domingo, 28 de agosto de 2011

A Grande Luta

                                      Extrato de A Face Negra da Terra - Parte II

         A pequena nave o deixou ao portão do Jardim Ardente, no alto da montanha. As guardiãs - duas gigantescas águias -  pularam de sobre as árvores, pelo lado de dentro, soltando guinchos a festejar. Abriam e fechavam as enormes asas e saltitavam.
       - Saudações, amigas, já estava saudoso. Em resposta, elas soltaram novos, porém estridentes guinchos; não demorou surgiu um homem louro, de jaqueta e calças verdes, em rápida carreira, trazendo à mão uma grande chave, presa à imensa e desproporcional argola.
       - Senhor Bruno! – disse surpreso.
       - Sim, Hernandes - ele abriu o portão de ferro.
       - Já faz algum tempo! – falou sorrindo enquanto fechava o portão, após Bruno adentrar.
      - Minhas amigas! Bruno aproximou-se levantando um braço acima da cabeça, acariciando-lhes o peito. Elas emitiram chilreios, abrindo e fechando novamente as asas.

       Eram magnificamente grandes, de proporções pré-históricas. Possuíam penas em diversas cores, como se desenhadas ou pintadas à mão. Na maior parte, detinham nas bordas a cor ígnea, como chamas, e o interior azul. Por todo o corpo, entre as carreiras de penas, envolviam-nas finos e bem modelados anéis na cor branca ou dourada. Os bicos eram perfeitamente dourados  - quase brilhavam - bem como as patas e pernas; essa mesma cor ornava-lhes uma coroa de penas salientes bem no topo da cabeça. Também a cor ígnea, total e completamente, vinha ser encontrada no lado interno de suas asas, e quando as abriam, davam a impressão de acender duas grandes fogueiras.
        - Quase três anos, irmão - Bruno voltava-se definitivamente para Hernandes. - Naquela ocasião, obtive a inspiração para rescrever nossa última centúria.

       Indescritível aroma espalhava-se no ar. A alameda diante deles, embora larga, inserida numa densa vegetação, não permitia, dali, a nada discernir. Começaram a andar. As gigantescas águias voaram novamente para as altíssimas árvores com ruidosidade. Logo, ante a grama roxa, ambos se depararam com muitas folhas de majestosos antúrios e grandes samambaias. Eles pisavam sobre largas pedras em trilhas paralelas e elas pareciam possuir grande vitalidade. Milhares de minúsculos pontos vermelhos rebrilhavam sob uma capa azulada na transparente superfície. Bruno, vez por outra, baixava a cabeça a fim de desviar-se das folhas ou de compridíssimos caules. Hernandes, nem tanto: tinha baixa estatura; era ligeiramente roliço e de bochechas coradas. Possuía traços hispânicos, os cabelos eram louros, com pequenos cachos à volta da farta cabeleira e sobre a testa, parecendo desejar desmentir ou confirmar a evidência racial.
       - Há alguém mais aqui? – perguntou o visitante a certa altura.
       - Não, senhor. Os chineses se foram faz dois dias.
       - Quem?
       - Mestres Tong e Huang.
       - Ora, teria imenso prazer em revê-los. Eles, afinal, conseguiram o que buscavam?
       - Somente Mestre Tong. O outro foi embora muito triste.
       Chegaram após subir uma leve e prolongada inclinação e os degraus de acesso à varanda do chalé. Um calor diferente permeava a atmosfera, provocando sensação de leveza e bem estar. A meio caminho, Bruno parou e encostou-se na cerca, apoiando as mãos no corrimão, olhando lá fora a magnificente claridade. Era imensa; abria-se para cima suntuosamente como inimaginável flor. Seus olhos brilharam sob um misto de respeito e apreensão, e suspirou. Hernandes, a seu lado, observou-lhe aquele tipo de emoção e ansiedade espiritual. Bruno voltou-se para adiante reiniciando os passos. Pouco depois no quarto sentava-se na cama. 
       
