou-se com incrível rapidez alcançando-os e os obrigando a proteger os olhos. Entretanto, tão rápido quanto surgira, a claridade se recolheu, voltando novamente a ser fraca. Quando os três de novo conseguiram enxergar não viram mais as gigantescas e ameaçadoras serpentes najas.
  - Sumiram! – exclamou o menino
  - Cuidado, pode ser uma cilada, currupáco!
  - Irei com cuidado. Petisco fique atento, se perceber alguma coisa estranha avise.

  Mais adiante, depois de pequena curva das paredes, viram que a luz rosada tinha novamente ficado mais forte.      
- É dali que ela sai – Cabelos de Ouro apontou para a direção. Mas não pode prosseguir além de três passos por que a luz se tornara novamente intensa, jorrando para todos os lados.
  - Uiii! Não consigo enxergar, meus olhos doem!  Ele tentava proteger-se colocando o braço adiante. Petisco e Teovaldo também protegeram seus olhos. A luz era muito forte e Cabelos de Ouro ficou de costas. A luz cessou e ele pode novamente se virar, caminhando e circundando a pequena curva.
  - Um... monólito... de cristal! – espantou-se, parando e vendo diante de si aquela forma.

  Era como uma caixa retangular, branca, transparente e em pé; um cristal puro de incrível beleza. Era grande, pois se o abraçasse o menino não conseguiria tocar as mãos. A luz, embora fraca, ainda brilhava.
  - Tem uma pedra lá dentro, Cabelos de Ouro, é ela que brilha! – falou Petisco e o menino o soltou ao chão.
  - É outro cristal. Mas com este tamanho e sendo branco como é que pode lançar tanta luz rosa? E para que servirá?

  Sobre o monólito havia algo e Cabelos de Ouro se aproximou para ver. Era um papiro enrolado. Ele o tomou e o abriu.
  - Não entendo nada. Está escrito com figuras e símbolos. Como descobrir o que diz?

  Neste instante o cristal do interior do monólito brilhou mais e lançou um raio rosa sobre a testa de Cabelos de Ouro. Ele sentiu o local esquentar, descobrindo que podia agora ler o que estava escrito no papiro. Dizia o seguinte:

  Aquele que aqui chegar não deve mais voltar sem o que busca. Terá de lutar mais para obter a chave que o conduzirá ao objetivo. Até agora venceu os desafios da água, do ar e da terra. Eis que chegará o desafio do fogo. Vencendo-o terá a chave do segredo da gema de cristal, guardada no monólito. É a única capaz de ajudá-lo definitivamente naquilo que deseja. Boa sorte.” E o raio de luz apagou-se.

  - Conseguiu ler, Cabelos de Ouro?
  - Sim, Petisco. Tudo o que passamos até o momento foram desafios, provas de coragem. Agora é a vez do fogo, se o vencermos teremos a chave que abrirá este monólito e nos dará esta gema. Ela é a única que pode nos ajudar na busca do velocino!
  - Gema? Pensei que só ovo tinha! – falou Teovaldo.
  - Que dificuldade! – reclamou Petisco.
  - É verdade, porém prometemos ao senhor Armou que tentaríamos. Estamos inteiros, nada em realidade nos aconteceu de mal – Cabelos de Ouro olhou para o próprio corpo como a mostrar-lhes.
  - Mas já não chega o fogo dos twitchz? – Teovaldo estava inconformado, lembrando-se da outra aventura.
  - Pelo jeito não. Mas creio que teremos agora um desafio diferente. Vamos em frente?
  - Para onde? Currupáco!

  Cabelos de Ouro olhou em redor e descobriu algo: duas grandes pedras lado a lado. Eram bojudas em cima e finas embaixo. Depois delas somente vinha a pedreira. Ele se aproximou e colocou a mão numa delas procurando girá-la. A pedra começou a se movimentar. Um ruído mostrou que uma brecha se abrira na pedreira. Ele continuou a girá-la e a brecha foi aumentando.
  - Uma passagem secreta! – admirou-se Petisco.

  Quando a passagem estava aberta Cabelos de Ouro tomou Petisco num dos braços e entrou. Viu que se tratava de um túnel completamente escuro. Ele foi tateando a parede com imensa dificuldade, mas teve uma surpresa agradável. A luz rosa veio atrás, passou sob seus pés e estendeu-se um metro adiante. Desta forma ele pôde andar com desembaraço tendo a luz a guiá-lo.

  Ao final do túnel parou. Tinha ali uma área circular feito um patamar. Havia suficiente claridade e a luz rosa voltou pelo túnel.
  - É como se fosse um poço; lá em cima é aberto – apontou o menino, logo continuando – Acho que já sei, é uma cratera de vulcão.
  - Vulcão, Cabelos de Ouro? E se começar a sair fogo? – Petisco ficou preocupado.
  - Tomara que não, ou estaremos fritos.
  - Super fritos, currupáco! 

  Cabelos de Ouro soltou Petisco ao chão e começaram a andar a procura de qualquer pista. Era tudo muito claro e podiam enxergar o céu. De repente ouviram um terrível guincho!
  - Cuidado, Cabelos de Ouro! – gritou Petisco e ele pulou para o lado, sentindo algo forte bater-lhe no ombro, jogando-o ao chão. Ouviram de novo o guincho e a enorme e negra ave, parecendo uma águia gigante, subiu pela cratera batendo suas largas e compridas asas.
  - Ui! O menino gemeu no chão, virando-se para ver melhor a ave. Ela girou em círculo acima da cratera e voltou rapidamente.
  - Ela vai atacar de novo, corra Petisco!

                                                    CAPÍTULO IX                      
                                              O ROUBO DE GOULAN

  O menino e o cão correram enquanto a negra ave se aproximava rapidamente. Záz! Atacou Cabelos de Ouro, mas ele deu um pulo para frente e se jogou ao chão. Ela passou raspando e subiu novamente, preparando-se para novo ataque. Eles correram para a direção da parede procurando algum abrigo e viram grandes pedras nas proximidades. Teovaldo voava à frente, Petisco vinha em seguida e Cabelos de Ouro logo atrás. A enorme ave lançou-se sobre o menino, mas ele já havia saltado e se enfiado com seus companheiros entre duas pedras.
  - Ufa, escapamos por pouco! – disse ficando de cócoras procurando observar a ave. Ela não os atacou novamente, porém ficou a voar em círculos acima da cratera e a soltar estridentes guinchos. Logo outras aves iguais se juntaram a ela soltando os mesmos guinchos.
  - Se elas todas nos atacarem estaremos perdidos, currupáco!

  E realmente vieram em bando, soltando terríveis guinchos e escurecendo o céu. Entretanto Cabelos de Ouro lançou um grão de milho para o alto e o soprou. Uma luz explodiu e uma ave incrivelmente grande surgiu, voando para a boca da cratera. Lá no alto soltou um guincho tão estridente que fez as negras aves ficarem tontas, perdendo a orientação, batendo-se entre si. Então fugiram.
  - Viva! – comemorou Petisco.
  - Currupáco!

  Cabelos de Ouro sorria e se levantava dentre as pedras. A águia de luz olhou-os lá de cima como a certificar-se de que estava tudo bem e desapareceu suavemente.
  - Escapamos de mais outra – falou o menino esfregando a testa.
  - Graças ao grão mágico! – lembrou Teovaldo.
  - É verdade, resta-nos ainda quatro. Tomara que não acabem antes de encerrarmos nossa missão.
  - Ali, Cabelos de Ouro, algo se moveu! – mostrou Petisco com o focinho apontado para a parede detrás.
  - Vamos ver do que se trata. Saíram lentamente, procurando pelo local indicado por Petisco.
  - Foi aqui. Mas nada percebo agora.
  - Mais à frente há uma entrada na rocha! – disse ainda o cãozinho.

  Encaminharam-se para lá e Cabelos de Ouro tomou novamente Petisco nos braços, penetrando no lugar. Era outro túnel como tantos que conheceram. Estava escuro e o menino teve de tatear a parede.
  - Adiante há alguma coisa, sinto cheiro de queimado – alertou Petisco. Após alguns tropeções notaram uma luz fraca. Ao chegarem mais perto viram tratar-se de uma tocha presa à parede. Cabelos de Ouro retirou-a do lugar, levando-a.
  - Sempre túneis, sempre passagens, sempre desfiladeiros! – reclamava Teovaldo.

  O túnel veio terminar numa escadaria para cima, estreita, na qual caberia somente uma pessoa de cada vez. Cabelos de Ouro foi logo subindo. Ao término dos degraus viu-se diante de três entradas de túneis.
  - Temos de escolher um deles. Alguém tem alguma sugestão?
  - Qualquer um serve a gente vai se lascar mesmo! – Teovaldo estava irritado.
  - Nada farejo. Para mim são todos iguais – Petisco virava o focinho de um para outro túnel.
  - Então escolho o do meio!

  O menino entrou com seus companheiros e nada aconteceu de anormal, apesar da escuridão. Ao final, chegaram a uma comprida e estreita ponte de troncos de árvores. Os corrimões eram longos cipós. Abaixo tudo eram sombras.
  - Que ponte perigosa, será que agüenta? – perguntava Teovaldo, preocupado.
  - É realmente muito velha. Não temos escolha. O jeito é mesmo atravessá-la.

       Cabelos de Ouro pôs Petisco no chão a fim de se segurar num cipó, caminhando à frente. Com o peso a ponte balançava, e mal conseguiam enxergar. Ao avançarem alguns metros, o menino e o cão pararam assustados vendo arcos de fogo que cruzavam ao alto, sobre a ponte. Seguidas e várias línguas de fogo apareceram.
  - Uau! São labaredas, como vamos prosseguir? – Petisco se assustou

  Começaram a sentir muito calor. Cabelos de Ouro não desejava recuar. Notou então que os arcos de fogo não se alteravam, somente o calor aumentava.
  - Temos de avançar!
  - Não dá, currupáco!
  - Tentemos – disse o menino reiniciando os passos. Ele procurava se apressar; a ponte balançava muito, e temeram que não aguentasse. Encolhidos passaram sob um arco e depois sob outro. Dali, já podiam perceber o final da ponte. Se ela aguentasse chegariam.
  - Conseguimos! – aliviou-se Petisco ao final de tudo. Mas nem puderam pensar em mais nada. Diante deles formou-se uma cortina de fogo a impedir-lhes os passos. O calor tornou-se mais forte, e a cortina se movimentava. Abriu um espaço bem no meio a mostrar-lhe o que existia além dela, caso conseguissem ultrapassá-la.
  - Vejam, há milhares de seres de fogo lá dentro, um verdadeiro exército!
  - Impossível entrar, ainda mais que não temos daqueles véus que Djayan nos deu para enfrentar os twichz! – relembrou o cão
  - Tem razão, Teovaldo, é impossível continuar sem ajuda!

