ENIGMA EU
PREFÁCIO
Nunca foi tarefa das mais fáceis prefaciar ou mesmo tecer críticas a uma obra literária, principalmente porque é necessário se incorporar ao espírito da obra, mais ainda, ao dos personagens, como se fossemos fazer um laboratório para um espetáculo teatral.
Em Enigma Eu não foi diferente. Sorman, o personagem principal, através da pena cativante de Rayom Ra, o autor, nos transporta a uma viagem interior, em busca não só dos conhecimentos somente alcançados pelos iniciados nos mistérios da alma, na força do pensamento, no esotérico, em seu sentido mais filosófico, mas em seu próprio autoconhecimento.
Naturalmente o personagem é incomum, se formos entendê-lo através dos valores do cotidiano. Sorman é inconstante no cogitar; é inadaptado, atormentado! Não consegue sentir a vida sem uma razão mais profunda. E, por infelicidade, não pode ainda atinar com essa razão!
E à medida que a história vai mostrando os caminhos tomados pelo personagem a fim de chegar ao autoconhecimento, vem também revelar que somente será possível alcançar este desiderato pelas trilhas ocultas das iniciações.
Por isso o leitor, a cada página, descobre mais e mais o envolvimento dos quatro elementos básicos – terra, ar, fogo, água – nos caminhos que a vida pode lhe oferecer.
A importância do livre-arbítrio ao se deparar com a dicotomia da vida e com a escolha do caminho a seguir funciona com catarse, verdadeira mola propulsora para a auto-realização.
Não que Enigma Eu seja uma obra de autoajuda. E é esse o aspecto que termina por fascinar o leitor, pois sem ter aquela pretensão acaba por chamar a atenção para detalhes que muitas vezes passam despercebidos.
“Enigma Eu” é, portanto, a dramatização do que concorre com elementos exógenos da personalidade com os endógenos e imanentes da individualidade – em desconcertantes oposições – que são trazidos à tona nesta fantástica história iniciática, provocando um encontro lúdico com o Eu Interior de cada leitor e reações só descritíveis ao percorrer cada página desta magnífica obra.
Edilson Cantalice
CAPÍTULO I
O ASHRAM
"Havia, exatamente agora, em todos os reinos, a luta
pela sobrevivência: titânicos duelos, micro universos
se revolvendo, expandindo-se!"
Chovia. Embora a tarde deixasse transparecer nítida claridade, era intensa a precipitação. O calor sufocante vinha causando incômoda sensação. Aqui e ali notava-se a causticante ação do sol neste verão. Árvores quase ressequiam, folhas sem vida esparramavam-se no solo poeirento, arbustos, capins e toda a sorte de vegetação rasteira pendiam, muitas semi-inertes!
O azul incomparável desaparecera pela presença de saudosas e enodoadas nuvens. O estrondar era ouvido através do ar, persistia. Ribombos seguiam-se como a comemorar uma presença ilustre. O céu riscava-se de recortes – temidos relâmpagos! E de novo o estrondar e de novo o ribombar!
Sorman, a um passo da janela, olhava através da vidraça. Em seu íntimo a gigantesca luta, os exércitos de tantas conquistas. Entre ele e a janela um vasto mundo que não caberia naquelas dimensões reduzidas e limitadas. Sua mente viajava; o ego lutava; passado x presente, ação e reação: eis o campo de batalha. Como o Kurukchetra; como Arjuna, porém onde estaria Krishna neste momento?
A chuva continuava. Sorman não lhe acusava inteiramente a presença, a consistência da mensagem. A terra quase desaparecia, afogava; a água empoçava, se infiltrava. O ruído, a princípio macio, crescia a cada minuto como a enfrentar um suposto adversário e opositor. A reação, antigamente alquímica, tomava nova forma, volatilizara-se mais. O natural aroma, produto da umidade do ar com o calor terreno, deixava de ser percebido. Existia ainda, mas se distanciava neste instante dos sentidos humanos! E a vida continuava rolar. Havia, exatamente agora, em todos os reinos, a luta pela sobrevivência: titânicos duelos, micro universos se revolvendo, expandindo-se!
À primeira análise, a presença física de Sorman nada revelava. Seria a imagem de uma esfinge humana: rosto moreno, larga testa, sobrancelhas bem delineadas, nariz delgado em oposição aos grossos lábios e queixo afilado. A pele era especialmente lisa no vigor dos vinte e um anos. Os longos e negros cabelos colavam-se à cabeça; fino cordel os prendiam caprichosamente à altura da nuca obrigando-os a cair brandamente até o meio das largas costas. Era alto o jovem, belo e esbelto! Mas não se movia. Com pernas ligeiramente afastadas, braços atrás, mão direita sob a esquerda e punho cerrado, permanecia ereto.
Encontrava-se exatamente assim por mais de vinte minutos, ou mais de vinte séculos? Seria a imagem congelada do próprio passado, testemunha de tantas efemérides e dramas profundos. Que teria visto um jovem e crestado judeu aparecer na Galileia, pregar uma nova ordem de ideias; ser repudiado pelos seus, apedrejado, e ainda assim tê-los amado tão intensamente que até hoje o mundo não consegue entender a plenitude deste louco amor! Talvez presenciasse antes outro jovem, rico e príncipe, deixar atrás de si o fausto e a estirpe, embrenhar-se pelas matas de Gaya; viver meditando anos a fio em companhia de anacoretas, pobres e mendicantes; chegar a tal estado de iluminação e sabedoria que humano algum houvera jamais experimentado! Presenciaria o nascimento de uma civilização que se chamaria helênica, veria o florescimento e a glória de suas conquistas. Um povo escolhido, soberbo, que exaltara o bom, o belo, o verdadeiro. Que despertara, nesta exaltação, valores superlativos do espírito, arte e ciência, antes só inerentes. Que encontrava numa simples curva geométrica ou na perfeição de um ângulo, as relações que faziam tremer a sustentação das idéias sobre o mundo. Que necessitava tomar das armas e sair e combater!
Porém, se nada disto - se suspeitasse - transpassava a mente daquela jovem alma, como névoa áurica, em linguagem não concatenada ou inteligível ainda, também a fisionomia nem registrava nem transmitia; nada permitia dela inferir-se. Era inexpressiva, não transparecia, exceto total ausência. Vida por ali estar, inércia por se permitir Este sombrio quadro seria perfeito, irretocável, digno de figurar em tela de virtuoso artista, cuja mão, dotada de impulsos da mãe inspiração, pudesse trazê-lo à ótica do observador.
Tudo perfeito, porém traído por um único fundamental detalhe: os negros e grandes olhos! Esses sim: brilhavam e retransmitiam; jorravam, por sua luz, angústia e preocupação! Vez por outra, apertavam-se quase imperceptivelmente; de repente, distendiam-se ante uma idéia, uma resposta! Mas logo revertiam sua expressão para a indecisão, um confronto, o apego, a confusão ou o caos! Olhos janelas da alma, retratos vivos das emoções!
Porém, se nada disto - se suspeitasse - transpassava a mente daquela jovem alma, como névoa áurica, em linguagem não concatenada ou inteligível ainda, também a fisionomia nem registrava nem transmitia; nada permitia dela inferir-se. Era inexpressiva, não transparecia, exceto total ausência. Vida por ali estar, inércia por se permitir Este sombrio quadro seria perfeito, irretocável, digno de figurar em tela de virtuoso artista, cuja mão, dotada de impulsos da mãe inspiração, pudesse trazê-lo à ótica do observador.
Tudo perfeito, porém traído por um único fundamental detalhe: os negros e grandes olhos! Esses sim: brilhavam e retransmitiam; jorravam, por sua luz, angústia e preocupação! Vez por outra, apertavam-se quase imperceptivelmente; de repente, distendiam-se ante uma idéia, uma resposta! Mas logo revertiam sua expressão para a indecisão, um confronto, o apego, a confusão ou o caos! Olhos janelas da alma, retratos vivos das emoções!
- Sorman, venha, o café está na mesa! - a voz caia-lhe longínqua; invadia o seu mundo; atravessava gradualmente fronteiras; fazia-o emergir do passado, despertando-o para a realidade do presente. Sorman remexeu-se volvendo suavemente o rosto, como acordasse de um sono. Procurou reassumir a consciência dos sentidos. Os membros dormentes pouco a pouco reagiam; ele já sentia a energia percorrê-los. Ficou, porém, como estivera: sem ânimo, e tornou a olhar através da janela. Notava agora o gramado e os canteiros encharcados, as flores a balouçarem-se ante o peso da chuva!
- Venha, filho! - insistia sua mãe. Ele, finalmente, voltou-se sério, andou até a mesa e sentou-se. Olga acompanhou-o. Sorman comia de tudo, experimentava o que havia sobre a mesa; buscava readaptar o paladar.
- Já decidiu aceitar a oferta de seu pai? - a pergunta vinha-lhe acompanhada de tímido sorriso, polidamente. Em seu bojo uma auréola misturada a sofrimento e preocupação. Por três anos ele estivera ausente, mas ficaria?
- Não, ainda, quero somente decidir na próxima semana.
- Algo o preocupa? Posso talvez ajudá-lo, ou seu pai.
- Não, mãe, nada de ajuda. Preciso decidir sozinho! - a resposta veio enérgica. Ela o conhecia, mudou o rumo da conversa não conseguindo grande resultado.
Sorman subiu ao quarto chegando-se à janela. Levantou a vidraça e apoiou-a sobre pequeno pedaço de peroba. Permitia assim a circulação do ar. A chuva arrefecera um pouco, mas era intensa ainda. Abriu o armário e retirou a flauta de bambu. Sentou-se na cama iniciando solfejos. As notas suavemente deslizaram, ele se concentrava na execução. A melodia já tomava forma, percorria a escala dentro da harmonia, trazia-lhe o oriente. Ele ajeitou-se, cruzou as pernas em padmasana - a postura do lótus - como os iogues, e reiniciou a melodia. Era melancólica.
Logo largou o instrumento, unindo as extremidades dos dedos e apoiou as mãos sobre as pernas. Em gesto muitas vezes repetido correu o olhar pelo quarto, tanto quanto dali a posição lhe permitia e examinou alguns de seus pertences. O armário de jacarandá, a estante, os livros, quadros de motivos místicos, o poema “If” de Rudyard Kipling. Estava tudo ali, exatamente como deixara ao partir. Estranho que ao abandoná-los eles nada mais representassem, pouco lhe dissessem. Como poderia supor que três anos depois viria a sentir falta deste pequeno mundo, deste quarto? Julgara-se para sempre liberto de apegos, da família, dos amigos; abraçara nova vida, um mundo diferente: fraternal, amplo, espiritual. Teria se enganado ou fora pusilânime?
Voltou à janela. O peitoril molhava-se e o chão umedecia nas proximidades; a chuva voltara a cair forte e ele retirou o apoio de peroba, fechando novamente a vidraça. Deitou-se e cerrou os olhos. O rosto de Rama assomou em seus pensamentos e passou a rever o último dia que com o mestre estivera.
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Aquela manhã festejava a existência. A natureza, jamais convertida a qualquer restrição, esbanjava liberdade e especial viço, respondendo com alegria aos fluxos energéticos do grande astro. A vida nas árvores, trepadeiras, jardins, e horta, fluía fácil, impregnava sem esforço, comemorando novo dia! Os pássaros exaltavam a maestria de seus cantos. Os insetos pareciam alçar voos mais livres: emitiam zumbidos mais alegres e desprendidos; executavam com melhor harmonia as partituras da aquarela musical. Era tudo leve, suave, exalante! O ar portava o odor do orvalho que já desfalecia, das plantas que emanavam, das ervas cheirosas e da própria terra umedecida!
Nesta hora, já era intenso o movimento no ashram. Mulheres e homens rapidamente realizavam as primeiras tarefas: limpavam dormitórios, corriam às hortas e pomar, dependuravam roupas ou jogavam panos sob o sol. A saudação ao astro rei já houvera sido feita com natural vênia e devotada oração. Agora era movimento, sanskâra!
Sorman, de pé, encostado à porta da cabana, olhava o caminho. Adiante, margeantes árvores projetavam grandes sombras pelo chão. Aqui e acolá, outras cabanas produziam quadro interessante e típico de toda aquela comunidade. As paredes eram de alvenaria, mas as coberturas eram de palhas trabalhadas, depositadas em camadas. Vãos de portas ou janelas ostentavam cortinas de pingentes enodoados, confeccionados artesanalmente.
Ele mal dormira. Levantara, bebera água, saíra e retornara. Anita, ao contrário, dormia profundamente, sem ao menos suspeitar da natureza da decisão que ele tomara. Porém, como dizer-lhe que a deixaria apesar de amá-la? Seus olhos cobriam-se de tristeza ao contemplá-la. A sensibilidade da companheira já houvera detectado que seu espírito lutava. Acontecera outras vezes e ela apoiara-o. Sorman acabava sempre se superando, ou então abafava os gritos no seu íntimo. Por isto, ela não lhe fazia perguntas nem lhe sugeria a terapia da catarse: aguardava que ele viesse, sentasse diante de si e começasse a se soltar. Desta feita, porém, não acontecera; era algo diferente. Crescia nele outra inconsistência: como se o espírito procurasse apoio, mas este apoio lhe faltasse; como se as experiências até agora aquilatadas não fossem suficientes ainda; como necessitasse muito mais para tentar avançar.
Decidido, largou-se a caminhar. Iria ter com o venerável Rama, o indiano, patriarca de toda a comunidade. Conversaria com ele, solicitaria o desligamento. O cheiro de incenso banhou-o e evolou-se. Adiante, ouviu um cântico acompanhado de música. Conhecia-o, cantava-o sempre, ou executava-o com a flauta. Era em louvor a Brahma. Isto, porém, causou-lhe tristeza e baixou os olhos, prosseguindo cabisbaixo. Um beija-flor flutuou bem a sua frente, ruflou as asas e estancou de repente. Este súbito aparecimento chamou-lhe a atenção; ele levantou a cabeça para observá-lo. O gracioso e pequeno pássaro realizava novos movimentos, novas evoluções, e partiu tão ligeiro como surgira. Sorman acompanhou-o com os olhos. Agora nem o cântico nem a música o atraiam, esquecera-os. Encontrou dois irmãos da comunidade que o saudaram. Ele uniu as mãos estiradas, encostou-as no peito e respondeu. Finalmente chegou. À porta da cabana chamou Rama. Ao ouvir a permissão entrou.
Mestre Rama sentado a um canto comia maçã. Sorman saudou-o. Ele respondeu largando o fruto e unindo as mãos à frente. Estava em padmasana. Sorman sentou-se diante dele em igual postura. Rama tinha os cabelos longos e encanecidos, a tez morena e o rosto liso. Era magro, vestia-se de branco.
- Venerável, tenho saudade da minha casa - começou sem hesitação; Rama olhou-o atentamente. - Mestre faz-se confusão em meus pensamentos. Há três anos fui aceito no ashram, fiz meu voto e aqui tenho vivido. Deixei o mundo, a família, os amigos. Fi-lo segundo o lema que o mestre adota: liberdade. Daqui não mais saí, exceto para o cumprimento de minha missão de divulgar, tanto quanto possível, a vida ideal, ou para a pequena comercialização de nossos produtos artesanais. Tenho obedecido religiosamente às poucas regras que fundamentam nossa moral e organização comunitária. Tenho meditado e aprendido todos os ensinamentos que o senhor, reverendíssimo, nos passa. São úteis e necessários ao espírito. Porém, mergulho em crises. Elas vêm e se vão. Supero-as, mas novamente outras crises ressurgem. Desta feita, a crise que se levanta em meu íntimo já dura demais, permanece, não me dá tréguas. Revolve-me, agita-me. Amiúde meu espírito lança à mente quadros; faz-me despertar recordações, apegos julgados extintos. Existe em mim uma ânsia constante, nada consegue detê-la. Sinto necessidade de voltar às minhas raízes, retomar o que deixei; recomeçar. Meus pais, meu lar, meu quarto. Estão todos vivos, pulsam-me! Quero ir-me, mestre, para talvez conhecer Maia cara a cara. Peço sua permissão e seu perdão!
Rama encarou-o mais frontalmente; Sorman envergonhou-se. Quis baixar os olhos, porém não conseguiu; Rama atraia-o, permeava-o, vasculhava-lhe os pensamentos. Sorman sentiu que ia desfalecer: os sentidos físicos se apagavam. Era como se, de repente, mente e alma fossem tocadas, sendo, porém, frágeis – simples brinquedo manipulado por Rama, que percebia nele os seus meandros e total extensão. Era tudo muito vivo em seu íntimo; ele sentia com nitidez o olhar arguto e percuciente do mestre, mas nada podia fazer; achava-se quedado de todas as forças, da capacidade de reagir. Este episódio, impar em sua vida, teria durado, talvez, não mais do que três ou quatro minutos; este resgate no tempo, o rasgo no éter, a leitura de várias vidas. Rama baixou o olhar e Sorman reassumiu o seu próprio domínio.
O mestre agora o olhava tranquilamente. Sorman aguardou por uma censura, talvez por ambíguos e propositais argumentos, como lhe era próprio utilizar quando se apropriava da dialética e que viessem deixá-lo embaraçado, como inúmera vez fizera-o Rama. Estava, porém, pronto, preparava-se para rebater, reafirmar a decisão! Ao invés disto, surpreendentemente, Rama sorriu, estendendo a mão em direção da porta, em gesto suave e coreográfico, dizendo:
- Vá, tem a minha benção! Atônito, Sorman olhou-o inquisitivamente, mas Rama silenciava. Sorman, então, conscientizado do momento, arcou-se, e, pela primeira vez desde que aqui chegara, tomou a mão do mestre e a beijou. Seus jovens olhos inundaram-se, as lágrimas rolaram pela face morena. Levantou-se e se foi.
Não terminaria ali o duelo, ao contrário, somente iniciava-se. Iria ter agora com Anita. Todavia, não necessitou encontrá-la. Ela já vinha a sua procura. Sorman parou. Ela notou-lhe o rosto sério e olhar contrito a denunciar-lhe algo mais que nova crise. Sorman desta feita hesitou, mas conseguiu falar:
- Estive com Rama, vou-me embora - ela empalideceu - foi-me difícil dizê-lo a Rama como me é agora. Preciso voltar a casa.
- É definitivo? - balbuciou ainda surpresa.
- Sim, não creio que vá retornar. É morte aqui ou vida lá fora...,penso.
- E quanto a mim? – ela mostrava temor pelo que não desejava ouvir.
- Não tenho o direito de torná-la infeliz. A vida é minha; é meu destino; somente eu devo encontrar-me. Preciso recomeçar o que seja meu legado - ele falava com amargura.
- Por que, Sorman? - ela tentava compreender.
- Por quê? Não sei..., é algo indômito, chama-me!
Anita baixou o rosto. Nada mais havia a dizer. Sorman era independente, sempre o fora. Tola fora ela em pensar que o tivera para si. Não se conquista um coração que a nada ou a ninguém se prende, que desafia; ela já devia saber disto. E de novo ele desafiava. Abandonava a tudo quanto, ali, ardentemente se dedicara. Mas retornava..., por quê?
Estando a emoção prestes a romper, Sorman procurava controlar-se. Sentia ímpetos de abraçá-la, pedir-lhe perdão por traí-la. Mas era melhor não. Superando-se, com mão trêmula, levantou o queixo da moça olhando-a no claro rosto. Os verdes olhos de Anita marejavam.
- Amo-a! - sussurrou, beijando-a suavemente nos lábios, deixando-a após, prosseguindo em direção da cabana.
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Sorman partia. Nada trouxera, por isto também nada levava, exceto a roupa do corpo, mínima quantia em dinheiro e a flauta de bambu confeccionada com as próprias mãos. Prendia-a à cintura: singela recordação! Ia, porém, mais rico. Os valores com que o espírito esgrimia que o levavam a tomar decisão como esta, eram, não obstante, maiores, mais notáveis; transcendiam ao entendimento comum. A mente trabalhava com a matéria prima que ao próprio espírito pertencia, ainda que hesitante, sem o toque sutil da lapidação ou inequívoca certeza do que possuía. Mas Sorman precisava de mais; sentia-o, queria mais, mesmo a custa de sofrimento. E esta ânsia contribuía para que a jovem alma se sentisse instável, insegura, qual nau em mar revolto, buscando o verdadeiro rumo. Mas a despeito de tudo, sua riqueza era verdadeira.
Apesar da emoção, cuja explosão a custo conseguira conter, sentia-se, de certa maneira, mais leve. Libertara-se da incômoda pressão que o torturara, conclamando-o à decisão. Esse primeiro passo dera-o. Sabia, porém, que não se larga assim, sem mais nem menos, uma vida singular como aquela. Os hábitos e disciplinas com que convivera, permaneceriam em si por muito tempo, em seus reflexos mais comuns. Não se apartaria deles tão facilmente e das recordações que eles certamente lhe trariam como era, literalmente, virar as costas para o ashram e simplesmente caminhar. Não seria assim!
Por curiosa associação de idéias, vinha-lhe à mente a figura do jovem Sidarta de Hesse, que tanto o inspirara na adolescência. De certa maneira, houvera se identificado com ele ao abandonar a família. Havia, entretanto, uma diferença, uma questão de direção ou sentido: o personagem de Hesse prosseguira sempre em frente, deixando para trás, em definitivo, seu atavismo. Fora mestre de si próprio desde o início. Ele, Sorman, não. Logo na primeira investida voltava ao lar paterno. Estaria talvez - prosseguia em sua análise - mais para a conturbada personalidade biográfica de Hemingway do que, propriamente, para Sidarta. Hemingway, por absoluta incompatibilidade com as relações familiares, buscara nas agruras da vida os valores humanos de que necessitava. Mas ainda assim, a experiência dele fora mais dolorosa, traumática. A sua, entretanto, até certo ponto, era suave..., e agraciada!
O sol quase abrasava. Apesar da serra e da vegetação abundante, - que além da natural umidade do orvalho na madrugada, recebera ainda rápida pancada de chuva, - o calor sobrepunha-se ao ar temperado: característica normal das alturas, e castigava. O aroma exalado da terra, plantas e árvores umedecidas enfraquecia, Sorman não o percebia mais. Ali na estrada, também o aroma parecia despedir-se. Nas cidades isso quase terminara. Na metrópole para onde Sorman retornava o fato se repetia, a situação era a mesma: fim da natureza, morte ao verde, caos urbanizado! Ele a detestava apesar de ter crescida nela; se sufocara, mas resignara-se, pelo menos enquanto nada pudera fazer. Depois a largara, deixando-a sob sua própria dependência: jamais lhe pertencera!
Mudou o sentido dos passos e aproximou-se de pequena queda d’água que deslizava de alta pedreira. Molhou a cabeça, a nuca, os pulsos, e bebeu. Isto o refrescou; causando-lhe, ademais, reação, e deixou de divagar. Movia-se agora com o pensamento mais concentrado; prosseguia à margem, descendo sempre. Até aqui andava propositalmente; desejava sentir o peso da decisão ou a leveza dela, caminhando.
Tão súbito como um flash, o rosto de Anita estampou-se em sua mente, assaltando-a. De imediato surge o ônibus. A clara e fina mão levanta acenando-lhe. Seu coração o surpreende. Um misto de tristeza e alegria converge. Sorman senta-se ao seu lado. O coração acelera. Ela segura-lhe a mão; a dela está fria.
- Por que, Anita? - murmurou.
- Nada mais tenho a fazer lá. Morreram-me também os sonhos. Solicitei meu desligamento – Sorman mergulhou no silêncio. Ela pressentindo-lhe a volta do drama retomou: - não se culpe, Sorman, a decisão foi somente minha. Estou me sentindo aliviada por tê-la tomado. Não desejo a dependência, mas de tudo desapegar-me. Nada de sonhos, nada de ilusões.
- Liberdade!
- Sim, liberdade. Conclui que não é o lugar, nem são as pessoas nem o modus vivendi; porém eu mesma, Anita. Lá aprendi isso e ajudou-me a decidir.
- Mas a decisão, como foi tão rápida?
- Você inspirou-me. Você pensou por mim o tempo todo. Crucificou-se cruelmente e com atitude corajosa fez-me entender que também eu precisava ir-me, era hora.
- Mas o ashram..., você o amava!
- Amo-o, ainda, muito, muito – seus olhos marejaram. Ela baixou o rosto, largou-lhe a mão e enxugou as lágrimas com a fina veste, puxando-a dos joelhos, desajeitadamente. Depois se recostou na poltrona respirando profundamente - tentava controlar-se. Após segundos, prosseguiu com voz embargada: - amo-o e jamais o esquecerei. Ele é importante, acolheu-me, deu-me amor, a visão de uma vida nova, interior, com verdadeiro sentido. Colhi a mensagem, vivi a experiência; creio tê-la entendido. Por isso amo-o, e a Rama, aos irmãos, aos deuses e a Brahman, o Supremo Criador. Não sou mais a Anita de outrora, frágil e insegura, desejando as sensações do mundo. Creio não sê-la.
- E o que fará agora, sua vida como será?
- Não sei. Volto para casa como você. Minha mãe me receberá, tenho certeza. Nada sei do amanhã, ainda não tive tempo de pensar, as coisas aconteceram tão rápido que perdi as rédeas. Somente sigo os sinais, os impulsos de meu coração.
Ambos silenciaram. Sorman relaxou pela primeira vez desde que sentara, fechou os olhos e respirou pausada e profundamente como aprendera no ashram. Isto ajudava. Anita virou o rosto para a janela, observando a restrita paisagem. O sol abundante espargia brilho sobre o mundo, iluminava. Porém, inatacável, ninguém o detinha, e do alvorecer, com seu abraço de acalanto, se tornaria de novo maldito, castigando impunemente.
A chegada ao lar teve lances dramáticos. Ao saber que o filho voltava em definitivo Olga chorou convulsivamente. Correu, após, ao telefone para contar a novidade ao marido. Não tardou ele apareceu. Abraçou Sorman demoradamente não conseguindo falar. Recuperando-se, resolveu fazer pequena comemoração, indo abrir um champanhe.
Como os acontecimentos recentes causassem-lhe estremecimento e a turbulência daquele momento provocasse-lhe também certo impacto, Sorman sentiu. Nada arrebatante, porém, que lhe rasgasse e marcasse a alma, mas emoção incontida que os laços sanguíneos fazem externar em situações críticas e que se extravasa. Para não estragar o ambiente alegre, apesar de emotivo, ele aceitou a taça estendida pelo pai e brindou com eles, sorvendo o champanhe até a metade. Alegando cansaço não demorou; logo subiu ao quarto lá permanecendo até a noite, descendo somente para o jantar.
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Sorman abriu os olhos. As imagens evocadas à memória ainda pulsavam. Sentou-se apoiando as mãos na cama e fixou o olhar no chão, começando a acompanhar os riscos do assoalho. Depois se levantou aproximando-se da estante. Correu o dedo por sobre a fileira de livros, parando-o naquele ao qual houvera antecipadamente escolhido, Sidarta de Hesse, e o tomou. Abriu-o na primeira página, relendo automaticamente as palavras da dedicatória que lhe haviam feito. Já as tinha esquecido; surpreendia-se por não se lembrar também do rosto da namorada que o houvera presenteado. Contava então dezesseis anos.
Curiosamente, a narrativa de Hesse, desde o momento em que a lera pela primeira vez, parecia antecipadamente conhecê-la: bebera-a palavra por palavra. Por dois anos manuseara o livro; relia principalmente as passagens que o haviam impressionado. Não se passando quinze minutos fechou o livro, recolocando-o na estante. Resolveu que meditaria. Sentou-se no chão, junto à parede, cruzando as pernas em padmasana. Iniciou o pranayama, depois exercitou dharana. E assim ficou por mais de uma hora.
Manhã seguinte saiu. Desde a chegada, há dois dias, permanecera em casa. O sol não se mostrava inteiramente; havia nuvens, a chuva cessara e foi à praia. Caminhou longo trecho sobre a areia, descalçou as sandálias, sentiu aquela agradável maciez sob os pés e a água a tocá-los em lances esparsos. Era cedo ainda, havia poucas pessoas por lá, cercava-se do silêncio de que tanto gostava: aprendia com ele. A ebulição das multidões já não o atraia tanto. Somente vez por outra vinha-lhe a necessidade de penetrá-las, ombrear-se, sentir-lhes daquela vida que a todos permeava.
As nuvens, de quando em quando, obstruíam a presença solar. Sorman voltava-se para o mar no justo instante em que um dos fragmentos de luz atingia-lhe a cabeça, configurando-lhe especial brilho aos negros cabelos. Movido por uma determinação do inconsciente, sem relutar obedeceu, soltando-os suavemente, permitindo-lhes espalharem-se com naturalidade sobre os ombros. Ficou assim por segundos - vários deles - a olhar aparentemente o vazio, nem ao céu nem ao mar, mas a um espaço intermediário de insondável profundidade. Depois, voltando-se de costas andou alguns passos, afastou-se da areia umedecida e sentou-se. Dobrando as pernas em padmasana, começou a refletir sobre o elemento água. Vinha-lhe à memória relatos mitológicos acerca de Netuno, Tritão e Nereidas. Sem perceber, passou da reflexão a contemplação. A quebração das ondas tocava-lhe a sensibilidade; ele abria a mente e as sentia. As ondas rolavam, se espalhavam mansamente: desapareciam para de novo reaparecer. O estereótipo causava-lhe entorpecimento. A mente já alçava vôo, liberava-se dos laços condicionantes; partia deixando a sós sua sombra. Os olhos de Sorman, abertos, nada mais viam; o corpo endurecido e empertigado parecia sem vida; somente os longos cabelos se moviam por aragens de brisa.
Foi verdadeira a viagem. Ao longe percebia uma voz de mulher entoando belo canto. Depois chegava um som mais forte, como de uma trombeta - ou talvez de uma grande concha - mas lhe caia macio, sem estremecimentos. Agora vozes, risos, conversas; era tudo bom, amigo, aconchegante! Ao retomar a consciência não soube precisar quanto tempo havia se passado. Voltara tão suavemente quanto partira. Havia leveza em seu íntimo e agradeceu a Maia e a Brahma!
CAPÍTULO II
ANGÚSTIAS
"Não adiantava tentar convencê-lo; ele jogava com tudo; parecia conhecer a todos os meandros e labirintos da mente; manipulava com os seus desejos. Então por que o levava a buscar conhecer-se?”
De colarinho, gravata e paletó Sorman adquiria ar austero. Os cabelos, neste dia, estavam soltos. Houvera-os mandado aparar consideravelmente; tocavam-lhe de leve aos ombros e nuca. Ao apertar mãos de diretores e funcionários da empresa – a alguns já conhecia – aquele ar desaparecia e o sorriso, ainda que tímido, abrandava, trazendo outro contorno ao semblante. Mas nada era natural; o momento embaraçava-lhe; às vezes ele se atrapalhava. A roupa pesava-lhe, parecia-lhe um equipamento. Resistia, não obstante! Doutor Eduardo, ao contrário, estava à vontade. A roupa nada lhe dizia – usava este tipo de indumentária por toda a vida. Ria de felicidade, batia no ombro do filho, gracejava, fazia observações jocosas. Seu grande sonho estava prestes a se realizar. Sorman trabalharia com ele, um dia o substituiria; abandonara aquela vida sem sentido, louca aventura! Para que maior felicidade?
- Venha, filho – falou terminadas as apresentações e cumprimentos – vamos para meu gabinete. Hoje você ficará por lá; depois terá sua própria sala.
O gabinete era escuro, apesar de iluminado por abajures. A janela não deixava entrar suficiente claridade, as vidraças estavam sempre cerradas. Um ar condicionado central refrigerava a todo o estabelecimento. Um cheiro de nicotina impregnava. Eduardo fumava. A larga mesa continha alguns objetos: pilhas de papéis, documentos, uma luminária e um notebook. Outra mesa, pequena, era ocupada por dois aparelhos de telefone. Sorman sentou-se para ouvir o que o presidente da empresa tinha para lhe ensinar.
Eduardo falou, expondo o que era a empresa – um pouco dela Sorman já conhecia – afinal era o filho do presidente. Os objetivos alcançados, a presente situação e os objetivos futuros eram ressaltados. Sorman ouvia silenciosamente, tentava se concentrar nas palavras do pai, acompanhar o entusiasmo, penetrar naquela aura de administração e negócios, mas não conseguia. O pensamento partia. Vinham-lhe imagens: o ashram, amigos, risos, brincadeiras! Uma espécie de arrependimento o abraçava seguidamente. Lá estaria livre, dono de sua vontade, tendo como única responsabilidade aplicar-se ao aperfeiçoamento espiritual, e meditar. Mas não grassou em seu íntimo; passou de melancólico sentimento a errante emoção e foi rechaçado. Tudo acontecia de forma rápida; ele lutava por apagar da memória aquelas coisas de um mundo ao qual não mais pertencia. Começou sentir-se desconfortável, parecia faltar-lhe o ar, o espaço, algo o prendia, atrelava-lhe da liberdade. Baixou os olhos e reparou em suas vestes. Vestia-se como jamais antes o fizera. Sempre se recusara em adotar paletó e gravata, submeter-se ao absurdo padrão do mundo, vestir-se em clima tropical como se em clima temperado estivesse. E foi a conta. Um surdo eco bateu-lhe seguidamente no cérebro relembrando-lhe os dezoitos anos e uma sensação de agonia invadiu-o. Voltava tudo: o sofrimento, as imagens, a desesperança. Aquele ser ressurgia vivo, poderoso, aterrador! Fora ele o responsável por levá-lo ao ashram, por fazê-lo voltar às costas ao mundo, à vida familiar. Três anos tentara enganá-lo. Três anos iludira-se!