                                                                     *   *   *
       - Posso preparar o banho ablutor? – perguntou Hernandes, mais tarde.
       Bruno elevou o olhar para a porta assentindo com gesto de cabeça. Poucos minutos depois, traspassava de permeio as longas e verticais lâminas da cortina, adentrando a sala de banhos. Suave névoa se elevava do interior da pequena e circular piscina sob o assoalho. Folhas e pétalas de flores, em variados matizes, navegavam ao quase imperceptível movimento da água azulada. Sutil odor pairava pelo ar, resultante da soma das várias misturas dos ingredientes ali utilizados. A luz proveniente da janela aberta projetava-se sobre a piscina, e era suficiente. Somente umas poucas e inexpressivas penumbras resistiam nos cantos.

       Hernandes, de joelhos, arqueado, tendo às mãos pequena ânfora de puro e reluzente ouro, vertia na água um tipo de essência amarelada. Enquanto realizava isso murmurava uma inaudível oração. Tendo procedido a adição, trouxe a ânfora a sua volta e a tampou, tomando de sobre um pano ao chão a diminuta pá de igual ouro, começando a revolver a água com movimentos circulares. Novo aroma evolou-se, vindo juntar-se ao odor já espalhado. Ao término, enxugou rapidamente a pá, enrolando-a no mesmo pano, e somente então cessou de murmurar. Levantando-se olhou pela primeira vez para Bruno desde que aqui ele entrara.

       - Está tudo pronto, senhor Bruno! – informou satisfeito. Bruno esboçou tímido sorriso, despiu-se e se acercou da piscina, agachando-se e sentando-se à beira. Em ato contínuo, apoiou-se com ambas as mãos, impulsionando o corpo para adiante, tocando o fundo, andando até o meio da piscina. A morna água alcançava-lhe o alto das coxas; ele fechou os olhos fazendo uma oração. Depois se ajoelhou: a água subiu-lhe ao coração; ele prendeu a respiração, dobrando-se, e mergulhou completamente a cabeça, permanecendo assim por um punhado de segundos. Quando emergiu, trouxe duas pétalas nos cabelos. Levantou-se e deixou a piscina.

       Hernandes estendeu-lhe o roupão branco; ele se enfiou em suas mangas, enlaçando-o frouxamente. Tomou a toalha, a seguir ofertada, e com rápidos toques - sem esfregar -  procurou enxugar o rosto e a cabeça, abandonando o lugar. Minutos depois Hernandes novamente se anunciava à porta do quarto, obtendo permissão para entrar. Portava sobre um braço a roupa e segurava um par de sandálias, deixando-os sobre a cama, próximo dele. Tão logo Hernandes se retirou Bruno despiu-se e vestiu a roupa: era uma jaqueta e calças azuis, e calçou o par de sandálias na mesma cor. A jaqueta abria-se até o meio do peito; dali desciam até a barra sete botões forrados. Sobre a gola e junto à carreira dos botões, bem como à barra tocando às coxas, margeavam dois delgados e paralelos filetes de ouro. Filetes como esses vinham também adornar às bordas dos ombros, das longas mangas e dos largos punhos. Da mesma forma, filetes apareciam de cima abaixo nos frisos laterais externos das calças, e, todos - desde a jaqueta -  lançavam rápidos rebrilhos a exemplo de diminutas faíscas,  sempre que a luz diretamente neles incidia.  

       Bruno assomou à varanda. Nesse momento tudo nele ganhara especial realce: o alto porte, a fortaleza física, a pele negra especialmente lisa, o semblante espelhando austeridade, a bela veste! Impressionaria qualquer público. Haveria nesse homem uma rara essência, um propósito superior. Bruno teria tudo isso e desceu ao solo pisando a relva arroxeada, caminhando em direção ao Jardim. Mas a despeito dessa incomum aura, seu íntimo revelava apreensão. Talvez devesse a um sentimento guardado de infantil respeito ou temor à claridade, ou à própria realidade. Isso o incomodava. Evidenciava-se não ter sido capaz de buscar em si mesmo a solução de um problema, e o vergonhoso pensamento acompanhou-o no decurso de seus passos.