  O fogo começou a lançar-se em sua direção. Eles recuaram e o fogo também. Quando se adiantaram novamente o fogo outra vez lançou-se sobre eles.
  - Não dá, Cabelos de Ouro, não dá! – reclamou Petisco.
  - Ei, aqui! – alguém gritou a um canto. Cabelos de Ouro virou-se vendo um pequeno ser que lhe acenava de junto a pedreira – venham rápido!
  - Uau! Outro anão, e desta vez vermelho! – surpreendeu-se Teovaldo.
  - Venha, Petisco, pode ser a nossa chance – Cabelos de Ouro tomou o cãozinho nos braços e se lançou para lá. Chegando próximo, viram que o pequeno ser era realmente vermelho e careca, embora parecesse humano. Até os seus olhos eram vermelhos!
  - Por aqui, depressa, antes que os soldados os ataquem!
  - Soldados, aqueles seres de fogo lá dentro?
  - Exatamente, os guardiões de Goulan. Eles não perdoam invasores.

  Entraram por um caminho entre dois grandes blocos de pedra. Havia muita claridade por ali e Cabelos de Ouro largou a tocha a um canto. Podiam enxergar a grande distância.
  - Quem é você, e por que nos ajuda? – Cabelos de Ouro perguntou ao estranho.
  - Sou Nathar da cidade de Zuin. Sou sacerdote do templo da chama sagrada que nos foi roubada por Goulan.
  - Credo, currupáco!
  - Chama sagrada, como?
  - Ela é a nossa vida. A ela devemos tudo o que possuímos. A chama sagrada jamais poderia ser tirada do templo. E Goulan, contrariando as escrituras, a roubou. Desde então a cidade esfriou e seus habitantes vivem tristes e sem vontade.
  - E como ele fez isso? - perguntou novamente Cabelos de Ouro bastante curioso. Eles não paravam de andar e o calor que iam sentindo começava a incomodar os três viajantes. Nathar respondeu:
  - Ninguém sabe como aconteceu, nem mesmo Isdam o grande sacerdote. A chama ao ser roubada deixou Isdam sem poderes e todos nós sofremos por isto.
  - Mas se vocês sabem que foi Goulan quem roubou a chama, por que não vão buscá-la?
  - O exército de Goulan é forte e nos derrotaria. Além disso, com o roubo da chama ficamos mais fracos. A chama é nossa vida e sem ela nada podemos. Nossa única esperança agora é você.
  - Eu? - assustou-se Cabelos de Ouro, parando.
  - Sim, Isdam nos disse que alguém estrangeiro e valente chegaria para nos ajudar. Finalmente você chegou.
  - Ai, ai! - lamentou Teovaldo.
  - Mas o que eu poderia fazer?
  - Recuperar a chama e recolocá-la no altar do templo.

  Continuaram. Cabelos de Ouro ia agora calado. Chegando ao final do caminho viram-se sob uma área coberta por grande e lisa pedra escavada dentro de um rochedo. Atravessaram o lugar saindo no lado oposto, nas ruas de uma cidade.
  - Quanta gente, Cabelos de Ouro, todos pequenos! – admirou-se Petisco.
  - São realmente pequenos e vermelhos, e não há mesmo alegria por aqui.

  A cidade era toda de pedra e as ruas de paralelepípedos. Havia carros que eram puxados levando passageiros. Diversos outros veículos circulavam, porém sempre puxados pelos seres, não tendo motores. Pelas imediações, tinham barracas com diversos objetos, parecendo haver ali um tipo de comércio. Nathar fez sinal e pequena carruagem puxada por dois daqueles seres parou. Ao reconhecerem Nathar, arcaram-se, fazendo-lhe reverência e um deles abriu a cortina do veículo. Nathar indicou para que Cabelos de Ouro entrasse com seus dois amigos, ordenando:
  - Para o templo!

  Percorreram algumas ruas. Cabelos de Ouro afastava a cortina para observar a cidade. Era interessante. As casas eram pequenas, mas bem feitas, embora fossem de pedra bruta, e não viu qualquer tipo de vegetação pelos arredores.
  - Chegamos! – disse Nathar após certo tempo, logo descendo da carruagem. Cabelos de Ouro desceu com os companheiros, colocando Petisco no chão. Os dois condutores se aproximaram de Nathar, que os tocou nas testas com os dedos indicador e médio unidos, e eles se foram.

  Estavam diante do templo que era imensa construção. Tudo era pedra. A fachada quadrada apoiava um triângulo. Ele empurrou uma das portas e entraram.

  Em torno do ambiente circular havia muitos degraus, como arquibancadas de ginásios esportivos. No centro, uma grande estátua em pedra vermelha representava o tipo comum do habitante de Zuin, muito embora todos vistos até agora fossem pequenos. Segurava entre os braços uma pira, como um prato fundo. A estátua, sobre um largo pedestal cilíndrico, ficava mais alta que a última volta dos degraus em redor.
  - Foi dali que Goulan nos roubou a chama sagrada. Ela nunca antes tinha sido retirada nem se apagado. Foi-nos trazida pelos deuses há muitas gerações – Nathar apontava para a pira entre os braços da estátua.

  Nathar caminhou em redor da estátua e Cabelos de Ouro o seguiu. Pararam diante de estreito portal coberto de uma cortina de pingentes, parecendo cristais. Nathar afastou a cortina que tilintou, entrando no ambiente. Cabelos de Ouro precisou abaixar a cabeça a fim de poder passar. O interior era uma sala que continha poucas coisas: cadeiras pelos cantos, uma mesa no centro, quadros e tochas pelas paredes. Num dos lados havia uma pequena janela aberta.

  Encaminharam-se para o fundo da sala, atravessando outro portal e cortina semelhantes aos anteriores, e viram Isdam. Estava de costas, olhando para o alto com braços levantados. Ali era um cubículo extremamente alto, como o interior de uma estreita pirâmide. As quatro paredes acima pareciam perder-se de vista. Cada uma tinha um diferente tom de vermelho. Lá do alto descia pouca claridade.
  - Aqui é o santuário das orações onde somente Isdam e os sacerdotes como eu podem vir orar – cochichou Nathar.

  Isdam ao ouvir o cochicho interrompeu a oração, voltando-se. Tinha a mesma altura de Nathar, nenhum cabelo e vestia igual saiote que era semelhante a um couro fino, macio e dobrável como tecido. No seu peito achava-se encravado um símbolo grande, representando uma chama em formato triangular, de um vermelho vivo que brilhava sob a luz das tochas nas paredes. Era um velho sacerdote daquele estranho povo de estranha cidade! Ele sorriu para Cabelos de Ouro, baixando a cabeça em reverência e falou:
  - Saúdo ao herói e aos seus amigos! O fogo revelou-me que viria. É a pessoa que nos trará de volta a chama sagrada roubada por Goulan.
  - Como pode saber que sou eu, senhor. Sou um simples menino que aqui cheguei por acaso.
  - Não existe acaso, jovem. Aqui veio porque foi chamado. Os deuses ouviram minhas orações. Chegou a hora!
  - Já estou ficando cheio destas coisas, curupáco! – Cabelos de Ouro sacudiu o ombro para que Teovaldo se calasse. Ele bateu as asas nervosamente.
  - Mas o que fazer, senhor? Onde devo ir? Como é esse Goulan?
  - Goulan é traidor. Já foi sacerdote do templo da chama sagrada. Recebeu a força, mas desobedeceu aos mandamentos. Tornou-se ambicioso; quer possuir sozinho o poder. Por isso roubou-nos a chama sagrada criando um exército para nos dominar.
  - Já ouvi esta história antes – Teovaldo desta vez cochichou.
  - E por que ainda não dominou tudo?
  - Algo o impede. Falta-lhe ainda um elemento que o tornará invencível. Nosso povo está enfraquecendo pela falta do poder da chama sagrada. Desde que nos foi roubada não pudemos mais transmitir as bênçãos. Só você poderá nos salvar. Sabemos que possui poderes superiores ao de Goulan.
  - Eu? Poderes superiores? – ele, surpreso, apontou para o próprio peito.
  - Caramba, estamos de novo enrascados. Já vi isto com os twichz – disse Petisco junto ao menino.

   Isdam calou-se. Cabelos de Ouro coçou o nariz e olhou para Nathar. Este somente o observava.
  - Bem..., já que é assim, posso tentar – disse o menino meio sem graça.
  - Ah! – exclamou o velho sacerdote – os deuses não falharam! Eles mostraram que o herói nos ajudaria. Teremos de volta a chama sagrada!
  - Quem mandou eles nos meterem nisto? - reclamou de novo Teovaldo.
  - Como posso chegar a este Goulan? Que cuidados devo tomar?
  - Ninguém sabe como ele construiu suas defesas. Somente conhecemos a entrada de seu território onde a cortina de fogo impede qualquer um de lá chegar. Todos temem seus soldados que já andaram pela cidade para se mostrar. Nada mais sabemos, herói, nem sequer onde escondeu a chama sagrada.
  - Estas informações ajudam muito pouco. Mas se temos de ir partiremos agora. Não podemos interromper nossa missão. E isto parece fazer parte dela também.

  Isdam levantou a mão direita, uniu os dedos indicador e médio e lançou uma benção na testa de Cabelos de Ouro, que imediatamente saiu. Nathar o acompanhou. Ao chegarem à rua viram um princípio de tumulto. O povo corria e buscava abrigo nas casas ou becos. No outro lado da praça muitos seres ígneos vinham marchando.
  - Os soldados de Goulan! – falou Nathar assustado.

  Eles avançavam e o povo saia correndo. Eram todos iguais em tipo e estatura, mas possuíam o poder de tornarem-se inflamados quando desejassem. E assim eles faziam. Este fogo causava desconforto e mal estar ao povo, visto ser fogo inimigo. O pequeno exército veio marchando em direção do templo.
  - Eles vêm para cá, creio que atrás de vocês! – falou Nathar, ainda assustado.
  - Lá vem confusão! – lamentou Teovaldo e Petisco latiu com raiva.

  De fato, ao verem Cabelos de Ouro começaram a correr em sua direção.
  - Vocês têm que fugir daqui. O fogo não afeta nossos corpos, mas a vocês certamente queimará. Fujam, corram! – apressou-os Nathar.

  Cabelos de Ouro tomou Petisco nos braços e com Teovaldo no ombro, começou a correr para o lado oposto de onde vinham os soldados, mas logo parou. Mais soldados surgiram daquele lado e os três ficaram cercados. Sem ter por onde escapar, Cabelos de Ouro gritou para Nathar:
  - O Sol, de que lado nasce?
  - O quê? - perguntou Nathar sem entender.
  - O Sol, de que lado nasce?
  - Lá! - apontou para o nascente.

  Os soldados já estavam mais próximos e Cabelos de Ouro voltou-se para o nascente.
  - Rah-tha-bha-lá! – falou. O cinto de ouro imediatamente apareceu-lhe à cintura e ele recitou: Senhor do Espaço, me leve pra longe do perigo! E desapareceu do lugar, despertando largo sorriso em Nathar e espanto nos soldados que não sabiam o que fazer.

   Foram ressurgir no alto de uma colina, de onde podiam enxergar um pedaço da cidade de Zuin.
  - Escapamos daqueles palitos de fósforos acesos, currupáco.
  - Que fazemos agora, Cabelos de Ouro? – perguntou Petisco, ainda nos braços do menino.
  - Não sei exatamente. Vamos nos movimentar, as coisas sempre vêm ao nosso encontro.