Eduardo falava com saboroso sorriso nos lábios; informava dados, estatísticas, fatos, tudo na ponta da língua - era indisfarçável a satisfação! Gotículas de suor começaram a pulular na jovem testa e de repente ele estremeceu: estava tenso, afastado do espaldar da poltrona, cotovelos apoiados nos descansos, mãos entrelaçadas e fortemente apertadas! Na agonia do desespero fixou os olhos no rosto do pai, talvez tentando transmitir-lhe o inferno que era seu mundo, ou parte dele. Quem sabe ele conseguisse entender, entendê-lo, e ao que lhe sangrava a alma. Inútil esperança. Como alguém desconhecido, falando estranha linguagem, vivendo em distante mundo, iria desvendar o que sua alma abortava?
Lembrou de Rama: não resistir à corrente, guiá-la, conduzi-la, aproveitar a força natural de seu próprio ego! Sublimar, sublimar, foi o que pensou como ordem a si mesmo. Recostou-se na poltrona, iniciou o respiratório: um tipo de pranayama. Não podia entregar-se ao desespero, afinal que perigo real o ameaçava? Uma, duas, cinco vezes. O coração voltava ao compasso quase normal, o corpo parava de esquentar, a mente principiava a relaxar. Continuou, inspirou, expirou, induziu ao ego e deteve. Conseguira desta vez e soltou-se na poltrona. Mas a luta, o tremendo combate, deixava sempre sequelas e Sorman chorava intimamente.
Eduardo, em momento algum percebera qualquer coisa estranha em Sorman. Estava embevecido pelas próprias palavras; ao terminá-las voltou-se ao filho:
- Alguma pergunta, algo que não tenha entendido? - Enterrado, olhos perdidos no vazio, mãos soltas quase largando os descansos da poltrona, Sorman somente meneou a cabeça em sinal negativo – Ótimo, vamos então começar nosso dia de trabalhos. - e estendeu as mãos para a pilha de papéis, remexendo e procurando.
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Sorman andava de um lado a outro como fera enjaulada. O dia se arrastara brincando com seu sofrimento. Que fazia de sua vida? Largara ao ashram por que julgara que outro momento importante se impunha. A vida tranquila não o atraia mais. Ao lá chegar, imaginara escapar daqueles lancinantes sofrimentos, da sensação de vazio e dor. A dualidade de valores, o que se revolvia dentro de si, que indagava; este, verdadeiramente, o conduzira ao ashram em busca de adequado alimento. Mas a despeito da disciplina e do aprendizado nunca o satisfizera completamente. Lá mesmo ele tomava novas formas, aterrorizava-o; descerrava quadros ante sua sensível percepção, exigia! Vencera-o tantas vezes, outras tantas fora derrotado! Pequena trégua lhe dera desde o último dia no ashram – agora voltava com força e vigor!
De repente, estancou os passos e olhou para a janela. Estava calor, a testa suava. Na introspecção em que mergulhava, na febril ânsia de esquadrinhar o íntimo, esquecera de abrir a vidraça. Por momentos a ação externa do mundo não o afetara diretamente; os sentidos recolhiam-se parcialmente; o automatismo o movia. Estava acostumado a isto; durante três anos vinha praticando diariamente a concentração – dharana – um dia atingiria o samadhi, a plenitude da meditação!
Mas não era esta, exatamente, sua postura mental no momento, longe disto! Não se sentava utilizando-se dos asanas; nem se preparara convenientemente exercitando o pranayama; tão pouco procurava desligar-se do mundo externo, abstraindo-se com o prathyahara. Ao contrário, digladiava-se consigo próprio, entregava-se ao sanskâra e provocava torvelinhos na mente!
Encaminhando-se para a janela abriu a vidraça, travando-a em cima com movimentos lentos. Imediatamente a fresca aragem invadiu o quarto. Provocou oscilações na cortina e o estalar das folhas do calendário recentemente colocado na parede. Isto causou-lhe certa reação; os sentidos despertaram do entorpecimento parcial para receber a nova energia. A consciência externa estremeceu para as formas concretas e pretendeu largar as imagens mentais em que se prendia.
O ar renovado beneficiara-o, era fato, Sorman agora respirava profundamente e se refrescava. Lançou olhar ao jardim, entrevendo-o sob obscura iluminação dos holofotes sobre o belo gramado. Ficou como estava por vários minutos, olhava e observava; ao mesmo tempo sentia-se esvaziar de alguma sobrecarga emocional, sem se importar com nada subjacente. Acalmava-se naturalmente, sem outras técnicas ou artifícios.
Logo, porém, o pensamento voltava a trabalhar e recomeçava a inquirir-se: por que alterava o rumo de sua vida de maneira tão marcante que a si mesmo surpreendia? Seria algo maior, acima ainda deste exigente ser que o induzia a tomar novas decisões e mantê-las? Mas sendo, por que este algo maior não tomava conhecimento de sua luta, não interferia nas terríveis batalhas em que se engalfinhava, nas baixas que sofria e em tudo mais que passava? Nada disto parecia sensibilizá-lo. Não deixava marcas nem sensações, não se identificava. Estaria ele, Sorman, qual Arjuna, quedado e abatido? Seria exatamente assim? Mas no Kurukchetra, o campo da terrível batalha, onde Arjuna antevia sua morte e de seus queridos entes, não lhe surge Krishna, pródigo e firme, ensinando-lhe o que fazer? Sim, lá estava ele sem qualquer ilusão, abrindo-lhe o coração, fazendo penetrar a mensagem! A Arjuna caberia aceitar e agir. Demandaria jogar por terra a todos os temores, apegos e autoestima; lançar-se à inteira sorte da batalha sem interessar-se pelo resultado final, - enfrentar a morte cara a cara! Porém, no seu caso, tomadas as devidas proporções do canto épico, das alusões e alegorias, seria também de se entender que o outro seria Krishna, que, à distância, lançava-lhe as insinuações, modelando-lhe na mente as decisões, que, depois, tomaria? Fosse ou não fosse uma coisa era certa: o legado do sangue retomava-lhe o destino, o reconduzia ao fluxo atávico, e o obrigava a seguir em frente!
Mas, estranhamente, apercebia-se do outro somente agora, justamente quando o primeiro acicatava-lhe como tantas vezes já o fizera. Por que antes nunca houvera notado esta sutil presença, este algo maior? Julgara sempre que o ameaçador ser a rugir e a corroer-lhe as entranhas fosse o único responsável a conduzi-lo às decisões tomadas. Entretanto, via agora que possivelmente não, pois se decisões tomara admitindo ser o dono único de seu destino, talvez se enganasse. O outro teria se antecipado e naquele turbilhão de emoções e pensamentos não conseguira discerni-lo, ou não pudera. Porém, hoje sim, e seria algo de satisfação, se satisfação tivesse em conhecê-lo!
Quem sabe ainda – continuava teimosamente agora andando – não seriam os dois, exatamente, os responsáveis por suas decisões. O ego é múltiplo – lembrava-se de Rama – até que se consiga atrair-lhe as partes e unificá-lo. Mas aquele que o torturava era forte, demasiadamente bem estruturado. Não adiantava tentar convencê-lo; ele jogava com tudo; incursionava a todos os meandros e labirintos da mente; dominava sobre a vontade - manipulava com os seus desejos! Então por que o levava a buscar conhecer-se? Ou tudo não seria uma imensa encenação onde este e o outro representassem dois papéis distintos e combinados estivessem? Mas existiria mesmo este outro? Ah, imaginação desvairada, deixe estar como é; por que embrenhar-se nos mistérios da mente quando dela somos serviçais? Cansado e irritado mergulhou sobre a cama, buscando apagar da memória as ambíguas propostas de enigmas tão difíceis de deslindar.
Batidas e chamados sacudiram-no. Ele se levantou sem se dar conta do que acontecia. Destravou a porta vendo Olga aflita.
- Sorman, meu filho, por que trancou a porta, está tudo bem?
-Tudo bem, tudo bem - repetiu cambaleante, voltando à cama. Olga seguiu-o sentando-se também, pousando-lhe a mão na cabeça, acariciando-a.
- Nada errado mesmo, filho? - a preocupação era evidente.
Sorman esticou as pernas espichando-as ao máximo; bocejou e apoiou as mãos no colchão, elevando os ombros. Lembrou-se de que vivera momentos de incrível angústia; rasgara o íntimo; questionara-se ao extremo, chegara à exaustão! Depois, lançou-se à cama; nada da madrugada restara em sua memória: nem sonhos, imagens ou sons; tudo inexistira; a consciência se apagara inteiramente. Apesar daquele hercúleo esforço e extraordinário gasto de substância psíquica, sentia-se, não obstante, bem. A angústia parecia ter cedido, o amargor fora engolido, os nervos relaxavam-se. E esta disposição foi tal que surpreendeu à própria Olga ao levantar-se energicamente, deixando-a, atônita, com a mão no ar, dizendo com infalível certeza:
- Hoje o dia será diferente!
No carro com o pai pouco falou; procurava não relembrar das questões da noite anterior. No trabalho, passara a manhã despachando como de hábito e embora certos assuntos lhe fossem áridos e causassem desconforto, produzindo-lhe sensação de inferioridade, hoje os tratava com naturalidade. Sabia perfeitamente que de alguma forma reentrara neste mundo em desvantagem com os homens. Sua mente e ego polarizavam-se noutros valores; combatia em si as ambições e ilusões da matéria. No entanto, a força do destino arrastara-o justamente para ferrenhas disputas, a objetivos concretos. Aqui não se devia sonhar, senão mover a roda, chegar à frente! Por isto, os homens se preparavam, especializavam-se, concorriam! E para estes embates ele ainda era um neófito! Contudo, a vida hoje lhe fluía fácil e solta, e sem quaisquer obstáculos - melhor do que previra ao acordar. As emoções não oscilavam e portava quase leveza na alma!
À tarde, à mesa de trabalho, enquanto examinava algumas faturas, um jovem chegou com simpático sorriso. Sorman não lhe reparou a presença. O jovem permaneceu à porta, sempre sorrindo, como se reencontrasse alguém de há muito ausente que lhe fora caro.
- Sorman? - finalmente falou. Sorman levantou rapidamente a cabeça, sentindo-lhe de imediato a irradiante simpatia, e entre o misto de surpresa e admiração notou-lhe também o sorriso, agora largo, bem como os cabelos ralos. Este fato, aparentemente sem importância, marcou-o, entretanto, na impressão que ele evocava.
- Sim! - exclamou surpreso.
O rapaz, sem a menor cerimônia, entrou e estendeu-lhe a mão, ao que Sorman estendeu-lhe a sua que ele a sacudiu com energia. Sem pestanejar, pronunciando um “com licença”, puxou a cadeira diante da mesa e sentou-se, jogando sobre as pernas a pequena pasta de couro que trazia. Sorman, absolutamente incorporado da surpresa de tão súbita aparição, olhava-o com expressão confusa, mas ao mesmo tempo curiosa. Por que a secretária não lhe anunciara esta visita?
- Desculpe ter entrado assim, mas não havia ninguém à mesa de recepção e como conheço o caminho..., ah, sim, meu nome é Javan, sou da companhia de seguros.
- Javan!? -
- Por culpa de minha mãe. Meu pai queria Jorge, mas ela insistiu com Javan e assim ficou – Sorman riu, aquela presença lhe agradava – costumo vir regularmente para tratar de novos ou antigos seguros e soube que você agora trabalha com seu pai. Vim para conhecê-lo, além de, naturalmente, trazer apólices – Sorman olhava-o atentamente; Javan de novo mostrava simpático sorriso, depois prosseguiu: - Não me julgue bisbilhoteiro, mas tive conhecimento de que você esteve num ashram e de lá saiu recentemente?
- Vivi três anos como chela, mas não pude prosseguir - respondeu com naturalidade.
- Verdade? As coisas lá se tornaram muito difíceis?
- Não exatamente as coisas. Elas são o que são, continuarão sendo. Os meus objetivos é que deixaram de fluir para a mesma direção.
- Oh, creio que entendo: saturação! - Sorman olhou-o admirado. Numa só palavra ele definia uma idéia. Compreendê-lo-ia de fato? Ele prosseguiu: - Tive também certa experiência frustrante tempos atrás. Veja só: entrei para uma pequena organização que tinha num guru sua principal e devotada figura. Fins de semana nos reuníamos em um sítio cercado pela natureza. Muito agradável o lugar: isolado da civilização e dos olhares críticos e curiosos das pessoas. Junto comigo havia quatro outros novato, dentre estes duas moças. Ia tudo muito bem: mantras, incenso, cânticos, doutrina, carma, reencarnação, etc. O dia começava e terminava com meditação. Tudo ótimo, tudo perfeito; chegávamos sábado pela manhã, partíamos domingo ao cair da tarde. Havia aqueles mais antigos, que, tendo abdicado da vida mundana, moravam e viviam no sítio em tempo integral. Não consideravam ainda o local um ashram, mas o guru a ele se referia como o “santuário da verdade”.
Pois bem, a cada fim de semana, o guru tinha entrevistas particulares com os novatos. Fazia mais perguntas do que dava explicações. Aquilo me aborrecia; comecei a ficar na defensiva. Ele sempre voltava aos mesmos assuntos. Quis saber de minha família, da condição financeira, no que eu trabalhava, quanto ganhava, isto e aquilo. Já não me sentia mesmo satisfeito com as coisas dali quando uma notícia veio trazer-me certa surpresa: fora reprovado nos testes preliminares, não podendo seguir com o grupo. Mas ao invés de decepção ou revolta fiquei cismado. Que fizera de errado? Quais critérios usava o guru para julgar? Porém, nada mais tendo a fazer no lugar peguei de minha mochila e preparei-me para deixá-los. O guru, revelando surpreendente solicitude, que até então não havia demonstrado, acompanhou-me até a saída, tentando me explicar dos motivos de minha reprovação, deixando-me finalmente no portão principal, retornando rapidamente.
Caminhei em direção à estrada a fim de tomar condução de volta. Porém, cismado ainda, sentei-me à margem do caminho, e assim fiquei por algum tempo. Mas ao ouvir vozes, corri para detrás de arbustos, escondendo-me. Logo um grupo de moças e rapazes passou rindo e conversando. Um deles falou algo sobre uma festa no sítio, mas como nestes dias em que lá permanecera nada ouvira acerca deste assunto, estranhei. Prendi-me ao lugar por mais meia hora, tomando finalmente uma decisão, resolvendo voltar ao sítio. Sorrateiramente assim fiz, notando facilmente que não precisaria me cercar de tantos cuidados, pois estava tudo deserto pelos arredores. Na casa, porém, havia vozes e risos. Segui para lá e olhei por uma das janelas entreaberta. Sabe então o que vi?
- Orgia sexual regada a drogas - respondeu Sorman sem hesitação.
- Exatamente, só poderia ser aquilo, eu já desconfiara. E todos participavam: o guru, os antigos e os novatos. Rapidamente abandonei o local antes que me vissem, obviamente jamais voltando.
- E também não fez novas tentativas?
- Ah, sim, fiz novas, não daquela maneira! Além de tudo, passei a desconfiar mais ainda de gurus – ele sorriu novamente, coçou o lóbulo da orelha de modo descontraído e inquiriu: – e no seu ashram, houve coisas deste tipo?
- Absolutamente, meu guru é verdadeiro. Nada de orgias, nada de drogas!
Javan remexeu-se na cadeira, ajeitando-se. Seus castanhos olhos brilharam.
- Sabe Sorman – ele hesitou, passando a mão na cabeça, deslizando-a sobre os ralos cabelos. Sorman aguardou atento, - quando comecei a buscar algo acima dos valores comuns da vida, que meus olhos não conseguiam encontrar, pensava comigo: esses homens que ensinam e procuram introduzir sabedoria aos sedentos são realizados. O espírito fala-lhes, instrui-os, estão em paz consigo. Um dia serei como eles? Contudo, na medida em que os conhecia melhor e os cutucava com perguntas e observações, notava-lhes, invariavelmente, reações tão pessoais que vinham me demonstrar, não a presença do espírito, mas de pensamentos personalizados, se assim posso me referir. Concluía que a personalidade movia-se sempre adiante; apresentava-se ao mundo pretendendo estar incorporada do espírito. Umas, por índole, melhor adestradas, humildes, resignadas: possivelmente sinceras. Outras, dominadoras, regentes, irritadiças. Desejavam todas, no entanto, com palavras ou demonstrações fenomenais, convencer. Mas nenhum tipo com que tratei, provou-me existir ali um canal verdadeiro.
- Você não buscava encontrar um Buda por aí, em toda a plenitude de sua bem-aventurança, escondido sob quatro paredes de um apartamento, ou num santuário orientalista de um bairro qualquer de nossa cidade? - Sorman interrompeu com ironia.
- Não, evidentemente. Este ainda não é o momento. O que buscava era uma direção, mas sempre encontrava outra. Quanto mais procurava na voz alheia respostas às minhas cogitações nada conseguia. As vozes caiam-me suspeitas, modeladas, pessoais. Decidi então ensurdecer; tratando de me guiar a mim próprio, de estabelecer uma rota e nela ingressar. E sabe o que descobri? Que sempre retornava ao ponto de partida. O mesmo fato se repetia: algo brilhava no final do túnel e me lançava naquela direção. Quando, então, animado, pretendia engajar-me de vez, eis que de novo, por um fator às vezes errante ou aparentemente sem expressão, uma questão importante vinha encaixar-se às minhas conjeturas, trazendo-me de volta ao enigma de antes. De novo os pensamentos açulavam-me as emoções, e de novo eu olhava a esfinge erigida em mim próprio, não vendo saída para demovê-la. Após três marcantes experiências desse tipo, concluí ser perda de tempo correr atrás do objetivo com ânsia e expectativa a fim de achar um caminho. E mudei, desta feita fazendo o jogo do mundo, aproveitando-me de suas lições, usufruindo de seu manancial. Você, neste instante, poderia inquirir-se: por que cargas d’água ele me conta essas coisas se nada lhe perguntei? Eu diria simplesmente: não sei, talvez por desabafo ou mera vaidade.
Sorman riu. Estava claro para ele que Javan não pretendia dar-lhe lições.
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- Essência, senhorita? Patchouli, verbena, violeta, ótimas para atrair bons fluidos! Tenho também incenso em varetas para perfumar ambientes!
O sol ia alto, quase a pino. O asfalto parecia ferver no centro da cidade. Vistas de certa distância, as ondas de calor que se desprendiam do chão causavam deformações nas imagens. Gritos de ambulantes misturavam-se ao burburinho de angustiados transeuntes, ou de pequenos grupos que paravam e se espremiam ao longo das calçadas. Restaurantes abriam e fechavam portas com o mesmo bulício de sempre. Somando-se a isto, e aos ruídos habituais das lojas comerciais, havia o contínuo roncar dos mal ajustados motores dos veículos e os irritantes toques das buzinas dos neurotizados e deseducados motoristas. Aquilo era sufocante, caótico, realmente estressante. “Não há quem agüente!” – ouvem-se queixas, apesar de continuar-se aguentando e ir-se vivendo embotado como ostra. Que dizer então da alma, completamente arrebatada de seu habitat, aprisionada na forma e lançada às intempéries do desconcertante mundo? “Aguenta como pode, não morre antes do tempo!”, eis a única consolação momentânea. Mas a alma morre?
- Essência, senhor, da melhor qualidade, feita com amor e carinho – Anita continuava em seu trabalho – sinta só, é pura! Quantos frascos, dois? Somente um? Vá lá!
Vestido longo, transparente, cabelos soltos, valente sorriso nos lábios, lutava contra a circundante atmosfera. Aquilo era demais para ela, uma confusão dos diabos, que fazer? Retornara a casa espontaneamente, era verdade, porém deixara no ashram a sua paz. Ao receber carinhoso abraço maternal e as boas vindas, recebera, ademais, enorme carga de responsabilidade e preocupações, que os ombros de sua mãe, sozinhos, não agüentariam. Em boa hora voltara! As dificuldades financeiras aumentavam de um ano para cá. A pensão recebida, antes suficiente, até proporcionando certo conforto, já não dava para quase nada. O governo resolvera investigar as contas, as obrigações e todos os direitos que os segurados desfrutavam. As lutas nos tribunais se multiplicavam; discussões apaixonadas eram trazidas para os veículos de comunicação. Os sindicatos ganhavam e perdiam!
E sua mãe perdeu. Reduzida sua retirada a uma irrisória quantia viu agravadas suas condições com a recessão que o governo, em seguida, desencadeou sobre a economia da nação. O irmão de Anita fora despedido, não conseguindo novo emprego. A irmã, grávida, e também desempregada, fora abandonada pelo companheiro que desaparecera. Ambos, o desempregado e a grávida, foram viver sob o teto da mãe, trazendo consigo somente os seus infortúnios. Agora chegava Anita, vindo somar-se a este pequeno e infeliz contingente de uma família empobrecida.
Logo ao tomar pé da situação recusou-se em aceitá-la. Era demasiado para suas forças. Já não bastava o rompimento com Sorman – a união desfeita – o desligamento do ashram; estas duas grandes comoções para estremecer com suas bases, sangrar seu íntimo, intimidá-la ante a vida? O primeiro impulso, passada a surpresa e feita uma avaliação rápida da situação, fora de fugir, esconder-se de novo, voltar ao ashram. Lá estaria em paz, em retiro, deixasse o mundo com seus problemas, seu carma! Porém, uma noite em claro, e profunda reflexão, sacudiram-na, tocaram-lhe os brios, arrancando-lhe forças do íntimo. Egoísmo impiedoso, autoestima, obnubilação ante o espírito! Não poderia voltar as costas ao seu sangue, suas raízes. Descerraram-se os véus, desfaleceu o ego, vibrou mais alto a alma - a inequívoca sabedoria!
Procurou emprego. Mas na recessão, o país nas vias do desespero, a economia marginalizando ao trabalhador, que emprego obteria? Aos quase vinte e um anos, nem mesmo iniciante em qualquer ramo das profissões, não quis aventurar-se às exploradoras funções em lojas ou supermercados onde, quase praticamente, pagaria para trabalhar - e como trabalharia!
Buscou fazer-se por si própria. Juntava os poucos trocados, os investia em matéria prima de rápida transformação e vendia! Amargurava-se. Não alcançara ainda o consolo que Rama apregoava. Tinha saudade do ashram, dos amigos, da alegria e despreocupação lá deixadas, de Sorman. Como estaria ele? A intuição lhe dizia que sofria ainda. Via-lhe o semblante fechado; ele mergulhado na terrível e desagregante dúvida. Como uma criatura poderia viver assim, morrer em vida na juventude? Uma vez acordara na madrugada chamando o seu nome: coração aos pulos, corpo tremendo. Levantou-se e orou por ele, fez mantras, acendeu incenso e lamparina, somente após conseguiu acalmar-se. Prometeu telefonar-lhe ao amanhecer, saber de sua vida!
Vindo o sol matinal aquecer corpos e desvanecer névoas, o pensamento se mostrou inconsistente e recuou da decisão: desistia de telefonar-lhe neste dia. Se ele se reencontrasse com seu eu, e a amasse de fato, a procuraria – porém, a amava?
- Sorman, por que lamenta tanto sua vida, ame-a! - ela recordava olhando pela janela do ônibus no trajeto de volta à casa.
- Não posso, Anita, há alguém dentro de mim conspirando – ele encostava as pontas dos dedos na fronte – não me deixa em paz, volta sempre com novas propostas.
- Por que lhe dá ouvidos, deixe-o falar, não lhe preste atenção!
- Louco, já não serei um? - pareceu não escutar uma só palavra do que por último dissera Anita.
- Não diga isso, Sorman, você não é louco!
- Quem sou então? Olho e não vejo, falo e nada digo. Quem sou, diga-me, senão um demente? De que vale uma vida assim, para que sirvo?
- Tem um coração, uma alma, isto é vida!
- Não basta um coração, as pessoas o tem; nem alma, todos possuímos uma. Isto é criação da natureza. - tê-los para sofrer não é sensato. E Deus, segundo suponho, é, sobretudo, inteligência!
- Sorman, ouça. Uma amiga visitou numa região serrana um ashram. Ele é aberto a quem deseja aprender. Há um guru que ensina - é um indiano - vive em nosso país desde jovem. Ele ensina, Sorman, vamos visitá-lo, quem sabe não será este seu esperado mestre?
Surpreendentemente - refletia Anita - apesar de seus imaturos dezoitos anos, pudera convencê-lo sem esforço, logo a ele de opiniões tão concretas e inteligentemente organizadas. E partiram ao encontro de Rama.
CAPÍTULO III
NOVOS RUMOS
"E no seu Armagedon acontecerá a batalha real, não simbólica,
não intelectual, insisto, contra o quê Arjuna parecia não
querer entender nem aceitar no seu Kurukchetra. E vencendo é morte; perdendo é vida desperdiçada!"
O mundo parecia querer sorrir para Sorman. Algo como uma trégua em seus conflitos começava aos poucos se estabelecer. Desde a noite em que arduamente lutara consigo, e exausto mergulhara no sono inconsciente, experimentava um fortalecimento do ego emocional.
Assim, interrompidas as incursões reflexivas nos labirintos de seu universo interior, podia afastar-se das incidentais desventuras de seu mais elevado animismo em surtos de transmigrações. Naqueles episódios de acirradas crises, a conta de suas experiências no mundo objetivo desfigurava-se às exigências íntimas e excessivamente grandes, nunca satisfeitas, que moviam o centro da consciência de um ponto a outro. Este processo, que o levava às frequentes instabilidades, trazia elementos abstratos a fluxos torrenciais, determinando-os germinar novas idéias, a fruir da personalidade e a ganhar humanas vestiduras. A invisível progressão provocava ante sua visão interna certa monta de experiências ocultas, semi-amorfas, sem bases ou respaldos conceituais, simbolizando égide demasiado elevada e profunda para sua objetiva compreensão. Contudo fosse uma compensação ao sofrimento crucial suportado, tratava-se do outro prato no fiel da balança com elementos substancialmente incondicionados que desciam arrojados. Nada do que até então conhecera vinha nestes momentos socorrê-lo a fim de aclarar sua incompreensão. E ante a revolução íntima que movia perdas e ganhos, luzes e sombras, certezas e incertezas, as emoções ondulavam-se, arremetiam-se em piques profundos e o levavam a estados de desânimo e prostração.
Assim, passada a culminância do último desses momentos de purgação mental-emocional, Sorman ressurgia para o eu consciência do mundo, sentindo-se atravessar um espaço de maior calmaria. No espaço, ele podia agora reunir e reagrupar o que lhe sobrara de valores pessoais, de emoções concretas e desejos pronunciados, na medida em que os julgasse a si próprio satisfatórios. Deste modo, no círculo de sua existência como personalidade, onde toda uma gama de estímulos envolve e impulsiona a experimentar, em Sorman estas coisas pareciam estar novamente disponíveis. E a disposição era tal que vinha se refletir naturalmente no próprio trabalho, na empresa de seu pai. As desagradáveis sensações que antes experimentava, já começavam a perder consistência; os pequenos e íntimos impasses ele agora os resolvia de maneira natural e descontraída, verificando, neste ritmo, que o dragão era mais manso do que supusera de início, sentindo crescer outro ânimo e uma firme autoconfiança.
Eduardo, claro, não podia deixar de perceber esta transformação: era óbvio notar o comportamento do filho; estava ao seu alcance, e sonhava. Achava agora que podia pensar em termos de realização mais ampla da empresa, pois com o crescimento de Sorman nos assuntos, e mais adiante, ao absorver toda a trama dos negócios, estaria tudo bem, e a família fortalecida num só ideal. Na realidade, era cedo ainda para que isso acontecesse; Sorman precisaria de um melhor preparo que só o tempo podia facultar-lhe, e de estudos. Um curso superior ser-lhe-ia importante, queria abordar essa possibilidade com ele na primeira oportunidade. Por ora, as coisas caminhavam satisfatoriamente, melhores até do que esperava.
Nesta semana, Sorman atendera a dois chamados telefônicos de Javan, tratando de seguros. Em ambos, ao final, Javan o provocara sobre assuntos esotéricos, ao que, Sorman, aceitando a provocação, alongou-se na conversa, tendo ainda marcado para encontrar-se com o amigo na sexta-feira. Eduardo ao saber disso animou-se; achava mesmo que Sorman precisava distrair-se porque se dedicava com disposição ao trabalho.
- Não creio que o fato deva ser encarado assim - dizia Javan, sentado à frente de Sorman, tendo tomado um gole do suco de frutas - pois é notório que a tendência das nações é mudar, alcançar novos patamares, libertar-se através do racionalismo. Veja que em todo o mundo clama-se por liberdade, justiça e coisas até confusas que nem se sabe explicar direito. Muitos homens, por exemplo, possuindo bons empregos, vivendo com relativo conforto, agregam-se mental e emocionalmente a protestos e movimentos ativistas, vários destes sem qualquer nexo, incongruentes, abstrusos, de naturezas diversas. Outros se afiliam a religiões de cunho unicamente idólatra; apagam-se em sua lucidez, adotando comportamento de rebanho, caminhando para fanatismo pegajoso e perigoso. Mas a despeito disso - eis onde quero de fato chegar - por aparente incoerência, não lhe parece, ainda assim, que a transição é clara e a busca é uma insatisfação íntima com a vida e com o mundo atual?
- Sob este ângulo tenho de concordar - respondeu Sorman - entretanto, apesar dessa ânsia inconsciente da humanidade, precisamos separar os níveis. Veja, por exemplo, como aumentam a violência e os desvios de comportamento nestes dias. Parece existir uma oposição sempre atenta, a querer introduzir com maior profundidade o exemplarmente mau e desagregador, e quanto mais certos níveis emocionais e mentais clamam por igualdade, fundam associações humanitárias, filantrópicas, gnósticas ou agnósticas, porém socialmente úteis, outros segmentos, fazendo de bandeira idealista o seu inconformismo, disfarçam os atos criminosos de seus egos sedentos de sangue e revolta, provocando anarquias, revoluções, terrorismo e mortandades - tudo sob o pretexto de ideais étnicos, religiosos, políticos, geográficos, sociais, econômicos, esportivos, etc. A explosão do esoterismo milenar, principalmente oriental, que os jovens tratando de seus ensinamentos procuram articular no mundo, ainda passa despercebida pelos povos. Neste particular, os aspectos de maior profundidade das várias linhas místicas, ocultistas ou esotéricas, passam também despercebidos de grande parte dos próprios estudiosos e seguidores. E como nesta época muitas coisas se apresentam de roldão, é um tanto complicado para os místicos saber também digerir o próprio misticismo.
- Mas o fenômeno mundial em si é algo positivo e daqui a pouco todos os povos não encontrarão um ponto comum ao qual se apoiar para reorientar-se na direção prevista?
- Para mim o fenômeno mundial é negativo e, excetuando a visão clara dos poucos e verdadeiros intelectuais que representam cabeças realmente pensantes, em meio a comunidades de tantos outros pensadores, os ideais desses últimos, em número maior, pouco importam em realidade nesse grande processo de confusão e caos. Esses estão preocupados na personalização de suas idéias, naquilo em que seu ego intelectual vaidoso possa mostrar-se, ser admirado, reconhecido e aclamado. Se você extrapolar para as sub-reptícias mensagens do heroico profeta João, por exemplo, nos capítulos do apocalipse, verá que ele fala da liberdade que Satã terá e de seu reinado sobre milhões, tratando de promover toda a sorte de iniquidade na Terra. Também é dito que milhões irão adorar a tal besta, de tal aspecto, ante ela se curvarão e a servirão. Ora, Shiva também é destruidor, segundo a lenda do oriente, e a cada final de ciclo ele ressurge na sua versão negativa e terrível para destruir e punir os maus. Mas aqui fica a questão: onde estarão todos os maus e onde estarão todos os bons?
- Os bons, naturalmente, são os que realizam bons atos, conforme você mesmo exemplificou, os maus seriam os que promovem os atos iníquos - respondeu Javan, recostando-se melhor, passando a mão sobre os ralos cabelos.
- Haverá como sabermos se o religioso renitente, ou o homem de hábitos permanentemente inofensivos serão, ambos, nestes ligeiros exemplos, os bons, em detrimento do agnóstico, do informal ou do inadaptado que encontramos pelo mundo aos milhares? Claro que não aprovo atos criminosos, violentos ou sanguinários, e de novo evoco os níveis de consciência para situar o que lhe quero passar. Esses últimos são das piores escórias das raças: recalcitrantes e insensíveis, mas exercem com autenticidade os atos instigados por seus íntimos selvagens. E não é este tipo de pessoa que desejo exemplificar agora, por que é óbvio demais aquilo que realiza. Entretanto, fará também autêntico papel o homem a quem se atribui retidão de caráter, que citei há pouco? Mas o inadaptado, sim, e exprime outro nível de consciência: ele ateia fogo a si mesmo; urra de dor ao experimentar o pseudo prazer do mundo. E será mau por isto? Todavia, não será pelo lamentável uso de drogas que este fato o conduzirá a alguma experiência computável, mas ao contrário, irá destruir seu instrumento físico da forma mais profunda que se possa imaginar. Mas a destruição, retorno ao ponto, no que diz respeito aos destinos da humanidade, sob o ponto de vista das revelações proféticas, em que sentido acontecerá? Intelectual e científica, dirão uns, moral ou religiosa, alertarão outros, física e concreta, bradarão outros mais. Se minha ótica é correta, vejo-a como um todo, devorando matéria e não matéria, homens e obras humanas. E me cabe ressaltar sobre algo que absolutamente não posso ainda entender, que diz da regeneração coletiva de forma rápida.
- Ora - interrompeu Javan neste ponto - depois de tudo ocorrendo conforme você relata, como não eclipsar-se a si próprio o satanismo, se lhe haverá de faltar campo para sua manifestação, se é a isto que você se refere?