       A claridade crescia à medida de seu avanço. Seria fato comum, natural, físico ou mesmo ótico; entretanto, a dimensão da claridade era algo sobrejacente, superior, vindo-lhe à percepção imaginativa e intuitiva por fugidios relances, escapando-lhe ao controle. E por instantes o confundiram, pois entre um e outro desses relances o ego voltara a submergir em seu próprio e pessoal conteúdo, naquilo a que seus pensamentos aportara. Haveria, assim, duas formas e uma só representação - já sabia disso - mas existiria uma substancial diferença em relação à sua última visita ao Jardim, caracterizada pelo móvel dessa nova solicitação.

       Em cumprimento ao ritual, uma das gigantescas águias pousou a poucos metros do Portal, ruflando as imensas asas, deixando-as abertas, impedindo sua progressão. Bruno juntou as mãos estendidas diante do rosto em suave gesto, dobrou-se em vênia, e voltou à posição original. Então pronunciou firmemente:

       - Minha vontade é força, meu propósito é Deus, minha intenção é o mundo. Deixai que mais eu me aproxime do Portal, onde além arde a Chama do Saber!

       A águia, mantendo as asas aberta, soltou um guincho dando três pulos para trás; Bruno deu três largos passos adiante; parou e novamente pronunciou as mesmas palavras. Ela soltou um mesmo guincho e de novo lançou-se para trás em três pulos. Bruno adiantou-se como antes e pela terceira vez pronunciou as mesmas palavras. A águia deu mais três pulos para trás, e a um metro do Portal soltou um novo guincho, porém desta vez muito mais estridente e horripilante. Então bateu as asas, provocando vento que mexeu com galhos e folhas do arvoredo mais próximo, e alçou vôo em direção oposta ao Jardim.

       Seus passos seguintes foram lentos e trouxe os olhos pousados no chão. Relembrava o objeto da visita como a reafirmação de uma senha que lhe permitiria adentrar. A um metro do Portal, no exato lugar onde a águia por último permanecera, ele parou e elevou a cabeça. O Portal era magnífico! Duas largas e frisadas colunas resplandeciam uma luz não totalmente branca, porém translúcida. Essa luz vinha irradiar-se para frente e pelas laterais externas. Acima tinha o arco, constituído de sete cores num pequeno arco-íris que pousava as extremidades sobre capitéis. Nada naquele portal teria a solidez da matéria: havia supina suavidade em todas as suas formas. Nada depreendia senão magnitude e admiração, e rebrilhava sem ferir ou ofuscar a visão. Não obstante, transmitia a exata idéia de ali existir uma intransponível fortaleza para quem não viesse incorporado de um real motivo, com a mente purificada. O coração poderia estar pesaroso ou entristecido por que, afinal, ele vinha pedir, mas o cerne do pensamento precisaria estar anelado a uma nobre razão e impessoal objetivo. O Portal do Jardim Ardente era de todas as maneiras luz concentrada, formalizada em poder - isto se tornava evidente!

       Mas havia uma cortina completamente negra como um pedaço da noite, separando o Jardim do mundo exterior. A claridade anunciada detrás das imensas folhagens das gigantescas árvores era impossível ser contida ou ignorada, e deveria mesmo ser observada por qualquer um. O caminho, entretanto, a via única de entrada e o que mais ao derredor pudesse existir, achavam-se encobertos. Ao Portal muitos chegariam, mas ao seu umbral nem todos ultrapassariam. E dentre os que ultrapassassem, nem todos obteriam aquilo que tinham vindo buscar. Este era o grande dilema e a prova subterfugia!
                                        [ (clique no título) A FACE NEGRA DA TERRA - PARTE II ]              

Rayom Ra

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