  Cabelos de Ouro tomou o caminho que contornava aquela colina. O caminho vinha terminar diante de largo túnel e apesar das reclamações de Teovaldo, o menino nele entrou.
  - Este pelo menos é largo e claro – comentou Petisco. Em determinado local ouviram ruídos de muitos passos.
  - Petisco, pressente algo?  Petisco farejou o ar.
  - Ali, Cabelos de Ouro, naquele lado. O menino passou então a andar junto à parede que Petisco indicara. Ele colocou o cãozinho no chão, andando mais alguns metros sem nada ver.
  - Estranho, não vejo nada! Ele então se apoiou numa larga e saliente pedra empurrando-a com enorme esforço.
  - Mexeu-se! - gritou Petisco.
  - Era o que eu suspeitava. Vou empurrá-la mais.

  A pedra começou a rolar, tornando-se mais leve. Cabelos de Ouro continuou a empurrá-la até que surgiu um vão, suficiente para que nele entrasse.
  - Vamos!
  - Está escuro, currupáco!
  - Lá adiante há luz. Petisco venha!

  Petisco pulou para seus braços e ele foi tateando a parede. O ruído que tinham escutado parara, porém ouviam agora algumas vozes. Logo ele chegou ao final do túnel, observando lá embaixo um enorme salão muito bem iluminado por várias tochas nas paredes. No fundo do salão havia um trono onde um daqueles seres de Zuin se sentava. Soldados o rodeavam ou tiravam guarda por todos os cantos. No centro daquele lugar existia largo pilar com uma pira, e dentro da pira brilhava uma fraca luz. Dois outros seres escutavam as palavras ameaçadoras daquele que se sentava ao trono. Cabelos de Ouro os reconheceu imediatamente:
  - Isdam e Nathar! Eles os pegaram! Aquele então deve ser Goulan!
  - E quantos soldados! – admirou-se Petisco. Eles procuraram prestar atenção no que falavam. Goulan estava furioso:
  - Digam logo, onde está o intruso?
  - Não sabemos, Goulan, ele desapareceu sem nos dizer onde ia – respondeu Nathar.
  - Mentira. Vocês mentem e vão se arrepender por isto. Como ele poderia sumir no ar?
  - Ele tem poderes mágicos – falou desta vez Isdam – são superiores aos seus. Ele foi enviado pelos deuses para destruí-lo. Devolva-nos a chama sagrada enquanto é tempo.
  - Nunca! Ela é minha! É de Goulan, o maior sacerdote que reinará sobre Zuin. Ninguém irá impedir-me!
  - Onde está a chama sagrada, Goulan? – perguntou Isdam
  - Ali em seu verdadeiro altar! – ele apontou para a pira no meio do salão.
  - Por que ela não brilha como em nosso templo? – Isdam continuava a perguntar. Goulan se levantou falando de punhos fechados, raivosamente:
  - Ela vai brilhar diante de mim!

  Ruídos desviaram-lhes a atenção e viram Cabelos de Ouro e Petisco correndo pelos degraus da escada que terminava no salão. Atrás deles soldados inflamados os perseguiam.
  - É o intruso, peguem-no! - gritou Goulan.
  - Goulan! – chamou-o Nathar. Goulan não lhe deu atenção. Nathar chamou-o novamente – Goulan, por favor. Mande os soldados apagarem-se. Ele não resistirá ao fogo, é diferente de nós!
  - Claro que é diferente! - respondeu-lhe sem ao menos virar o rosto para Isdam.

  Os soldados do salão também correram para pegá-los, se inflamando como os outros. Era grande o perigo de serem queimados.
  - Por favor, Goulan, prenda-o vivo, não é isto que você quer?
  - Soldados, apaguem! Parem! – ele ordenou

  Mediante a ordem de seu rei eles pararam e se apagaram.
  - Aproxime-se intruso! – ordenou Goulan. Cabelos de Ouro tomou Petisco novamente aos braços e ainda ofegante veio para junto de Isdam e Nathar. Goulan olhava-o curiosamente da cabeça aos pés.
  - Então é este o enviado dos deuses para derrotar-me. Como se chama intruso?
  - Cabelos de Ouro. Goulan olhou para Petisco e Teovaldo.
  - E estas criaturas?
  - Criatura é sua avó, seu anão vermelho! – respondeu Teovaldo
  - Ele fala! – surpreendeu-se.
  - Sim, é um papagaio, chama-se Teovaldo.
  - E este aí? – estendeu a mão para Petisco, que rosnou e latiu. Ele se assustou e puxou a mão.
  - É um cão, chama-se Petisco, também fala.
  - Incrível! E de qual lugar os deuses os trouxeram? – perguntou rindo e olhando para Isdam.
  - Eu vim do Brasil, nós três viemos!
  - Brasil? Que é isto?
  - É um país, fica na América do Sul – explicou Cabelos de Ouro.
  - América do Sul? Que coisas estranhas você fala intruso!
  - Você que é um burro, currupáco!

  Goulan percebeu que Teovaldo debochava e inflamou o dedo apontando-o.
  - Uau! – gritou Teovaldo pulando e voando para o outro ombro de Cabelos de Ouro. Petisco latiu furiosamente. Goulan ameaçou fazer o mesmo com ele, mas Cabelos de Ouro deu um passo atrás, segurando-o.
  - Por favor, senhor, pare!
  - Realmente temem o fogo! – olhou-os com surpresa mais uma vez – então que poderes tem para levar a chama sagrada?
  - Não pretendo levar a chama sagrada – Goulan olhou-o novamente surpreso – pretendo pedir-lhe para que a devolva. Ela é muito importante para o povo de Zuin.
  - Pedir-me para que a devolva? Ah, ah, ah! Então este é o herói que os deuses enviaram?
  - Quem me enviou foi o senhor Armou, o Mago do Tempo!
  - Armou? Que faz ele?
  - Domina o tempo. Ele nos confiou a missão de recuperar o velocino roubado de um povo, que por isso faz guerra.
  - Armou, velocino, Brasil, basta! Já estou farto desta conversa!

  Falando isto ele notou pela primeira vez o cinto que Cabelos de Ouro trazia à cintura e que neste instante começava a rebrilhar suavemente.
  - Que é isto? - apontou.
  - É meu cinto de ouro.
  - Pra que serve?
  - Pra muita coisa. Ele estendeu a mão para examiná-lo, porém Cabelos de Ouro pronunciou:
  - Alah-bha-thar! E o cinto desapareceu imediatamente.
  - Sumiu! – Goulan, espantado, olhava o rosto do menino. Isdam e Nathar sorriram. Ele ficou furioso e gritou:
  - Soldados, inflamem-se! Acabem com estes três intrusos!

  No mesmo instante todos os soldados se tornaram em centenas de chamas, aumentando terrivelmente o calor naquele salão. Sufocado, Cabelos de Ouro pediu mais uma vez:
  - Por favor, senhor, pare, não faça isto!
  - Ataquem-nos! – ele gritou mais alto.

  Não vendo outra saída, Cabelos de Ouro retirou um grão de milho de seu bolso lançando-o para o alto e o soprou. Uma explosão aconteceu e uma luz branca se espalhou por todo o ambiente. Em seguida, a luz se concentrou ao alto do salão, formando enorme bola de espuma. Os soldados pararam para olhar aquilo. Imediatamente começaram a sair dezenas de bonecos da bola de espuma que se atiravam sobre os soldados inflamados, grudando-se neles, abafando suas chamas. Eles caiam ao chão, gemiam e rolavam. Goulan recebeu um daqueles bonecos, também caindo.
  - Bem feito! – comemorava Teovaldo.

  Isdam e Nathar acompanhavam aquilo com grande atenção. Era uma magia e tanto que Cabelos de Ouro demonstrara! Os soldados iam endurecendo e permaneciam imóveis.
  - Temos agora um exército de inofensivas estátuas – falou Cabelos de Ouro sorrindo.
  - Socorro..., ajudem-me...., estou fraco! – gritava Goulan, endurecido como seus soldados, sem poder se levantar, logo perdendo a voz. Cabelos de Ouro virou-se para o velho sacerdote:
  - Isdam suba lá e retire a chama sagrada da pira!
  - Não posso, ela é sagrada!
  - Vá, Isdam – insistia o menino – tenho certeza de que você pode. Ela o aceitará. Leve-a para Zuin, ao verdadeiro templo! Isdam olhou para Nathar e este confirmou com aceno de cabeça. Isdam então foi subindo os degraus em redor do pilar, aproximando-se da pira. Estendeu as mãos para a chama e a tomou. Era pequena e fraca, e ele pode transferi-la de uma palma para a outra, descendo com ela.
  - É diferente de qualquer outra, é pura! Veja! – mostrou-a tranquilamente para Cabelos de Ouro.

  No caminho, já na cidade, ao vê-lo passar com a chama sagrada, o povo se ajoelhava diante de Isdam, se lançando ao chão. Alcançaram o templo. Isdam, com ajuda de Nathar e de outros sacerdotes, recolocou a chama na pira da estátua. Não houve qualquer alteração na sua luz e resolveram orar. Ao término, os sacerdotes ficaram todos calados, de joelhos e cabeças baixas.

       Cabelos de Ouro, sem nada ter com aquele improvisado ritual, a um canto a tudo assistia com seus amigos. De repente, uma surpresa: a chama estalou e cresceu, jorrando imensa luz em todo o templo! Os sacerdotes sentindo que o poder novamente entrara em seus corpos, imediatamente se levantaram.
  - O poder voltou! – falou alegremente Isdam que veio para onde Cabelos de Ouro se encontrava, dizendo-lhe – Graças a você o reconquistamos. A partir de hoje o povo de Zuin será novamente forte. A revelação foi verdadeira, você veio para nos salvar. Que podemos fazer para recompensá-lo?
  - Nada desejo em troca. Porém há algo que eu e meus amigos estamos procurando e que talvez você possa nos ajudar a encontrar.
  - O que é, diga-me?
  - Procuramos a chave que abrirá o monólito onde se encontra a gema de cristal. Precisamos prosseguir para achar o velocino, mas somente a gema poderá nos auxiliar.
  - A gema de cristal, sei do que falam. Ela é intocável, somente um enviado dos deuses como você poderia tentar. Venha, vou mostrar-lhe algo.

  E saiu com Cabelos de Ouro e seus amigos para as ruas da cidade. Todos os que os viam se aproximavam e Isdam os tocava nas testas. Uma transformação imediatamente acontecia, e se fortaleciam, ficando alegres e mais ativos. Mas como não pudesse dar a benção para toda a população, os informava:
  - Vão para o templo, lá Nathar e os sacerdotes lhes darão a benção.

  Ele chamou uma carruagem que os levou para fora da cidade. Tomaram o caminho das montanhas, parando à entrada de uma gruta. Isdam ordenou que os condutores da carruagem aguardassem e entrou na gruta com Cabelos de Ouro e seus amigos. Era uma mina de cristais de várias tonalidades. Havia muitos túneis; cada um levava a um veio de uma determinada cor de cristal. Este, por onde entraram, era todo branco e transparente. A mão de Isdam acendeu-se, iluminando todo o caminho, fazendo os cristais rebrilharem. Mais adiante, encontraram muitos seres que ali trabalhavam, porém desanimados. Isdam os chamou e informou-lhes:
  - O poder está novamente conosco. A chama sagrada voltou para o templo. Aproximem-se, vou transmitir-lhes poder! Isdam os tocava nas testas e todos se tornavam ativos e felizes, passando a operar na mina com maior vibração.