- Faltará mesmo campo? Poderá a natureza dissociar-se de sua sustentada polaridade dupla? Preste atenção, Javan, no que conjeturo neste instante. A natureza é indestrutível; ela é por inerência regenerativa, logo retorna sempre ao mesmo estágio onde existiu uma interrupção ou desvio; daí retoma suas transformações. Que você acha que aconteceria ao nosso planeta se lhe faltasse o anteparo da polaridade negativa? Como seria devastador o Sol se seus poderosos raios incorporados de energia e vida não encontrassem obstáculos a produzir sombras? E a humanidade, como se comportaria se lhe faltasse oposição? Além do mais, o homem é o próprio opositor do homem, e por auto reflexo, de si próprio. Assim, caro amigo, antevejo outro caos após o caos.
Sorman arcou-se trazendo o copo com água mineral aos lábios. Javan coçava a orelha, acompanhando os movimentos do amigo e cismava com seus argumentos.
- Essência, jovens? Verbena, sândalo, patchuli! Uma voz rouca e cansada sacudiu Javan de suas reflexões, interrompendo os movimentos de Sorman. Eles se voltaram vendo uma velha enrugada e arcada, que lhes oferecia os produtos em varetas ou frascos.
- Não, obrigado! - respondeu Sorman, voltando-se para adiante e recolocando o copo sobre a mesa.
- Ah! - sorriu a mulher - dois rapazes bonitos e inteligentes; de que tratam, da vida, naturalmente? Sorman olhou-a de rabo de olho, pretendendo fingir desatenção - você, jovem, disse para Sorman, responda-me se souber: vou ao campo segar milho e trago três belas espigas, porém são sete que tenho para dar a comer. Volto ao campo e tomo mais quatro, mas as aves de rapina roubaram-me as três. Se tenho quatro, como dar a comer a sete?
- Não sei, senhora. - respondeu amuado, sem ao menos se dar ao trabalho de pensar.
- Pense, jovem, pense. Você precisa encontrar a resposta. E com andar arrastado, mostrando breve e enigmático sorriso ela afastou-se.
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Os dias decorriam, Sorman os vivia intensamente. Na empresa não se distraia; estava sempre concentrado em tarefas, fossem elas simples ou trabalhosas: interessava-se por todas. Como resultado deste vigoroso ânimo e constante perseverança, começava a granjear admiração de todos. Já não o viam com a desconfiança e descrédito de antes e se contaminavam de sua benéfica energia, comentando que o “filho do patrão” seria o homem que em breve a empresa necessitaria. Mas Sorman, alheio a estes espontâneos louvores, ocupava-se tão somente em avançar; nada verdadeiramente lhe interessava senão exercitar a capacidade de seu ego, adaptar-se às regras e superá-las! Havia em si uma estranha ânsia de aprender, uma irrefreável volúpia para realizar. Era um processo tangível, ganhando forma e substância, rapidamente grassando no ser; era uma vontade dominadora que rugia no íntimo, arrancando-lhe apetite leonino, embora tudo fosse praticamente início. Envolto neste clima, veio causar ainda maior admiração e intensa surpresa, ao trazer ao pai uma notícia que quase o fez desabar da confortável cadeira:
- Vou matricular-me em curso pré-vestibular. Pretendo fazer faculdade, estudando pela manhã e vindo trabalhar à tarde.
- Excelente, filho, fantástico! - explodiu Eduardo em alegria, levantando-se e o abraçando - e qual carreira escolheu?
- Não sei ainda: administração, economia, ou talvez direito.
- Fantástico, fantástico! - repetia Eduardo em êxtase.
Olga, da mesma forma, exultou ao saber da decisão. Sentia-se orgulhosa porque, em certa medida, creditava-se participação efetiva na nova trajetória que Sorman agora percorreria. Imaginava quão importante teriam sido suas atitudes e atenção ao filho e como estas coisas o teriam impressionado. Quando Sorman retornava do trabalho e descansava na poltrona, às vezes conversando com Eduardo, ela costumava aninhar-se ao seu lado, tomando-lhe a mão, e corria os dedos em seus sedosos e negros cabelos, embora Sorman não se prendesse àquelas demonstrações de carinho.
Em cumprimento ao que tencionara, Sorman logo se viu engajado no aprendizado do curso. No quarto, rodeado de livros, apostilas e cadernos, estudava. Dormia, invariavelmente, após meia-noite, tendo cumprido a meta diária de estudar em casa por quatro horas. Aos sábados - não precisando ir trabalhar - ia ao curso pela manhã, estudando à tarde, às vezes entrando pela noite. Eduardo, atento aos movimentos do filho, tinha rápidas e diárias entrevistas com ele, pedindo com frequência que lhe informasse de suas dificuldades, ou lhe solicitasse ajuda no que fosse necessário. Olga, a par de mandar a cozinheira preparar-lhe desjejuns especiais, subia várias vezes ao quarto para levar-lhe pessoalmente água, sucos ou lanches. Atada emocionalmente ao filho, não se furtava em acariciá-lo ou beijá-lo, ficando a observar se sua fisionomia mostrava cansaço ou o corpo emagrecia.
- A morte é qualquer coisa abismal em que dimensão a situemos - dizia Sorman enquanto andava pela úmida calçada, após a chuva, num raro momento de descanso - ela ora assusta e amedronta ora atrai-nos irresistivelmente pelo mistério com que vem precedida. Não é sem razão que ao falarmos dela, um manto escuro e espesso se antepõe como a indicar-nos que não se pode ir a sua direção sem um facho de luz ou uma razão clara e luminosa a permear-nos.
- A qual morte você se refere, Sorman? - inquiria Javan, caminhando ao seu lado, com mãos nos bolsos.
- Falo, por semântica, dela, tão somente dela o tempo todo.
- Estaríamos voltando a antigo axioma onde se dizia que a morte é transição, um estágio de transformação?
- Seria exatamente isto, Javan? Quer a aceitemos ou não ela atrai-nos. Quantas vezes morri? Quantas vezes renasci? Entretanto, conhecê-la-ei, muito embora a tenha tantas vezes experimentado? Ou ela engana-me o tempo todo e brinca comigo deixando a vida soprar-me o alento, após eu beber do Letes, para depois vir sorver-me de novo numa só aspiração, por sua eterna e aberta boca? Mas será isso morte ou vida? Se, como diziam os antigos, a morte não existe, sendo, pois, transformação, então que é a vida senão uma sucessão da morte - ou seria o oposto?
- De que falamos então, da morte ou da vida, ou de ambas numa só face?
- Bravos, vejo que está atento Javan! Que misteriosa e complicada alquimia é a natureza. Quando me ponho a pensar nisto somente vejo em mim a morte, pois a vida não me traduz o eterno, senão o temporal, enquanto a morte se faz presente a cada instante, segundo a segundo, o tempo inteiro, a vida inteira! Renascer sempre, em todos os reinos da natureza, sempre post-mortem!
- Renascer é vida, Sorman, é a eternidade do Criador agindo sobre a imanência de Sua Própria Obra. Concordo com os antigos: vejo a morte como um portal: do lado de cá um aspecto; transposto o portal, outro aspecto, embora na mesma essência. A essência é, portanto, imperecível!
- Sim, a essência. E por quanto tempo ainda a essência ficará submetida ao eterno girar morte-vida-morte? Ou será a essência de mesma natureza temporal daquilo que a encerra? Então que poderes há da essência vida sobre a morte? Mas será isto um grande e desagradável sofisma que lhe exponho?
- Você mesmo disse: não se pode ir em direção da morte sem um facho de luz ou uma razão...
-... clara e luminosa a permear-nos. - completou Sorman - Bravos uma vez mais Javan. E aqui está o ponto nevrálgico de meu cogitar. Ou a entendemos com a razão clara e luminosa ou enlouquecemos. Veja bem Javan - ele parou e segurou ao braço do companheiro com semblante de quem relembra angustiante episódio ou antevê doloroso futuro - a razão clara não pode ser buscada pulando-se simplesmente de um argumento para outro, como tese e antítese, até sobrevir à síntese, não! Ela não é unicamente intelectual, é antes um processo que, por ironia, lhe rouba tudo e ainda parece zombar do seu desprovimento. E quanto mais você tem, mais o processo lhe subtrai e quando você desnudo está, como uma criança ao nascer, ela vem e lhe alimenta com o brando leite de que você precisa para não morrer - mas que não sacia - e lhe envolve em panos para agasalhar. Entretanto, a fome permanecendo ela de novo voltará, porém, não lhe dará mais nem o agasalhará; você passará frio; terá sede; continuará a ter fome; sendo necessário que assim permaneça por mais tempo, e algo mais: que ainda venha se descartar do que nem mesmo chegou a possuir! E neste ambíguo e díspar envolvimento, sem que a razão, clara em si própria, lhe haja ainda possuído, você intempestivamente resolvesse enfrentar a morte, desafiando ao seu eterno enigma, então, certamente, chegaria à loucura!
Javan olhava-o enquanto ele apertava-lhe o braço com ar angustiado, fora da realidade, com os sentidos concentrados no pensamento. Passados segundos, em que a reflexão atravessou-lhe a consciência, ele afrouxou a pressão, largando o braço do amigo. Silêncio. Javan ainda colhido pelos argumentos de Sorman meditava: o episódio era fascinante, no entanto, seria necessário ter boa dose de coragem para vivenciá-lo. A despeito disto, a experiência seria, no mínimo, singular!
Reiniciaram os passos chegando a uma praça semideserta, onde havia unicamente três pessoas, e se aproximaram de um banco molhado da chuva,
- Sobre a morte - recomeçou Javan, estendendo um pé sobre a borda do assento de pedra, apoiando-o e fazendo ligeira flexão com a perna - quantas vezes precisará um homem dela experimentar para assumir novos patamares mentais e espirituais?
- Não sei. Somente entendo que ela não é de forma alguma filosófica e a cada vez se tornará mais difícil abordá-la. É realmente necessário que se queira porque o homem não lutará por lutar, senão contra fortíssimo opositor que lhe desejará arrancar as vísceras.
- Opositor, quem?
- Sua própria invisível e indissociada sombra, contra a qual nenhum argumento haverá de convencê-la a deixá-lo em paz. E no seu Armagedon acontecerá a batalha não simbólica, não intelectual, porém real e verdadeira, insisto, contra o quê Arjuna parecia não querer entender nem aceitar no seu Kurukchetra. E vencendo é morte; perdendo é vida desperdiçada! Pode entender isto também, Javan?
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A inteligência de Sorman excedia-se nas suas atitudes, exsudando por todos os seus poros. Neste momento, ele se ocupava de internar-se no mundo em que os sentidos tocavam. E as impressões sensórias que obtinha, eram absorvidas com a mesma facilidade com que a esponja absorve os esparramos da água. A mente bebia como bebe o sedento peregrino que após travessia por árida região vem ao benfazejo poço. E logo ele partia apressadamente, buscando continuar viagem para, rapidamente, atingir novos objetivos
Uma transformação de transcendental importância vinha se processando em seu ego. Aos vinte e um anos apenas, começava a ler no livro da vida com lampejos de maestria. Javan que o dissesse, pois as ilações que lhe fluíam à mente provinham de longínqua paragem. Mas como não pretendesse assumir a autoria das idéias, contestava-as. O permanente cogitar, amigo e algoz, oscilava-lhe. Ora duvidava de si, lançando questões com a própria voz, ora saia a afirmar-se convicto de metafísica visão que jamais poderia provar. Mas não parava nas questões, não podia estancar. Poderosa ação centrífuga era mais forte, varria-lhe desta intenção. Assim, impulsionava-se ao mundo, à vida objetiva. A morte agora não interessava; tratava-a neste instante concretamente. Brilhava nos estudos preparatórios! Isto veio trazer-lhe respeito, admiração e novos amigos. Uma jovem aproximou-se, Margie: - morena, cabelos negros e curtos, olhos grandes e lábios rosados. Era meio índia, meio francesa, porém sedutoramente hábil.
- Sorman, que você faz quando não está estudando nos fins de semana?
- Descanso, ou saio para desanuviar e relaxar.
- Com sua namorada?
- Com Javan, meu amigo.
- Estou precisando de ajuda - disse sem pestanejar.
- Que tipo de ajuda?
- Não estou bem em matemática. Meus testes têm sido ruins, não consigo entender a matéria. Você pode dar-me explicações neste final de semana?
- Onde?
- Se possível na sua casa. Divido pequeno apartamento com duas amigas, lá não há espaço nem ambiente para estudarmos.
- E seus pais?
- Moram no interior, eu trabalho e vivo aqui.
- Está bem, sábado à tarde!
Agora Sorman vivia ardente romance. Margie colhia o intenso desejo que dele partia, tocando-a no fundo da alma, provocando-lhe estranhas e desconhecidas emoções, que respondia com ímpeto e paixão.
- Como um rapaz completo como você, pôde ficar tanto tempo sem um amor?
- Não estava preocupado com isto.
- Difícil de acreditar, alguém assim, mantendo-se longe das mulheres.
- Cada homem é um enigma. Cada enigma tem seus segredos, Somente a chave apropriada abre a porta no momento certo.
- Isto tudo quer dizer que eu sou a chave e a porta do amor estava fechada?
- Será do amor ou do desejo? Ela olhou-o surpresa, mostrando uma sombra de preocupação no moreno semblante indo vestir-se.
Olga desmanchava-se em gentilezas para Margie; ao mesmo tempo jogava sua angústia sobre o marido.
- E se ela engravidar? Iria atrapalhar a vida de nosso filho, quer se casasse com ela ou não. Você conversou com Sorman?
- Várias vezes, ele disse-me que sabe o que está fazendo.
- Meu Deus!
Margie atraia-se para Sorman como a um imã. Ele a ensinava a se desempenhar com o tao oriental, começando ambos a obter adaptação e avanço. O prazer recolhia-se para algo superior e fantástico.
Conforme esperado, Sorman obtivera sucesso nas provas para ingresso na faculdade, apesar do enlace amoroso com Margie e menor concentração ao objetivo. Dividira atenções, porém não o suficiente a ponto de comprometer o resultado. Ela também conseguira passar, embora figurasse longe das melhores colocações. Na realidade, seu aproveitamento fora quase insuficiente, mas passara. Esta notícia veio trazer a idéia de uma comemoração; assim Javan resolveu convidá-los para jantar em companhia de sua namorada. Javan, por sinal, já vinha cursando Direito.
Em casa a comemoração foi maior. Eduardo e Olga realizaram uma festa, convidando parentes e amigos. Sorman não se opôs, participou normalmente, recebendo cumprimentos, abraços e beijos. Entretanto, após esse clima festivo, uma inesperada notícia viria mudar a rotina de sua vida. Margie fora comunicada de que o pai adoecera gravemente e a mãe a chamava para junto de si. Ela então abandonou a tudo.
- Sorman prometa-me que irá visitar-me - pedia na estação rodoviária.
- Desculpe, Margie, não posso prometer nada agora. Minha vida será mais dura e você parte para muito longe.
- Diga então que não me esquecerá. - pediu chorando.
- Não esquecerei.
- Escreverá dando-me notícias?
- Escreverei. Então se beijaram e se despediram.
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Dois anos decorreram. Sorman se dividia entre o trabalho e a faculdade. A convivência com os colegas era a melhor possível, e participativa. A vida estudantil tinha encantos: as conversas dos jovens, seus sonhos de vida, a força da juventude, todas estas coisas Sorman absorvia e externava, embora sob uma ótica peculiar. Não se furtava de ir a encontros, festas, passeios, namorar com belas moças. Em análise metafísica, aquilo, na verdade, era a projeção de um momento mental e emocional; sendo preciso exercitar qualidades, ampliar o campo de ação daquele eu que em si procurava externar-se. Era inteligência legítima sem contestação, que buscava âncoras no próprio ego para mais claramente poder manifestar-se. E que melhor maneira de se compreender a vida, senão vivendo? Assim, como em tantas interpolações já acontecidas na matéria desde um distante passado, os fatos novos diante de sua personalidade eram apropriados e sentidos com naturalidade, sem exacerbações ou incompreensões. Na empresa, já fora promovido ao cargo de assistente da presidência. Participava das reuniões, manifestava opiniões, analisava fatos. Durante a semana realizava contatos externos visitando organizações importantes para as relações da empresa, e, nas convocações, ia às assembléias da associação, e vez por outra ao sindicato.
Eram quatro da tarde de um dia de janeiro. Sombras de prédios cobriam calçadas e ruas do centro da cidade. Sorman caminhava com certa dificuldade, desviando-se dos transeuntes. Garganta seca, testa suada, paletó à mão, retornava do órgão financiador da importação dos equipamentos pesados de que tratava, trazendo o pré-contrato para análise da presidência e consultoria jurídica. No trajeto, procurava onde sentar-se para matar a sede e relaxar. Foi acomodar-se em mesa sobre a calçada, num pequeno bar. Após beber alguns goles do gelado refresco espichava-se.
- Boa tarde, jovem, deseja comprar essência? - a velha senhora aproximou-se com sorriso nos lábios rosados, quebrando aquele momento solitário. Sorman, reconhecendo-a apesar dos anos, meneou negativamente a cabeça lamentando intimamente a intromissão - vou ao campo segar milho e trago três belas espigas, porém são sete que tenho para dar a comer. Volto ao campo e tomo mais quatro, mas as aves de rapina roubaram-me as três. Se tenho quatro como dar a comer a sete? Já descobriu?
- Por que insiste neste enigma, senhora? A mulher riu descontraída.
- É seu enigma, sua vida. Ainda não desconfiou disto apesar da brilhante inteligência? Mas pense nele, desnude-o antes que seja tarde e todo o processo venha a regredir.
- De que fala?
- Vou então dizer-lhe mais, ouça bem: se os três estão famintos, aos quatro querem juntar-se para comer. Se os quatro a tudo comerem, os três com fome ficarão, porém se resolverem dividir de suas partes, os três com eles estarão. Lembre-se que as espigas são corpos e alma - dizendo isto ela começou a afastar-se.
- Espere! Que tenho a ver com tudo isto?
- A transformação continua. O maior deseja conduzir ao menor; mas há grande perigo por que ele irá novamente ressurgir forte. Isso acontecendo, as águas se levantarão de lado a lado e estrondarão no choque inevitável. Não se deixe arrastar por nenhum dos lados, pois as águas não encontrando solidez, deixarão atrás de si unicamente a destruição. Deus seja louvado!
- Quem é a senhora, afinal? - havia agora alteração em sua voz.
- Somente uma velha vendedora de essências.
O enigma desta feita mexera com Sorman. As palavras da estranha mulher ecoavam-lhe na mente; ele buscava deslindar o seu significado. “Os três estão famintos e aos quatro querem juntar-se para comer”. Os sete, claro, eram a totalidade do ser - o homem cósmico - o setenário de corpos, os upadhis. Por que, no cristalino significado metafísico, estariam famintos se eram justamente o manancial, os provedores, ao contrário dos quatro, insaciáveis? Aos quatro a esfinge conhecia-os muito bem, sorria deles. Os quatro lados do universo material, as quatro faces do homem: o leão, o touro, a águia, o homem, como não associá-los ao enigma - homem conhece-te a ti mesmo? Admitia ter conhecido a este enigma, tê-lo realizado em si mesmo, mas não integralmente. Ainda faltava muito; a substância vai mais além do entendimento humano, não bastando unicamente provar o enigma. É necessário mais; é preciso viver a imanência. E voltava, ao postulado anterior. Os três estão famintos, e por quê?
Olga ao vê-lo pensativo tentou sondá-lo, não obtendo mais do que uma breve resposta. Dia seguinte, as palavras voltavam: “a transformação continua, o maior deseja conduzir ao menor, entretanto há grande perigo por que ele irá novamente ressurgir forte”. Sorman tremeu uma vez mais ante esta sentença; um misto de desconforto e irritação, como ameaçadora nuvem, atravessou-lhe a sensibilidade. “Isto acontecendo, as águas se levantarão de lado a lado e estrondarão no choque inevitável. Mas não se deixe arrastar por nenhum dos lados, pois as águas não encontrando solidez deixarão atrás de si unicamente a destruição. Deus seja louvado!”
Sorman levantou-se indo à janela. Lá fora a vida rolava. As pessoas simplesmente viviam: o tempo escoava. Havia pressa, angústias; aparentemente cada um trazia como único móvel a preocupação com seus afazeres; buscavam resolvê-los dentro de um mundo de trocas, disputas ou favores. Era tudo tão óbvio, concreto, perfeitamente previsível. Os caminhos eram sempre os mesmos; as pessoas os trilhavam esperançosamente, na expectativa de que aquilo com que sonhavam, ou para cujo objetivo lutavam, um dia seria alcançado. Não havia enigmas nem outros mistérios. Embora a dor e a tristeza compartilhassem de suas lutas, era um mundo diferente do seu, até nas amarguras!
Porém ficou nisto, preferindo evitar outras conjeturas ou internar-se no enigma; não queria submergir outra vez em seu universo de outrora, temendo atrair nova luta íntima. Entretanto, as palavras voltavam-lhe; ele fazia ouvidos de mercador, isolava-as; elas perdiam a força da sugestão. Ademais, as atividades profissionais tomavam-lhe o tempo, absorviam-no: exigiam concentração! E fez questão de mais ainda a elas entregar-se!
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Sorman graduara-se. Concomitantemente fora promovido na empresa a diretor executivo. Nesse período, a par de fazer brilhante curso, alargara suas relações de amizade tanto na faculdade como em seu próprio trabalho. Era sempre bem visto por onde andava, frequentando círculo de importantes amigos. Nos momentos de reflexão, via essa vida num ininterrupto processo onde as regras do mundo imperavam. Estabelecera parâmetros pessoais e neles demarcara as suas realizações. Era tudo, enfim, um jogo; jogaria melhor quem mais preparado estivesse. Nisso incluíam-se os interesses, os relacionamentos, a submissão ao ordinário: fatos tão somente, congruentes ou não. Nada de se opor, clamar por justiça, rasgar os véus da consciência, gritar ao mundo. Se a verdadeira consciência dorme, os sentidos atuam, a vida decorre: eis a fórmula-síntese para o sucesso, bastando tão somente adicionar algum toque de talento, mas não tanto que venha obstar a sagacidade. Sorman compreendia assim.
“Sorman vou partir!”. Sorman olhava-o atônito.
- Quem é você? - a surpresa era intensa, aquilo não podia ser real!
“Vou partir - ele sorria-lhe - é preciso. Agora é novamente sua parte, a conquista pessoal!”
- Espere! - Sorman corria em sua direção, ele pairava sempre adiante, acima do chão. A réplica exata de si, então desaparecia.
Sorman acordou e sentou-se na beira da cama. A última cena ainda vivia-lhe revigorada e nítida, como uma projeção congelada em tela. Ele sacudiu a cabeça e de nada adiantou; levantou-se e foi tomar banho. Este sonho se repetiu exatamente igual por três vezes.
Por mais que se esforçasse, Sorman não conseguira apagar as cenas da memória. Eram excessivamente vivas, por demais nítidas, e as palavras soavam. Se antes buscara ignorar uma possível abstração em direção ao enigma da velha vendedora, obtendo sucesso nisto, agora não se repetia - estava além de suas forças! Bastava relaxar um pouco, afrouxar as rédeas do pensamento, e sua própria imagem voltava a lhe falar, repetindo sempre: “Sorman vou partir, é preciso!”. Apesar disto, ele procurava não se impressionar, pretendendo fingir que nada estaria acontecendo, entregando-se ao trabalho com maior denodo.
E como sua capacidade em absorver-se e se concentrar fosse grande, exagerava na dose. Quanto mais isso acontecia mais ele duplicava esforços, conseguindo nestas horas de dedicação esquecer-se temporariamente e a seu íntimo, escalando patamares que o deixavam próximo de perder-se na realidade dos fatos sobre si mesmo. Eduardo, que no princípio vira aquela atitude como prova de amor e digna dedicação ao trabalho, com o decorrer dos dias já se preocupava. Sorman chegava cedo à mesa de trabalhos e de lá somente saía para atender assuntos externos, ou participar de reuniões na própria empresa. Pouco conversava, se alimentava mal. Escrevia laudas, fazia extensos e detalhados relatórios, concebia difíceis projetos tecnicamente perfeitos. Mantinha frequentes contatos com clientes e fornecedores. Ao visitá-los, aproveitava para pesquisar junto a órgãos e associações, sobre estatísticas, índices diversos e atuações de concorrentes no mercado. Retornando à sala, retomava as tarefas e ali permanecia até tarde. Era o último a deixar a empresa, mesmo após Eduardo. Transformava-se, assim, num titã, um gigantesco homem de negócios: imbatível na sua energia, perspicácia e produtividade, com ilimitada capacidade para gerar sempre novas e perfeitas soluções. Isto o tornara respeitado e temido, e reconheciam: era a escalada de um gênio em processo de gestação!
Os sinais de fadiga e emagrecimento, já eram notados por Olga que em vão o alertava de seus excessos. Até Javan, numa de suas esporádicas visitas ao escritório, pode atestar com preocupação a transformação que se processara no amigo. Malgrado suas tentativas, não conseguira demovê-lo de sua têmpera, ou convencê-lo a saírem para se distrair.
“Sorman vou partir, é preciso!”. Aquilo já era um agente obsessivo; algo forte e real a persistir sempre. Sem tréguas, entregando-se febrilmente e cada vez mais ao trabalho, ele mesmo não se reconhecia - estava indo longe demais! Falhara na tentativa de apagar aquela aparição, fazer calar a sua voz. Como resultado, perdia a paciência, irritava-se com facilidade; a custo continha-se nas suas explosões. Finalmente, quase esgotado, teve um momento de lucidez convencendo-se de que exagerava e recolheu-se para descansar. Olga atendeu-o, cobrindo-o de cuidados. Apesar de tudo a tensão povoava-lhe o íntimo.
Naquele dia em que permanecera em casa, e no dia seguinte, a imagem o deixou. Mas ainda que em descanso, a tensão vinha operar em si algo estranho, provocando-lhe uma ansiedade que o impelia a pensar. A exemplo de uma sensação dirigida era puxado lentamente para cima, trazendo sua atenção e reflexão para diferente ângulo. Era como - comparava - iniciar a concentração nos tempos do ashram, onde os sentidos ficavam adormecidos, a consciência se tornava volátil e com redobrada lucidez, e as imagens mentais produzidas ou observadas separavam-se dos pensamentos e dos agregados emocionais. Partindo desta reflexão, pôde compreender que existia mensagem significativa de que precisava inteirar-se, no entanto, pelas turvações de seu íntimo não conseguiria percebê-la. A leitura continuaria impossível se a condução de sua vida seguisse os mesmos padrões de agora. Algo realmente necessitava ser feito!
Pressentiu então que deveria ficar sozinho, distante de todos. Desta maneira, anunciou aos pais a decisão de viajar para a casa que possuíam ao pé da serra, onde por tempo indeterminado permaneceria. Olga quis ir junto, desejava assisti-lo, providenciar coisas, estar sempre por perto. Sorman negou-lhe tal assistência: precisava estar só, necessitava da solidão, e eles conhecendo-o e a sua determinação, acabaram por ceder. Pelo menos saberiam onde ele se encontrava, podendo ir visitá-lo.
Ao aproximar-se da bela casa e abrir o portão um oculto instinto o fez, especialmente, contemplá-la. Viera acompanhado de estranha premonição que lhe deixava na percepção intuitiva um reflexo de luz. Aquilo, supunha, vinha indicar-lhe a trajetória de um possível caminho, talvez concreto, mas que neste exato instante se mostrava unicamente imaterial. Tinha quase imperceptível rastro, como da cauda de um velocíssimo cometa que já tivesse passado distantemente. Mostrava ainda a prova de sua presença através de pequenas e esmaecidas luzes, a exemplo de vaga-lumes em ordenados voos noturnos. Sorman, no entanto, não queria estar só naquelas evidências quase irreais; assim, por uma razão qualquer, invocava duas principais testemunhas: ele mesmo e a própria casa!
CAPÍTULO IV
ENCONTROS
"Crescemos muito, Ele e eu, e à luz da razão não há em como recuar. Se assim eu fizer, precisarei me defrontar novamente com todos os meus inimigos de outrora, de costas, sem ânimo ou flama, cedendo-lhes de meu campo, meu espaço antes conquistado. Viver assim é aquiescer com o contrário, é afagar-lhe as horrendas presas, franquear-lhe a entrada para que medre: é insensatez."
Cansado de ali permanecer Sorman resolveu sair. Experimentava certo dissabor; nada obtivera. O cenário que se descortinava em seu íntimo pouco lhe valera. Sons, cores, imagens ou vozes não lhe provocavam qualquer reação, não lhe acendiam a alma! Praticamente em vão rememorara os mantras, as invocações mágicas, a técnica milenar de chegar ao samadhi. Anestesiara a mente, calara os pensamentos, abrira a percepção para a voz superior. Seu corpo ficara dormente, os membros inertes. Já superara a torturante dor física dos primeiros dias de práticas; jejuara e seguira todos os preceitos de que a memória ainda detinha registros.
Deixando os limites do agradável vilarejo, ingressou por estrada de terra. Em certo ponto encostou o carro. Ao pisar o solo e circunvagar o olhar, observou a placidez do local. Às margens da estrada, árvores se entrelaçavam bem ao alto proporcionando interessante integração e continuadas sombras. Outras árvores, mais interiorizadas, mostravam os raios solares infiltrados nos entremeios de seus galhos, e no chão nódoas longas ou salpicadas formavam desenhos! Estava calor, apesar da atmosfera vigorosa do lugar e ausência do peso químico poluente das cidades!
Sorman sorriu, achando tudo interessante, como se não houvesse antes presenciado ou vivido algo assim. As emanações da vida vegetal, o verde, a terra, a luz solar: todas estas coisas tocavam-no especialmente e o surpreendiam. Pareciam haver crescido de repente, se excedido de sua dimensão normal, como se dispostas estivessem a comungar com o gênero humano, com ele. Mas era somente tocado, não se integrava, e isto vinha causar-lhe a ilusão de estar separado do espírito da natureza, da abarcante força, da generosa criação e ânsia pela vida! Essas coisas espontâneas se justificavam pela completa consciência da submissão. A consciência dele, não: era diferente, pertencia-lhe e não ao espírito universal; por isto açoitava-o, às vezes com inclemência!
Descobrindo estreita passagem entre ramagens nela ingressou, pretendendo somente caminhar. Imaginou encontrar mata fechada; não era sua intenção embrenhar-se, explorar lugares de difícil acesso para depois, intimamente, vangloriar-se de sua empreitada. Quanto mais se interiorizasse, afastando-se da estrada, maior dificuldade teria para voltar. Encontraria locais íngremes, a própria serra: isso demandaria superar-se para avançar; provavelmente se cansaria. Ademais, nada trouxera para auxiliá-lo: nenhum equipamento, víveres, nada, estava somente com a roupa do corpo! Assim, de espírito preparado, pretendendo de antemão não ir muito distante, permitia-se somente dar uma olhada, passear um pouco, respirar melhor aquele aroma forte, pleno de alma vegetal!
Entretanto, surpreendia-se ao verificar que, ao invés do panorama adrede pintado em mente, encontrava, pelo menos naquela extensão inicial, terreno amplo embora com lances de intensa vegetação e entremeados de largos espaços com áreas cobertas de grama rasteira e plantas agrestes. Não haveria dificuldade alguma nem qualquer tipo de embaraço, e encorajou-se lançando-se por entre árvores, trepadeiras e arbustos. Notou pela passagem por onde acidentalmente ingressara que uma trilha fora formada - eram nítidos os sinais deixados por quem ali andasse - e animou-se em segui-la.
Um som repetitivo e cadenciado vibrava para o alto, provocando perceptível eco. Sorman logo o reconheceu: era de um machado que partia lenha, e procurou localizar sua exata posição. A curiosidade aguçou; ele caminhou para os lados de onde aquilo provinha, precisando deter-se adiante porque havia um muro de tijolos e cimento. Procurando observar melhor conseguiu entrever sobre o muro, dentre o arvoredo, ao nível de uma elevação mais ao longe, porções de um telhado e de parede branca.
A trilha acompanhava largo trecho do muro, e reiniciou os passos, vendo a poucos metros dali um portão. Na medida em que se aproximava, podia ouvir mais nitidamente os desfechos do machado e ranger da madeira que era deflorada. Quando finalmente parou diante do portão aberto, viu um negro alto e forte, aparentando cinquenta anos, com o machado nas mãos, tendo um tronco de árvore caído e parcialmente ceifado, aberto longitudinalmente, e pequena pilha de paus de lenha que amontoava próximo de si. A seu lado, pouco distante, um grande cão de pelos amarelados, deitado sobre a relva, observava os movimentos. O cão, percebendo o estranho, levantou-se, empinou as orelhas e ganiu. O negro voltou-se para o portão deparando-se com Sorman. Houve hesitação; Sorman procurava o que dizer; o negro antecipou-se:
- Boa tarde, deseja algo?
- Para dizer a verdade, não. Passeava pelo lugar e acabei chegando aqui.
O homem olhou-o com maior curiosidade; isto causou ao jovem certo embaraço, fazendo-o sentir-se invasor.
- Entre! - falou simplesmente.
- Ora - surpreendia-se Sorman - não sei se devo. Estaria incomodando, atrapalhando o seu serviço.
- Entre! – repetiu num convite quase imperativo. Sorman adiantou-se; o cão fez súbito movimento de lançar-se à frente - quieto, Deucalião, deixe o moço entrar! – ordenou o homem sem virar o rosto.
O cão ganiu nervosamente, sentando-se sobre o traseiro, ficando a observar. Sorman deu três passos e adentrou, empurrando levemente o portão atrás de si.
- Meu nome é Sorman, passo dias na vila e resolvi conhecer estes lados.
- Meu nome é Bruno, moro aqui.
Já próximo Sorman absorvia o forte odor que exalava das rachas da madeira.
- Faz sempre isto?
- Cortar lenha? Oh, é um excelente exercício, além de útil. Faço isto regularmente; trouxe esta tora e resolvi cortá-la aqui mesmo. Temos um fogão a lenha que vez por outra utilizamos - Bruno desceu a cabeça do machado ao chão e girou o longo cabo, virando o fio do corte para fora, - além do mais - prosseguiu apoiando levemente um antebraço no cabo do machado que segurava com a outra mão, inclinando o corpo adiante com suavidade - faz-nos atrair de dentro forças que dormitam. A própria mente satisfaz-se com as energias que passam então a circular com maior liberdade - ele sorriu mostrando belos e alvíssimos dentes.
Sorman sentiu estranha sensação. Olhando Bruno, pressentia-lhe algo sutil a expandir-se de seu corpo. Ao volver o rosto para os arredores obteve nova surpresa: alguma coisa fantasticamente forte obstava-lhe a mente. Quis ir adiante na observação, mas a mente não lhe obedecia, e recuou.
- Que se passa neste lugar?
- Que se passa em sua mente? - redarguiu Bruno com leve sorriso.
- Algo muito forte. Uma energia que não localizo cerceia-me. De onde vem?
- Tente de novo, projete-se mentalmente - disse Bruno, endireitando o corpo, retirando o braço de apoio do cabo do machado.
- Não..., não consigo! - Sorman falou tenso.
- Laya, iyê, iyê! - pronunciou energicamente o negro - agora solte-se!
- Agora, sim, posso observar todas as direções! - falou com certo alívio, após a bem sucedida tentativa. Bruno riu descontraidamente. Seus dentes mostraram-se com maior alvura; ele jogou a cabeça para trás.
- Ótimo! Ótimo! - comemorou ainda sorrindo - Vejo que não teme ao desconhecido. Excelente autocontrole. Outro qualquer já teria corrido espavorido.
Sorman coçou a cabeça e suspirou. Na verdade, estava ainda em estado de alerta, com nervos tensos.
- A quem ou a quê comandou? - perguntou secamente.
- Forças mágicas, acredita nisto?
- Acredito naquilo que a razão possa compreender. É algo explicável?
- Naturalmente, jovem. Tudo se explica, embora nem tudo seja inteligível. A razão das coisas é a própria ação que nelas decorre. Se nos apercebemos de uma ordem universal, cujo movimento flui perenemente e neste mecanismo inserimos nossa vontade, a razão do fenômeno absorve-se em nossa mente. Mas se conseguimos o seu controle, pelo menos em certa dimensão ou proporção, então particularizamos, comandamos ou criamos. Eis o aspecto mágico, a geração do fenômeno através da mente humana.
Sorman mirou-o com admiração. Seus negros olhos mostraram indisfarçável brilho e um quantum de aguçamento.
- E que ordem universal é essa que o senhor comanda: coisa adstrita a dogmas, empirismo ou alcançada em quintessência?
- São forças naturais, mágicas, como disse. Na mente intelectual humana elas só existem em valores conceituais. Mas elas são o que são como se costuma dizer nos axiomas do ocultismo. Porém, o conhecimento verdadeiro é a apropriação que se obtém da imanência de ser e existir. Exemplificando: as forças de que tratamos jamais se condicionam, antes fluem livremente sob a égide de leis que regem a ordem universal, não obstante submetem-se parcialmente a uma vontade mais poderosa.
- Como dominar ao desconhecido sem antes estudá-lo? E caso, acidentalmente, o capturássemos sem estarmos preparados, não seria extremamente perigoso guardá-lo sem a garantia de que não nos viria devorar?
- Neste plano de acontecimentos não existe o acidental. É claro que não estou descartando o conhecimento, a sabedoria - aquilo que distingue o conhecedor do não conhecedor, o sábio do sonhador - porém tratamos aqui de hermetismo puro, um plano oculto onde o conhecimento vem da vontade e do próprio espírito. É algo instintivo, intuitivo, requerendo, acima de tudo, coragem e pureza de intenções. As situações com que nos deparamos virão nos proporcionar o conhecimento prático, mas é, sobretudo, pela ação e inserção dinâmica da mente que vivenciamos isto. Eis tudo, ou quase tudo!
Era inusitado o momento, insólito o encontro e Sorman refletiu: este Bruno, diante de quem agora se encontrava, seria também autêntico? Seu padrão mental, sem dúvida, fugia ao dos homens comuns deste tempo - seria mago, magista, ou por infelicidade, um embusteiro? Ele, Sorman, passara por tolo ao cair em grosseiro truque, talvez hipnótico, ou fora vítima de uma espécie de forte encantamento? Fosse o que fosse nada conhecia dele, por isso precisava ser cauteloso, saber como se desvencilhar sozinho de outra vexatória situação, se novamente acontecesse.
Todas estas coisas se passaram na mente do jovem em poucos segundos; ele voltou a inquirir Bruno que pacientemente o observava:
- E estas forças que o senhor menciona têm a ver com espíritos, almas, elementais, ou coisas do gênero, indissociadas da magia outrora muito praticada?
- Evidentemente. Necessário, todavia, separar-se os fenômenos. Espíritos, almas, elementais, não são exatamente forças, mas agentes incorporadores de forças. Quem delas trata precisa saber para não fazer confusões ou provocar erros - é básico e fundamental. Se tratamos de invocar determinada força, é necessário antes de tudo reconhecê-la, pois é através de formas que as forças se incorporam e se manifestam.
- Isso quer dizer que a mente comandando diretamente desde arupa, criaria rupa, uma espécie de atomicidade solar isenta de reflexos e dispersões de aspectos, porém atraindo mais fielmente qualidades de manifestação raio ou subraio?
Bruno olhou-o admirado e sorriu enquanto, em sequência, agarrava ao cabo do machado com ambas as mãos, levantando-o, e o desfechava sobre o tronco, cravando-o na madeira. Depois se aproximou mais de Sorman. Deucalião acompanhou-o, assentando-se colado à sua perna.
- Você compreende perfeitamente o que eu digo, jovem, é perspicaz. Provavelmente não precisará de lições; conhecê-las-á a todas. Entretanto, há coisas que você não possui e todo o seu esforço poderá esboroar-se pela falta, por isso, cuidado ao enfrentar águas que rolam furiosamente, quebrando vagas sobre fraca resistência, pois elas virão arrastando tudo.
Sorman sentiu um impacto e imediatamente lembrou-se das admoestações da velha senhora vendedora de essências, mostrando transtorno do semblante.
- Que coisas são estas? - perguntou com aguçada curiosidade no olhar.
- Você, sem dúvida, conhece a máxima: como é embaixo é em cima, como é em cima é embaixo, atribuída ao grande mago Trimegisto. Então, se pretende alcançar novo patamar, buscando descartar empecilhos e obstáculos pela elevação da mente e nada mais, é certo que cairá num vazio sem fim, a menos que observe as bases. Entretanto, tenha ou não vivenciado estas experiências de base em vidas passadas, seja ou não de alta qualificação mental, mas conduzindo-se como agora, aleatoriamente aos fenômenos do mundo, esbarrará, sempre, num hiato, e o fato acarretará, certamente, a derrocada. Cerque-se do conhecimento, cinja-se do poder sobre a terra: vença-a no seu próprio elemento e todos os demais obstáculos cairão um a um, como caíram os inimigos de David diante de seus exércitos. Noutras palavras: seja rei no mundo!
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Em suas horas de descanso Sorman ainda não dormira. Nem buscara concentrar-se para meditar. Andava pela casa a conjeturar acerca das palavras de Bruno. Quando o espaço interno já o incomodava, abriu a porta e saiu a caminhar entre canteiros repletos de flores e plantas ornamentais. Agasalhara-se; enfiara capuz sobre a cabeça, o ar estava frio. Fina névoa descia orvalhando. Vez por outra, um sopro de vento provocava farfalhar de galhos causando à névoa rápido deslocamento. Sorman deixava atrás de si um pensamento após outro, nada lhe dava a certeza.
As coisas pareciam não bater. Como pensar em Rama, diante do fogo, ou cercado por signos cabalísticos e círculo mágico, a invocar forças e espíritos da natureza? A filosofia de seu pensamento era única - atma a meta, samadhi o estado de fruição. Nenhuma distração para a mente, nenhum poder temporal para usufruir no mundo; a todas as conquistas abdicar; nenhuma ilusão a enredar o pequeno eu. Somente o verdadeiro Eu é soberano, nada mais importa - todos os sacrifícios se justificam pela conquista última da realidade única - o Ser Perfeito! Rama era autêntico. Seu saber excedia o significado das palavras, da retórica; sua realidade era verdadeira; tinha aura estável, harmoniosa, perfumada pela paz! Sabia ler mentes e corações; era enérgico, severo quando necessário, por isso fazia-se respeitar, jamais abusavam de sua bondade. Ah, quanto amara aquele velho mestre, quanto o provocara com contestações, argumentos, às vezes com descrença! Mas Rama sabia dar a volta, evitava o choque direto, o confronto; mostrava a outra face deixando as contestações vazias e fracas até que seu interlocutor admitisse o engano, mesmo que fosse só intimamente, porque o orgulho não se permite mostrar-se claramente derrotado. Mas largara-o! Nem mesmo soubera se algum dia, por breve momento, sentira saudade dele! Finalmente, vendo que não chegaria a nenhuma conclusão, adentrou, jogou-se no sofá, mal se cobrindo, e pegou no sono.
Pouco se passara do alvorecer já se levantava com a firme decisão de ir a cidade comprar livros sobre ocultismo e coisas do gênero! Assim determinado, fez o desjejum com duas qualidades de frutas, iogurte, pão com geleia, e saiu.
Eram pouco mais de oito horas da manhã; as ruas de paralelepípedo naquela cidade serrana ainda retinham o orvalho da madrugada. O frio ar, perfumado pelo formidável anel verde que cobria as montanhas, envolvia a cidade. Sorman se agradava daquele ar, no entanto, não fora ainda suficiente para animá-lo. Vinha percebendo quão desertas estavam as ruas e como o grande comércio até o momento não abrira suas portas. Estacionou próximo a uma banca de jornal, resolvendo conferir nos matutinos: era domingo!
Contrariado, retornou ao carro tomando o caminho de volta. Ao iniciar a descida da serra, um impulso assaltou-o e girou à esquerda retomando o sentido inverso, alcançando pequeno monumento em pedras. No pequeno obelisco, palavras de boas vindas saudavam aos visitantes. Mais além, pequenas sacadas se arremessavam ao abismo, limitadas por malhas de ferro apoiadas em largas estacas, entremeadas de galhos de espinheiro. Sorman dirigiu-se para uma delas. Muitos quilômetros abaixo, montes e montanhas produziam recortes sobrepostos por um tom acentuadamente azulado. Embora a densa névoa já se dissipasse, mais acima grandes concentrações de enodoadas nuvens ainda fechavam o céu. Numa delas, os raios solares já rompiam, alcançando faixas de terra e conformando interessante paisagem de luz e sombras. Sorman absorveu mentalmente aquele quadro. Após um bom tempo, entrou no carro e prosseguiu viagem.
De novo ele palmilhava o caminho da mata, logo alcançando o portão de onde observara Bruno. Hesitou em tentar abri-lo ou chamar. Deucalião poderia estar por ali e não o reconhecendo certamente avançaria. Lembrou-se de algo mais: aquela estranha força. Como sozinho escaparia dela se de novo o tomasse? Ficou ali entre uma dúvida e outra e finalmente se decidiu, chamando Bruno por três vezes.
- Bom dia, moço, que deseja? - uma voz feminina assustou-o e ele virou-se. Uma jovem morena, de cabelos longos e negros, alta e bela, estava ali parada. Ao seu lado Deucalião observava e gania.
- Procuro pelo senhor Bruno, ele está?
- Meu pai não pode atendê-lo.
- Por quê? - a surpresa brotou espontaneamente de seus lábios.
- Como se chama, moço?
- Queira desculpar, meu nome é Sorman.
- Meu pai falou de você, disse que voltaria hoje.
- Seu pai, disse? - ela sorriu ante a expressão de Sorman e seu sorriso o deslumbrou. Ele coçou a cabeça - quando ele pode me atender?
- Hoje não acredito, ele recolheu-se.
Sorman levou a mão ao queixo, esfregando-o distraidamente. Segurava os fios da barba que já lhe cobriam a face.
- Bem..., diga-lhe então que estive aqui, conforme ele previu e..., bem, outro dia eu volto. Ela meneou a cabeça afirmativamente e aguardou. Sorman admirou-a tão somente. Deucalião ganiu. Depois se despediram.
A casa estava aberta, o sol penetrava através das janelas. Olga fazia rápidas arrumações. Um tanto arranjados, alguns travesseiros e roupas de cama jaziam estendidos sobre os parapeitos. Ao lado da casa e na área do fundo, toalhas e vestuários desfilavam sobre os varais ao sabor da leve brisa, enquanto pares de calçados se encontravam espalhados no chão. Com as mexidas nos armários o cheiro de mofo, misturado a naftalina, recendera intensamente. Ela borrifava o ar com água cheirosa, um tipo de colônia. Vez por outra trazia dois dedos ao nariz, apertava-o levemente procurando segurar um espirro, ou buscava impedir demasiada aspiração. Esta atividade a ajudava afastar um pouco a preocupação sobre o paradeiro do filho, o que não acontecia com Eduardo. O nervosismo já o tomara, e enquanto fumava cigarros, andava uma dezena de vezes da sala até o portão e voltava. Quando finalmente o carro chegou, e aliviados constataram sua presença, apressaram-se em ir recebê-lo.
- Sorman, querido, por onde andou? - Olga se atirou sobre ele.
- Por ai - disse ao seu ouvido, logo se soltando e abraçando o pai com surpreendente afeto. Após os abraços os levou para dentro: - subi a serra e fui até a cidade - contou-lhes já sentado no sofá.
- E o que o levou lá, tão cedo? - Eduardo se acomodava diante dele largando os braços sobre os descansos da poltrona. Olga, ansiosa, sentava-se noutra poltrona ao lado do marido, olhando o filho com incomum brilho nos olhos azuis.
- Bem - ele coçou a cabeça, acima da orelha - fui atrás de livros.
- Livros?
- É..., saí bem cedo, não sabia que hoje era domingo...
- E encontrou tudo fechado! - seu pai riu com descontração.
- Sorman, meu filho, como tem passado? - Olga procurava nele sinais, observando com desagrado a negra e crescida barba.
- Bem! - disse esticando ambas as pernas para adiante - Ainda não encontrei propriamente o que vim buscar, mas já tomei uma decisão - eles o olharam com expectativa e preocupação - volto hoje com vocês e retomo meus afazeres.
- Bravos, filho! - Eduardo levantou-se e o cumprimentou. Sorman sorriu, ao passo que Olga sentava-se ao seu lado e o abraçava teatralmente.
- Proponho irmos a um restaurante para almoçar – falou já liberado do agarramento da mãe.
- Aprovado! - disse Eduardo.
- Com pedido especial - inferiu Olga, prosseguindo sem sequer dar-lhes tempo de inquiri-la - que meu filho fique mais belo e atraente sem esta barba.
- Pedido encaminhado e deferido! – Sorman aquiesceu sem a menor resistência.
A retomada das atividades foi-lhe normal. O desligamento da vida da empresa e da família pouco lhe pesara. Sentia-se como se voltasse de pequenas férias. Eduardo havia relatado que os assuntos sob sua responsabilidade estavam praticamente parados. Problemas advieram e resoluções foram tomadas, mas tudo provisoriamente. Na realidade, todos sabiam que com Sorman os assuntos rumavam para outros patamares. Logo a dinâmica que conheciam voltava a impregnar a empresa e sobrava trabalho para todos. Eduardo já fumava charutos e sorria.
Passado um mês, absorto, vendo sua administração caminhar a contento, Sorman começava a sentir um diferente sabor por aquela vida: coisa de que não lembrava ter experimentado antes. E aquele sabor ia se tornando em prazer. Neste dia, Javan apareceu na empresa. Sendo já advogado, trabalhava no departamento jurídico da companhia de seguros e cursava uma especialidade do direito internacional. Sorman recebeu-o com imensa satisfação.
- Tenho estado muito ocupado - dizia-lhe a visita diante da escrivaninha - estudos, trabalho, atenções para a noiva. Não sei se você já sabe, preparo-me para casar.
- Deveras? Pobre moça! - Javan riu.
- Soube de sua escapada para os lados da serra; algo estratégico, iniciático, revelações?
- Simplesmente não sei. Buscava soluções, mas a própria ausência delas acarretou-me nova retomada.
- Faz por onde e te ajudarei. Nalguma instância, isto estaria acontecendo?
- Moviam-me premonições relativas à mente e espírito, ao invés disto que consigo? Nada visível, nada palpável. Uma noite cheia de reflexões, angústias, indecisões e depois..., zás, tudo desaparece. Aqui estou a trabalhar ardentemente, e pasme: satisfeito comigo próprio! Ah, sim, Bruno, o homem da magia, surpreendeu-me de fato. Foi ele o causador de minhas reflexões pela madrugada.
- Conte-me, então, Sorman!
Sorman contou ao amigo em detalhes o que lhe sucedera. Ao final, Javan olhava-o admirado como sempre.
- É um personagem e tanto este Bruno. Não o deixe escapar!
- Não sei, exatamente. Mas é algo que, vez por outra, passa-me pelo pensamento.
Mais um mês decorrera. Em meio às atividades Sorman teve ligeiro e significativo estremecimento. Uma sensação que singrava puxou sua atenção e ele mergulhou em turvações. À escrivaninha, viu-se murmurando: “E por que não lá voltar?”. Ante o eco das próprias palavras estancou os movimentos habituais, largando-se de encontro ao espaldar da poltrona. O que dissera? Tentou acalmar as ondulações do pensamento. Em pouco mais de um minuto tinha a mente sob controle e observava a imagem de um homem sob misteriosas brumas: era Bruno, reconhecia-o!
Alegando necessidade de descansar a sós, Sorman livrou-se da presença dos pais e no final da semana viajou novamente para a casa que possuíam ao pé da serra. Pela manhã, voltava à casa de Bruno. Desta feita, Deucalião, reconhecendo sua voz, apoiou as patas no portão, ganiu e latiu amistosamente. Nervosamente tentava dizer-lhe algo. Mediante esta recepção, e como o portão balançasse, desconfiado Sorman simplesmente o empurrou abrindo-o. O cão fez-lhe nova festa e Sorman alisou-lhe a cabeça. Haviam realmente ficado amigos. E como ninguém aparecesse, imbuído de coragem, o moço adentrou a propriedade. Caminharam lado a lado. Deucalião, como bom anfitrião, deixava-o à vontade. Contudo, agitava-lhe a dúvida: aquela coisa ainda estaria por ali? Nesta pequena tensão mal notou que chegavam às proximidades da casa, tendo já alcançado o alto arvoredo que parcialmente a cortinava.
A casa branca, relativamente grande e bem conservada, situava-se em plano elevado. A varanda, arquitetada em arcos, tinha especial aparência, ocupando o perímetro total da construção. Diante do portal de entrada e aba final do telhado, dispunham-se três degraus e um patamar. Logo depois, um caminho em suave declive, revestido de largas placas em cerâmica, rasgava o plano inclinado. Ao longo desse caminho, em espaços regulares, existiam três outros idênticos patamares. Viçoso gramado envolvia completamente a elevação, sobre cujo topo a casa dominava. A circundante formação entremeava-se de roseiras e buganvílias floridas. Abaixo de tudo, ao nível do chão onde agora Sorman pisava, e por toda a margem inferior do gramado, orlavam belas hortênsias.
Sorman permaneceu ao pé do aclive. Deucalião subiu em correria; lá em cima pulou sobre os degraus, desaparecendo dentro da casa. Os ansiosos latidos foram ouvidos aqui fora. Logo uma moça surge, olhando Sorman com certa desconfiança. Talvez fosse a mesma moça morena com quem já conversara rapidamente, mas daquela distância não poderia ter certeza e a ela dirigiu-se:
- Bom dia, senhorita, procuro pelo senhor Bruno. Meu nome é Sorman.
Ela, sem nada dizer, voltou-se para o interior da casa, seguida do cão. Logo surge à porta Bruno.
- Bom dia, rapaz, suba! – convidou-o com simpatia. Sorman veio encontrá-lo já à beira da varanda sob o portal.
- Vim em busca de ajuda - ele parou num degrau, apertando-lhe a mão estendida.
- Que tipo de ajuda?
- Desde o dia em que conversamos, alguma coisa ficou martelando minha cabeça. Gostaria de conhecer sua ciência, se o senhor estiver disposto a passar-me um pouco dela. Bruno sorriu.
- Chame-me de você. Venha, entremos.
Havia simplicidade naquela sala e conforto. As paredes e o teto eram brancos. O chão era de tábuas corridas. No meio do ambiente havia um sofá espaçoso, duas poltronas e uma mesinha de centro sobre um tapete persa. Uma mesa de refeições ao canto rodeava-se de quatro cadeiras. No lado oposto ficava um aparelho de televisão. Bruno sentou-se no sofá e Sorman na poltrona diante dele.
- O que lhe fez crer que posso ajudá-lo? – começou Bruno sem formalidades.
- Uma série de acontecimentos em minha vida vem-me apontando para esta direção. Passo por difícil processo de autoconhecimento; isto, creio, inclui também esta diferente experiência, como, aliás, você mesmo já antecipara.
Bruno desviou o olhar para cima, depois o mirou dizendo:
- Honra-me saber que posso ser útil a um irmão de mente tão brilhante. Optamos e decretamos. Nada além do que exercitar o livre arbítrio; as leis da natureza assim dispõem e no-las permitem. Para uns as disciplinas de minha ciência são excessivamente árduas, e logo desistem. Outros a querem de qualquer maneira, sem, contudo, merecê-la. Poucos realmente caminham. Mas vejo em você possibilidades. Conte comigo!
- Grato Bruno - os olhos de Sorman brilhavam; seu rosto aliviava-se da tensão.
- Com licença! - a moça que o atendera trazia uma bandeja com duas xícaras de chá.
- Esta é Lucen, minha outra pérola. À Lucéa você já conhece. Sorriram e Sorman a cumprimentou com aceno de cabeça, enquanto estendia as mãos e segurava o pires. Ao final do chá, Bruno levantou-se.
- Venha comigo! - ordenou e Sorman o seguiu.
Deixaram a sala atravessando o arco do portal; desceram e contornaram a casa. Prosseguiram pelo largo terreno onde havia árvores e muitas plantas. Sorman reparou num parreiral carregado de uvas verdes e nos pessegueiros. Uma horta de terra preta, dividida em canteiros, vicejava a um canto. A poucos metros dali um galpão fora construído; guardaria objetos de imediato uso, como também armazenaria cereais e especiarias em geral, supunha Sorman. Eles caminhavam sobre uma estreita via em cimento que ora se alongava ora serpenteava. No trajeto Bruno explicava:
- Amo este lugar e pretendo dele nunca sair, apesar de aqui ter assistido a morte de minha esposa. Essa imensa tristeza não foi suficiente para me fazer partir. Minhas filhas compartilham comigo quanto a essa decisão. Quando aqui cheguei este pedaço de terra estava à venda. Consegui comprá-lo com sacrifício, e ao longo do tempo fui construindo a casa. Minha esposa ajudou-me com as próprias mãos. No lugar ficou parte dela, e nas filhas que também aqui nasceram.
Finalmente chegaram ante uma cerca de arame. Sorman surpreendeu-se ao verem-se cruzando-a através de um “quebra corpo” – todo este sítio me pertence, apontou Bruno já do outro lado.
Sorman parou para observar. Era grande. Pela extensão de terra apontada não seria um sitio, porém pequena fazenda. Prosseguiram, e nessa nova trajetória Sorman via plantações, gente colhendo e máquinas trabalhando. Largo riacho vinha cortar um lado daquela área, enquanto braços se desviavam, proporcionando meios de melhor irrigação.
- São seus empregados?
- Sócios. Tenho com eles “meias”. No lado de lá – mostrou com gesto - além daquele grande monte, possuo minhas próprias plantações que cuido sozinho. Todo este sítio pertenceu no passado a um só dono. Ele foi uma pessoa muito especial; ensinou-me tudo o que hoje sei em assuntos de terra.
Fortes latidos fizeram-nos voltar-se e viram Deucalião se aproximando em disparada - ele sempre me encontra, não há lugar onde consiga esconder-me! - falou prazerosamente.
Escalaram pequena elevação chegando a um chalé. Uma proteção de telhas guardava um jipe. Ao abrir o portão gonzos sonorizaram; Bruno foi logo saudado à porta por um homem negro. Em seguida apareceram uma mulher e um adolescente.
- Bom dia, seu Bruno, o senhor hoje veio mais tarde.
- É verdade, Jerônimo. Está tudo bem?
- Graças a Deus!
- Este aqui é meu amigo...
- Sorman, muito prazer!
- Prazer é todo meu!
- Prazer! - repetiram a mulher e o rapaz.
- Vou sair agora, abra lá a porteira!
Jerônimo e o rapaz se apressaram naquela direção, enquanto os recém-chegados montavam no veículo. Deucalião se aninhou atrás.
Bruno conduziu o jipe mais para cima, por estrada de terra. Adiante ingressou numa faixa estreita em declive. Às vezes, devido às inclinações e pelos buracos ou pedras semiaterradas, fazia-se necessário apoio do passageiro e Sorman apoiava-se no painel ou firmemente na porta do veículo. A mata num dos lados escondia abismos e estreitos vales; eventualmente crescia se espraiando sobre as elevações. Cruzaram pontilhões de toras, ouvindo o agradável murmurejar de água. Não muito distante a mata se fechava.
Pouco depois, o caminho deixava de ser acidentado. Uma vez neste solo regular passaram a acompanhar um volumoso riacho. Tão logo cruzaram uma ponte de largas tábuas, Sorman divisou uma casa rosa. Bruno estacionou no pátio frontal. A casa era de construção antiga em excelente estado de conservação. Bruno agora explicava:
- Chamamo-la a Casa Rosa e pertenceu ao antigo proprietário. Conservo-a, não pela lembrança em si, porém pelos motivos que você irá descobrir.
Apearam. Deucalião desapareceu mata adentro em frenética corrida. Bruno subiu o degrau único, caminhando de uma extremidade a outra da varanda, seguido de Sorman. Retirou pequeno chaveiro do bolso e abriu a porta. Estava escuro, da soleira da porta ele estendeu a mão para dentro, tocando um painel de interruptores, acionando um deles. De imediato, acenderam-se abajures numa das paredes - sete ao todo – produzindo-se no ambiente suave amálgama de luzes coloridas.
- Enganei-me de novo - reclamou rindo, pressionando nova tecla e acendendo uma fase do lustre no meio do teto, suficiente para encher o lugar de clara luz. Em seguida, desligou as lâmpadas coloridas - vou abrir as janelas!
Enquanto Bruno fazia isto, Sorman examinava o lugar com atenção. Aquilo não era uma sala de visitas, mas arranjada de forma pouco usual. Num dos extremos havia mesa não ampla e uma larga cadeira colonial almofadada. Junto às paredes, muitas cadeiras comuns se encarreiravam e nada mais. As paredes eram forradas de papel claro com entremeios de desenhos alegres, sendo o teto branco e o chão em tábuas largas.
- Aqui nos reunimos semanalmente para nossos objetivos ocultistas - dizia o anfitrião enquanto empurrava a veneziana de outra janela.
- Quem?! - indagou Sorman com real curiosidade.
- Ah...! Nossa irmandade, naturalmente – ele indicou o corredor e para lá se dirigiu.
Havia muitos cômodos confortáveis e limpos, Bruno os ia mostrando. Por último, entraram na biblioteca ao final do corredor. Comprida mesa protegida por grosso e claro vidro estendia-se no meio do ambiente, acompanhada de uma dezena de cadeiras. As quatro paredes possuíam estantes com centenas de livros. Sorman aproximou-se e observou alguns exemplares. Eram todos encadernados, mostrando índices codificados com alfabeto e números.
- Posso? - perguntou estendendo a mão para um deles.
- À vontade!
Retirando-o da estante, surpreendia-se na medida em que o folheava. Era um tratado de magia prática com texto, desenhos e quadros sinópticos manuscritos. Voltando às primeiras páginas, buscou a introdução, mas nada havia; tão pouco existia a indicação do autor. Recolocando-o no lugar, escolheu outro em diferente escaninho, que como o anterior apresentava idênticas características na confecção. Abordava astrologia, embora escrito com outra caligrafia. Após examinar um terceiro volume e notar a mesma semelhança, o jovem comentou:
- Ao que tudo indica os livros são todos escritos da mesma forma, com idêntico estilo e anônima autoria.
- Exatamente, mas sente-se! – Sorman lançou-lhe olhar de expectativa enquanto sentava-se. Bruno se acomodou à sua frente – Esta casa, como lhe disse, pertenceu ao antigo proprietário do sítio, que também foi irmão fraternal. E conforme informei promovemos agora reuniões da irmandade. Os livros que aqui vê são raros e únicos; muitos foram escritos há mais ou menos um século, quando passamos novamente a nos reunir. No início, estes livros estavam espalhados sob as responsabilidades de diversos irmãos. Porém, ao transformar esta casa em núcleo da irmandade, conseguimos concentrar muitos deles nesta biblioteca. Nenhuma pessoa não afiliada à irmandade poderá levá-los, nem mesmo lê-los, exceção a um livro e em ocasião especial. O livro a que me refiro traz aura poderosa; ao iniciar sua leitura a pessoa imediatamente irá ligar-se a algo extraordinário. E tocando neste ponto, gostaria de saber se após estas primeiras revelações, você ainda confirma a intenção de iniciar-se em nossa ciência? Sorman, profundamente intrigado com aquela misteriosa atmosfera, não titubeou na resposta:
- Evidentemente. Confirmo minha intenção! O olhar de Bruno mostrou rápido brilho; com maior ânimo ele continuou:
- Saiba então que devido a sua condição, estará guardado de submeter-se ao estágio do que denominamos “pré-ingresso” do neófito. Este introdutório estágio, aliás, parecendo simples e de pouca importância, não o é, todavia. Muitos não vão além e cedo se aborrecem por ter de estudar ou passar por necessárias provas, sequer tomando conhecimento do livro. A propósito disto, o livro lhe será entregue imediatamente: você terá, exato, uma semana para lê-lo. Mas não se preocupe por que a leitura será tarefa relativamente fácil, sem qualquer empecilho ou prejuízo para o tempo que dedica aos afazeres profissionais. É perfeitamente possível lê-lo à noite ou na tranquilidade da madrugada.
Surpreso e aguçado Sorman rapidamente refletiu. O estranho homem falava-lhe como instrutor consumado, parecendo já conhecer suas dúvidas e curiosidade. Isto, ao invés de tranquilizá-lo, o constrangia. A reflexão foi interrompida quando Bruno levantou-se buscando num dos cantos uma escada que logo abriu, nela subindo e alcançando um livro negro. Tendo descido, sentou-se no mesmo lugar, colocando o livro sobre o tampo vítreo da mesa.
- Leve-o. Abra-o em casa. Evite, porém, que curiosos lancem-lhe mãos. Não o conseguiriam lê-lo, afinal, mas você teria trabalho dobrado a fim de recuperá-lo!
- Como assim?
- Nada mais devo dizer-lhe sobre o assunto, é regra da irmandade.
Sorman desviou o olhar para o decantado objeto e estendeu as mãos segurando-o. Ao contrário do que parecia, era leve, muito embora fosse bem maior do que os padrões habituais, e um tanto grosso. A reluzente e negra capa pareceu-lhe, a princípio, de fino couro, mas não era possível afirmar; tinha, ademais, uma tira e um fecho de pressão que atava capa e folhas. A julgar pela aparência seria novo, porém, considerando tudo o que Bruno lhe contara, teria já passado por muitas mãos em diversas gerações, isto é, fosse o único exemplar existente e jamais substituído. A curiosidade quase o dominou, mas resistiu. Bruno, fingindo não perceber esta luta, levantou-se e foi em direção da saída.
- Há algo mais que desejo mostrar-lhe!
Sorman largou o livro sobre a mesa e o seguiu. Saindo pela porta ao final do corredor, alcançaram o pátio do fundo. Alguns metros adiante principiava uma elevação relativamente inclinada. Tinha o formato de um quadrilátero, limitado por duas cercas vivas e paralelas de cedrinho, por uma terceira e igual cerca lá em cima, e pelo pátio aqui embaixo. No seu interior havia limoeiros, pés de tangerina e pequenos pessegueiros. No lado esquerdo, uma escadaria de cimento colava-se à cerca, ligando dois níveis do terreno, vindo terminar num grande portão de madeira clara e envernizada, enfiado na cerca superior.
Vencendo pequena distância os dois chegaram ante os degraus e os escalaram, abrindo finalmente o portão. Em percurso contrário ao realizado lá embaixo, caminharam aqui numa viela que se alinhava entre o cedrinho e a base de uma nova elevação. Esta segunda elevação, com maior inclinação que a primeira, formava outra figura de um quadrilátero num terceiro nível do terreno. Tinha três lados demarcados por muretas de tijolinhos e uma área interna plantada de verde e bem aparada grama. Bem no meio cortava nova escadaria, alcançando mais acima novo e bem confeccionado portão de madeira clara, inserido noutra cerca viva, alta e compacta, que conformava o lado superior. Além, nada mais era possível divisar-se, exceto copas do arvoredo. Pararam ao pé da escadaria.
- Detrás daquele aparente frágil muro, reside o nadir da iniciação, onde todo o neófito determinado precisará pisar - apontou o anfitrião. Sorman olhou para o lugar com interesse e curiosidade, mas se absteve de fazer qualquer comentário ou pergunta.
Neste mesmo dia, Sorman resolveu que iniciaria a leitura do livro. À tarde, na casa da vila, sentava-se no sofá da sala, trazendo o livro sobre as pernas. A reluzente cobertura da grossa capa era objeto de sua atenção. Ele refletia: tudo começara com aquela velha senhora, parecendo-lhe meio doida, a lançar-lhe o enigma. Não conseguia entender como tendo avançado nas dimensões do pensamento, precisaria agora voltar no tempo. Não conhecia nem convivera com alguém em semelhante situação!