  Cabelos de Ouro e seus amigos começaram a observar-lhes com atenção. Tão logo recebiam a benção, colavam-se nas paredes e no chão, transferindo faíscas de seus corpos para os blocos de cristais, Vários sons se produziam. As faíscas iam se espalhando dentro dos cristais por larga área como pequenos raios. Na medida em que isto acontecia os cristais ficavam mais ativos, incorporando nova vida.
  - Por que fazem isto? – perguntou Cabelos de Ouro, após Isdam terminar as bênçãos.
  - A chama sagrada transmite poder que mantém a vida dos cristais. Daqui esta vida vai se espalhando de um lugar a outro, de bloco a bloco, de montanha a montanha, até que não haja um só pedaço de cristal que não esteja ligado ao poder da chama sagrada. Entende agora?

  Cabelos de Ouro começou a pensar e após alguns segundos falou:
  - Aqui em Zuin a vida estava enfraquecida por causa do roubo da chama sagrada. Somente agora tudo volta ao normal. Por que então a gema de cristal continuou a ter tanta luz?
  - Não sei responder. A gema é a gema, depois que ficou adulta adquiriu poderes próprios. Só conhecemos o que aqui realizamos e o que sentimos em nós mesmos. Isdam sorriu-lhe e apontou a saída.

  Lá fora Cabelos de Ouro pediu orientação sobre o nascente do Sol. Isdam informou-lhe a direção e o menino mandou lembranças para Nathar. Despediram-se. Cabelos de Ouro tomou posição com Petisco nos braços e Teovaldo no ombro, pronunciando:
  - Rah-tha-bha-lá! – O disco surgiu e ele recitou: Senhor do espaço, me leve pro monólito da gema de cristal! Num instante reapareceram diante do monólito.

  A gema rebrilhava suavemente quando Cabelos de Ouro se aproximou. Ele colocou Petisco no chão e começou a falar:
   - Gema de cristal, o que aprendi sobre esta situação é que a chama sagrada transmite vida para os cristais, tornando-os mais belos. Mas você que esteve todo o tempo poderosa, de onde tirava tanta energia? Creio que a luz de todas as coisas é uma só e a sua é também a mesma da chama sagrada. Para eles a chama precisa lá estar. Para outros estará noutro lugar, sem jamais se acabar. Ninguém de verdade a roubará; a luz é eterna, pertence a todos os seres vivos da natureza. Na verdade, a chama sagrada vem do Criador; está em meu coração, em você, em toda a vida da Terra.

  Ele parou por segundos e observou-a. A gema permanecia como antes e em nada mudara e ele prosseguiu:
  - Para conquistar a chama devemos antes conhecê-la de verdade. Mas somente conseguiremos isto realizando bons atos que resultem de bons pensamentos. Esta é a razão de eu estar aqui com meus amigos. Mas penso que isto possa ser demais para um simples menino como eu!

  Como resposta apareceu um risco de luz que percorreu a parte de cima do monólito, dividindo-o.
  - O risco formou uma tampa que está se abrindo! – falou Petisco bastante admirado.

  Cabelos de Ouro se aproximou e sem hesitar retirou a gema de dentro do monólito, examinando-a. Cabia-lhe na palma da mão.
  - Ela tem vida! Parece um coração pulsando!

  Realmente ela pulsava, ficando ora menor ora maior, exatamente como um coração. Ele colocou-a num dos bolsos e falou:
  - Se o que nos resta fazer é continuar, vamos em frente. Tenho uma ideia.

  Ele foi até a pedra da esquerda, próximo de onde os três amigos antes estiveram e começou a forçá-la. E como acontecido da outra vez, no lado oposto, esta passou também a girar e mostrar um vão.
 - Abriu! Lá vamos de novo! - falou Teovaldo.

 Cabelos de Ouro tomou Petisco nos braços e penetrou aquele túnel. Estava totalmente escuro como o outro, porém ele andava com menor dificuldade. O chão era completamente liso e aos poucos ia se inclinando para frente. O trajeto foi então realizado em descida reta, sem nenhuma novidade, até que sentiram uma rajada de vento.
  - Estávamos mesmo precisando, faz calor! – comemorou Teovaldo
  - É verdade, embora o calor daqui nada represente comparado ao que passamos em Zuin.

  Continuaram a descer por mais alguns minutos, terminando num patamar plano. Cabelos de Ouro parou e observou frestas de luz alguns metros adiante. Ao se aproximar mais notou que o túnel ali acabava.
  - Não há saída, que droga, currupáco!
  - Tenha calma, Teovaldo, vamos antes examinar. Ele colocou a mão na parede por onde havia as frestas de luz e notou que se tratava de uma grande pedra. Largou Petisco no chão e começou a empurrá-la com ambas as mãos. Para surpresa e alívio viu que a pedra se movia com facilidade, e a rolou, abrindo-lhes uma passagem.
  - É a floresta de novo! – falou Petisco com alegria.
  - Já estava mesmo com saudade do verde. Chega de fogo, calor, anões, currupáco!

  Diante deles se mostrava amplo e verde gramado, onde o menino e o cão foram pisando. Logo depois penetraram por caminhos entre belas árvores encontrando um rio que julgaram o mesmo já conhecido. Respiraram aliviados.
  - Petisco, vamos acompanhar a descida das águas para saber onde nos levam!

  Assim fizeram, descendo pela margem do rio. Em certo trecho pararam ao atingir uma clareira de onde partiam vários outros caminhos, ladeados de altos arbustos.
  - Quantas saídas, Cabelos de Ouro! – admirou-se Petisco.
  - Certamente darão para lugares diferentes. Creio que já podemos abandonar a margem do rio e tomarmos um deles. Mas qual? – ele foi até o centro daquela clareira e ficou a pensar. – Petisco, tem alguma sugestão? – finalmente falou.
  - Nenhuma, Cabelos de Ouro, nada percebo – respondeu após correr em círculo diante dos caminhos.
  - Eu também não, pra mim qualquer um serve! – respondeu Teovaldo antes mesmo de ser perguntado.
  - Talvez você tenha razão, Teovaldo. Venha Petisco! O cão pulou-lhe aos braços e o menino entrou num daqueles caminhos que nada tinha de diferente dos demais.

  Cabelos de Ouro foi penetrando a floresta, observando que os arbustos à beira eram altos e cada vez maiores. Adiante se tornaram tão grandes que ultrapassavam em muito a altura de Cabelos de Ouro, tocando-se em cima, ligando um lado ao outro.
  - Agora é um túnel verde. Que destino o nosso! – reclamou Teovaldo. O túnel verde acabou a poucos passos dali num arco, onde em cima liam-se: “Limite da Liberdade. Não Ultrapasse!”. Cabelos de Ouro leu aquele aviso para seus amigos.
  - Não estou gostando nada disto – comentou Petisco.
  - Precisamos entrar para saber. Fiquem atentos! – ele cruzou o arco.

  Após caminhar alguns passos Cabelos de Ouro não percebeu nenhuma novidade. O cenário era idêntico ao que vinham vendo. Ele ia atento, olhando para todos os lados. Petisco farejava. Adiante uma névoa veio envolvê-los. Não era tão intensa como aquela onde os anões macacos os atacaram. Era muito mais suave, porém fria, e causava arrepios. Silêncio. De repente viram-se à beira de uma ponte sobre um rio onde havia muitos crocodilos. A ponte iniciava-se em subida, depois seguia reta e quase ao final descia. Cabelos de Ouro deu os primeiros passos sobre ela.
  - Cuidado, muito cuidado, eles querem nos comer, currupáco!

                                                    CAPÍTULO X
                                           ETNÉA A MAGA DO MAL

  Os crocodilos se agitavam e abriam as bocarras, dando rabanadas uns nos outros. A ponte, porém, era curta, e atravessaram-na sem problemas. Adiante encontraram outro arco com novo aviso: “Último aviso. Não Avance. Não Voltará!”.

  Ele novamente leu as palavras em voz alta e resolveu continuar, penetrando sob o arco. Poucos metros dali, dois portões de ferro se abriam para dentro. Cabelos de Ouro entrou e após darem dois passos os portões bateram violentamente se fechando, dando-lhes um grande susto.
  - Ninguém aparece. Só querem nos amedrontar, por quê?
  - É o que pretendo descobrir, Petisco.

  Uma alta escadaria apareceu após terem passado sob uma cortina de trepadeiras. A névoa não lhes permitia que a enxergassem com nitidez. Mas perceberam que ali havia uma grande construção. Cabelos de Ouro iniciou a subida. Em certo ponto puderam saber que lugar era aquele.
  - Um castelo cinzento! – falou Cabelos de Ouro com admiração.
  - Com muitas torres! – admirou-se também Petisco.

  Após muito subirem chegaram ao final da escadaria. A névoa ficara mais abaixo, porém o céu estava encoberto por nuvens escuras. Um calafrio percorreu o corpo de Cabelos de Ouro e Petisco ganiu.
  - Cruz credo, agora é a hora do terror! – reclamou mais uma vez Teovaldo. Alguns urubus voavam sobre o castelo, mas Cabelos de Ouro resolveu que entraria. Antes perguntou aos amigos:

  - Petisco, Teovaldo, vocês têm alguma ideia onde nasce o Sol?
  - Não dá pra ver o céu – respondeu Teovaldo.
  - Não dá, Cabelos de Ouro, não dá! – respondeu Petisco.
  - É..., se precisar usar o disco de ouro terei de contar com a sorte.
  - Muita sorte, muita sorte! – repetiu nervosamente Teovaldo.