Mas com ele tudo era diferente! Nos limites e fronteiras de seu universo pessoal habitara outro ser: um executor tenaz que com furor o compungira em dores. Fora-se embora, mas permanecia o temor de que retornaria como outrora. Seria sua sombra? E se fosse a este obscuro ser a quem devesse enfrentar na batalha final do Armagedon? Armagedon ou Kurukchetra? Já nem sabia mais. Que estranha vida a sua. Quantos “eus” emergiam nos seus pensamentos; qual seria o verdadeiro? Quem seria também este Sorman, ou ele também não existiria?
Ajeitando-se melhor no sofá, moveu ligeiramente o livro e a luz moveu-se sobre sua capa. Já que iniciara os passos rumo a este desconhecido - pensava ainda - e se antes não houvera superado obstáculos, então precisaria de fato retomar. Fora justamente o que lhe dissera Bruno no seu primeiro encontro. A lei antagônica do equilíbrio dos opostos precisava ser observada; não deveria mesmo recuar. Tendo assim pensado, finalmente soltou a tira que lacrava o livro, e o abriu.
A primeira página estava em branco; também a segunda e a terceira. Surpreso, folheou ao todo dez páginas, todas em branco. Na décima primeira, algo surgiu. Nela existia estranha figura. Era uma grande cara feia de um duende. A fisionomia pretendia externar um misto de pavor e intenção de atemorizar, pois tinha os olhos arregalados e a boca totalmente aberta. Dois minúsculos cornos sobressaiam de sua larga testa. As orelhas eram enormes, desproporcionais a todo o resto, com grandes lóbulos; a cabeça estava coberta com negro capuz que deixava a testa à mostra e descia por detrás das orelhas. No interior da boca havia um disco de metal, cuja superfície mostrava riscos e linhas a querer formar qualquer coisa de impossível definição. A posição do disco era em depressão, afundado através de algumas páginas.
Intrigado com a esdrúxula figura, Sorman tocou com o indicador no disco, verificando que se movia sobre um eixo. Girou-o, então, suavemente, e de imediato escutou um leve sibilo no ar. Volveu os olhos para o alto procurando a direção de onde aquilo provinha. Mas o sibilo cessou como também o movimento do disco. Intrigado, deu-lhe maior movimento. Novamente o sibilo aconteceu, porém mais forte e penetrante, e viu formar-se na superfície do disco a palavra “Ratziel”!
- Ratziel! – pronunciou, sentindo-se de imediato meio tonto, sendo obrigado a apoiar a cabeça. Imagens então se formaram e viu o duende pular a sua frente a dizer:
- Chamastes, aqui estou!
Porém, estas coisas logo passaram. Recuperando-se, ele apertou os olhos e ergueu a cabeça. Que raio de livro era este; que estranho fenômeno despertava? Embora cismado, não quis de novo aventurar-se e folheou ansiosamente as páginas seguintes. Para sua decepção, as páginas nada traziam e largou o livro sobre o sofá, levantando-se.
O restante da tarde passou-a na própria casa. Sentia a necessidade de relaxar os nervos. Assim, procurou não pensar sobre o que lhe ocorrera, instalando-se numa rede, à varanda, tentando cochilar um pouco. Mas logo desistiu, indo preparar algo para comer. Mais tarde, antes do pôr do sol, andou sobre o gramado. Próximo do escurecer, quando a temperatura começava baixar, recolheu-se. Como ainda fosse muito cedo para dormir, e sem absolutamente nada em vista para fazer, lançou olhar para o livro pensando em de novo abri-lo. No entanto, desistiu da idéia resolvendo que sairia. Tomou banho, agasalhou-se, entrou no carro e subiu a serra. Em pouco mais de meia hora dirigia-se ao centro da cidade.
Turistas, moradores e frequentadores de fins-de-semana movimentavam a cidade. Sorman estacionou e entrou em concorrido shopping center, chegando à praça da alimentação onde encontrou mesa livre. Para sua surpresa, pouco depois, duas pessoas conhecidas paravam diante dele.
- Boa noite, Sorman - disse uma das moças com amplo sorriso.
- Lucen! - exclamou.
- Lucéa! - corrigiu-o
- Lucen sou eu! - falou a outra.
- Queiram perdoar-me - disse se levantando - as duas são tão parecidas. Ainda não as tinha visto juntas. Que fazem por aqui?
- Compras da semana - disse Lucéa - agora procurávamos por uma mesa.
- Ora, sentem-se, que sorte a minha!
Elas tomaram os lugares. Eram doces, difícil dizer qual a mais bela; Sorman as admirava tentando não transparecer esta atenção.
- E você, que faz aqui? - perguntou Lucéa com seu deslumbrante sorriso.
- Distraio-me um pouco. É cedo para dormir, entrei no shopping por acaso. Neste momento o atendente se aproximou e ordenaram-lhe o que desejavam.
- Soube que você esteve lá em casa hoje, Lucen contou-me. Que achou do sítio e de tudo mais?
- Belo lugar. A Casa Rosa é também interessante. Bruno mostrou-me o seu interior. A biblioteca é algo que me interessou bastante. Jamais havia visto algo assim: livros manuscritos!
- E como você reagiu ao primeiro encontro com Ratziel? - perguntou Lucen. Sorman olhou-a com mais interesse.
- Bem..., primeiro encontro você disse. Haverá outros?
- Talvez - ela assentiu levemente - talvez. Isto é algo que realmente não se pode afirmar. Sorman estudou-as rapidamente.
- Interessante a irmandade que seu pai mencionou existir, é algo inesperado, surpreendente mesmo, e cercada de tantos mistérios. Tinha em mente que coisas assim se limitavam a relatos imaginosos, a fantasias ou ficção. No entanto, ao pisar a Casa Rosa, pude sentir solidez, e, pela seriedade com que Bruno colocou-me alguns fatos, conclui que acima da organização material - no que se refere evidentemente ao pouco que constatei - haverá notável arcabouço. Mas o mistério parece desempenhar o principal papel na forma visível e concreta de se compreender as coisas. Faz-se necessário enfrentar provas, mostrar-se leal e corajoso a fim de se obter revelações, ou a sabedoria que é velada - ele sorriu, elas se entreolharam - este Ratziel, um duende se estou certo, será ele o primeiro obstáculo a ser superado? Quem sabe será o guardião de um templo secreto, ou temível aparição que busca afastar qualquer pretendente - neófito naturalmente - não firmemente decidido. Estarei certo em minhas conclusões?
Lucéa sorriu-lhe, mas beleza juvenil de seu sorriso havia desaparecido. Um ar enigmático vinha assentar-se; os negros olhos lançavam rápidos e estranhos brilhos. Ela levantou o rosto, o queixo e dobrou a cerviz ligeiramente.
- Dê-me a mão - disse suavemente. Sorman surpreso com a transfiguração da moça não se moveu - dê-me a mão - ela insistiu com polidez. Sorman estendeu-a e Lucéa a segurou. - É admiravelmente inteligente, com isso se crucifica na sua própria realidade. O sino já repicou, a aurora se anuncia. Prenuncia-se que logo a luz inundará e dissipará qualquer resquício. A dualidade buscará a síntese, o dois será um. É necessário o homem do mundo viver e como terceiro reinará, mas não em permanente paz, pois quem na cruz nasceu, nela sempre estará. Caminhe assim, deixe sua sombra sempre atrás. Ao sábio também se requer coragem; o caminho é um só. Vença as provas e ganhará o direito de seguir em frente. Vá irmão!
Ela de novo sorriu enigmaticamente e foi baixando o rosto com suavidade até voltar ao natural. Sorman, atônito, recolhia a mão que ela largara. Como se nada houvesse acontecido, Lucéa de novo sorriu com o mesmo encanto de antes, e lhe aqueceu o coração.
Sorman as deixaria no estacionamento. Em gestos de despedida beijaram-se nas faces. Ao sentir o perfume que emanava de Lucéa Sorman foi tomado de inebriante sensação. Aquilo permaneceu e gravou-se em sua memória olfativa.
De volta a casa foi diretamente para o quarto. Mais tarde, um flash de luz, e o aparecimento de uma forma luminosa como um grande cogumelo, o fizeram abrir os olhos. Uma pequena figura então surgiu, mostrando-se claramente.
- Ratziel! – exclamou Sorman. O duende riu e apontou-lhe um diminuto cajado de madeira, meio torto, que segurava na mão direita, projetando uma energia. Não conseguindo manter os olhos abertos, Sorman fechou-os caindo em letárgico sono. Seguiu-se um estremecimento. O duende apontou-lhe de novo o cajado, deixando-o magneticamente preso.
– Vinde - o duende moveu o cajado para si, atraindo-o - entrai na luz! Sorman obedeceu; o duende apontou o cajado para cima, pronunciando estranhas palavras. Imediatamente o cogumelo desprendeu-se dali, projetando-se no espaço, levando-os em rápida viagem a um lugar que Sorman já conhecia.
Foi deixado ao pé da escadaria. Como num passe de mágica o cogumelo e o duende desapareceram. Sorman olhava em torno. Estava só, era noite, a distante lua era o único ponto de luz que percebia. Apesar das sombras, reconhecia a escadaria, o portão acima, e copas do arvoredo. Palavras familiares soaram-lhe aos ouvidos: “detrás daquele aparente frágil muro, reside o nadir da iniciação onde todo o neófito determinado precisará pisar”.
Uma desconhecida sensação o tomou, chegando próximo a uma angústia. Ele lutou e conseguiu controlá-la, começando a pensar no que fazer. Subindo ver-se-ia diante do desconhecido. Como reagir? Determinado, porém, deu o primeiro passo, subindo o primeiro degrau, depois outro, e mais outro. À medida que subia, seu corpo ganhava maior peso e os pés prendiam-se mais fortemente aos degraus. E a tal ponto, que ao chegar ao penúltimo degrau, antecedente ao patamar, precisou parar a fim de descansar. Estava tão cansado que não teria imediatas forças para dar o derradeiro passo. Mirou o portão. Este se assomou gigantesco, praticamente intransponível - um quadro desalentador para um exausto desafiante! Levou a mão à testa, fechou os olhos e procurou respirar melhor a fim de se fortalecer. O cansaço continuava. Desapontado, abriu os olhos: nada mudara! Resolvido a prosseguir, embora praticamente esgotado em suas energias, procurou levantar o pé direito para dar o último passo, não conseguindo. Voltaria? Ante esta reflexão, os pés moveram-se sem que os comandasse e girou o corpo no sentido de descida.
- Não!!! - bradou, atirando-se no patamar. Esta súbita decisão trouxe-lhe um pouco mais de energia; ele puxou as pernas e moveu-se. Com hercúleo esforço conseguiu trazer o corpo para a metade do patamar, deixando parte das pernas esticadas sobre o degrau. Mas se esgotara, não tinha mais forças. Olhou para o portão estendendo a mão em sua direção, tocando-o com a ponta dos dedos. Sua altura era descomunal; o trinco da fechadura inatingível, e largou-se apoiando o rosto no braço estendido, abatido e derrotado. No entanto um perfume evolou-se e uma esperança veio animá-lo.
- Lucéa! - exclamou feliz - ajude-me..., por favor! Sem mesmo saber como, as forças voltaram-lhe. Via-se agora com possibilidades de se levantar, fazendo isto efetivamente. O portão já não lhe parecia tão imenso e deu um passo em sua direção, levando a mão ao trinco, abrindo-o...
Ao transpô-lo, viu-se diante de uma construção interessante, circundada por altas árvores. Seria a representação em miniatura do átrio de um grande templo do passado. Duas brancas colunas elevavam-se no portal. Acima, um grande triângulo conformava o frontispício. As colunas, o piso e a base do triângulo formavam um quadrilátero perfeito. Era a projeção da fachada de um templo muito antigo de arquitetura greco-romana. A construção toda branca, era antecedida por dois lances de três degraus; um sétimo degrau ficava ao pé das colunas. Sorman analisou o que via, iniciando após os passos em direção do átrio, subindo os dois lances de degraus, vendo-se diante das colunas. No fundo, uma porta de madeira enegrecida achava-se fechada. Ele subiu o último degrau, cruzou sob as colunas, e alcançou a porta. Não havia trancas nem fechaduras, e a empurrou. A porta não abriu. Ele forçou-a outra vez, mas nada conseguiu. Fechou então o punho e bateu três vezes.
- Quem bate? - uma abafada voz inquiriu.
- Sou eu, Sorman!
- Não o conheço!
Sorman inquietou-se e aguardou; nada aconteceu. Ele bateu mais três vezes.
- Quem bate?
- Sou eu, Sorman!
- Não o conheço!
Um tanto desconcertado, ele bateu mais três vezes.
- Quem bate?
- Um neófito!
- Que deseja neste lugar?
- Desejo submeter-me às provas iniciáticas para ser aceito na irmandade.
- Está preparado?
- Sim!
- Esteja, porém, avisado de que lhe esperam duras provas e somente a coragem e a pura intenção de unir-se ao saber serão seus únicos aliados. A morte não estará absolutamente descartada!
- Estou preparado!
- Assim seja!
Sorman aguardou, porém nada mais aconteceu. A porta continuava fechada e o silêncio era completo. Movido então por um impulso ele colou a mão na porta e a forçou. A porta rangeu e abriu-se, e ele adentrou.
Havia completa escuridão, Sorman procurou amparar-se estendendo o braço para o lado, encontrando uma lisa parede. Começou a andar. Alguns metros adiante percebeu que chegava num corredor e verificou que o corredor estrangulava. Já conseguia tocar a ambas as paredes com os braços parcialmente dobrados. As paredes fechavam-se cada vez mais; ele teve de virar o corpo e perfilar-se, a fim de mover-se lateralmente e continuar. Não foi muito longe, porquanto seu corpo ficou preso em ambas as paredes. Esticou o braço e percebeu que a mão alcançava espaço maior. Era a expectativa da saída. Ficou na ponta dos pés e lançou-se. Mas entalou-se. Agora não podia nem seguir em frente nem voltar, e começou a sentir falta de ar porque comprimira os pulmões. Ao pressentir que poderia morrer asfixiado, tomou-se de desespero. Gritaria por socorro? Porém, não o fez conseguindo parcial controle de seus instintivos impulsos.
Reagira, o pavor da morte tinha sido afastado, mas a pressão era ainda bastante forte. Estava fraco, tinha a respiração ofegante; uma quantidade ínfima de ar mantinha-o respirando; não aguentaria por mais tempo. A agonia da morte então o assaltou, as pernas dobraram-se e finalmente largou o corpo, mergulhando no vazio.
O chão frio incomodava e ele se levantou. Mortiça luz entrava no lugar, através de pequenos e coloridos vitrais do teto, deixando sombras em torno. Sorman estivera deitado sobre largas e polidas lajotas de granito em mosaico preto e branco. Sentia frio, se encolhia: juntava os braços e os apertava de encontro ao peito. Permeava-o a sensação de irrealidade; uma leve sonolência o tomava. Elevou o rosto lentamente, vendo que estava diante de um túmulo em belo mármore, onde a pequena lápide mostrava a inscrição: “Aqui jaz Sorman de tal (*) l9__ (+) 20__
Um susto enorme foi a sua reação imediata. Despertou completamente olhando em torno, constatando que se encontrava no interior de um mausoléu. Morto, como? Examinou-se pela primeira vez, dando-se conta de que se vestia de branco, enfiado num longo balandrau. Uma súbita lufada de ar tocou-o nas costas e ele virou-se. O mausoléu era grande, tinha forma hexagonal; poderia sair dali?
Iniciou os passos em direção do que parecia ser a saída, chegando diante de uma cortina negra, afastando-a, vendo um vão de porta. Transpondo-o, alcançou pequeno e mal iluminado corredor contíguo, que termina ante uma porta fechada, toda branca. A porta tinha assente o símbolo prateado de uma estrela, resultado do entrelace de dois triângulos perfeitos. Acima da estrela lia-se, quod superius, no meio, est sicut, e abaixo, quod inferius. Não existia trinco ou fechadura e Sorman a empurrou.
Forte luz obrigou-o a trazer o braço diante dos olhos. Mas acostumando-se aos poucos com a claridade foi percebendo que entrara num salão comprido e todo branco e a forte luz provinha de um só ponto, lá adiante. A luz perdeu um pouco mais sua intensidade, o suficiente para que conseguisse discernir que partia de um homem sentado diante de largo e grosso livro, aberto sobre uma mesa. Mesmo de cabeça baixa, concentrado no que fazia, falou-lhe:
- Aproximai-vos!
Inacreditável, pensou Sorman, e relutou, pois apesar de a luz ter decrescido era ainda intensa e ele mantinha o braço diante dos olhos, mas decidiu caminhar. E na medida em que avançava a luz ia decrescendo e quando parou a dois passos da mesa, ela de súbito se extinguiu completamente, e ele baixou o braço. O homem escrevia tranquilamente; tinha longos cabelos e barbas brancas; o rosto era jovial, sendo impossível dizer quantos anos teria, talvez milhares, pensava Sorman absurdamente. Vestia-se como ele, num branco balandrau.
- Sorman é vosso nome? – perguntou ainda sem olhá-lo.
- Sim, senhor! Ele então folheou de volta algumas páginas do grande livro, parando numa delas, começando uma leitura à voz alta. Sua voz ecoava agradavelmente:
- Neófito da “Fraternidade Irmãos Atlantes”, foi para aqui trazido pelo patriarca Bruno. Sua ligação com esta irmandade remonta ao desaparecido continente da antiga Atlântida, onde obteve a primeira iniciação. Voltou ao plano terra muitas vezes, encontrando-se com irmãos fraternais para obrar em favor de sua raça. Quando o continente desapareceu, foi conduzido para outras civilizações, tendo se iniciado noutras irmandades ou religiões esotéricas, sob a segura orientação dos mentores de outrora. Fracassou nalgumas encarnações, tendo adquirido mal carma, que teve de resgatar. Entretanto, obteve grandes vitórias noutras vidas, mediante notável aplicação, entusiasmo e amor. Numa destas vidas, reinou sobre tradicional povo após tornar-se budista e com grande talento e sabedoria trouxe enorme progresso para seu reino. Profundamente inteligente busca a redenção pelo perfeito alinhamento com o corpo solar, tendo já alcançado grande expansão de consciência. Prende-o um passado cármico, que agora, no ressurgimento da irmandade, terá oportunidade de resgatar.
No íntimo não acredita ainda necessitar destas provas, julgando-as extemporâneas. No entanto, precisa firmemente crer na necessidade da base, pois está preso ao carma e quanto mais se distancie da Terra, rumo aos superiores mundos, maior sofrimento terá com a fatal queda de retorno, o que poderá conduzi-lo à loucura. Melhor, portanto, ceder aos argumentos da razão, lutar e vencer na Terra, os adversários da própria Terra. Quanto a esses, precisará descobri-los por sua própria ciência e sabedoria e contra eles pelejar em campo de batalha.
Morreu nesta primeira etapa de provas, mas ressuscitou. Poderia não tê-lo feito e talvez decretasse o seu próprio fim na irmandade nesta encarnação. Felizmente conseguiu trazer à superfície pensamentos de sabedoria e coragem, com os quais se laureou vencedor. Parabéns! - o velho homem encarou-o pela primeira vez, sorrindo brandamente, fechando o livro. Depois lhe recomendou: - Meu filho, sois livre para decidir se desejais continuar; porém lembrai-vos: embora neófito, vossas provas serão mais difíceis do que para a maioria dos postulantes. Sois consciência avançada, mas não livre de fracassar. Prosseguireis?
Sorman, atônito com tudo o que ouvira, custava assimilar o momento. Permaneceu assim até que algo o tocou no íntimo tirando-o daquele transe, e fechou os olhos. Neste instante, reviu cenas de sua vida, sentindo vivamente as emoções que já experimentara nesta vida desde o início da busca. Em seguida, novas cenas, outras vidas, outras personalidades: vitórias e fracassos, como dissera o velho; advindo-lhe, finalmente, a percepção de uma balança trazida ante a vidência pela mão de uma divindade. Sua atenção foi então focalizada no prato que se achava em nível abaixo do fiel: seu débito evidentemente. Mediante este fato, nada mais tendo percebido, ele abriu os olhos e resolutamente afirmou:
- Prosseguirei!
- Aproximai-vos mais - dizendo isto o velho estendeu-lhe uma taça com um líquido vermelho como o sangue - é nektar amnesía, o néctar do esquecimento. As revelações que vos faço neste momento não poderão ser conscientemente lembradas na vida terrena. Da mesma forma, vos serão apagadas da memória no processo atual de provas, as lembranças iniciáticas das conquistas passadas. Valores pessoais precisam ser evocados sem isenções, nas agruras do presente. As conquistas que atualmente fizerdes deverão vir aneladas aos incontestáveis méritos. Algo deste encontro e novas e futuras revelações poderão, não obstante, chegar-vos à consciência terrena, à medida que os obstáculos estejam sendo ultrapassados, Nada é definitivamente proibitivo!
Sorman aproximou-se e segurou a taça. O conteúdo rebrilhava como se invisível luz nele refletisse; ele a trouxe aos lábios sentindo delicioso aroma, e sorveu o néctar em três grandes goles.
Quando acordou, imagens fugidias atravessavam-lhe a mente. Sentou-se na cama olhando para adiante. Tudo lhe era aparentemente estranho não conseguindo concatenar os pensamentos. Onde realmente estava? A sensação de um grande vazio o tomava; ele fechou os olhos, levando a mão à testa e buscou uma conexão, um sentido. Então ouviu ao longe um sibilo ao qual pareceu reconhecer. O sibilo aumentava gradativamente, até que, em determinado momento, produziu-lhe a lembrança.
- Ratziel! - exclamou, sendo tomado por rápido estremecimento, tornando-se consciente do que o rodeava. Seus pensamentos foram então assaltados por uma sequência de incitações. Imagens novamente voltavam, porém ainda soltas e não as definia. Lembrava-se, agora, de se ter deitado, começado a dormir e da visão de Ratziel chegando. Fora sonho ou outra coisa qualquer?
O relógio na parede da sala indicava sete e trinta da manhã, era domingo; ele abriu as janelas e os raios solares entraram aquecendo o ar noturno aprisionado. O azul límpido estava pleno; ele via árvores além muros, e no jardim, galhos e folhas que se dobravam obedientes às rápidas rajadas do manso vento. Obediente também aos reclamos de seu estômago se afastou dirigindo-se à cozinha, indo preparar o desjejum. Enquanto fazia isto, cismava ainda, não conseguindo entender que estranha sensação permanecia em si e que coisa era aquela a ruminar-lhe no subconsciente.
Após tudo, dirigiu-se ao sofá da sala. Nele estava o largo livro de negra capa. Sentou-se, tomando-o nas mãos, apoiando-o sobre as pernas. Abriu-o e mal acreditou no que via. Logo na primeira página, antes em branco, lia em caligrafia manuscrita: “Introdução” e pequeno texto como segue:
“As páginas seguintes trazem o relato de fatos verdadeiros acontecidos com um candidato à iniciação a um dos graus da Fraternidade Irmãos Atlantes, a cujas provas submeteu-se voluntária e confiantemente!” Tendo lido estas palavras, virou a página, começando o relato, obtendo nova e inacreditável surpresa:
“Meu nome é Sorman. Considero-me pessoa comum, sem nada de especial que justifique qualquer qualidade superlativa a mim atribuída. Entretanto, aos quase vinte e sete anos de idade, encontro-me no limiar de uma transição mental que se descortina sempre - e me faz provar - profundos sofrimentos. É um intrincado processo que me antevê novas aquisições e revolução de consciência. Vejo-me frequentemente ante inevitáveis dilemas a sugerir-me enigmáticas descobertas e novos caminhos. Não sei, exatamente, o que se passa na intimidade do processo energia-alma, em suas potentes arrancadas em direção a um espaço para mim ainda indefinido e completamente desconhecido. Mas quando acima vislumbro, isto logo se desfaz e se dilui, parecendo-me, outrossim, que em minha consciência pessoal algo se pulveriza, se desagrega, e valores mais altos cegam-me a visão, inibindo-me da condição de estabelecer analogias e parâmetros. Concluo que o mais alto imprime voracidade sobre o mais baixo, devorando-o pouco a pouco. Como resultado, nem sempre estas experiências internas me satisfazem, não me conduzindo a nenhuma clara e nítida conceituação. Neste dramático desenrolar, sinto freqüentemente os pés falsearem e o chão fugir-me, sendo obrigado a recorrer aos valores terrenos em busca de solidez e amparo, enterrando-me mais profundamente nas lidas do mundo, absorvendo dele experiências para minha personalidade transitória. Esta forma de ancorar emoções e impulsos que não elevam e não libertam o ser do tabernáculo terreno, vem se constituir para o iniciado numa segunda crucificação num mesmo corpo.
Mas a vida segue os rumos delineados pelo Grande Plano do Criador, o qual prevê o coletivo realizando-se in totum, aconteça o que acontecer. A individualidade, todavia, jamais exaure os recursos de que sua própria divindade é portadora. Há nela o poder de exortar em si mesma todas as potencialidades latentes em sua consciência, que representam o próprio Deus encarnado e imanente, abarcando dimensões presentes, passadas e futuras, dentro e fora do simbolismo espaço tempo. Seria ambição desmedida, estultícia ou pecado de separatividade aspirar pela superação dos limites da raça e lutar por esse desiderato, libertando-se? Loucura, dirão muitos!!!
Por que todos têm de percorrer, exatamente, a trilha de suas limitações, resignadamente, ser levados pela roda que os transporta como uma grande nave aberta, com eles girando sempre sem que possam, sozinhos, dela apartar-se?
Destino, dores, ilusões e morte..., eis o que sempre os esperou e ainda os haverá de estar esperando. Sob signos, transladações e revoluções de astros que ora comandam ora se submetem a fluxos maiores ou menores em imensos e permanentemente ajustados mecanismos conjuntos, as consciências cativas dormitam e assim estarão. Milhões de anos estarão por chegar, mas a natureza seguirá o curso de sua lenta e gradual evolução. Nada poderá impedi-la deste curso, nem modificar ex abrupto suas básicas e fundamentais leis. Ela detém a hegemonia única, inalienável, do perfeito ciclo do renascimento, crescimento, apogeu, degeneração e morte, com seus respectivos subciclos! Quão estúpidos são aqueles que, achando a morte do invólucro físico o fim de tudo, nada mais aguardam do futuro, senão o apagamento definitivo de seus sentidos, definindo o desenlace no consumatum est! Ou tantos milhões que, tendo se arrependido de seus pecados em pensamento, acreditam somente por isto terem conquistado a imortalidade no reino dos céus. A realidade, no entanto, é bem outra, quer a aceitemos ou não.
A verdade, não obstante, subsiste parecendo-nos eternizar um axioma: somos prisioneiros de Deus! A ele estamos submetidos sem ter como escapar nem alterar a infinita rotina de Seus dias, quer sejam eles grandes como na criação de Suas maravilhas, ou menores como nos milhões de anos solares, através dos quais estamos a viajar. É verdade dinâmica e absoluta, ao mesmo tempo relativa e flexível. Dinâmica e absoluta por tratar-se de Deus, em Quem tudo existe. Relativa e flexível por nada sabermos Dele, mas Nele estarmos, e assim podermos vislumbrar o único possível caminho de fuga, qual seja, conhecendo-nos em nossas limitações humanas, mas, por outro lado, descobrindo-nos veículos de sua legitima e infindável engenhosidade! Com isso reuniremos condições para ousar interferir nos Seus definidos planos, postulando posição superior na espiral vidas-reinos-ciclos, nela abrindo uma via pela qual é possível escapar, ainda que temporariamente! Insano, continua vociferando os seus desvarios, cale-se!
Calar-me-ei, sim, porém não agora, porque neste instante necessito da catarse para dizer das verdadeiras razões desta empresa e porque fui escolhido para submeter-me às provas acerbas, às quais já iniciei. Se tanto busquei, pouco em verdade encontrei. Se tanto sofri, pouco também me teria valido, não fosse pela percepção desta única realidade subjacente, já por demais transcendida para ser negligenciada. Crescemos muito, Ele e eu, e à luz da razão não há em como recuar. Se assim eu fizer precisarei me defrontar novamente com todos os meus inimigos de outrora, de costas, sem ânimo ou flama, cedendo-lhes de meu campo, meu espaço antes conquistado. Viver assim é aquiescer com o contrário, é afagar-lhe as horrendas presas, franquear-lhe a entrada para que medre; é insensatez! Pois há nele conquistadores vorazes, os quais logo serão enviados e liderados pelo seu Golias - o gigante das batalhas heroicas, porém sem alma, que chegará para pelejar, desejando tomar o que julga pertencer-lhe!
Assim como na minúscula erva, - que em meio à enormes e colossais árvores, envolta por toda a sorte de vegetação oprimindo-a e sufocando-a, valentemente ela se lança para cima em busca da vida, - o alento deve conduzir sempre em direção ao maior, quer pelas forças instintivas, quer pela própria e desperta vontade de conquistar. A diferença, todavia, entre a conquista e a não conquista, está, exatamente, na vontade consciente. Se deixarmos unicamente as leis da natureza atuar e agirmos em conformidade com a direção que elas nos levam, chegaremos somente com elas e nelas estaremos sempre enredados. Se, porém, imprimirmos neste movimento instinto-vida, o maior atributo que Deus Nele próprio fez existir, chamado Vontade Dinâmica, então estaremos provocando uma grande revolução no curso e objetivo de Suas leis estabelecidas para o coletivo. Desta maneira, estando a Vontade Dinâmica perenemente em nossas correntes mentais, ela conduzirá nossas forças para um definido momentum que será unicamente nosso, intransferível, selado e endereçado a superior Vontade.
O processo é análogo, ao mesmo tempo superável. É análogo porque a Vontade Dinâmica, que posta em ação virá fervilhar nossos átomos mentais, criando nosso momentum, é o reflexo inferior da mesma Vontade Imanente com a qual o Demiurgo se revestiu quando ativou a criação dos mundos, nos quais, sob cuja natureza, estamos todos submersos. Em última análise, ambas são a mesma coisa e a Vontade Dinâmica é tomada na dimensão onde se situam os limites humanos. Daí para a Vontade Imanente é somente uma questão de transferência de consciência, através de veículos superiores. Ela é a mesma porque as qualidades do Criador se multiplicam, mas não se dividem. Assim, o homem de per si está no seu universo inferior abaixo da imaginária linha que separa o que se limita daquilo que não se limita, e o super-homem, dotado de superiores veículos, está acima desta imaginária linha. E ai está o fato superável. É quando o análogo não se satisfaz em si mesmo escapando da relatividade sempre para cima, rumo ao superlativo. Eis, portanto, por que uma vez desperta a Vontade Dinâmica e mantida em perene ação, ela conduzirá inevitavelmente à Vontade Imanente do Absoluto, transcendendo às leis da conservação e da sobrevivência pelo instinto.
Mas caberia a pergunta: se o homem é um, e o super-homem é outro, então por que há esta divisão na criatura, como há nos universos da Obra do Criador? Absolutamente. O que é real é uno e Deus é imponderável. Porém, para que o conhecimento em si mesmo se realize no homem, de forma consciente, ele precisa trabalhar nos Seus próprios reflexos porque Deus cria uma só vez e de maneira perfeita. O homem jamais teria condições de conhecê-Lo, não fosse através de Seus reflexos. A imanência do Criador em tudo o que Ele produziu, proporciona que a experiência vivida pela criatura em repetidos ciclos, transforme-a de mera observadora a coparticipe da Obra pela aquisição da sabedoria, e daí entenda que Vontade é o instrumento mais poderoso de que dispõe para nela subir e encontrar a verdade velada dentro de si própria. Não há duas Vontades, como não há dois Criadores, embora Deus haja multiplicado Sua criação e colocado em cada homem o Seu único reflexo. O homem é o mais perfeito reflexo do super-homem, e este, a mais perfeita representação de Suas potencialidades no universo em que vivemos, e, ambos, perfeitos reflexos dentro de Seus mundos respectivos. Todavia, o reflexo homem só deterá qualidades perfeitas do Criador quando proporcionar a si mesmo a imanência de Deus que existe no super-homem - o verdadeiro Filho de Deus! Isto se dará por atração mútua e magnética, pois o superior atrairá para dentro de sua manifestação-vida ao inferior. Mas não acontecerá no homem comum através de seu exaltado intelecto racional ou pela maior devoção religiosa a que o humano possa submeter sua personalidade. Ao contrário, todas estas coisas somente o afastarão cada vez mais de sua divina origem, mantendo o seu reflexo enredado nos véus da ignorância. Outrossim, o entrelace perfeito virá existir quando a energia-alma ou forma sutil - produto do humano divinizado pela santa sabedoria e perfeita devoção ao seu próprio Deus imanente, - estiver remida e pronta para desligar-se de todas as atrações da Terra de maneira definitiva. E os tantos que a este apogeu já alcançaram, puderam dobrar a natureza e suas leis sob seus pés, dela tornando-se reis pela Vontade inflamada e inquebrantável, e de corações purificados pela auto expiação. Somente assim é possível a perfeita atração e o entrelaçamento do superior com o inferior.
O estudioso dos Mistérios de Deus pensa sempre em termos globais, apropriando-se do particular unicamente quando a lógica da razão superior evidencia-se nos fatos. Se particulariza, é para ressaltar que a relatividade da analogia somente serve para satisfazer a mente racional humana, na sua vaidade de tudo querer demonstrar objetivamente. Mas entre o real e sua substância e o demonstrável há infinita distância e a analogia se transforma em dialética, perdendo-se nas vãs palavras. Entretanto, costumamos ter alguma idéia do que seja positivo e negativo. O universo no qual vivemos é o resultado de um imenso arquétipo que Deus formou em Sua mente. Dir-se-ia que é um gigantesco negativo projetado em Si mesmo para obter formas objetivas. A cosmogênesis vista por este prisma nos desvela o ato original do Absoluto criando o Grande Negativo e o Grande Positivo. Mas por indissociada atração ambos se complementam e se mantém justamente por serem de polaridades contrárias. Isto acontece em todo o universo, pois o negativo não conseguiria manter-se em si mesmo não fosse o positivo sustentar a polaridade oposta e vice versa. Em tese, o fato é também reconhecido quando falamos da lei de causa e efeito. Esta mesma lei rege os campos ou dimensões visíveis ou invisíveis à percepção sensória humana. Se tal não acontecesse, todo o modelo físico material cairia desamparado, sem sustentação, porque deixaria de existir o equilíbrio dinâmico que é a tônica de toda a harmonia do universo, não havendo, em consequência, a estática nem qualquer outro fenômeno entendido pela física ou mesmo pela metafísica. Assim, repito, para tudo vir à existência precisam manifestar-se os padrões vibratórios das formas não visíveis, como modelos pré-originais nascidos da inteligência do Criador, produto do arquétipo criado por Sua mente, permeado sob os princípios negativo e positivo. Sem esta idéia original presente em toda a natureza, Suas leis não poderiam proporcionar a criação das formas concretas nem produzir as transformações de caráter evolutivo.
Não é somente nos reinos mineral e vegetal que o pensamento de Deus é plasmado concretamente com justeza e objetivos resultados. Também nos reinos animal e humano isto se verifica plenamente, a despeito de seus habitantes terem certo tipo de volição, notadamente o humano com sua capacidade de usar o intelecto. Na realidade, todas as formas de vida estão sob a mesma égide porque todas elas se originaram do mesmo Deus. Uma vez no ser humano, - figura síntese protótipo do latente modelo cósmico perfeito, - a matéria densa abafa os seus sentidos sutis bem como sua lucidez, enredando-o num emaranhado de forças antagônicas sob opostas e duais condições. Neste espaço-matéria o homem encontra-se mergulhado; para dele sair precisará conhecer a matéria e suas principais leis de regência, porque ao misturar-se com ela, nela vive como se dela fosse feito. Estas leis de regência na sua inflexível ação, constroem, oprimem, modelam ou corroem as estruturas da matéria e o homem ali permanecerá encerrado, omisso, impotente para libertar-se por milhões de anos, até que, tendo acumulado conhecimento, comece a acordar e observar com a mente mais ativa. No início deste novo ciclo de auto aprendizagem, ele se verá diante da tênue consciência da escolha, onde tendências negativas continuarão a ser suas opções imediatas, possuindo ainda o fator instinto como impulso imperativo de sobrevivência. Neste instante ele ainda é a própria terra, o polo negativo por excelência; nela pisa, anda e se prende, colhendo dela, nela se conhecendo, sem qualquer vislumbre consciente de uma vida superior.
Hoje, havendo a raça humana alcançado conquistas no mundo material, desenvolvido a mente objetiva a ponto de tudo querer explicar concretamente, a situação primordial em quase nada mudou. A prisão representada pelo corpo biológico, que antes detinha ao homem das cavernas ou aos civilizados ramos dos primitivos lêmures, ainda é a mesma. O homem evoluiu para fora, sob certo prisma, mas não ascendeu. O negativo se contrapõe fortemente ao positivo no exercício da discriminação da mente humana; a Terra polariza mais, prende e imanta na sua gravidade, e apesar das evidências psíquicas extraordinárias e a capacidade de produzir fenômenos ou observá-los, o homem não galgou os primeiros degraus da escada de Jacob, pois ora a ilusão e a ficção povoam os seus pensamentos ora a ciência o encanta e prende-o, postergando sua libertação para muito distante. Falo, outrossim, da quase totalidade da massa humana, de noventa e nove por cento da população da Terra e vejo que nenhum credo, nenhuma religião, nenhuma filosofia de cunho eclético, ou mesmo o coletivo esforço para fins espirituais desenvolvido por pessoas bem intencionadas, sejam suficientes, neste estágio, para conduzir a raça humana às suas origens, redimindo a alma por completo. Nem a natureza assim o permitiria, pois neste hipotético caso, ela se rebelaria e contra-atacaria, evitando a evasão pluralizada do homem para além dos limites físicos e dos domínios da alma humana mortal.
Portanto, o caminho é velado e guardado da quase totalidade da massa, das religiões e das organizações religiosas de teor unicamente devocional; e mesmo que obtenham informações sobre sua existência, não poderão evidentemente trilhá-lo da forma como o imaginam, nem tão pouco o desejariam caso viessem a saber na realidade como ele se apresenta. Os que se lançam nele são justamente aqueles que já começam a atrair para si a Vontade Dinâmica, como estágio inicial e propulsor de sua viagem, embora nem sempre estes especiais se proponham a perseverar nos ideais, vida após vida, preferindo, vez por outra, proporcionar a si próprios recompensas das conquistas mentais de seus imperfeitos egos não libertos da sub-reptícia vaidade. Porém, é importante notar que, uma vez honestamente determinado a alcançar o objetivo da libertação isto pode culminar-se rapidamente, pois a individualidade representada pelo Ego Eu, alma humana imortal, instruirá perfeitamente ao ego eu, alma humana mortal, como fazê-lo.
Eis por que fui escolhido e porque aqui estou. Nada possuo que mereça louvor ou admiração, repito. Luto por mim, pela minha libertação, pelo autoconhecimento de Deus manifestado no meu ser -- o que julgo de direito! Se este conhecimento e identidade com Deus é o fruto colhido da longa e quase interminável peregrinação humana, por que não colhê-lo milhões de anos antes, escapando do sofrimento e da dor quando em mim tudo clama e implora pelo momento? O coletivo é Deus, Ele ali está, mas a individualidade pode, com justeza, reivindicar sua libertação com a consequente ascensão, dominando as leis da matéria antes da consumação final. É um direito inalienável, é o próprio Deus compelindo-a nas suas fímbrias, chamando o homem para Si. É o dever de se apresentar para ser escolhido; é a insatisfação de ser passivo; é demonstrar a si próprio que Deus excede suas próprias regras e permite ao escolhido posicionar-se para um formidável pulo sobre a natureza e suas leis, tomando o céu de assalto, tornando-se eleito. E Deus ama verdadeiramente ao Seu eleito!
O caminho, todavia, é árduo: só os fortes alcançam o seu final. Nele o pretendente anda sobre o fio da navalha, como se expressam os iniciados nestes mistérios. Requer probidade e afastamento das paixões do mundo e enquanto isto perdurar ele alcançará momentos mais ou menos prolongados de paz, mas nunca a paz definitiva e inabalável; esta somente lhe pertencerá no dia da vitória final! Aos poucos irá descobrindo como a dualidade existe em si próprio, nas suas formas mais sutis e quantas ela assume! A medida que suba os degraus da iniciação, ali mesmo, nestes degraus, o opositor sempre estará e o tentará em variadas e quase imperceptíveis maneiras, confundindo-o sempre, obrigando-o a meditar e a refletir minuto a minuto, jamais dele se apartando. É um pelejar constante, heroico, santo e terrivelmente belo! É a purgação mais difícil com que a eônica mente humana virá a se defrontar, pois ora a luz descerá misturada com a sombra ora a sombra, ela mesma, envolverá a mente com reflexos de falsa luz! Serão os opostos se encontrando e se amalgamando, cabendo à mente a eles discriminar. Não haverá como deles isentar-se por que, em última instância, é a própria matéria em alto teor, lutando para não deixar partir quem de seu seio nasceu e cresceu!
O que irei agora relatar diz da experiência pessoal obtida neste primeiro ciclo de provas a que me submeto. E por que contarei este episódio? Para que ao lê-lo eu me lembre bem dele no plano terra, através da fixação das imagens nos átomos da memória física, e venham servir-me de aprendizado e orientação. Afinal, estas coisas acontecem num plano mais alto, inacessível ao cérebro denso. Tudo começou assim:
Ao chegar a casa naquela noite em que retornava da cidade serrana, fui deitar-me, sendo dominado por forte sono, mergulhando nele quase de imediato. Pouco depois, um clarão se fez no meu quarto e...”
A narrativa terminava no exato momento em que Sorman deixava o mausoléu, e, no pequeno corredor contíguo, contemplava o símbolo da estrela hexagonal entrelaçada, assente sobre a branca porta. Até aqui a leitura despertara-lhe nítidas e exatas imagens de tudo o que lhe ocorrera, e as registrara com inteira facilidade. Nada mais havendo nas páginas subseqüentes, fechou o livro trazendo na memória aquela última cena. Entretanto, pressentia que algo importante houvera acontecido detrás daquela porta, esforçando-se por evocar a lembrança e firmar na percepção aqueles bruxuleios de possíveis imagens, mas a sensação da lembrança se enfraquecia, diluindo-se, fazendo-o finalmente desistir. Uma interrogação, contudo, ficara-lhe na mente: se morrera, como então retornara, teria ressuscitado?
Impressionado com todas aquelas coisas resolveu sair a procura de Bruno. Um agradável pensamento veio trazer-lhe inesperado impulso de alegria: veria novamente Lucéa, contemplaria seu moreno rosto e extraordinário sorriso. Sem dúvida ela possuía beleza, mas o que mais o atraía na moça era o permanente mistério que a permeava. Ou seriam ambas as coisas?
Desapontamento foi o que obteve. Somente Deucalião viera recebê-lo no portão de fechadura ainda destravada. Já diante da casa constatou não haver ninguém no seu interior. O guardião latia e gania ansiosamente, tentando contar-lhe onde seus patrões estariam.
- Está certo, Deucalião, tudo bem, não faz mal que não estejam, acalme-se, não pretendo ir procurá-los longe daqui! - falou alisando-lhe a cabeça. O cão ganiu, mas continuou ativo, correndo à sua frente de um lado a outro, latindo e voltando a encará-lo - vamos passear então, andemos um pouco por aí.
Deucalião pareceu gostar da idéia passando a caminhar ao seu lado, acompanhando-o. Sorman circulou pelos arredores examinando com mais atenção o local. Já não se preocupava com a possível presença da estranha força, começando a crer que a mente de Bruno, somente ela, teria a ver com o acontecido naquele dia. Tendo feito razoável reconhecimento de outra parte do lugar - pois estivera antes no lado oposto - descobriu a existência de uma via principal, e pequena garagem. Esta via, revestida de paralelepípedo, com largura suficiente para a passagem de veículos de variados tamanhos, atravessava a propriedade em direção leste, alcançando à estrada que margeava a região, por onde o tráfego rolava. Como fosse longa, Sorman não se animou em percorrê-la, retornando por onde houvera entrado se despedindo do amigo. Na vila, juntou suas coisas, colocou-as no carro e rumou para a casa na cidade.
Nesta segunda-feira sentia-se bem, com renovado humor, despachando com perfeito desembaraço como se nada de importante estivesse acontecendo em sua vida. Mas à noite, em casa, pouco jantou, preferindo um caldo quente e chá com biscoitos, recolhendo-se mais cedo, solicitando aos pais não chamá-lo porque desejava dormir sem ser incomodado.
Tanto que desligou a extensão telefônica em seu quarto, fechando a porta a chave. Uma curiosidade fê-lo abrir o armário antes de se deitar, tomando o grande livro nas mãos, depositando-o sobre a cama e o abrindo. Suas páginas continham ainda a introdução, o texto manuscrito e nada mais - a feia cara de Ratziel havia desaparecido definitivamente. O mágico fato suscitava-lhe ainda uma espécie de irrealidade e se perguntava se estaria realmente vivendo aquilo ou seria algum nefasto efeito de sua psique em desequilíbrio, animismo ou coisa semelhante. Aliás, desde que conhecera Bruno, fatos concretos e paradoxalmente irreais vinham se desenrolando diante de si, com resultados sobre sua mente. Resistiria?
Recolocando o livro no mesmo lugar foi deitar-se. Não demorou, Ratziel chegou chamando-o. Sorman deixou o corpo físico, sendo atraído para o duende. Notou, porém, que ele estava diferente: apresentando-se maior, com a fisionomia mais suavizada da bizarra feiura, e sem os pequenos cornos que haviam desaparecido. Deixaram o quarto. Ratziel o conduziu até a porta principal do edifício, dali partindo. A porta, desta feita, achava-se aberta; ao transpor o vão, ele viu-se num belo salão com luz abundante que provinha de quatro janelas também abertas. Curioso, dirigiu-se imediatamente para uma delas a fim de verificar de onde a luz se provinha, mas nada conseguiu ver, exceto o facho luminoso que se derramava de fora para dentro. Olhou de longe para outra janela obtendo idêntica impressão, concluindo, porém, que, por sua qualidade, aquela luz não poderia ser artificial, ou pelo menos nos moldes gerados com os meios de que a Terra dispõe.
Voltando os olhos para o ambiente passou a estudá-lo. Via nas paredes róseas muitas molduras dependuradas em carreiras, todas coloridas, retratando rostos formosos de homens e mulheres. Parecia haver vida neles. Comprido e belo tapete aveludado, azul rei, a guisa de luxuosa passadeira, estendia-se diagonalmente no assoalho desde a porta de entrada até a outra extremidade, vindo terminar ante pequeno portal em arco. Ele pisou-o cuidadosamente e o percorreu, cruzando o arco, encontrando pequena área como a antessalas de um ambiente vazio atravessando-a. Adiante, na parede da direita, observou a entrada de um longo e profundo corredor. Passou por ele e viu a dois metros dali um corrimão de madeira, apoiado sobre pequenas e graciosas colunas. O corrimão interiorizava-se na parede acompanhando uma escada que se aprofundava para um pavimento inferior. Finalmente, em seguida ao corredor e à escada em descenso, notou, nesta mesma parede, uma porta fechada. Havia pouca luz no ambiente e com exceção do assoalho em tábuas estreitas, tudo mais era branco.
Três opções: pensou Sorman, qual a melhor? Incapaz de se decidir prontamente andou até a proximidade da escada, lançando olhar para baixo, conseguindo discernir unicamente os primeiros degraus entre luz e sombra. Adiante se anunciava a mais completa escuridão. Um calafrio percorreu-lhe a espinha e sentiu medo. Porém, outra imediata reação sacudiu-o, imbuindo-o de súbita coragem, sem afastar de vez o medo. Agora duas oposições habitavam sua mente: ao atrair o medo de ali descer, sentiu-se puxado para trás, mas, opostamente, ao pensar que nada deveria temer, incorporava coragem a querer empurrá-lo para adiante. Em meio a esta luta, surgiu-lhe na mente, sob os arremessos das forças, o rosto de Lucéa a sorrir-lhe. Esta imagem pairou acima de tudo, mas logo desapareceu.
Virando o rosto para a direita, olhou para o corredor e andou de volta, contemplando-o do portal com maior atenção. Parecia infinito; havia nele uma névoa branca que impedia de enxergar mais além. No trecho que podia dali discernir, via janelas fechadas, em carreira, que deixavam traspassar claridade por seus vidros e procurou imaginar quantas mais existiriam encobertas por aquela névoa. Algo como a presença de um desafio de não muito difícil empreitada, convidava-o a ingressar no corredor para dele sair laureado. Mas afastava esta idéia, não desejando fáceis conquistas, talvez vãs; precisava, de todas as formas, de substância e para obter isso, sabia-o, necessitaria lutar. Voltando-se ao ambiente, introito do mistério e do desconhecido, posicionou-se diante da porta fechada. Lá dentro, previa a sensação de jogos, estímulos mentais, apresentação de enigmas como possíveis provas de acuidade intelectual e conhecimentos esotéricos, gnósticos ou filosóficos, - algo contra o que teria de esgrimir bravamente para sair-se mentalmente vencedor, - mas a exemplo do desafio do corredor, este também não o cativava, e andou de volta para diante da escada. Esta, sim, provocara-o, despertara-lhe vivas reações, fortíssimas e nítidas oposições; sem dúvida, seria o desafio que, verdadeiramente, seu íntimo desejava com todos os perigos a ele inerentes, e resolveu descer rumo às profundezas do desconhecido.
À medida que descia, tendo deixado a luz para trás, a escuridão tornava-se cada vez mais intensa e ele se apoiava no corrimão preso à parede. Porém o corrimão terminou em certo trecho e precisou apoiar-se diretamente na parede. Logo a parede também terminava vendo-se obrigado a tatear somente com os pés, medindo a largura de cada degrau, a fim de poder dar o passo seguinte. Os degraus eram suficientemente largos, mas sem dúvida obrigavam-no a um legítimo exercício de equilíbrio na escuridão. Um súbito pensamento veio atravessar-lhe a mente: “a caminho do inferno de Prosérpina, no reino de Hades”; ele tremeu, sentindo as pernas bambear. Um cheiro de enxofre penetrou-lhe as narinas, lhe advindo a sensação de sufocação. Voltaria? Seu corpo neste momento tremia por inteiro; ele quase se tomava de pânico. Se o pânico se instalasse, o resultado seria imprevisível; assim procurava dominar-se, induzindo-se ao não temor, buscando atrair para si a salvadora coragem!
Porém venceu, afastando aquela ameaça. O cheiro de enxofre também desaparecera. Dominando-se resolveu prosseguir com maior cautela, sentando-se, percorrendo com as mãos a extensão de cada degrau, tocando-os nas extremidades, constatando que sua largura houvera diminuído. O medo de cair assaltou-o e passou a arrastar-se com maior cuidado. De repente, os pés ficaram sem apoio, balançando-se no ar. Ante este susto ele voltou atrás, encolhendo-se. A escada havia terminado, que faria? Ficou, assim, indeciso, sem qualquer alternativa prática, a não ser retornar. Mas isto não desejava; se aqui chegara iria até o fim, e procurou mais uma vez acalmar-se.
Começou então a ouvir quase imperceptivelmente, uma melodia que era entoada por voz feminina, e fechou os olhos na tentativa de captá-la melhor. O canto pouco a pouco se tornava mais alto até que, em determinado instante, ouvia-o nitidamente. A bela voz cantava: “eu quero a vida, eu quero a morte; dá-me a vida, viva a morte!” e a estrofe se repetia. Aquilo ecoava dentro de seu cérebro cada vez mais alto, e quando trouxe as mãos aos ouvidos, tapando-os, tudo cessou! Silêncio. Poucos segundos depois, o canto reiniciava das profundidades, como antes, e já alto, prestes a atingir ao auge, calou! Sorman aguardou com expectativa, ainda de olhos fechados, e decorrido algum tempo, talvez minutos, a voz feminina falou-lhe:
“Há tempo. Não descestes ao inferno, a esse lugar execrado pelas religiões que, verdadeiramente, não o conhecem. Aqui vivem sombras de homens que não podem ascender devido ao peso de seus atos, cujas consciências inexistem, onde a única forma de compreender está na autossatisfação, no modo egoísta de sentir custe o que custar. Se descerdes vereis o que nenhum humano deseja ver: - um mundo perverso criado pelos desregramentos morais, vícios e crimes. Se desejardes, sabereis o que aguarda aos feiticeiros praticantes da negra arte da magia, conhecendo de sua ciência. Podereis saber também onde falharam os alquimistas na fabricação do ouro e partindo dali alcançardes esta glória. Aqui acham-se enterrados grandiosos sonhos de reis, heróis, cientistas, religiosos..., homens, enfim! Tudo o que é denso para aqui caminha e permanece! Nesse lugar acham-se ainda depositados o que o tempo não consumiu nem consumirá: segredos jamais contados, mistérios nunca desvendados, tudo que foi e ainda é unicamente do homem! E vós homem neófito da universal sabedoria, não tereis o direito de tudo desafiar para conquistardes? O primeiro desafio é conseguirdes entrar pelo Portal de Hades. Depois é sairdes do inferno, livre e senhor. É algo temível, mas tentador, não? Dar-vos-ei a minha mão para que desçais em segurança e diante do Portal desvendeis o enigma, lançando por terra o guardião do umbral, derrotando-o, dobrando-o ante vossos pés!” Silêncio, após o quê Sorman perguntou:
- E se eu não conseguir desvendar o enigma?
“Sereis devorado pela enorme e incandescente boca do guardião, pois desafiá-lo é desejar penetrar nos mistérios de Hades. Isto não é tarefa para homens comuns. Lá reside o deus negro. Deus est Demon inversus, não vos esqueçais! E este arroubo de coragem é ato extremo de quem, como vós, procura abandonar a descendência homem Adão, mas não tendo justificado a ambição com a sapiência necessária, poderá morrer por causa dela. Na lei da Terra somente os vencedores sobrevivem. Decidi-vos, jovem, ou desisti. Saibais, ainda, que onde estais, estiveram outros com essa mesma ambição, esse sonho. Não creiais ser possível alcançar essa glória senão pelo descerramento dos mundanos véus que encobrem o ser. Hades ou Éden, quem vence, quem perde? Mas digo-vos, jovem, ambos são os vencedores, porém ao perdedor somente cinzas restarão!”
Sorman não se decidia. Era tudo tão estranho, inacreditável: a voz, a mensagem, a existência do inferno. Jamais imaginara lugar como esse; duvidara sempre de sua existência como dimensão física ou suprafísica. Para si tratava-se de um estado mental, mórbido, é verdade, mas resultado de aviltamento simbológico incorporado no inconsciente coletivo. Na sábia Antiguidade, sim; lá inteligente simbologia ajudava na formação de consciências; os superiores e religiosos valores estariam acima daqueles manipulados pelo pensamento terreno. Deuses, semideuses e heróis mitológicos, incorporavam poderes e qualidades; tinham funções dentro de uma hierarquia regente que atuava em benefício dos homens, da Terra e do universo - viviam situações de domínio ou de perda dos elementos e forças da natureza! No início foram respeitados, temidos, porém com o tempo o homem chegara a galgar o Olimpo, ao Empíreo, destronando os legítimos, entronizando a si próprio, regendo os destinos de sua raça. Mais tarde tudo se apagaria: a sabedoria dos grandes e a estupidez do humano; o tempo se incumbiria disso realizar. Agora se perguntava: estivera errado e todos os símbolos mitológicos não teriam seus traços verdadeiros, sua real dimensão?
Tendo terminado esta digressão, mais curioso que propriamente cético, trazia na mente os ecos de seus próprios argumentos, e relutava. E se tudo fosse somente um sonho e nada em realidade estivesse acontecendo neste momento? Então por que não concordar com a voz e ver-se diante do guardião do umbral? Morte ou vida, apego ou desapego - lembrava de Arjuna. Era tudo realmente inacreditável, porém sua consciência aqui se encontrava desperta! Por outro lado, não lhe interessariam os tesouros apregoados pela voz, nem o poder ou a manipulação das artes mágicas, mas sim, queria triunfar, sobrepujar, provar-se a si forte e sábio - acreditava nisto. A meta era a prioridade, para isso aqui descera experimentando tremenda luta entre o medo e a coragem, luta esta que, neste momento, se revestia de outra expressão: incitava-o! Aceitaria, pois, o desafio - finalmente se decidia - precisava dele, nada mais seria igual se agora recuasse!
No entanto, quando se pronunciaria, outra voz, desta vez forte e masculina, soou-lhe aos ouvidos:
“Sou Hades, Deus do Inferno! Em meu reino comando os elementos. De meu poder e através de mim, arde o fogo consumidor. Nenhum vento sopra e ameniza sem a minha ordem. Água alguma rola ou brota do seio das pedreiras sem que eu autorize. Terra alguma se fende nem se abre para engolir, a não ser que eu deseje. Sou poderoso, meu reino se estende pelos quatro cantos do planeta, nada me detém. Se aceitardes o desafio de Prosérpina e triunfardes vivereis de vossas conquistas, sereis especial entre os homens contemporâneos. Porém, vos bastarão essas conquistas? Muitos se limitaram a somente isso aspirar, ainda que poucos chegassem às conquistas. Ofereço-vos mais, muito mais; ofereço-vos um fantástico desafio em quatro etapas: a conquista dos elementos, o poder de comandá-los, tornar-vos senhor, dominador, o grande mago! O mundo se dobrará ante vossa vontade; a natureza vos obedecerá; podereis realizar grandes feitos! E sabeis por quê? A Terra é do homem; esta é a sua casa; nela ele deve tornar-se senhor, reger, legislar. Vinde, desafiai, vencei!
Sorman tomava-se de nova surpresa. Se há pouco houvera se decidido, agora recuava da decisão.
- E caso eu aceite o desafio e sucumba, o que me acontecerá?
“É vida ou morte!”
De novo o silêncio, aliado da dúvida. Porém, de súbito, ecoaram-lhe da memória as palavras de Bruno: “cinja-se do poder sobre a terra; vença-a no seu próprio elemento; seja rei no mundo!”. Sem mais refletir, finalmente declarou:
- Aceito o desafio dos elementos!
Nada mais acontecera e o tempo parecia ter estancado. Inquieto, Sorman procurava o que fazer, e começou a deslizar para frente, chegando novamente ao último degrau, lançando as pernas para baixo. Temia despencar, não sabia qual altura distava deste último degrau até o chão, mas assim mesmo permanecia. Todavia, cansado da inútil espera, resolveu encolher as pernas e dobrá-las em padmasana, a postura do lótus, um tanto apertadamente devido a pouca largura do degrau. Fechou os olhos buscando concentrar-se, mas não chegou a qualquer resultado porque nova voz logo soava em seus ouvidos: “Pule!” Ele estremeceu. Pular? Como faria isso se não tinha a menor idéia de onde se encontrava? Aguardou. “Ande, pule!” O convite se repetiu mais duas vezes, depois cessou. De novo silêncio; aquilo o incomodava e ele decidiu que não poderia ficar por muito tempo nesta inércia: precisava agir, e resolveu que pularia. Quando descruzava as pernas, preparando-se corajosamente para aquele estoico ato, outra voz soou-lhe: “Não pule!” Ele estancou. “Pule!” “Não pule!” as vozes passaram a duelar. “Pule!” “Não pule!” Aquilo não cessava e ele gritou:
- Basta, vou pular!
“Não pule!” “Pule!” As vozes continuavam e quase transtornado, apoiando-se no degrau, se acocorando, impulsionou o corpo para frente lançando-se no vazio.
Seu corpo projetou-se no espaço sem fim, a mente mergulhou num estado de letargia, e na longa trajetória da queda sentiu o ar faltar-lhe, perdendo os sentidos.
CAPÍTULO V
A PROVA DO FOGO
"Seus órgãos genitais, o coração, a testa, tudo ardia cruelmente. Um calor extraordinário subia-lhe pela coluna de maneira incontrolável, pressionando-lhe a nuca e o alto da cabeça. Finalmente, não suportando mais aquele terrível flagelo, ele urrou e caiu, perdendo os sentidos".
- Vamos, acorde! - alguém o sacudia pelo ombro; ele abriu os olhos, virando-se lentamente. Estivera de bruços com uma face apoiada no chão. Ao ver quem o acordara, sentou-se de imediato - Você precisa continuar, venha, vou conduzi-lo pelo caminho!
O homem alto, forte, de cabelos grisalhos a meio tamanho e rosto liso, pareceu-lhe um gigante. Vestia pele cinza que descia diagonalmente de um dos ombros e cingia-lhe a cintura, terminando na altura das coxas em pontas irregulares. Calçava sandálias de couro com cadarços até as canelas. Havia sombras em derredor; o chão era duro, de terra negra. Sorman pôs-se de pé. Aquele personagem era de fato alto, sendo necessário ao jovem levantar o rosto para contemplar-lhe a face.
- Que lugar é este? Quem é o senhor?
- Nada devo dizer-lhe, somente conduzi-lo.
- Para onde?
- Ao lugar escolhido, venha!
Ele girou em direção oposta e Sorman o seguiu. Chegando a pequena ponte de tábuas com amparos de cordas, cruzaram-na. Logo atingiram o lado oposto, aproximando-se de uma pequena pedreira. O estranho tornou a falar secamente:
- Daqui eu volto, você fica! - e retornou pela ponte, deixando-o só e perplexo.
O panorama era árido, não sendo possível ver o céu porque sombras pairavam por toda a parte. Nesse lugar, o tempo parecia inexistir e resolveu contornar a pedreira. A medida que avançava, as sombras iam perdendo a densidade, permitindo a penetração de uma claridade que se acentuava. Logo tudo era diferente: cores se apresentavam e as formas podiam ser nitidamente observadas. Sorman se surpreendia com a tonalidade das cores: era algo forte!
Uma barreira de árvores ressequidas obrigou-o a parar e observar. Deveriam ter sido árvores normais, pensou, embora tivessem crescido sobre a trilha. À direita, a pedreira não permitia qualquer acesso; à esquerda, uma depressão coberta de matos e espinheiros também indicava a impossibilidade de por ali se caminhar: não havia opções!
Movimentos além lhe desviaram a atenção e ele percebeu alguém andando. Cautelosamente se aproximou, notando que poderia prosseguir dentre árvores. Ingressou então naquela estranha e diminuta floresta, sendo obrigado a caminhar em ziguezagues. Finalmente conseguiu cruzá-la, vendo-se ante um patamar de pedra, amplo e ovalado. Um pouco além, em prolongamento natural, existia uma gruta. À beira do patamar, a poucos metros da gruta, uma jovem, em pé, olhava distraidamente para baixo. Sorman pisou na pedra com cuidado caminhando lentamente em direção da moça, temendo assustá-la. A jovem, entretanto, pressentindo-lhe a presença, voltou-se. Sorman parou a poucos passos dela olhando-a com redobrado interesse. Seus ruivos e intensos cabelos às costas iam até quase a cintura; tocavam-lhe ombros e braços, pousando suavemente sobre os seios, derramando-se além. Eram finos e lisos. O anguloso rosto, os quase amendoados olhos, o gracioso e afilado nariz, os carnudos e vermelhos lábios, conformavam-lhe, principalmente, beleza entre agressiva e exótica. Usava vestido colante, carmesim, longo, quase transparente, que combinava com sua rosada tez. Possuía o corpo delgado e embora não fosse muito alta tinha admirável figura escultural. Estava descalça.
- Sorman? - ela sorriu-lhe - Aguardava-o, sabia que chegaria.
- Sabia?
- Naturalmente. Desde o momento em que decidiu desafiar os elementos.
- Quem é você?
- Poderia dar-lhe um nome, porém o que significaria? O importante é que você está aqui.
- Que sabe de mim e de meus propósitos?
Ela riu levando as mãos aos cabelos, abrindo-os de sobre os seios, jogando-os às costas, glamorosa e provocantemente.
- O mundo não conhece os verdadeiros heróis, eles permanecem no anonimato. Coragem não lhe falta, nem o desejo de conquistar. Hades o estimulou, superando Prosérpina; o mundo dobrar-se-á aos seus pés. Os inimigos não conseguirão jamais derrotá-lo!
À medida que falava, lampejos de luz esmaecida, porém suficientemente visíveis, emanavam de seu corpo. Ao entonar mais fortemente algumas palavras, estas emanações alcançavam maior comprimento, para depois se recolherem e novamente ressurgirem. Era algo a princípio tênue, mas de inegável existência etérea.
- Não é esta a minha meta. Se estas coisas realmente acontecerem serão meramente acidentais, inevitáveis talvez, porém nunca, para mim, um fim em si mesmas. Ela sorriu com sarcasmo, sua fisionomia pareceu adquirir expressão perversa embora estranhamente atraente.
- Não fosse você um homem, eu poderia admitir a perfeita razão de suas palavras. Mas homens são homens! Aproxime-se, chegue até aqui, desejo mostrar-lhe algo! - ela girou leve e graciosamente, estendendo o braço em direção da gruta, dando dois passos. Em seguida, voltou o rosto para trás, vendo que Sorman continuava parado. Então girou novamente encarando-o com malicioso sorriso, acentuando uma vez mais o encanto daquele rosto - Venha, Sorman, não tema! - sua voz desta feita vibrou diferente, timbrando energicamente; ele sentiu qualquer coisa como um fluxo a dominá-lo. Lutou contra aquilo, impedindo-o de grassar, mas resolveu segui-la. Ela volveu de novo o corpo, reiniciando os passos, estancando à entrada da gruta a olhar para o interior - Veja esta capela! – falou-lhe quando ele já estava próximo.
Ele parou junto a ela a pouco mais de um metro, captando ondas de calor que se irradiavam de seu corpo e olhou para a gruta. A capela a que se referira, localizava-se na própria pedreira. Havia ali, encavado na rocha, numa altura não superior a um metro e meio, a extensão horizontal de uma espécie de degrau, a guisa de altar, onde descansava bela espada com incrustações no cabo e início da lâmina. Mais ao fundo, após o altar, uma construção se projetava do bloco de pedra, tendo uma porta em estilo gótico. Esta pequena porta trazia na superfície desenhos em traços longos e retos que se interceptavam em cruz, possuindo nas extremidades minúsculos círculos. Os desenhos mostravam caracteres entre um e outro traço, cuja significação Sorman desconhecia. À direita e à esquerda, a gruta se aprofundava qual grande nave, tendo nas paredes e teto milhões de saliências lanceoladas, como pequenos cristais brutos, roxos e opacos.
- Que há dentro da capela?
- Metade da busca, a outra você terá de conquistá-la! - ela olhou-o com excitante sorriso e seus olhos adquiriram brilho quase provocante.
- E o que são estas duas metades?
- Quer mesmo saber?
- Se isto realmente representar o desafio contra o qual devo lutar, mostre-me, caso contrário, poupe-me. Ela então se virou com expressão irônica dizendo:
- Mostrar-lhe-ei!
E girou o braço esquerdo, distendendo-o com mão aberta, desenhando um grande círculo no ar. Labaredas crepitaram, o círculo alargou-se e um túnel se formou entre ambos. Tão súbito quanto o surgimento daquela inesperada forma, ele foi sugado para o seu interior, sentindo a consciência apagar-se.