  Estavam diante de imensa e larga porta e Cabelos de Ouro a forçou. A porta rangeu e foi abrindo. Era um gigantesco salão. O teto era tão alto que quase não o viam. Havia muitas janelas enormes com vitrais descoloridos, mas a luz que ali entrava iluminava pouco. O salão estava vazio.
  - Coisa esquisita – cochichou Petisco.
  - Isto não me agrada, fiquem atentos – disse o menino começando a andar, chegando à metade do salão.
  - Pare! – uma voz de mulher fez eco por todo aquele salão, assustando-os. Cabelos de Ouro olhou para todos os lados, mas como nada visse continuou a andar.
  - Pare, já disse!
  - Onde está você? – perguntou Cabelos de Ouro sem parar de andar. Aproximava-se do final daquele gigantesco salão. Nada vira: nem móveis, trono, tapetes ou qualquer outra coisa. Porém, ao final via uma coluna e sobre ela uma pedra retangular de mais ou menos um metro quadrado, e parou a fim de examiná-la.
  - É um tipo de pedestal. Creio que antes havia alguma coisa sobre esta pedra.
  - Exatamente abelhudo! – falou a mesma voz, ecoando por todo o salão. Ele pôde então perceber que a mulher falava do alto de uma sacada no fundo do salão.
  - O que você procura não está mais aqui. Eu o retirei – ela continuou a falar.
  - Quem é a senhora? – ele tentava vê-la, mas a escuridão não lhe permitia. Ela deu dois passos e ficou junto à grade. Tinha um véu escuro sobre a cabeça e o foi retirando.
  - Posso assumir várias fisionomias. Uma delas é esta – ela mostrou o rosto.
  - Raios, trovões! – reclamou Teovaldo.
  - Eu conheço ela, Cabelos de Ouro! – falou Petisco.
  - Sim, lembro-me de você, é a moça que me atirou no redemoinho! Ela riu escandalosamente, perdendo aquele ar fingido de moça tímida.
  - Vejo que conseguiu escapar de todas as armadilhas que lhe preparei. É um jovem esperto, muito esperto mesmo. Mas aqui termina sua aventura e desses dois animaizinhos. Não conseguirá recuperar o velocino. Ele é meu!
  - Então foi você quem o roubou?
  - Sim, há vários séculos e ninguém irá levá-lo.
  - Mas por que fez isso?
  - Queria obter mais poderes!
  - Mas não conseguiu! – falou Cabelos de Ouro.
  - Como sabe disto, menino? – ela olhou-o com severidade.
  - É fácil entender. E ainda sonha com isso. Mas onde está o velocino?
  - Mandei-o de volta para um lugar do passado. Você não o achará. Aliás, você e seus dois amigos jamais sairão daqui. Teovaldo andava nervosamente sobre o ombro de Cabelos de Ouro enquanto Petisco, também nervoso, gania em seus braços.
  - De volta ao passado? Mas como?
  - O tempo é um jogo para mim. Sou Etnéa, a maga. Ninguém pode deter-me. Agora basta! Já me causou muitos aborrecimentos. Prendam-nos! – gritou.

  Diante deles começaram a surgir criaturas. Eram metade homens, metade animais. Tinham os corpos pesados e braços longos como os homens das cavernas, mas as caras eram de jacarés de narizes menores. Nas costas tinham escamas. As mãos eram achatadas, também os pés, e andavam se arrastando.
  - Que monstros horríveis! Fuja, Cabelos de Ouro! – gritou Teovaldo.

  Cabelos de Ouro virou-se para fugir, mas às suas costas mais criaturas vinham se aproximando. Ele correu para um canto, encostando-se à parede sem a menor chance de escapar.
  - Eles vão nos pegar! – falou Petisco afobado.
  - O grão, use o grão! – gritou Teovaldo. Cabelos de Ouro meteu a mão no bolso, mas não teve tempo.
  - Uáu, cuidado! – gritou Teovaldo, e desapareceram dali. O chão se abrira e foram engolidos por um alçapão.

  Caíram sobre montes de feno, no fundo de uma masmorra. Teovaldo não, pois se equilibrara no alto batendo as asas, embora tivesse passado pelo alçapão.
  - Ui, que tombo feio. Estou cheio de palhas pela roupa e cabelos.
  - É feno, amorteceu a queda – falou Teovaldo, vindo de novo pousar no ombro do menino que permanecia sentado.
  - Mesmo assim doeu – reclamava ainda, passando a mão pelo corpo. Petisco surgiu de dentro do monte, próximo a Cabelos de Ouro, sacudindo o corpo e passando a pata no focinho.
  - Aqui é o fundo deste castelo horrível. Só vejo paredes e grades – informou Teovaldo.
  - Deve haver outras masmorras. Dê uma voada por ai, Teovaldo, e venha nos dizer o que viu. Ele saiu voando e passou por uma grade.
  - Está escuro, mas vejo muito bem e farejo algo.
  - O quê, Petisco?
  - Há mais alguém aqui. Fique atento! Cabelos de Ouro levantou-se de imediato, tentando ver através das sombras.
  - Ali naquele canto, junto à parede! – mostrou Petisco.

  Cabelos de Ouro firmou o olhar, mas nada viu. Foi andando naquela direção e conseguiu perceber um vulto.
  - Quem é? – parou, sentindo Petisco encostar-se na sua perna.
  - Sou eu! – uma voz fina e fraca respondeu.
  - Eu quem? – insistiu.
  - Gunther, o guardião do velocino! – a voz era agora mais forte.
  - Guardião... do velocino? – repetiu interrogativamente Cabelos de Ouro, resolvendo aproximar-se mais, já começando a enxergar melhor. Tratava-se de um anão, ou melhor, de um gnomo que ali estava sentado.
   - Não consigo vê-lo direito, senhor...
  - Gunther! – ele confirmou o nome – vou dar um jeito. Ele se levantou e apesar da escuridão Cabelos de Ouro pôde perceber que não se tratava de um gnomo dos menores. Este era quase do seu próprio tamanho e começou a recitar:

                                      Pirilampos, pirilampos, saiam do campo,
                                      Pirilampos, pirilampos, venham cá estar,
                                      Voando, voando, venham pro meu canto,
                                      Quero a sua luz pra este lado iluminar!

  - Não repare..., eh...., sei fazer pequenas mágicas. Só que esta demora um pouco. Aguardaram por quase um minuto e nada aconteceu. Cabelos de Ouro voltou a perguntar:
  - Que você fez para estar nesta prisão?
  - Foi Etnéa..., ela me prendeu aqui..., eh..., depois de roubar o velocino. Nada pude fazer, sua magia foi mais forte.
  - Mas o velocino não foi roubado há séculos?
  - Isso, isso! – repetiu engraçadamente – falou bem, há séculos. Há séculos estou preso aqui sem poder sair!
  - Como é que pode? – duvidava Cabelos de Ouro.
  - Roubar o velocino? Pra ela foi fácil, eu é que falhei..., eh..., dormi em serviço.
  - Mas, séculos? Você é tão velho assim, Gunther?
  - Ora, dez séculos não é tanto tempo assim. Funcionou! – ele gritou e pulou. Cabelos de Ouro não entendeu nada – Funcionou! – gritou novamente – eles estão chegando, consegui, veja! Cabelos de Ouro olhou para trás e viu dois pirilampos que entravam pela janela.
  - Agora teremos luz! Aqui amiguinhos, aqui! – ele acenava com a mão.

  Logo milhares de pirilampos foram chegando e sobrevoavam sobre eles. Uns pousavam nas paredes ou nas grades e rebrilhavam. Cabelos de Ouro pode então ver o rosto de Gunther. Era velho; tinha cabelos e barba ruivos. Os olhos podiam ser castanhos, não sabia ao certo, mas eram grandes e vivos. As orelhas eram também grandes, mas não exageradas.
  - Você tem os cabelos bonitos, rapaz. Como se chama? – ele abria bem os olhos enquanto falava.
  - Chamam-me Cabelos de Ouro!
  - Cabelos de Ouro..., hum! Cabelos de Ouro, interessante, muito interessante. Ela lhe prendeu também, e a seu amiguinho aí? – apontou para Petisco no chão.
  - Me chamo Petisco! – falou de onde estava.
  - Oh, Petisco, heim! Bem que eu tinha escutado outra voz. Estava dormindo, sabe. Mas por que ela os jogou aqui, que fizeram?
  - Ela não quer que achemos o velocino. Viemos aqui para buscá-lo.
  - O velocino? Impossível! Você é só um menino!  -– ele pareceu ter levado um choque. Petisco latiu – Ehh..., e um cão também, quero dizer...bem..., Petisco – ele fazia sinal com a mão para acalmar Petisco.
  - Sou um menino simplesmente, mas o senhor Armou confiou-me esta missão!
  - Armou, quem é?
  - O Mago do Tempo. Ele domina sobre o tempo e acha que eu e meus amigos podemos recuperar o velocino. Se fizermos isto a guerra poderá terminar.
  - Um menino heim? Mas por que ele não veio pessoalmente, será que teme os poderes de Etnéa?
  - Não creio. Ele explicou-me que não pode interferir nos destinos, só comandar o tempo. Somente um humano como eu poderá realizar a missão.
  - Humano! Você é humano? Não acredito... Nenhum humano jamais chegou até aqui!
  - Mas sou, Gunther. Sou lá do Brasil. Eu e meus amigos Petisco e Teovaldo, um papagaio. Viajamos pelo espaço de lá pra cá.
  - Um papagaio também? Incrível..., incrível mesmo! Mas Etnéa prendeu vocês, logo foi mais esperta. Não conseguirão.
  - Nossa missão ainda não terminou. Se você nos ajudar talvez consigamos sair daqui e recuperar o velocino.
  - Ajudar? Eu, Gunther?

  Neste exato instante surgiu Teovaldo, pousando na grade da janela.
  - Pirilampos, currupáco – e voou para o ombro de Cabelos de Ouro. Mal pousou, logo se espantou – uái, outro anão! Este é grandão!
  - É Gunther. Ele é o guardião do velocino, ou melhor..., foi!
  - Sou Teovaldo!
  - Um papagaio inteligente...., hum, quantas coisas interessantes. Humano é...., como entrou na dimensão?
  - Sei também fazer mágica. Posso entrar e sair – respondeu com um sorriso maroto.
  - Pode? Assim à vontade? Hum..., quem diria, um menino com poderes. E por que não sai então, aqui não é bom!
  - Estou atrás de informações. Etnéa falou que roubou o velocino. Pensei que ela estava me enganando, mas vejo que não. Se você me ajudar liberto-o daqui!
  - Liberdade para Gunther? Impossível, ninguém consegue escapar de Etnéa! O gnomo ao dizer estas coisas mostrou-se agitado. Cabelos de Ouro continuou:
   - Você sabe exatamente onde se encontra o velocino? Etnéa disse-me que o mandou para o passado.
  - Para o passado? O velocino....! Aquela bruxa! Sei, Gunther sabe. Só há um lugar onde ele pode permanecer, é no pedestal do castelo. Aposto que voltou para lá..., no passado, naturalmente.
  - Ótimo, Gunther, então vamos lá buscá-lo.
  - Não... , não! Você não pode! Só Etnéa pode..., e eu também. Mas nunca fiz!
  - Como assim, Gunther? Explique-me direito o que é isto.
  - É..., bem..., Etnéa roubou-me o segredo das palavras. Elas são mágicas..., somente elas conseguirão transportar o velocino de um lugar a outro. Eu as conhecia. Deveria pronunciá-las sempre que houvesse perigo para o velocino. Mas falhei..., Gunther falhou..., dormi em serviço e contei para ela quais eram as palavras. Ela agora possui o segredo. Se eu não tivesse retirado a armadura...!
  - Que armadura, Gunther, você tem uma?
  - Tenho..., bem..., quero dizer... eh, tinha. Depois que Etnéa me prendeu aqui nunca mais soube dela.
  - O que ela tinha de especial?
  - De especial? Era tecida com fios também..., eh..., mágicos, quero dizer..., magnéticos. Tinha poderes em meu corpo. Ninguém podia se aproximar sem que eu comandasse. Eu revertia a força de qualquer um. Mas eu tirei-a naquele dia..., e por isso dormi. Gunther falhou..., como castigo rei Dun Gartha esqueceu-me aqui.
  - Rei Dun Gartha?
  - É..., meu rei. Ele quem me confiou a guarda do velocino, ensinou-me as palavras e deu-me a armadura magnética.
  - Ouça, Gunther, precisamos enfrentar Etnéa. Ouça bem, se ela escondeu o velocino no passado é por que teme que eu o leve. Será que ela é mesmo invencível?
  - Hum....  – pensou Gunther – hum..., talvez você tenha razão, menino. É..., se você tem um plano talvez...
  - Ainda não. Só sei de uma coisa: preciso partir para buscar o velocino.
  - Com o disco não pode! – lembrou Teovaldo.
  - Sei disto, Teovaldo, tentaremos outra coisa – ele voltou-se para o gnomo – Gunther, diga-me uma coisa: Com sua armadura e acordado o tempo todo, você poderia ser vencido por Etnéa?
  - Jamais! – ele levantou o dedo indicador com energia – Etnéa nem ninguém teria conseguido.
  - Você acha que ela utilizou sua armadura para qualquer outra coisa, depois de roubar o velocino?
  - Talvez..., talvez..., mas não teria poderes. Só funcionava em Gunther. O rei a preparou somente para mim.