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- Príncipe, eles estão chegando! - a bela moça falava de junto à janela, Sorman apressou-se em sua direção - eles virão buscar-me, não escaparei!
- Mensageira - começou Sorman com ternura, sem ao menos olhar para fora - não permitirei que isto aconteça.
- Eles são poderosos, príncipe, o que poderá fazer para impedi-los? - ela demonstrava angústia. Ele pousou as mãos carinhosamente em seus ombros, afastando os finos e ruivos cabelos que lhe caiam fartamente sobre os seios, percorrendo com o olhar seu rosado rosto.
- A causa é superior, mas conquistar sua beleza também me recompensará. Tenho a espada, ela possui encantamento - um ar de orgulho e coragem tomava-lhe o rosto; ele deslizou a mão direita em seu carmesim vestido, parando-a sobre seu formoso seio - prometo lutar com todas as minhas forças! E aproximou seus lábios contra os dela.
- Não!! - ela gritou, afastando-se rispidamente - não agora..., por favor! - completou em medida súplica.
- Príncipe Sorman! - o comandante da guarda chamava-o ansiosamente da porta do salão do trono - homens se aproximam, algo estranho os acompanha!
- O que os acompanha?
- Um reflexo, uma redoma luminosa, qualquer coisa assim!
- A magia! - ela falou chegando novamente à janela. Sorman então olhou, constatando o que lhe anunciara o militar.
- Que é aquilo?
- A magia - ela repetia - eles agora devem tê-la invocado, irão entrar de qualquer maneira!
- Comandante, vá, prepare os homens para resistir, vamos recebê-los! - ele observou os cavaleiros que velozmente se aproximavam sob meia esfera de dourada e transparente luz. Estrias azuis corriam regularmente ao longo daquela inusitada cobertura, refulgindo com a rapidez de coriscos.
O comandante desceu reunindo os homens que dispunha, reforçando a guarda do portão, colocando mais soldados sobre as muralhas. Não havia muitos soldados no castelo porque o rei saíra com seu exército para manobras junto às fronteiras do reino, pois obtivera informações de que inimigos se mobilizavam para invadir e saquear aldeias. O general, hábil estrategista, fora com o rei. Aqui havia ficado poucos para defender o castelo em caso de ataque. As muralhas eram altíssimas, praticamente inexpugnáveis, jamais o castelo fora antes invadido, apesar de muitas vezes já atacado. Ademais, os cavaleiros que se aproximavam não contariam mais de vinte; assim, que poderiam realmente fazer contra aquela fortaleza? Esta era a afirmativa a que o comandante se apegava, repetindo-a em mente; porém a magia seria forte?
Os cavaleiros estancaram diante do fosso e seu líder gritou:
- Desçam a ponte, desejamos entrar para conversar com o príncipe!
Tendo aguardado por alguns minutos e como nada acontecesse, o líder elevou o olhar vendo o príncipe e a moça observando-os do alto de uma das janelas. Então baixou o rosto, fechou os olhos e estirou os braços adiante com mãos abertas de palmas para cima tocando-as lateralmente assim permanecendo por segundos. Um trovão ribombou; um facho de luz projetou-se da luminosa meia esfera, estendendo-se sobre o fosso, construindo um pontilhão. Sem hesitar ele ordenou:
- Em frente!
Atravessaram-no sob estupefatos olhares dos homens que montavam guarda nas muralhas e torres do castelo. Havia agora a ponte elevatória e o portão. O comandante, sem mesmo parar, trouxe o braço direito dobrado paralelamente ao rosto, levando-o vigorosamente à frente, completamente distendido, de mão aberta, com palma e dorso voltados para as laterais, como lança arremetida. Novo trovão. Um bólide de fogo partiu chocando-se de encontro à ponte que se achava sustada, incendiando-a numa área, atravessando-a e vindo atingir o portão mais atrás. Rapidamente, sem que a menor reação dos castelenses pudesse ser esboçada, o fogo produziu grande rombo em ambos os obstáculos e os cavaleiros penetraram pelas aberturas ainda fumegantes.
- Atirem, detenham-nos! - gritou o comandante da guarda. Uma saraivada de flechas foi arremessada contra os invasores, porém debalde. Elas se chocavam na forma luminosa e ricocheteavam. Os cavaleiros apearam no pátio, largaram os cavalos e caminharam em direção da porta do palácio. Os guardas correram em sua direção de espadas em punho, mas não conseguiram furar o bloqueio da luz, afastando-se assustados, deixando-os caminhar livremente e subirem a escadaria. Ao entrarem no salão do trono se depararam com Sorman, de pé, espada à mão, protegendo a moça às suas costas.
O líder dos cavaleiros impressionava com sua aparência. Tinha longos cabelos e barba louros; era alto, forte, vestia roupagem em tom azul com frisos laterais dourados. No peito, um grande oval mostrava no seu interior larga e dourada cruz. Cingia-se de cinto semelhante a couro, no qual dependurava a longa bainha que acolhia larga e pesada espada. A calça era justa, reluzente, em tom azulado; as botas de meio cano pareciam ser leves e confortáveis. Parando a poucos passos do príncipe, ele fez movimento circular com o braço e a luminosa meia esfera desapareceu, deixando-os aparentemente desprotegidos. Dois homens da retaguarda de imediato montaram guarda no lado de fora da porta. Sem delongas, ele falou forte e imperativamente:
- Entregue-me a moça e partiremos imediatamente!
- Terá antes de vencer-me!
- Não vim para debater-me com sua majestade, porém em busca de quem nos roubou a taça sagrada!
- Você roubou a magia, agora deseja a taça. Uma sem a outra estarão incompletas, a mensageira contou-me.
- Ela mentiu, príncipe! Este reino valerá menos do que pequena e ressequida erva se, por infortúnio, ela vier a se apossar da magia, como deseja.
- Você mente! - bradou Sorman, provocando estremecimento no líder e o apertar de seus olhos. Ele, entretanto, não chegou a reagir ou contra argumentar.
- Você acha-se envolto por sua maligna aura - falou uma velha, pequena, enfiada numa espécie de hábito marrom de largas e compridas mangas, trazendo capuz sobre as costas, saindo detrás dos homens e parando ao lado do líder - pergunte-lhe que fez da taça!
- Cale-se, bruxa! - gritou a moça - Não lhe dê ouvidos, príncipe, ela encantou os guardiões acólitos da magia, invadiu o templo com todos estes que aqui estão e roubou-a. Mas eu consegui recuperar a taça que eles agora desejam.
- Como roubaríamos alguma coisa que sempre nos pertenceu, de quem somos fiéis depositários? Elas não só representam a força de nosso povo como a autoridade do ser sobre o elemento. Será o caos que nos atingirá a todos, inclusive a este reino, se não recuperarmos a taça! - disse o líder.
- Vamos, diga, que fez da taça? - insistia a pequena e velha mulher, que, mediante o silêncio da moça, voltou-se para Sorman lançando o desafio: - vou mostrar-lhe que ela mente!
Sorman pareceu não se impressionar com essas palavras, mas antes que dissesse qualquer coisa, o líder apontou-lhe o dedo e uma chispa de luz azul o envolveu. Ele hesitou e virou o rosto falando de lado para a moça, sem mover o restante do corpo:
- Diga, mensageira, que fez da taça?
- Eu a escondi; encontra-se guardada em lugar seguro, longe daqui.
A velha deu três passos adiante, posicionando-se lateralmente a Sorman e enfiou a mão para dentro da roupa, à altura do coração, trazendo um objeto. Esse possuía na extremidade superior a forma triangular perfeita onde nas bordas internas de cada lado, pedras multicoloridas e retilíneas se encarreiravam, formando, com isso, no interior, o desenho de um novo triângulo. No centro aparecia um pequeno círculo e bem no meio do círculo se fixava uma solitária e diminuta pedra azul incrustada. Do interior da base da forma triangular se externava um eixo ou cabo e ao longo da cilíndrica superfície deste cabo, uma linha sulcada de cima abaixo envolvia e serpenteava. O cabo terminava numa outra forma, que era um oval pouco menor do que o triângulo no extremo oposto. Nas faces brancas deste oval havia também outro símbolo sulcado. O símbolo era exatamente igual em ambos os lados da figura, compondo-se de dois riscos maiores que se cruzavam perpendicularmente, formando uma cruz de segmentos iguais e equidistantes. As extremidades da cruz traziam, cada uma, um pequeno círculo, e na porção existente entre cada ângulo reto que se formava no encontro de segmentos ou hastes desta cruz, vários caracteres menores se inseriam.
A mulher segurou o cabo do objeto e o triângulo apareceu livre acima dos dedos dobrados, ficando o oval, inteiramente visível, abaixo da mão fechada. Levantando-o, ela bradou com trêmula voz:
- Olho azul, veja e mostre nela onde está escondida a taça!
O triângulo tomou-se de luzes que se abriram. Da pedra azul, no centro do círculo, partiu um raio luminoso da mesma cor, que atingiu a moça, envolvendo-a da cabeça aos pés. Ela ficou imóvel; do seu peito começou a materializar-se uma forma negra que cresceu e se definiu: uma taça!
- Está nela, envolta pela sombra de Kalan! - gritou o líder, contrariado.
- Convenceu-se, agora, príncipe? - ela girou o objeto, invertendo sua posição, segurando o cabo com as pontas dos dedos. O raio de luz que envolvera a moça imediatamente retornou ao interior do oval, descendo em seguida pela linha que serpenteava o cabo, passando sobre as multicoloridas pedras do triângulo, sendo aos poucos absorvido. Ao final, desapareceu definitivamente no centro do minúsculo círculo, sobre a mesma pedra azul de onde partira inicialmente.
- É nova armadilha da bruxa, príncipe! A moça, já dona de seus movimentos, correu para ele e o envolveu num abraço. Sorman estremeceu, afastando-se, e girou encarando-os.
- Vão embora todos vocês! - gritou-lhes.
- Vamos levá-la! - disse o líder avançando um passo. Sorman então elevou a espada diante do rosto, apontando a lâmina para o chão, segurando-a com ambas as mãos abaixo do belo punho, como se fora um sacerdote a oferecer uma taça em holocausto, e o líder estancou.
- A magia, acenda-a! - gritou a mulher, afastando-se dois passos; o líder girou o braço direito distendido, em movimento circular, fazendo surgir de imediato uma claridade sobre eles. No mesmo instante, partiram das pedras do punho da espada raios ígneos que incendiaram o espaço; quando ambas as forças se encontraram, uma explosão aconteceu, os homens gritaram e Sorman foi arremessado para longe. Ao levantar-se, levando a mão à cabeça, não sabia o que houvera acontecido, ou onde se encontrava. Foram necessários quase dois minutos para que se recuperasse. Ao olhar para adiante, reconheceu a gruta, verificando estar na borda da pedra ovalada, e ao virar levemente o rosto para a esquerda notou a bela moça a sorrir-lhe com satisfação.
- Agora você sabe do que lhe falei - disse aproximando-se. As imagens começaram a entrar-lhe fragilmente na memória enquanto ele a olhava.
- A taça, a magia - finalmente falou quase sussurrando, voltando os olhos para a capela e de novo para a moça - onde está a taça?
- No interior da capela, como lhe disse antes.
- E a magia?
- Você terá de recuperá-la, é a parte que falta. Encontra-se nos corpos dos vinte que a roubaram, porém obtendo-a do líder e da bruxa os demais não terão forças para sustentá-la. A magia então retornará para a taça sagrada de onde a levaram - ela olhou-o com apelo e um ar misterioso tomou-lhe o belo rosto.
- Como posso fazer isto?
- Venha! - ela fez-lhe sinal com a mão e entrou na gruta, sendo seguida por ele - tome-a - disse olhando para a espada - é seu o instrumento, faça justiça, reconduza as coisas aos seus lugares!
Sorman mirou o punho da espada; neste instante as coloridas pedras que se encarreiravam sobre a cruzeta do punho, cujas extremidades côncavas aconchegavam duas pedras maiores e vermelhas, então rebrilharam. Em seguida, como resposta, as duas outras grandes pedras, uma verde no punho junto da cruzeta, e outra azul, após a cruzeta e já no início da lâmina, enviaram também pequenas cintilações. A espada era um objeto vivo, dinâmico e com alma! Não resistindo, ele esticou o braço, tomando-a na mão, constatando sua leveza e fácil manuseio e uma pequena corrente elétrica subiu-lhe da mão para o ombro; daí percorreu-lhe todo o corpo. Obedecendo a um impulso, ele jogou a espada para cima; ao segurá-la de volta, examinou-a em ambos os lados, vendo existir em cada lado da cruzeta um desenho de duas linhas retas que se interceptavam exatamente no meio da cruzeta em ângulos agudos. Os quatro extremos do desenho terminavam com pequenos círculos. Ao longo da lâmina, caracteres se dispunham, guardando distâncias exatamente iguais uns dos outros. Sorman já começava a se acostumar com aquele tipo de simbologia e desviou automaticamente o olhar para a porta gótica da capela, fazendo rápidas comparações.
- Afastem-se da capela! Uma voz que já conheciam, vibrou da entrada da gruta.
- A bruxa! - falou a moça com espanto. Em sequência, a moça fez rápidos movimentos no ar, desencadeando um tipo de energia sobre Sorman, que foi de imediato absorvida pelo seu corpo - mate-a, recupere a magia! - gritou.
Sem a mínima reflexão Sorman pulou sobre a velha, agarrando-a pelo ombro com uma das mãos, forçando-a a ficar de joelhos, enquanto trazia o outro braço para trás, preparando o golpe que iria traspassá-la com a espada. A velha levantou a cabeça, olhando-o nos olhos, e Sorman estancou o desfecho.
- Mate-a, vamos! - esbravejou a moça com mãos crispadas.
Sorman moveu ligeiramente o braço enquanto a velha continuava a mirá-lo.
- Não posso, não consigo!
- Não conseguirá, disse a velha, existe amor em seu coração, posso sentir-lhe a vibração! - Sorman então largou-a, aprumando-se enquanto a velha punha-se de pé e apontava para a moça - ela é a ladra, a bruxa!
- Ela mente, quer roubar a taça sagrada na capela!
- Não há taça alguma na capela, está com ela, encoberta pela sombra de Kalan!
- Kalan, quem é? - perguntou Sorman como se emergisse de profundo sono.
- O princípio negro. Ele vive pela luz, mas não com ela.
A moça então elevou os braços, batendo as mãos abertas acima, as fechando em seguida; depois, de braços distendidos, as apontou para ambos, de novo abertas e paralelas como duas lanças, arremessando largas e longas labaredas. Mas Sorman levantou a espada diante do rosto em posição invertida, segurando-a pela lâmina, e as chamas foram atraídas contra o punho, formando uma grande roda que girava.
- A verdade! - falou o jovem.
A roda girou mais rapidamente; as pedras da espada rebrilharam; uma esfera formou-se naquela massa de fogo e energia. Como um meteoro, a esfera saiu em direção da moça, chocando-se de encontro ao seu corpo. Um feixe de luz partiu dela de retorno, vindo encontrar a velha, ligando-as. A moça caiu e a taça rolou no chão. Entretanto, o aspecto da moça se transformou tornando-a velha, ao passo que a velha, que permanecera de pé, tornava-se moça.
- De novo eu própria! – disse a moça com sorriso, ao lado de Sorman. Ele correu e apanhou a taça que brilhava de maneira incomum. Era de material semelhante à prata, embora mais leve e delicado. Segurando a espada numa das mãos e a taça na outra, ele dirigiu-se à capela abrindo a pequena porta.
O interior da capela se assemelhava à própria gruta em miniatura, tendo, porém, no seu segmento pequeno túnel que se estendia infinitamente na profundidade da pedreira. Sorman recolocou a taça no lugar e ela cintilou. Em seqüência, viu-a acender-se como se incandescesse e uma duplicação dela desprender-se, deslocando-se no ar em sua direção, penetrando-lhe no peito, produzindo rápida queimação no local.
- Que significa isto? - perguntou para a moça que se aproximava, enquanto maquinalmente depositava a espada no lugar.
- A prova sacerdotal. A taça sagrada aceitou-o, falta-lhe agora a magia que é somente outorgada por um poder superior ou por um divino ser elemental. Está pronto para receber a chama que iluminará a taça?
- Estou pronto! - disse resolutamente.
Ela então o abraçou e o beijou ardentemente, sem que ele pudesse antes imaginar este ato. No instante em que a língua da jovem tocou a dele, uma corrente percorreu o interior de seu corpo, incendiando-o. Ele gemeu de dor, soltando-a. Tudo lhe era fogo, queimação e Sorman dobrou-se crispando as mãos, sentindo-se como se fosse explodir. Seus órgãos genitais, o coração, a testa, tudo ardia cruelmente. Um calor extraordinário subia-lhe pela coluna de maneira incontrolável, pressionando-lhe a nuca e o alto da cabeça. Finalmente, não suportando mais aquele terrível flagelo, ele urrou e caiu, perdendo os sentidos.
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Sorman acordou gemendo; a sensação de sede o torturava: estava calor demasiado! Sentou-se na beira da cama e arrancou a blusa do pijama, arcando-se e abrindo o pequeno freezer. Retirou uma garrafa d’água, enchendo um copo após o outro. Sentia dores nas solas dos pés e efeitos de queimações em várias partes do corpo. Encaminhou-se para o banheiro alcançando o box; despiu-se e ficou longo tempo tomando banho. Não sabia, exatamente, o que se passara, mas sem dúvida o que sentia estaria relacionado com suas experiências no mundo oculto. Pouco a pouco imagens se formavam em sua mente: eram, porém, desconexas como certos sonhos e desistiu de puxá-las, preferindo recorrer ao livro, esperando lá tudo encontrar. Levantou os olhos para o basculante, vendo que ainda não amanhecera. Em ato contínuo, enxugou-se, vestiu as calças e voltou para o quarto, indo de novo sentar-se na cama.
Melhorara. Olhou para o relógio digital na mesinha de cabeceira, constatando serem duas e vinte e seis. Mal acreditou. Parecera-lhe ter vivenciado muito mais tempo. Levantando-se foi ao armário e tomou o livro, acendendo o abajur, passando a ler o que dizia o relato de sua aventura.
CAPÍTULO VI
A PROVA DA ÁGUA
"Matar-me a mim próprio; morrer pela própria escolha; calar o eco da vida frágil; secar a vertente que irriga a terra; dizimar o riso, o prazer, amargar os dias porque precisam ser amargados; provar do fel; pedir por ele! Onde se encontra a sensatez, o sentido de tudo - será loucura? Deus, existirá mesmo este pai?"
Na visita da noite seguinte, Ratziel já não era o mesmo. Sua aparência mudara extraordinariamente, mostrando-se como adolescente esguio, com cabelos louros e possuindo quase a mesma altura que Sorman. Vestia-se à semelhança de nobres guerreiros do passado, porém com as vestes tecidas com fios de prata, desprendendo laivos de luz. No peito tinha um crescente lunar que se destacava pelo brilho impar. Evidentemente Sorman não o reconheceu, julgando tratar-se de outro personagem, embora ele ainda portasse o pequeno e torto cajado de madeira, já conhecido.
- Sou Ratziel. Cresço e me transformo diante de vossos olhos na medida de vossas vitórias.
Somente após estas palavras, e por senti-las verdadeiras, Sorman admitiu estar diante de seu condutor. Desta feita, Ratziel o deixou à beira de altíssimo alcantil, onde muitos metros abaixo as águas do mar lançavam vagas de encontro às pedras em fortíssimas arremetidas. Dali podia ouvi-las ressoar com perfeita nitidez. O vento quase frio o empurrava para trás, provocando esvoaçar dos seus negros cabelos. O mar rebrilhava: era clara a observação; a lua cheia subia ao horizonte e o céu se apresentava limpo e estrelado. Sob essa claridade, ele entrevia muitos quilômetros do despenhadeiro que avançava ao mar, imaginando existir ao longo da formação rochosa, inúmeros outros recortes alcantilados. Um pensamento fê-lo associar o lugar aos fiordes nórdicos, mas não podia ter certeza disso pelo fato de nada mais ter visto. O vento continuava forte; nos seus ouvidos silvava algo como um apelo ou tentativa de comunicação. Essa maneira de sentir o elemento trazia-lhe a atenção para os arredores, começando a perceber sons que se moviam consoante a direção do vento. A princípio os sons eram fracos, mas ao apuro da audição iam se tornando mais perceptíveis. À medida que se concentrava neles, notava-lhes rápidas mudanças, e os sons se transformavam num canto. Mas o canto não lhe chegava ainda claro e nítido aos ouvidos, pois se misturava ao ruído das vagas. Entretanto, sobrepunha-se sempre que as vagas açoitavam com maior vigor. Contudo, aos poucos, Sorman já o identificava e esse pequeno esforço foi suficiente para remetê-lo de volta ao recente passado. Logo se viu de cabelos longos e soltos, sentado na areia da praia, meditando na postura do lótus. O desfile de imagens mentais trouxe-lhe, ainda, a percepção de uma viagem espiritual a um lugar qualquer do oceano, onde uma mulher entoava uma doce melodia.
As imagens se desmancharam. Ele iniciou os passos em direção de onde supunha originar-se aquele canto, porém se confundia porque o canto se incorporava ao próprio vento. Súbito, alguns metros dali, uma forma luminosa passou rapidamente adiante, desaparecendo detrás de uma saliência rochosa. Ele resolveu segui-la e se aproximou do local nada vendo. De repente, um estímulo veio agitá-lo e mexer com seu coração, pressentindo que o mar, o vento e o canto, essas coisas vivas e presentes, atuavam-lhe na mente, provocando ondulações no seu ser emocional. Achava-se seguro e bem estruturado, porém se comovera com estas repentinas e inesperadas sensações. Houvera parado, mas resolvera de novo caminhar, verificando, mais na frente, encontrar-se diante de um tipo de arco irregular e à entrada de uma caverna num bloco rochoso. O luar ali se projetava insuficientemente, grandes sombras se deitavam; ele teve de caminhar com excessiva cautela a fim de poder examinar o local. Assim mesmo, sem boa visão, prosseguiu pela caverna, pretendendo realizar o melhor possível. Após vencer pequeno trecho de um pedregoso caminho, notou não existir grande profundidade naquela formação, por que logo um facho de luz prateada vinha indicar o seu final. Poucos metros depois via nova e quase idêntica caverna, nela também ingressando, de início com relativo desembaraço, em seguida, tateando na escuridão, imaginando encontrar-se num túnel cuja profundidade seria imensa e de obscuros lugares. Entretanto, para satisfação e alívio, enganara-se, pois, adiante, após ter percorrido curta distância, via novamente a claridade lunar, as cintilações dos astros e o início de estreita escarpa, enveredando decididamente por ela, começando a descê-la. A escarpa possuía trajeto sinuoso e relativamente fácil; pouco depois ele revia o mar de agitadas águas.
Observando, mas não se detendo, em si ardia ainda aquela inesperada sensação que o tomara, sem que nada aparentemente a provocasse. Sob o pálido clarão de luz ele venceu a escarpa, pisando fina e alva areia de pequena praia, vendo-se próximo de enormes e assustadoras cavernas que tragavam o mar! Respingos viajavam pelo ar, chocando-se sobre sua cabeça e corpo. O canto cessara, mas não o vento; sua roupa tremulava e ruidava e os cabelos revoluteavam!
Alguma coisa se moveu dentro de uma daquelas enormes gargantas; ele apertou os olhos protegendo-os da ação eólia e das gotículas do oceano, procurando vislumbrar através do negro manto. Logo surgem ante sua percepção três belíssimas moças de longos cabelos, de corpos envoltos por finos véus azuis e atravessam as temíveis vagas como se as vagas não existissem. Ao vê-las, e sua beleza, Sorman se extasia, permanecendo estático a contemplá-las. Elas se aproximam, o rodeiam, recomeçam o canto e giram de mãos dadas. A moça, cujos dourados cabelos reverberam em interessante efeito sob a argêntea lua, estende-lhe a mão; a de cabelos negros, lhe segura a outra mão, ao passo que a terceira, de ruivos cabelos, avança e indica a caverna de onde haviam saído para lá se deslocando. Todas cantam incessantemente. Sorman avalia o risco daquela incursão, mas não consegue resistir; intimorato, enlevado pela beleza que o deslumbra, atordoado pela melodia tão próxima, se deixa conduzir obedientemente. Elas o tomam e o carregam como se transportassem uma pluma; mergulham com ele, nadam com incrível rapidez sob turbulentas águas e ressurgem a salvo na superfície de arenosa margem, dentro da caverna.
As moças continuam a conduzi-lo; trazem-no da areia para lisa e longa pedra que se estende junto a uma abobadada e irregular parede, levando-o cada vez mais para o interior da caverna. O bramir das ondas em seguidas quebrações lá fora é percebido com suavidade; um cheiro de água fresca se espalha no ar. Elas de novo cantam e sorriem - caminham rápida e graciosamente - e ele é obrigado a acompanhá-las quase correndo.
Havia claridade se projetando sobre a pedra onde andavam, acentuando-se à medida que avançavam. As profundas águas, jogando em pesados balanços, recebiam também banhos de luz na superfície. Nos seus remeximentos, formavam pequenas ondulações que deslizavam em compridas e finas ondas ao longo da estreita e paralela faixa de areia. Adiante, ele observou que a claridade provinha através de larga abertura da parede, tornando-se muito intensa. Como não devesse manter os olhos abertos, uma das moças os fecharam delicadamente com os dedos e o puxaram para dentro da abertura, pulando com ele, caindo em novas águas - desta feita mornas e mansas. Sorman abriu os olhos vendo aquela mesma claridade tornar tudo nítido dentro das águas. Observou peixes e formas interessantes, além de outros habitantes do lugar que se metamorfoseavam para seres com aparência humana. As moças não paravam de nadar, conduziam-no sempre para as profundezas; quando o ar começava a lhe faltar, uma ou outra colava os lábios nos dele soprando quantidades suficientes de ar para oxigenar-lhe os pulmões.
À medida que desciam a claridade aumentava; após alguns minutos chegaram ao fundo. Fina areia cobria o chão, qual imenso manto, e brilhava quando a claridade oscilava pela movimentação das águas. Reflexos daqueles rebrilhos tocavam-lhes os corpos; Sorman quis examinar melhor o que via, mas as moças não paravam. Adiante, se aproximaram de larga caverna, nela entrando. No seu interior havia completa escuridão; elas prosseguiram nadando com perfeito desembaraço, sem hesitar, como se tudo estivesse claro. Continuaram assim por algum tempo até que nova e tênue claridade começasse a ser percebida. Logo a visão se tornava outra vez nítida, e deixaram a caverna começando a subir. Após muitos metros em vertical ascensão, chegaram à superfície. Sorman viu-se então emergir do interior de um lago, onde na margem circundante vicejava verde, bela e desconhecida qualidade de grama. Elas nadaram até um ponto da periferia e o trouxeram para terra firme.
O lugar era surpreendentemente belo: um fantástico jardim; ele via árvores, flores de luminosas cores, diferentes aves e pássaros que pousavam ou voavam. Ao inspirar daquele perfumoso ar, a sensação que sentira no alcantil retornou, porem mais sutil, embora excitante, e experimentou um tipo de energia que lhe penetrou o corpo, percorrendo-o como seiva. As moças o puxaram subindo três degraus, ante um patamar róseo e circular, trazendo-o, em seguida, por uma via de largas e arredondadas pedras, cruzando o gramado, e a cujos toques dos pés sobre o verniz, ele vinha sentir maciez, rápida e gostosa dormência, e a penetração de outro tipo de energia.
Em torno, indescritíveis alpendres adornados de floridas trepadeiras provocavam-lhe admiração; pequenas colunas se vestiam de flores em gavinhas ao longo do caminho; perfumes suaves se misturavam na atmosfera! Chegando a um átrio de alva cor, com teto abaulado, apoiado por quatro colunas lisas ao estilo grego, caminharam até um portal de ouro com entalhes verticais, retilíneos e simétricos, que se abriu a sua aproximação, descortinando amplo salão sustentado por pilares. O chão era revestido de largos pisos coloridos de branco e azul esmaecido, em variados formatos, casando-se perfeitamente; conformando magníficos desenhos em vivos e espelhados brilhos. O teto frisado em ouro era uma grande abóbada; as paredes e pilares possuíam cor branca. No alto das paredes, grandes janelas com vitrais multicoloridos em tons suaves, deixavam passar a luz, tornando o ambiente claro e belo.
Tendo caminhado pelo corredor principal, chegaram a três longos degraus que antecediam a um trono de mármore branco, almofadado no assento e espaldar. Atrás do trono, gigantesco aquário era a própria parede, cujo vidro possuía coloração róseo-esverdeado, através do qual era possível ver-se panorama do fundo do mar. As moças o largaram, deixando-o a sós, desaparecendo além dos pilares laterais. Sorman não sentia qualquer resquício de temor, embora lhe subsistisse ainda pequena excitação, apesar de mantê-la sob controle. Ele elevou o olhar por sobre o trono contemplando as múltiplas vidas marinhas que habitavam aquelas águas, admirando-se de sua beleza e variedade. Após, volveu o rosto, examinando em derredor. Novamente voltado para adiante viu raios de luz surgirem, se afirmarem e decaírem sobre o trono e uma forma configurar-se. Mas nada se materializava; a luz brilhava sem delinear contornos, e uma ordem se manifestou em sua mente: “Aproximai-vos!”.
Aquilo causou breve reação; ele apertou os olhos, sacudiu levemente a cabeça, como a se descartar da ordem, fixando melhor o trono. Mas não podendo lutar contra o imperativo, subiu maquinalmente os três degraus, parando diante da luz. A voz de novo se manifestou:
“Sereis definitivamente vencedor ou vencido. O tempo cessará em vossa mente, nada existirá além; vosso universo se resumirá ao momento no qual vivereis. A experiência poderá durar séculos..., ou horas! Oposições se conflitarão, vereis isto, senti-las-ei nas vossas fímbrias; somente o autoconhecimento vos fará prevalecer das turbulências. O elemento é mais do que uma forma pura e simples; a essência de sua substância vem do Criador e Nele permanece vertendo sempre. Entre homens vulgares é um substrato, um instinto - fogoso e indômito animal de montaria. No homem da razão é quase indômito, mas no homem do espírito é potencialmente domável, vigoroso e ativo servo! Nada mais posso adiantar-vos,, senão abrir-vos a primeira cela onde habitareis Amai a vida desconhecida e a servi!”
Neste instante a luz se acentuou, produzindo a leve conformação de uma imagem, mas de tão fulgurante presença que não lhe permitia contemplá-la ou conhecê-la. Um raio subitamente projetou-se sobre sua mente e subiu, carregando com ele sua consciência, deixando-o caído e quedado diante do trono.
Ao abrir os olhos, viu-se num pequeno e fechado cubículo, deitado em duro colchão que ficava sobre larga tábua suspensa, atada pelas extremidades por duas correntes presas acima, numa das paredes. Ao alto, pequena e quadrada abertura com grades de ferro deixava passar alguma claridade e ar. Exatamente no meio do piso, estreita mesa acompanhada de uma cadeira tinha na superfície dois grossos livros empilhados. Ao lado desses volumes, havia um objeto que se assemelhava a um troféu; um metro acima pairava uma lâmpada acesa descida do teto por um longo fio, presa a um prato metálico preto. Ao fundo, rústica porta de largas e claras tábuas justapostas, reforçadas por travas em “Z”, mantinha-se fechada. As paredes laterais, azuis, mostravam caracteres pintados em preto, sob um friso reto e horizontal, em cujo interior do friso viam-se os mesmos caracteres separados e ordenados em conjuntos iguais. O teto, alto e branco, apoiado nas paredes que se inclinavam progressivamente para dentro, conformava a base superior, menor, de uma construção trapezoidal regular, ou piramidal secionada, em que, na base inferior, maior, o piso cimentado era também todo branco. Contudo, tratava-se de uma cela, e, antes de tudo, ele apressou-se em direção da porta tentando abri-la, não conseguindo, constatando estar ali encerrado.
Voltando, chegou-se à mesa e sentou-se, tomando o objeto nas mãos a fim de examiná-lo. Era de material claro, transparente e leve, parecendo acrílico. Possuía a base inferior no formato de um cubo; sobre este se assentava uma pirâmide um pouco mais alta, perfeitamente ajustada, em cujo ápice prendia-se a representação maior de duas asas abertas em forma de cálice. No centro das asas uma haste vertical as separava, no extremo superior da haste duas diminutas antenas sobressaiam. As faces do cubo e da pirâmide, bem como as asas, traziam uns poucos caracteres do mesmo tipo daqueles das paredes. Tendo examinado o objeto Sorman afastou-o, olhando-o de mais longe com o braço estirado, concluindo que a figura superior simbolizava uma borboleta, que, após metamorfosear-se, procurava alçar voo. As duas figuras anteriores representariam as fases do processo da metamorfose.
Em seguida, estendeu as mãos tomando o primeiro livro, trazendo-o adiante. Era como um velho dicionário em que a capa dura, verde e desbotada protegia páginas amareladas, em grosso tomo. Na capa não havia títulos ou indicações de autoria, unicamente o detalhe da moldura azul em desenho retangular, reentrante nas extremidades acima e abaixo. O livro, conforme o jovem já esperava, era manuscrito com bela e nítida caligrafia, assim começando:
“Não espere você, neófito, encontrar nestas páginas unicamente palavras estimulantes em que se apoiará no curso das provas já iniciadas. Esta obra é um tratado hermético, onde poderá obter algumas indicações sobre sua condição especial, no que tange ao teor das provas. Não precisará lê-lo todo, isto demandaria muito tempo, o que se tornaria desperdício. Sua própria cognição o conduzirá às páginas de onde extrairá os elementos de que necessita. Antes de tudo veja que, basicamente, serão os seus desejos os principais figurantes do processo nas etapas que se desdobrarão ante sua percepção. O corpo físico - veículo da consciência terrena - nada representa no processo, não tendo nenhuma participação ativa, achando-se ausente: ele descansa! O ego emocional encontra-se acordado e consciente, mas parte dele, a porção inferior, mantém-se nos níveis subconscientes de seu equipamento mental, em estado letárgico. Será desperta aos poucos ressurgindo faminta como um urso após período de longa hibernação. Seu ego mental deverá desempenhar a mais notável performance no decorrer das situações: ele sentenciará, determinará quem avança ou quem recua e avaliará o progresso ou retrocesso do ego personal - o todo individual manifestado!