  Cabelos de Ouro começou a pensar. Saiu dali e andou pela grande masmorra. Seus olhos já se acostumavam com a escuridão e enxergava o que antes não pudera. Parou debaixo da janela gradeada e levantou a cabeça, começando a murmurar:
  - Ao passado o disco não pode me levar. Aqui neste presente sim. Mas quanto a Gunther?  Espere..., tenho uma ideia, não custa tentar! Gunther venha cá!

  O gnomo atendeu e se aproximou. Ficou olhando-o com aquela cara engraçada, enquanto os pirilampos sobrevoavam sobre sua cabeça, piscando suas luzes.
  - Tentaremos sair todos desta masmorra, agora!
  - Sair, como? – ele novamente se agitou.
  - Tenho minhas mágicas. Não sei se funcionarão, mas tentarei assim mesmo. Se sairmos, a primeira coisa a fazer será procurar sua armadura. De acordo?
  - Eu..., de acordo? Sim..., sim, de acordo. Mas que mágica é essa?
  - Petisco, venha! – o cãozinho pulou-lhe aos braços, estando Teovaldo em seu ombro – agora você, Gunther, segure-me aqui neste braço – o gnomo obedeceu – antes, porém, me informe de que lado nasce o Sol?
  - O Sol? Vejamos, sim..., ali! – mostrou. O menino virou-se para a direção indicada e recitou:
  - Senhor do espaço, me leve pra armadura de Gunther!
  - Funcionou! – falou admirado o gnomo tão logo aterrissaram.
  - Ainda bem! – aliviou-se Cabelos de Ouro.
  - Quanta coisa velha! – farejou Petisco.
  - Conhece isto aqui, Gunther? – perguntou Cabelos de Ouro.
  - Não, nunca estive aqui. Mas creio que é no mesmo castelo de Etnéa..., é..., deve ser sim..., é o depósito mesmo.

  Cabelos de Ouro largou Petisco no chão e começou a andar. O gnomo o acompanhava. Havia alguma claridade por ali. Viram montes de coisas: pedaços de madeira, móveis, armas enferrujadas, enormes livros, pergaminhos amarelados, armaduras amassadas e muitos outros objetos: todos empoeirados. Andavam sobre tudo, afastando-os para os lados e desimpedindo o caminho.
  - Não vejo..., eh, minha armadura – dizia Gunther, procurando ansiosamente. Petisco latiu a um canto. Eles o procuraram e não o viram. Ele latiu de novo e foram para o lado do latido, localizando-o debaixo de uma folha de madeira.
  - Aqui tem um baú! – informou Petisco. Eles afastaram a madeira e alguns objetos das imediações, vendo realmente tratar-se de um velho baú, grande e negro.
  - Abra-o, Gunther – pediu Cabelos de Ouro. Ele segurou a tampa e a levantou. A tampa soltou-se quase caindo no pé do gnomo, que pulou e se desequilibrou. Depois se arcou para o interior do baú vendo que tinha roupas. Ele as foi retirando e amontoando. De repente gritou surpreso e feliz:
  - É ela, minha armadura! – imediatamente começou a examiná-la - está perfeita..., Etnéa não estragou a armadura de Gunther!

  A armadura era inteira, como certas vestimentas de soldados da idade média. Era dobrável, embora tecida com fios prateados e grossos. Ele a vestiu, ficando unicamente com o rosto de fora e a cabeça coberta pelo capuz.
  - Então, Gunther? – perguntou o menino.
  - Não funciona – disse decepcionado – está inteira, mas não tem poder! Cabelos de Ouro viu a tristeza de Gunther e comentou:
  - Deve ter alguma solução. Mas agora precisamos prosseguir. Não podemos ficar aqui.
  - Sim..., sim – repetiu desanimado o gnomo.

  Cabelos de Ouro tomou um grão de milho e o colocou na palma da mão direita. Em seguida pronunciou:
  - Alah-bha-thar!
  - Oh, sumiu..., aquela coisa sumiu! – espantou-se Gunther, agora mais esperto.
  - Ouçam com atenção, amigos! Já que não podemos contar com o disco de ouro nesta viagem que iremos fazer ao passado, vamos utilizar os grãos. Se der certo viajaremos a salvos e traremos de volta o velocino.
  - Lá vamos de novo, cada vez mais pro buraco, currupáco!

  Cabelos de Ouro, com Teovaldo no ombro, tomou Petisco num braço pedindo para que Gunther segurasse este mesmo braço como a pouco ele fizera. Gunther, vestido de maneira engraçada naquela estranha roupagem, olhava o menino com grande admiração. Sem mais esperar, Cabelos de Ouro lançou o grão para o alto, soprando-o, e desta vez dizendo:
  - Para o passado, ao velocino!

                                                   CAPÍTULO XI
                                                    O VELOCINO

   Imediatamente um redemoinho de luz azul os envolveu, uivando feito vendaval, e os deslocou no ar. Eles sentiram uma sensação de vertigem e gritaram, desaparecendo do lugar.

  Os quatro viajantes tiveram a impressão de que voavam dando cambalhotas com incrível velocidade. Foi tudo muito rápido e aterrissaram sem qualquer problema.
  - Que viagem! – exclamou Cabelos de Ouro.
  - Ui..., incrível! Um grão de milho..., incrível! É..., magia grande! – murmurava Gunther sem entender direito o que se passara.
  - Voltamos para aquele salão – Petisco reconheceu o lugar.
  - De fato, mas vejam lá no pedestal – apontou Cabelos de Ouro.
  - O velocino! É ele, o velocino! – quase gritava Gunther.

  O velocino era a estátua de um carneiro, mas toda de ouro. Apoiava-se sobre as patas dianteiras, olhando para adiante.
  - Vamos levá-lo de uma vez – disse Cabelos de Ouro, já se encaminhando para o pedestal.
  - Não..., espere – Gunther o segurou pelo braço – você não pode..., ninguém pode! Só as palavras mágicas conseguem transportá-lo.
  - Então diga as palavras – convidou Cabelos de Ouro.
  - Eu..., é..., não me lembro delas!
  - Não lembra? – o menino agora se admirava.
  - Essa agora, um anão esquecido, currupáco.
  - É..., bem, foi Etnéa. Ela deve ter feito alguma magia, apagando-me a memória.

  Cabelos de Ouro resolveu investigar procurando alguma solução. Estavam em posição lateral e rodeou o pedestal parando em frente ao velocino.
  - Gunther veja! Aqui há algo estranho! – O gnomo se aproximou de Cabelos de Ouro – Há um buraco bem no peito do velocino. Que significa isto?
  - É..., um buraco..., não sei, não sei. Ele não tinha isto quando eu era seu guardião.
  - Espere, Gunther, talvez... – o menino ia completar quando ouviram:
  - Intrometido, menino intrometido! Você de novo, e Gunther também..., o guardião fracassado. Como puderam chegar até aqui?

  Etnéa surgia-lhes a poucos passos. Vestia-se de roupa longa e cinzenta, com largas mangas. Tinha agora aspecto de mulher e não de jovem como a conheciam. Os longos e negros cabelos caiam-lhe sobre os ombros. Estava muito zangada, com pernas abertas e mãos fechadas, apoiadas nos quadris.
  - Uái! Um açucareiro de duas asas! - debochou Teovaldo. Petisco latiu furiosamente.
  - Ah..., Etnéa! – exclamou temeroso Gunther.
  - Ousaram entrar no meu templo do passado. Quem os trouxe?
  - Foi..., foi..., o... – Gunther não conseguiu responder.
  - Fui eu, senhora, por mim próprio. E trouxe comigo meus amigos para levarmos o velocino.
  - Jamais diga isto de novo, menino. Como se atreve desafiar os poderes de Etnéa. Vai pagar muito caro por esta ousadia!
  - O velocino precisa voltar, ele não lhe pertence! – insistia ainda Cabelos de Ouro.
  - Basta! Soldados ataquem-nos, destruam-nos! – ela gritava com todas as forças, apontando o dedo em direção dos quatro. Seu rosto estava agora tomado de uma expressão de ódio.
  - E agora, menino..., que fazemos? – Gunther perguntou assustado.
  - As palavras, Gunther, tente lembra-las!
  - Não consigo..., eu conheço, mas não consigo!

  Aquelas mesmas horrendas criaturas que antes os tinham ameaçado, surgiram de todos os lados, arrastando os pés. Traziam machados, bolas de ferro em correntes, facões, clavas, maças, espadas e outras armas dos tempos medievais. Cabelos de Ouro olhou para o velocino e tirou do bolso a gema de cristal. Seu brilho estava fraco, mas não se apagara.
  - Teovaldo – disse baixinho virando o rosto sobre o ombro – tome a gema nas patas e tente colocá-la no peito do velocino. Tenho certeza que ali é o seu lugar!

  Teovaldo pulou para a mão de Cabelos de Ouro e tomou a gema de cristal. As criaturas cercavam-nos e eles recuavam para o lado do pedestal.
  - Destruam-nos, não os deixem escapar! Estou farta deste intrometido! – Etnéa gritava cada vez mais furiosa.

  Teovaldo voou e se aproximou do velocino. Tentou colocar a gema, mas falhou, batendo as asas e recuando. Etnéa vendo aquilo desconfiou de alguma coisa.
  - Peguem o papagaio, acertem-no! – gritou. Uma clava foi lançada e passou rente à cabeça do velocino, quase o acertando.
  - Parem seus imbecis, assim não! Cuidado com o velocino! – Etnéa desesperava-se. Eles todos pararam sem saber o que fazer.
  - Rápido, Teovaldo, agora que estão confusos. Tente de novo! – disse Cabelos de Ouro, olhando para cima, apoiado de costas na coluna que sustentava o pedestal.
  - Não deixem! – gritou novamente desesperada Etnéa. Mas Teovaldo falhou mais uma vez. O encaixe da gema era muito justo e ele não conseguia. As criaturas fizeram movimentos para outra vez atirar. Etnéa berrou furiosa:
  - Não..., não! Parem!  – eles pararam. Ela então levantou os braços e começou a falar - Armat Yenm Zimbá...
  - As palavras! O velocino vai se desmaterializar! Ela vai levá-lo pra outro lugar!– gritou desesperado Gunther.
  - Não, agora não! – disse nervoso Cabelos de Ouro. Teovaldo, porém, conseguiu finalmente encaixar a gema de cristal no peito do velocino.
  -... Katmaná Tamade Ruam Maratatan! Ob Dob Kust Goby Rahiá Ad Lux Velocino Tam! – Etnéa completou as palavras olhando ferozmente para o velocino.

  Entretanto, o velocino não desaparecera, ao contrário, começava a ficar mais vivo. A gema de cristal brilhava e irradiava intensa luz que se espalhava por todo aquele mal iluminado salão. O corpo do velocino mudou de aspecto. Ele agora possuía uma pele de finíssimos fios de ouro que o cobriam. Ganhara outra vida!
  - O poder voltou! – gritou Gunther – a armadura tem poder outra vez!

  Etnéa começou a recuar, amaldiçoando a todos. As criaturas traziam as mãos aos rostos e os cobriam; rugiam e se afastavam do pedestal. Gunther então fechou os olhos e se concentrou. Etnéa gritou e desapareceu. As criaturas largaram as armas fugindo o mais rápido que puderam. Cabelos de Ouro escorregou as costas na pilastra e sentou-se no chão.
  - Ufa! Esta passou perto. Pensei que íamos perder o velocino! – ele pôs a mão na testa. Teovaldo veio pousar no seu ombro enquanto Petisco ao seu lado observava Gunther.
  - O poder voltou! Gunther é forte de novo! – ele olhou para Cabelos de Ouro, perguntando-lhe – mas como você sabia que aquilo pertencia ao velocino?
  - Eu não sabia, Gunther, vim descobrir aqui. Achei que o coração do velocino de alguma forma foi retirado. Por isso ele não funcionava para Etnéa, pois se transformou em simples estátua de ouro.
  - Sua magia é forte, menino. Humano, hem? Incrível..., incrível! Salvou-me. Fez Gunther recuperar a armadura e o poder. Agora posso lembrar-me das palavras mágicas eh..., e de outras coisas mais. Graças a você, graças a todos.
  - Até que enfim lembrou de mim! – reclamou Teovaldo.
  - De mim também! – completou Petisco. Cabelos de Ouro se levantou, olhando para o velocino.
  - Vejam, não há mais o buraco no peito do velocino. Está fechado!
  - Sim..., sim. O coração está guardado! – confirmou o gnomo.
  - Que fazemos agora, Cabelos de Ouro? – perguntou Petisco.
  - Bem. Acho que devemos transportar o velocino de volta para seu verdadeiro lugar. Onde ele ficava antes, Gunther?
  - Ah..., no templo, na cidade de Anthar. É lá mesmo que ele ficava.
  - Vamos todos para lá. Gunther transporte o velocino com as palavras mágicas. Eu usarei um grão para nos levar.
  - O velocino..., sim..., as palavras, claro: Armat Yenm Zimbá Katmaná Tamade Ruam Maratatan! Ob Dob Kust Goby Rahiá Ad Lux Velocino Tam! – ele olhava para o velocino enquanto recitava. Cabelos de Ouro, tendo já Petisco num braço e Teovaldo no ombro, observou o velocino desaparecer. Jogou então um grão de milho para o alto, o soprou e falou:
       - Para o templo de Anthar! – e segurou o braço de Gunther com a mesma mão que lançara o grão ao ar.

  O mesmo redemoinho azul os envolveu e os carregou. Eles partiram do lugar gritando. Foram reaparecer dentro do templo de Anthar, diante do qual, no lado de fora, ali estivera Cabelos de Ouro e seus amigos ao início da jornada.
  - O templo! – exclamou alegre e surpreso Gunther.

   O imenso salão de entrada era longo e belo, com grandes e decorativas colunas. O salão terminava onde começavam três degraus de mármore branco, vindo depois um patamar, em seguida mais três degraus e outro patamar. Finalmente vinha um terceiro patamar onde existia o pedestal sobre uma única e pequena coluna.
  - Vejam, lá está o velocino! – apontou Cabelos de Ouro. Eles o admiraram. O velocino de ouro rebrilhava, tornando-se muito belo.
  - Este lugar está vazio e fechado – observou Teovaldo.
  - Precisamos sair e avisar o povo de Anthar que o velocino é deles novamente. Mas como fazer? Da vez que estivemos aqui fomos atacados!
  - Vamos soar o gongo. Abriremos as portas para o povo! – disse Gunther.
  - Boa ideia, Gunther. Aguardem-me que eu já volto – disse Cabelos de Ouro saindo a correr pelo salão em direção das altas portas de entrada daquele templo, abrindo-as e retornando em seguida. Gunther foi até o gongo e o fez soar por três vezes. O som espalhou-se por todo o salão sendo ouvido pelas imediações da cidade. Logo o povo veio chegando e entrando. Ao verem o velocino corriam e se atiravam ante o pedestal.
  - O velocino voltou! – isto corria de boca em boca até que a cidade inteira foi sabedora. O templo ficou apinhado de tanta gente, todos que chegavam queriam se atirar diante do velocino. Gunther teve de organizar filas para não haver tumulto.
  - Abram alas! Vem aí o governador!

  Soldados usando vários tipos de armas, coletes de armaduras e elmos vieram chegando e afastando o povo. Quando um corredor havia se formado surgiu um homem gordo. Vestia-se com calças justas e camisa com bordados, tendo sobre um dos ombros uma capa vermelha que quase tocava o chão. Ele foi entrando no meio de uma escolta e parou diante do pedestal, ficando a olhar o velocino.
  - É o velocino sem dúvida alguma! Os antigos contavam que ele era exatamente assim – falou admirado, jogando-se ao solo. Depois se levantou olhando para os quatro, perguntando – quem são vocês?
  - Meu nome é Cabelos de Ouro – disse o menino dando dois passos adiante – este é Gunther o guardião do velocino e estes são meus amigos Teovaldo e Petisco. Vim do Brasil, sou humano e tive a missão de recuperar o velocino recolocando-o em seu verdadeiro lugar.
  - Humano? Como chegou aqui?
  - É uma longa história, governador, porém posso adiantar-lhe que o senhor Armou, o Mago do Tempo, foi quem me deu esta missão. Com a ajuda de Gunther conseguimos trazer o velocino de volta.
  - Gunther - disse o governador olhando atentamente – não me lembro de tê-lo visto antes.  Ele olhou de novo para Cabelos de Ouro – disse que ele era o guardião do velocino?
  - Sim – respondeu o próprio Gunther – fui o guardião do velocino, porém quando ele foi roubado o senhor não era ainda eh..., governador e não me conhecia. Foi eh...., Etnéa quem o roubou e escondeu. Mas agora estou de volta para protegê-lo dia e noite. Gunther recuperou os seus poderes.
  - Com uma condição – interrompeu Cabelos de Ouro e todos se voltaram para ele – que a paz com o povo da outra cidade seja feita em definitivo e eles possam também vir visitar o velocino.
  - Camar! Sim, sim, mandarei emissário a Camar para explicar-lhes tudo. Selaremos a paz. Mas Etnéa, onde ela está agora? E se ela roubar de novo o velocino?
  - Aqui estarei para protegê-lo, governador. Gunther desta vez não falhará. Recuperei os poderes dados pelo rei Dun Gartha. O governador pareceu não acreditar nas promessas de Gunther. Porém, não teve tempo de dizer mais nada. De repente, uma escuridão desceu sobre toda a cidade deixando tudo às escuras. Todos se assustaram, começando imediatamente uma grande ventania. Muitos do povo vieram para dentro do templo, que já estava lotado. A multidão que não conseguiu entrar saiu correndo pelas ruas buscando refúgio nas casas, pois o vento aumentara em muito. Figuras horrendas surgiram pelas altas janelas abertas do templo. Eram como ferozes cães negros de asas, com caras achatadas. Outras eram aves gigantescas, também negras. Uma delas pousou diante da porta do templo e soltou um terrível guincho que assustou a todos. Era tão imensa que tomou toda a entrada do prédio.
  - Etnéa...., é ela! - falou Gunther assustado.

                                                   CAPÍTULO XII                                  
                                              O ÚLTIMO COMBATE

  Gunther então fechou os olhos e pronunciou algumas palavras. A ave imediatamente soltou outro guincho, mas pulou para trás, mas logo levantou voo e desapareceu. As outras aves e criaturas que rodeavam as janelas também fugiram. Um facho de luz partiu do velocino quase tocando o alto teto. Deste facho outros menores foram surgindo e se espalhando feito uma rede luminosa. O povo exclamou um oh!, lançando-se ao solo.

  Lá fora Etnéa provocava um vendaval. Algumas pessoas não conseguindo se manter em pé rolavam pelo chão. Telhados voavam e se despedaçavam no solo ou contra outros prédios. Objetos eram lançados a grandes distâncias; muitos redemoinhos se formavam.
  - Aqui ela não conseguirá entrar, mas eh...., poderá destruir a cidade – falou Gunther preocupado.
  - Não, isso não! Precisam impedi-la! – pediu o governador.
  - Tentarei! – disse Cabelos de Ouro. Petisco pulou-lhe às pernas e ele o segurou – abram caminho, vou lá fora! – anunciou, voltando-se em seguida para Gunther – permaneça em seu posto protegendo o velocino!
  - Sim, menino..., sim. Boa sorte!

  Chegando à porta do templo ele pôde ver os estragos que o vendaval produzia. Mas não conseguiu ver Etnéa, somente às horrendas criaturas que voavam de um lado a outro, ou rondavam o templo. Estando debaixo da laje externa sustentada por colunas, chamada átrio, trazia Petisco nos braços e gritou:
  - Etnéa, apareça! Quero lhe falar!  Passado um minuto nada aconteceu.
  - Ela não escutou – disse Petisco.
  - Escutou sim, mas fingiu não escutar. Ela quer que eu saia da proteção que vem da armadura de Gunther para poder me pegar.
  - Currupáco! – fez Teovaldo simplesmente

  A escuridão do céu enegrecia também a cidade. Eles não tinham podido acender os lampiões das ruas por causa do vendaval criado por Etnéa. Cabelos de Ouro decidiu-se:
  - Teovaldo e Petisco, fiquem aqui ou serão arrastados pelo vento. Permaneçam na proteção do templo. Eu vou lá fora.
  - É loucura! Ela vai pega-lo! – falou Petisco.
  - Não vá, não! – Teovaldo reforçou o pedido.
  - É a única maneira, amigos, ou ela destruirá a cidade e nossos esforços com o velocino não terão adiantado nada para Anthar e Camar. Andem, obedeçam! – ele colocou Petisco no chão enquanto Teovaldo voava de seu ombro, pousando num mármore ao pé de uma das colunas.

  Ele começou a descer os degraus. Mas devido à força do vento se desequilibrava e caia. Em certo instante conseguiu manter-se em pé, colocando o braço dobrado diante dos olhos e gritando:
  - Estou aqui, Etnéa, venha buscar-me!

  Um trovão explodiu à sua frente e Etnéa apareceu no ar, com os cabelos agitados, acompanhada das criaturas aladas, feito cães monstruosos.
  - Menino intrometido, roubou meu velocino. Quero o velocino de volta!
  - Impossível, ele nunca lhe pertenceu. É do povo de Anthar e também será de Camar. Desista! – ele falava com dificuldade por causa do vento, seus cabelos esvoaçavam e mantinha ainda o braço diante do rosto.
  - Vai se arrepender. Vou lhe mostrar quem é Etnéa! – ela apontou-lhe o dedo e lançou um raio vermelho que estourou aos pés de Cabelos de Ouro, destruindo o degrau onde ele pisava. Cabelos de Ouro caiu e rolou, ficando tonto. Mas conseguiu se levantar.
  - Devolva meu velocino! – gritava ainda Etnéa.
  - Nunca! – respondeu corajosamente Cabelos de Ouro.
  - Então é o seu fim! – ela levantou os braços e gritou - aves negras, cães alados, poderes da destruição, ataquem!  As aves e os cães então se agruparam. Era um verdadeiro exército, haveria uns cem de cada tipo e avançaram para ele:

  Cabelos de Ouro, entretanto, tirou do bolso o último grão de milho e o trouxe junto à boca, fazendo concha com ambas as mãos para que não voasse. Soprou-o e uma explosão de luz branca imediatamente aconteceu, surgindo enorme esfera. Da esfera foram saindo grossos cordões, também brancos, que se lançavam na direção das criaturas e aves e de Etnéa, amarrando-os. Eles gritavam e se esperneavam, mas não conseguiam se libertar. Os cordões se uniram e a esfera girou com todos em enorme rapidez, lançando-os para longe, fazendo-os desaparecer de vistas, provavelmente para sempre.

  Mas o vendaval continuava. A esfera de luz recolheu seus cordões e novamente girou, provocando um redemoinho. O redemoinho uivou, cresceu e foi engolindo o vendaval. Tudo se acalmou: a nuvem escura desapareceu do céu e a cidade novamente clareou. Cabelos de Ouro sorriu satisfeito, voltando para o lado de Petisco e Teovaldo.
  - É o fim de Etnéa e seus malignos poderes – falou aliviado. Petisco pulou-lhe aos braços e Teovaldo voou para seu ombro.

  Ao entrar novamente no templo o povo ia se atirando ao chão, como fizera diante do velocino.
  - Ei, calma lá, pessoal! Não façam isso! – dizia o menino sem graça. Mas eles continuavam a se atirar.
  - Melhor isso do que flechadas – lembrou Teovaldo.
  - É mesmo! – reforçou Petisco.

  Ele atravessou o corredor entre a multidão deitada, chegando junto ao governador e Gunther. O governador também se lançou ao solo de braços estendidos. Depois se levantou e falou:
  - Não sei como mostrar-lhe nossos agradecimentos.
  - Não é necessário. A única coisa que peço é a paz entre Anthar e Camar.
  - Isto será feito. Estamos cansados de tanta guerra. De nossa parte a paz já existe.
  - Ótimo. Não creio que o povo de Camar pense diferente. Mas se assim não fizer já não dependerá de nós convencê-los. Minha missão com o velocino termina aqui. Devo ir. Não sei quanto tempo se passou desde que saímos do Brasil, mas acho que foram muitas horas!

  Gunther se aproximou de Cabelos de Ouro e o abraçou fortemente.
  - Desejo também....,eh....agradecer-lhe por ter....,ressuscitado Gunther. Estou novamente feliz!
  - Somente dei-lhe um pequeno empurrão, Gunther. O resto você mesmo fez! – Cabelos de Ouro falava com altivez, como experiente adulto – a propósito, governador, de que lado nasce o Sol?  Ele surpreendeu-se com a pergunta, mas olhou para as paredes do templo procurando orientar-se.
  - Deste lado! – finalmente indicou.

  Cabelos de Ouro voltou-se para a direção indicada pelo governador e falou:
  - Rah-tah-bha-lá! O cinto apareceu causando grande espanto a todos. Uma onda de admiração se espalhou pelo templo. Ele então recitou:
  - Senhor do espaço, me leve ao lugar de onde eu vim! E desapareceram das vistas de todos vindo com seus amigos aterrissar novamente nas imediações da mata de onde tinham saído no início da missão.
  - De novo em casa - falou o menino
  - Ainda bem, que saudade, currupáco! Petisco somente latiu.
  - É dia ainda, o Sol não se pôs. Não devemos ter ficado tanto tempo fora. Isto é se for o mesmo dia – ele colocou Petisco no chão e olhou para dentro da mata – vamos para casa, estou precisando de um bom banho e feijão com arroz. Ah, ia me esquecendo: Alah-bha-thar!  E o cinto de ouro desapareceu.

                                                  CAPÍTULO XIII
                                           ÚLTIMAS SURPRESAS

  - Pedro, onde esteve? São quase seis horas, o jantar está quase pronto!
  - Estive passeando, mãe, muito longe.
  - Longe? Onde?
  - Noutros mundos! – disse rindo e ela também riu.
  - Sempre imaginando coisas. Vá tomar seu banho enquanto termino o jantar.

  Tendo saído do banho, estando ainda com a toalha enrolada à cintura, Pedro viu três objetos sobre a cama.
  - Veja, Petisco, a bússola, o peixe de prata e uma miniatura em ouro do velocino. Eles os trouxeram para mim. Mas a miniatura terá algum poder? Petisco somente latiu e abanou o rabo como se informasse nada saber.

  Pedro olhou para todos os lados, nada vendo. Procurou escutar algum ruído diferente, mas inutilmente. Então desistiu.
  - Creio que somente saberei mais tarde. Vou usar de novo o cofre para guardá-los.

       Após o jantar Pedro foi para a espreguiçadeira da varanda e nela sentou-se. Seu pai sentado numa cadeira lia jornal, enquanto sua mãe, na sala, assistia televisão. Ele ficou a pensar sobre tudo o que ocorrera nesta sua recente aventura e nos perigos que haviam enfrentado. Pensou muito no velocino. Mais tarde, já de pijamas, sentado na beira da cama e fazendo orações, ouviu surpreso:
  - Gostou de receber de volta seus objetos e do novo presente?
  - Que? Heim? - ele olhou em volta e nada viu.
  - Sou eu, lembra-se?
  - O velho da cabana! – exclamou. Petisco, sobre o tapete, como nada visse, farejou e ganiu. Ele nem desconfiava que aquele início de diálogo se passasse na mente de Pedro. Teovaldo se agitou no puleiro sem também nada ver ou ouvir, além da voz do menino.
  - Vejo que me reconhece em seus pensamentos.
  - Mas por que não aparece?
  - Por que estou noutra dimensão, meu filho, estou lhe falando por telepatia. Você nem precisa falar, podemos conversar em silêncio.
  - Que deseja, senhor? A missão ainda não terminou? - perguntou Pedro, desta vez em pensamento.
  - Sim, terminou, e com sucesso. Sua coragem e de seus amigos foi notável. Nesta dimensão estamos todos alegres. Mas há algo mais que desejo falar-lhe a mando de Armou, o Mago do Tempo.
  - De que se trata, senhor?
  - Tendo ele lido os seus pensamentos de há pouco sobre o velocino, mandou-me aqui para esclarecer-lhe. Você se perguntou como uma estátua pôde trazer para aquele povo tanto respeito e admiração. E também por que isto ainda acontece se sabemos que não é justo trocarmos a razão das coisas por objetos. Não foi assim?
  - Sim! - confirmou simplesmente.
  - Bem meu filho, aquela tristeza pela qual o povo de Anthar passou por mil anos no continente em que habitava em meio a montanhas, onde nenhum estrangeiro jamais chegou, está terminada. Foi necessário recuperar o velocino para eles, mas agora os tempos são diferentes. Aos poucos saberão que não é o velocino que lhes trará alegria e felicidade, mas terão de conquistá-las com esforço próprio e muito trabalho. O enigma da gema de cristal que você resolveu também eles entenderão. Saberão que a força e o poder estão neles próprios, que o cristal precisará viver neles mesmos, em seus corações. Descobrindo isto, não irão mais adorar a estátua como antes, somente a respeitarão pela grande magia que nela existe. Tanto Anthar como Camar continuarão a ver a luz e perceber a energia que o velocino produzirá: pequenos fenômenos por assim dizer-se. Entretanto, saberão que isto não é tudo e as soluções verdadeiras de seus problemas terão de ser procuradas em suas mentes e corações.

  - Entendo. Mesmo noutra dimensão a mente aprende e o passado precisa ser atualizado.
  - Exatamente menino inteligente. Quanto à miniatura do velocino guarde-a com cuidado por que poderá precisar dela. Segure-a e pronuncie somente Lux Velocino Tam!  E ela lhe ajudará nas situações difíceis, mesmo aí neste seu mundo! Agora vou-me embora.
  - Eu queria agradecer-lhe pelos grãos mágicos de milho. Sem eles eu e meus amigos não teríamos escapado de tantos perigos e nem derrotado Etnéa.
  - Não precisa agradecer, foi um prazer ajudá-los. Adeus!
  - Adeus! – esta última palavra Pedro falou em voz alta.
  - Eu heim, currupáco! Petisco ganiu levantando o focinho e tentando farejar qualquer coisa.
  - Não é nada, amigos, foi o velho da cabana que conversou comigo eu...., ah! – bocejou de sono – amanhã conversaremos.

                                                           *   *   *

  - E boa noite para todos. Já são seis horas em ponto! – falou Leal aos seus ouvintes.
  - Seis horas! - espantou-se Sebastiana.
  - Puxa, passou tão rápido! – reconheceu Antônio Carlos.
  - Uau! Que história legal! – quase gritou Tião.
  - Boa, boa! – repetiu Japonês.  Leal escutava aquilo com grande satisfação.
  - Bem, creio que já abusei demais da hospitalidade de dona Sebastiana – disse Leal se levantando, no que foi acompanhado de Esmeralda que procurava desamassar o vestido com as mãos.
  - Imagine! Foi um prazer seu Leal. Pode voltar sempre..., e a menina também.
  - Obrigada – agradeceu Esmeralda. Saíram todos.

  Lá fora Leal falou aos meninos:
  - Vão todos direto para suas casas. Não quero que seus pais imaginem que ficaram depois das seis andando por aí.
  - Semana que vem tem mais? – perguntou Dino.
  - Basta combinarmos. Se desejarem podemos antecipar para sábado à noite, instalando luzes no Teatro Jornada do Amanhã. Afinal de contas é verão e está calor. Só não pode é chover!

  Os meninos ficaram satisfeitos e prometeram conversar com seus pais. Agora levavam nas mentes as imagens que haviam criado das novas aventuras de Pedro Pinote ou Cabelos de Ouro. Leal carregava alegria em seu coração por ter compartilhado de momentos tão importantes com jovens.

Por Rayom Ra

Acesse também os links:
1.HistóriasMágicas(1)
https://arcadeouro.blogspot.com/2018/06/pedro-pinote.html (1)



                               Obra revista em 23-06-2018.                                                

                                           SÉRIE HISTÓRIAS MÁGICAS

                                          *  PEDRO PINOTE

                                            *  O REINO DA FLORESTA QUE SECOU

                                              *  O VELOCINO
                                                        
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                                                     Rayom Ra                                                          http://arcadeouro.blogspot.com.br