Uma pergunta fatalmente emergirá em sua mente: por que tem de ser assim? Difícil respondê-la agora, ou mesmo após tudo ter acabado. O que se poderia comentar é do fato do ego humano viver num cenário onde o animismo realiza funções bastante diversas e importantes até certo estágio da evolução mental. Estão criadas e arraigadas nas complexidades dos valores mentais, sequências de eventos vivenciados pelo ego, acumuladas nas muitas passagens pela Terra ou até em outros orbes. Estes eventos nutrem projeções na impressionável consciência terrena, provocando diversas reações nos intercâmbios mente-emoções. Isto resulta em acentuada influência na formação da personalidade, proporcionando inclinações para o tipo ou condição individual. Mas o processo é coletivo. Todos mergulham nestes eventos; a massa humana reage sob a gigantesca criação de um corpo energético evo, obtendo dele os elementos com que trabalha e participa do jogo. De tal forma o ser anímico incorpora sua energia na resultante consciência anima que a natureza vê-se assaltada na participação do inconsciente coletivo. Após milhões de anos, tendo vivido incontáveis situações em raças e civilizações, não é possível, simplesmente, descartar-se do ser anímico - forte, robusto e alentador veículo das propulsões intelecto-emoções, em prol de emergente racionalidade concreta, lógica, superior e direta. O atual poder do próprio raciocínio depende das conversões da energia nas filtrações do processo anímico. Se dorme, sonha, se não consegue sonhar, imagina. O medo - atitude assaltante das convenções e metodologias de autocontrole, cuja origem foge da memória da existência deste período planetário - alarga-se pela coloração anímica de cada indivíduo ressaltando, justamente, a forma subconsciente de um determinado acontecimento, trazendo-o à tona e o revestindo de insensata dramaticidade. Daí, exigir intensa luta da mente racional no sentido de auto impor-se e fazer calar os signos vivos e variados do animismo, vestiduras do inconsciente. Quantos “eus” convivem na memória consciente ou subconsciente do homem? Quantos são criados diariamente, movidos por vontades, desejos e produtos de imagináveis situações, calcadas nas alegorias da mente intelectual? Saberia, você, neófito, como tratá-los a todos neste momento em que muitos repousam, usando de mesma linguagem para cada um? Sua história é somente sua; seus personagens são especialmente seus, criados por sua própria inteligência. Já os amou o suficiente, despendendo com eles tempo mais do que necessário. Liberte-os agora, deixe-os sair para irem-se de vez; não os impeça de ganhar a liberdade que procuram! Somente assim, o juiz e o carrasco se encontrarão num só termo e o justo e o corrupto se abraçarão mutuamente. Entenderá, então, a tênue linha que os separa, e os motivos aparentemente díspares sob os quais lutam e vivem. O prazer e a dor estarão, ambos, como sempre, atados e indissociados na grande teia de Maia, a ilusão quase eterna!”
Tendo lido este introito, Sorman levantou o rosto e meditou, depois prosseguiu virando páginas, lendo pequenos trechos de alguns capítulos, não se prendendo a nenhum deles. Abriu o outro livro e viu tratar-se de um codificador. Logo na primeira página já formava textos. Um friso, trazendo inscrições no seu interior, limitava e encerrava o conteúdo da página. Guardada as proporções, era o mesmo friso desenhado na parede. Os textos, que eram também capítulos, separados por indicações de algarismos romanos, se sucediam, às vezes, numa mesma página. Cada capítulo reiniciava com o mesmo friso, que se convertia novamente em limites marginais da nova página. O livro terminava como iniciara. Sorman, tendo folheado a sua última página, no capítulo trezentos e sessenta e cinco, fechou-o e se levantou, aproximando-se de uma das paredes onde os símbolos haviam sido escritos, passando a examiná-los. Não havia diferença alguma entre estes símbolos e aqueles do livro, e perguntou-se onde encontraria a chave para decifrá-los.
Mais tarde, ele de novo sentava-se à mesa para tentar descobrir alguma pista. Precisava sair daquela inércia; havia perdido a noção do tempo e começava entender o que a voz lhe havia comunicado sobre isto. Tendo em mente as palavras introdutórias do livro hermético, abriu-o numa página qualquer lendo algumas palavras, depois folheou outras, parando a examinar mais atentamente trechos de certo capítulo que comentava sobre o seguinte:
“...não importa o quanto se faça como tentativa para remover um obstáculo, mas isto sim, o que se faça. É importante não destacar um só aspecto sem a percepção do conjunto. Se um componente falha, o conjunto falha em seu entrosamento perfilado. Deve-se analisar, então, o conjunto; tentar descobrir onde existe a falha, por qual via acontece o escapamento da energia, qual o comprometimento do todo. Tudo isto demanda esforço, pois na maioria das vezes somente se percebe que algo está errado quando o efeito danoso excedeu-se além de um limite aceitável da estabilidade. É como deixar de perceber o teor habitual de um metal que timbra sempre. Hoje ele timbra mais forte, amanhã mais poderoso, depois nem tanto; não obstante sendo sempre o mesmo. Quando, porém, ele alterna estes momentos para pior, denotará uma desorganização qualquer, um possível vazamento de seu teor qualitativo.
....................................................................................................................................................................o elemento inferior não pode, nunca, sanar-se ou diminuir sua qualitativa potência em detrimento de sua própria e esperada produtividade. Ele precisa e deve manter-se constantemente em atividade vigorosa na direção certa. Esta perene e valiosa ação provocará no elemento superior, viva atenção, esforço de criatividade e desejável rendimento para o conjunto. Por outro lado, o elemento de cima não deve, nunca, sufocar o de baixo. Se isto lhe for permitido é mais do que certo que provocará resfriamento da caldeira ou dispersão do vapor. Assim acontecendo, o conjunto se fracionará na sua ação; se provocarão rupturas tão graves que nem sempre será possível repará-las num bom tempo. Haverá ocasiões em que o conjunto, de tão avariado, não permitirá mais consertos, somente, quando possível, remendos, tornando-se, em consequência, inevitavelmente mutilado.
....................................................................................................................................................................nada mais hábil do que vigiar o desempenho do conjunto, nada mais sensato do que buscar conservá-lo sempre a fim de tê-lo em estável funcionamento por toda a vida. Entretanto, veja que uma liga não resultante de um bom amálgama redundará mais adiante num problema, começando a falhar. Raramente um componente é temperado com uma só e pura qualidade. Defeitos irão sempre se mostrar e o conjunto, eventualmente, necessitará parar ou diminuir sua ação. Este fator deve ser levado em conta porque o perfeito e a perfeição são sempre relativos e quando se detém o primeiro precisa-se alcançar o segundo, mas a cada investida só se consegue provar que a perfeição está mais distante e o perfeito não é ainda o instrumento adequado e infalível.
Assim, para reestruturar um componente de um imperfeito ou inadequado amálgama é necessário grande esforço. Conseguindo isto, ele será ajustado com suficiente sobrecarga para desempenhar futuras e superiores tarefas. O conjunto bem equipado deve ser vivo e pulsante, preparado para absorver impactos, comoções e tensões, enfim, todas as intempéries, e superá-las. Superação, portanto, é a palavra chave!”
Tendo terminado esta leitura, ele procurava entender qual o sentido da mensagem e como aplicá-la no seu caso. Olhando para adiante, viu na soleira da porta pequena bandeja de prata ali depositada, portando uma taça. Levantou-se imediatamente e andou até lá. Os objetos tinham sido introduzidos através de uma portinhola abaixo, na própria porta. Segurando a bandeja, ele examinou o líquido verde que enchia a taça de cristal, aspirando-o. Era perfumado como hortelã, e caminhou de volta para a mesa, nela depositando a bandeja. Evidentemente a tinham entregado para que bebesse. Ele segurou a taça, levantando-a de encontro à luz a fim de observá-la, trazendo-a depois aos lábios. Mas relutante, levantou-a uma vez mais, girando-a levemente entre os dedos para finalmente decidir-se, trazendo-a em definitivo aos lábios, ingerindo o líquido. Era bom, um licor, e depositou a vazia taça de volta na bandeja. Nada sentia e ouviu um ruído na porta, percebendo em tempo a portinhola se fechar e pequeno pergaminho rolar pelo chão. Levantou-se e foi buscá-lo, trazendo-o para próximo da lâmpada, desenrolando-o. Assim dizia: “Tomou o licor, agora se deite e aguarde.”
Mal terminou de ler estas poucas palavras, suas pálpebras começaram a ficar pesadas e a visão turvar-se. Largou o pergaminho sobre a mesa e quase cambaleante dirigiu-se para a cama deitando-se. De imediato mergulhou em profundo sono, vendo-se diante de um longo corredor de muitas portas de grades de ferro em ambos os lados. Às costas, uma porta de madeira, fechada, indicava ser ali o início do corredor e resolveu caminhar, alcançando a primeira porta gradeada à esquerda, olhando para dentro. Viu então algo que o surpreendeu: uma jovem nua, em pé, de costas, a alisar os belos cabelos. Ele admirou o escultural corpo, sentindo tomar-se de rápido calor. Mas ela não fez nenhum outro movimento, repetindo os mesmos, e ele prosseguiu neste lado. Na porta seguinte, viu outra jovem nua, deitada de costas numa cama. Era tão escultural como a anterior, mas também se limitava a elevar um dos braços e alisar os cabelos. Voltando, parou diante da primeira porta do lado oposto vendo outra jovem nua, de pé, de perfil, a contemplar o aparente nada. Era magnífica e começou a voltar-se em sua direção. Ao vê-la de frente, um forte desejo incorporou-se nele e baixou o rosto quase por instinto, em rápido relance, notando pela primeira vez que se encontrava também nu, com o falo ingurgitado.
Logo que isto se deu, ele teve um estremecimento, voltando à consciência na cela, abrindo os olhos. Lembrava-se do que experimentara, trazendo consigo a forma perturbadora do desejo. No entanto, se encontrava vestido com calças brancas, camisa de igual cor de largas mangas, com ombreiras, e sandálias, como estivera desde que aqui chegara e no alcantil. Ao sentar-se, viu nova bandeja sobre a mesa, porém de ágata preta, contendo pequena ânfora, copo de vidro, pires de louça e um pão. A outra bandeja com a taça havia desaparecido bem como o pergaminho.
Mas não se sentia bem, não estava à vontade. Tudo até o momento se desenrolava como se o véu não houvesse ainda se descerrado e personagens estivessem somente preparando suas apresentações. A experiência de há pouco não o satisfizera. Também não o satisfaziam a cela, o símbolo, os livros, e tudo mais que o rodeava bem como a sequência de movimentos que a si próprio impunha. Necessitava de substância, ação, coisas palpáveis e fundamentadas.
Quanto mais pensava nisto mais sua insatisfação se acirrava. O desejo agora se movia, procurando outra forma de expressão e caminhou para a porta tentando de novo abri-la, forçando-a, empurrando-a, dando-lhe pontapés. Ante o insucesso, voltou-se irritado, retornando para a cama, sentando-se com violência, provocando repuxo das correntes. Insatisfeito, apoiou os cotovelos sobre as coxas e o queixo nas mãos abertas, formando conchas coladas às faces. Mas nada lhe vinha à mente e fechou os punhos, socando o colchão junto à parte externa das coxas, por três vezes. Depois se levantou, passando as mãos no rosto, cabelos e teve vontade de gritar, controlando-se, porém, sufocando o grito na garganta. Começou a andar da cama até a porta, indo e vindo, passando junto à mesa. Fez este pequeno trajeto quase cinquenta vezes até que, cansado, jogou-se na cama, esticando-se, ainda irritado. Ficou muito tempo olhando o teto, tamborilando a cama com os dedos ou, de punhos fechados, socando-a de leve, às vezes com certo ritmo, irrequieto, movendo sempre o corpo. Depois baixou o olhar, encontrando os símbolos na parede; levantou-se e foi observá-los de perto, sem muita calma, nada concluindo. Andou até a mesa, sentou-se e empurrou o livro hermético de sobre o outro, atirando-o para o lado, quase o fazendo chocar-se de encontro à figura do símbolo e puxou o codificador para diante de si, abrindo-o. Todavia, excitado, sem concentração, fechou-o com violência, provocando eco no silêncio. Sentiu ímpetos de atirar a bandeja e seu conteúdo para longe, mas desistiu deste ato. Levantou-se e dirigiu-se novamente para a porta, esmurrando-a, chutando-a, grunhindo como fera enjaulada.
Arfante, com a fisionomia transtornada, olhou para cima, notando a pequena abertura na parede oposta, que deixava entrar fraca claridade, e andou até a cama, atirando o colchão e o pequeno travesseiro para um canto. Virou a larga tábua de encontro à parede, apoiando um pé sobre a sua beirada, impulsionando o corpo para cima, agarrando-se numa das grades. Mas a tábua se moveu, afastou-se e desandou; ele, sem apoio, não se aguentou: largou a grade e despencou sobre a própria tábua, agora em posição aberta; rolou e caiu no chão. Na queda bateu com a cabeça, ficando tonto e com dor. Porém não quis se levantar, ao invés, limitou-se a olhar para a abertura ao alto, irado, a soltar imprecações; virou-se, apoiando o rosto sobre um braço dobrado, aconchegou-o e fechou os olhos, adormecendo.
Acordou com o braço dormente; sentou-se no frio cimento e fez massagens. Levantou-se após, indo até a mesa; colocou água no copo, bebeu e depois se sentou na cadeira. Sentia-se mais calmo, a insatisfação parecia ter passado, voltava à naturalidade. Mas como não quisesse pensar no acontecido, preocupado com uma possível volta daquelas sensações, tomou o livro hermético, abrindo-o casualmente, lendo certo tema cujo conteúdo geral não lhe despertara atenção, exceto pequeno trecho que dizia:
“... quando as comportas começam a se abrir, o escapamento das águas se torna inevitável: elas rolarão com a intensidade de seu móvel propulsor; obstá-las não é indicado, pois retornariam a novo reservatório, a herméticas comportas. Deixá-las livres provocaria inundações; destruiriam o trabalho realizado na terra para a boa colheita. É necessário domá-las sem lhes tirar a força, deixá-las correr sem que inundem, absorvê-las e permitir-lhes estar. Liberdade controlada, nesta fase de expansão, é mais do que sensato...!”
Nada mais encontrando de interesse, fechou o livro pensativamente, lançando olhar sobre a bandeja, vendo o pão. Estendeu-lhe a mão e o segurou, partindo-o em dois, comendo um pedaço, deixando o outro no pires. Depois puxou o livro de capa negra - o codificador - e o abriu, passando a examinar os símbolos com mais atenção, sem, entretanto, nada neles descobrir. Mas em certo momento notou ao lado do número romano indicativo de um capítulo, minúsculo e quase imperceptível caractere. Olhando-o melhor, comparou-o àqueles do texto, descobrindo-o na codificada escrita. Folheou outras páginas e a mesma coincidência se repetia com outros diferentes caracteres. Havia, pois, trezentos e sessenta e cinco caracteres diferentes, um em cada capítulo. Animado, procurou com o que anotar, descobrindo sob o tampo da mesa uma gaveta contendo caneta e bloco. Fez anotações relacionando números romanos a arábicos e estes aos caracteres. Depois fez reduções de cifras, novamente comparando caracteres a números, e mais uma vez a letras, mas nada concluiu. Finalmente, descorçoado, foi se deitar e relaxar.
Mais tarde voltava ao codificador. Desta feita, decidira deixar o pensamento fluir livremente; assim examinava os capítulos sem se ater a nenhuma idéia ou tentativa, buscando encontrar nova pista de maneira subliminar. E aconteceu de, em dado momento, parar e observar o final de cada capítulo, vendo que, invariavelmente, após a última palavra, uma diminuta e também quase imperceptível letra do alfabeto estava anotada. Novamente animado, tomou a caneta e o bloco e as foi computando, relacionando cada uma delas com o caractere do respectivo capítulo. O resultado foi a descoberta de que, desta forma, uma só letra do alfabeto podia corresponder a diversos caracteres ou símbolos. Uma delas chegava a quinze correspondências. Isso complicava; a principal dificuldade, nestas coincidências, era o fato de as correspondências se transformarem em gigantesco trabalho matemático combinatório, tendendo a infinitas variações. Assim concluiu que, por este caminho, seria impossível obter uma resposta precisa, necessitando descobrir a chave que resumiria este processo.
Tendo feito essas conjeturas, levantou-se, começando a andar pela cela em círculos, acompanhando as paredes. Após várias voltas num sentido e noutro, largou-se sobre a cama permanecendo sentado e pensativo. Uma inquietação quis se manifestar, mas ele resistiu; empertigou o corpo e fez uma seqüência de pranayama, dominando a reação. Fechou os olhos e concentrou-se, escapando para cima, ficando nesta postura por algum tempo. Depois abriu os olhos, pousando-os sobre uma das paredes onde havia a escrita, parando a observá-la. Algo existia em sua mente que o estimulava a descobrir. Levantou-se, então, e foi olhar de perto. Examinou com mais atenção o friso e os conjuntos de caracteres nele contidos, comparando-os com os conjuntos da escrita. Viu que os mesmos caracteres apareciam no friso e na escrita. No friso, os conjuntos se repetiam exatamente iguais, consecutivamente, como se formassem uma só mensagem sem alterações. Contou os caracteres de um só conjunto e atestou que o número deles era o mesmo das letras do alfabeto: vinte e sete. A seguir, trouxe a atenção para a escrita, vendo que fora elaborada com o mesmo número de caracteres das letras do alfabeto, dispensando, neste caso, os trezentos e trinta e oito caracteres ou símbolos restantes, que descobrira no codificador, o que lhe permitiu concluir que, a princípio, um só caractere correspondia a uma única letra do alfabeto.
Entusiasmado com a descoberta, foi ao codificador para comprovar esta possível assertiva, examinando os frisos dos capítulos e os textos do interior das páginas, chegando também à conclusão de que a escrita de cada capítulo fazia uso de somente vinte e sete caracteres, e sempre que novo capítulo se apresentava os caracteres eram outros.
O caracter que se mostrava junto ao número romano indicativo de cada capítulo, achava-se incluído no friso e no respectivo texto de cada capítulo; este fato deu-lhe a grande chave para estabelecer relação de valor e correspondência de cada caractere à respectiva letra do alfabeto, em ordem sequencial relativa. Assim, anotou o seguinte: um caractere (~), por exemplo, junto ao indicativo romano V do quinto capítulo, teria sua correspondência com a letra E; isto indicaria que (~) = V = 5 = E, por ser E a quinta letra do alfabeto. O friso comprovava esta posição, porquanto o caractere (~) ocupava a quinta posição em todos os conjuntos semelhantes que no friso existiam, e ele prosseguiu raciocinando, admitindo que o primeiro caractere, por exemplo, (<), no friso, seria A = l = (<) e o último, 27 = (>) = Ç. Cada capítulo, portanto, aleatoriamente, batizava o caracter segundo sua própria referência romana. A partir daí, era só localizar o caracter no conjunto do friso e fazer ali mesmo a contagem anterior e a posterior ao caracter para obter a sequência completa dos vinte e sete números e respectivas letras do alfabeto. Fazendo essas anotações, passou a substituir todos os caracteres por letras, decifrando a primeira palavra de um capítulo qualquer, exultando e comemorando.
Retomando o texto, reiniciou a decifração. Ao sentir que avançava com facilidade, parou para refletir sobre seu procedimento. Evidentemente não poderia sair a decifrar qualquer capítulo a fim de saber o que dizia: seria extenuante, demasiado longo, tomaria muito tempo; precisaria, enfim, simplificar, ser objetivo e rápido; usar antecipadamente de sua intuição. O tempo valia-lhe muito, embora, nesse momento, nada mais soubesse aquilatar dele.
Levantando-se começou novamente a andar em círculos. Após a terceira volta parou e gritou:
- Heureca! - E correu até a mesa trazendo o bloco e a caneta, sentando-se na postura do lótus diante de uma das paredes, iniciando a decifração da escrita. À medida que as palavras iam sendo decifradas e o sentido das mensagens se fazia inteligível, ele se surpreendia. Ao cabo de algum tempo a tinha pronto, dizendo o seguinte:
“Vou ao campo segar milho e trago três belas espigas, porém são sete que tenho para dar a comer...”.
Da inicial surpresa cambiara para a decepção. Apoiando o queixo sobre uma das mãos, a qual fechava suavemente, ficou a contemplar a parede: era evidente o desânimo. Julgara encontrar aqui algo novo, qualquer coisa extraordinária, excitante, que o movesse de imediato a transpor aquela porta, buscar um desafio vivo, a vitória. Entretanto, o que obtivera? Justamente aquilo que conhecia que, apesar de tudo, permanecia ainda como pétrea esfinge dentro de sua mente, aguardando a resolução de seu segredo. Avançara ou retornara ao início de tudo?
Sem opções, virou-se para a outra parede, recomeçando a decifração, desta vez sem expectativas ou surpresas. Ao término tinha a mensagem anotada no bloco, que dizia:
“A transformação continua. O maior deseja conduzir ao menor...”.
Levantando-se foi para a cama e se deitou. Pensava se realmente houvera avançado; até então esse enigma e sua previsão não lhe haviam trazido qualquer subsídio, embora entendesse que se referia a múltipla e intrincada tessitura do ego. Fora após conhecer ao enigma que novas experiências haviam começado em sua atribulada vida. Lembrava-se da última menção extraída do livro hermético, que dizia das águas da comporta e de sua liberdade controlada. Mas nada disto, por enquanto, trazia-lhe elementos que pudesse manipular; eram unicamente referências, retórica e simbologia.
Conhecido ruído desviou-lhe a atenção, fazendo-o olhar para a porta. Novo e pequeno pergaminho fora ali jogado; ele se levantou indo buscá-lo, abrindo-o, trazendo-o para sob a luz.
“Prepare-se para receber ilustre visita.”
- Preparar-me? Só tenho feito isto até agora! - reclamou para si, depositando o pergaminho sobre a mesa, voltando à cama e se deitando.
Não demorou, pôs-se de pé num impulso. Uma luz branca se manifestava adiante, firmando contornos, determinando o surgimento de uma forma suave e graciosa na figura de bela mulher. Vestia-se com fina roupa branca, pregueada dos seios para baixo e trazia os braços nus. Um véu dourado cobria-lhe parcialmente os belos cabelos castanhos. Sorman, não conseguindo controlar-se, caiu ao solo, genuflexo, sem, porém, desprender-lhe os olhos. Sua voz foi ouvida e sentida como o remanso de águas mornas, tocando leve e suavemente:
“A hora se aproxima, vivereis o que ansiáveis. O valor das palavras se transformará em fatos concretos. Agora, verdadeiramente, oposições duelarão; séculos se resumirão a momentos; feridas de novo se abrirão e a morte se prenunciará. Vosso jovem coração irá sangrar, mas a força de vossa vontade precisará prevalecer. Não recueis, não cedais; mesmo no calor da batalha recorrei ao frescor das águas para obter a temperança!”
Dizendo isto ela estendeu as mãos à frente, unindo-as lateralmente com palmas abertas para cima; afastou-as e um raio de luz projetou-se sobre a cabeça de Sorman. Ele fechou os olhos e inspirou profundamente; a luz o invadiu, deixando nele um quantum de paz. Ao abrir os olhos a presença houvera desaparecido, e ele se levantou.
Ainda envolto por aquelas vibrações de paz e alento, ao mesmo tempo preconizadoras de dores e lutas, ele andou até o meio da cela, notando que a porta se encontrava completamente aberta. Foi até lá e olhou para fora. Uma névoa azul cortinava a visão e nada podia perceber com nitidez. Decidido, ultrapassou-a, parando novamente no corredor, diante das inúmeras portas com grades de ferro. Olhou seu próprio corpo notando-se desta vez vestido, e resolveu ingressar pelo corredor. As portas achavam-se todas abertas; as mesmas jovens, irresistivelmente belas e nuas, sorriam-lhe, convidando-o com suaves gestos. Aquilo o perturbou. Ele andou mais e o mesmo se repetia; o desejo de ceder o torturava. Levantando o rosto, procurou calcular quanto precisaria percorrer, caso desejasse chegar ao final do corredor, concluindo que a distância seria imensa, pois existiria ainda, em ambos os lados, incontável número de celas.
A luta agora se tornava maior: as jovens o chamavam, provocavam-no, gemiam e imploravam; ele fechou os olhos, mas de novo os abriu. Na verdade, desejava contemplá-las, tocá-las, amar e ser amado. Novos apelos e pretendeu ceder, porém lembrou-se da advertência ouvida em sua cela e impulsionou o corpo para frente, começando a correr. As jovens imploravam mais, chegavam às portas, estendiam-lhe as mãos, mas ele prosseguia imprimindo maior velocidade aos largos passos, buscando o final do corredor que parecia inalcançável. Finalmente, cansado, resolveu parar. Silêncio. Não ouvia mais vozes nem gemidos e olhou para trás. A mesma névoa azul pairava agora à pequena distância, impedindo-o de ver quanto percorrera. Voltando-se para adiante andou mais alguns metros percebendo nova situação: celas abertas e aparentemente todas vazias. O silêncio continuava; o único som que ouvia era de sua arfante respiração e apoiou-se numa grade para descansar. Decorrido pouco tempo, julgando-se recuperado, resolveu prosseguir até que pressentiu movimentos dentro de uma cela. A cela estava aberta; era clara, havia ali tapete, almofadas e um sofá. No fundo, um corpo jovem de mulher, belo e esguio, de costas, vestido com transparente véu negro, permanecia imóvel. A moça, diante de uma janela pela qual a clara luz adentrava, fitava possível quadro ou o próprio tempo. Sorman sentiu forte sensação de algo familiar: uma recordação ainda não definida. A sensação cresceu, misturou-se a uma angústia, à saudade, à solidão e a necessidade de apoio. Aquelas coisas tomavam-no, o envolviam e nelas ele mergulhou, exalando profundo e melancólico suspiro. Ao ouvir o suspiro, a jovem voltou-se sorrindo:
- Sorman, querido, quanta saudade!
- Anita!!! - gritou. Ela aproximou-se enquanto ele a mirava estupefato.
- Entre! - disse tomando-lhe uma das mãos, trazendo-o para o interior da cela, ali parando. Ainda sorrindo, afagou-lhe os cabelos e o rosto, beijando suavemente seus lábios.
Petrificado, mas paradoxalmente invadido por um turbilhão de emoções, voltavam-lhe lembranças: momentos alegres e tristes, o ashram, seus dramas e lutas. Comovia-se, lágrimas rolavam; um remorso penetrou-lhe a consciência. Quão cruel houvera sido com ela na separação, nem ao menos a procurara; voltado estivera unicamente para si, para sua polarizante dor. Ela o amara sincera e desinteressadamente, fora, talvez, a única a compreendê-lo.
- Anita,..., perdoe-me. - balbuciou.
- Sorman, sossegue, nada há a perdoar, você sofria, eu entendi.
- Como chegou aqui?
- Eles me trouxeram, disseram que precisaria de mim.
- Eles, quem?
- Os Senhores!
Ele a olhava sem entender e crescia-lhe o remorso, um forte sentimento de culpa; isto se misturava a uma necessidade de compensação, algo para dar: amor, desejo. Ardia-lhe o peito, apertava o coração, pulsava-lhe todo o ser e trouxe a mão à testa, tocando-a com as pontas dos dedos, fechando os olhos.
- Que se passa? - ela inquiriu-o.
- Sinto-me fraco..., desalentado.
- Deite-se, deve estar cansado - ela o tomou pelo braço, fazendo-o sentar-se no sofá; ajoelhou-se diante dele, segurando-lhe as mãos - melhorou? - perguntou após breves momentos.
- Tenho sono..., preciso dormir - respondeu com dificuldade, deitando-se, deixando as pernas de fora. Ela se levantou e puxou-as para cima, ajeitando-lhe o corpo, deixando-o descansar. Mas ele não dormiu, embora cerrasse os olhos, e começou a falar, largando o braço sobre o tapete, ao que ela se sentou na postura do lótus, aconchegando-o numa das coxas, segurando-lhe a mão. Sua voz saia pausadamente, como numa provocada e superficial letargia, num transe ou num momento de controlada catarse:
- Não há como escapar da iminente dor. Uma extremidade da cruz aponta para o céu, a outra para a terra; é a indicação imutável de que tem de ser plantada, enterrada. Os braços, como os de um espantalho, desejam afastar os raptores, os ladrões, ao mesmo tempo entregam-se, abraçando-os. Não escolhi esse caminho, é demasiado cruel para mim, para meus pés. Ele se antepôs, provocou-me, desafiou-me a trilha-lo como se já nos conhecêssemos. Meus pés sangram, deixam no solo marcas indeléveis: já não sou mais o mesmo! A dor é a bandeira desfraldada que tremula incessantemente diante de meu rosto. Voltar não sei, parar não devo. Há o prenúncio da morte, ou seria suicídio? Matar-me a mim próprio; morrer pela própria escolha; calar o eco da vida frágil; secar a vertente que irriga a terra; dizimar o riso, o prazer; amargar os dias porque precisam ser amargados; provar do fel, pedir por ele! Onde se encontra a sensatez, o sentido de tudo - será loucura? Deus, existirá mesmo este pai? Quero descansar, mas a cruz não me permite. Meu corpo flagelado envia clamores, as pernas tremem sob o peso; céus, sinto que cairei de joelhos a qualquer instante!
Calou-se abrindo os olhos, virando o rosto, mostrando brilho ofuscado no olhar.
- Anita, onde esteve todo esse tempo; por que não falou dentro de mim?
- Estive todo o tempo em você, mas não consegue mais ouvir-me! - ela trouxe sua mão aos lábios, beijando-a.
- Que faço, para onde vou?
- Fique. Não parta, não morra. Há muita vida ainda em nós!
- Vida?! - ele virou o rosto retornando para a posição anterior, mirando o teto descolorido, depois se sentou passando as mãos nos cabelos. Anita olhava-o admirando-o; seu olhar quente tocava-lhe o coração - não posso ficar, preciso ir-me - disse com tristeza.
- Por que, Sorman? - ela falou com emoção.
- Por quê? Não sei, é algo indômito, chama-me: é morte ou vida! - respondeu se levantando e aquelas conhecidas palavras provocaram-lhe nova reação. Ela se levantou e o abraçou, sendo envolvida. Lágrimas rolaram, o coração de Sorman foi invadido de profundo amargor que lhe subia à garganta, sufocando-lhe a voz. Nada conseguia dizer; na mente só imagens: vidas, combates, terras, Anita, o reencontro de ambos, séculos se desdobrando em segundos, promessas de eterna felicidade em seus ouvidos. Seu coração sangrava, pedia para que ficasse, porém ele resistia, molhava com suas lágrimas o rosto e os cabelos da moça e apertou-a mais fortemente contra o peito umedecido pelas lágrimas dela.
- Perdoe-me mais uma vez – ele afastou-se entre soluços, saindo lentamente de costas, deixando a cela.
Porém não foi muito longe. Logo nova cela aberta atraiu-o e parou diante dela, contemplando quem ali se encontrava, sentindo o coração acelerar e novos apelos alvoroçarem-lhe os desejos. A jovem, alta e morena, irresistivelmente bela, nua, com seios fartos e empinados, corpo tentador e sorriso cativante, olhava-o convidativamente.
- Lucéa!! - exclamou, já se arremessando para dentro, como que puxado por mágico imã.
- Sorman! - ela estendia-lhe as mãos e nova onda de desejo o invadiu obnubilando seus mais lúcidos pensamentos.
O inebriante perfume da moça evolou-se no ambiente; Sorman excitou-se mais ainda. Tudo em si pulsava; sentia ímpetos de tirar a roupa do corpo, desnudando-se ante aquela maravilhosa fêmea. Porém relutava; de repente viu-a com certa dificuldade, envolta por sombras numa ausência de luz. Aquilo permaneceu por instantes e o preocupou. Mas passou. Revia agora claramente aquele corpo moreno de estonteante beleza e o belo rosto de incomparável sorriso. Um doce sentimento de admiração brotou em seu peito: por ela ali estar, ser sua amiga! Ela ainda estendia-lhe as mãos, chamava-o, e fortíssimo fluxo de desejo tomou-lhe a mente, fazendo-o mergulhar numa gama de delírio, arrancando a camisa do corpo, jogando-a ao chão!
- Venha, Sorman!
- Sim! - respondeu com acelerada emoção a dois passos dela.
“Não devo!” A ordem partiu de seu próprio íntimo.
“Você a deseja, não lute, é a oportunidade com que sonhava do mais perfeito prazer. Possua-a, ela também o quer!” Palavras vibraram-lhe no cérebro; aos poucos ele sentia a lucidez apagar-se.
“Não recueis, não cedais, mesmo no calor da batalha recorrei ao frescor das águas para obterdes a temperança.” Relembrando da advertência, ele fez hercúleo esforço sentando-se no chão, na postura do lótus. A mente fazia-se um turbilhão; trevas percorriam-na sem que nenhuma luz nesse momento a permeasse. Teve a sensação de voltar a um início, ao caos, onde um dia ali estivera, onde ouvira a sentença: Fiat Lux! Entretanto, ardia-lhe o desejo. Ao olhar para adiante, em meio aquelas engolfantes nuvens, pode ainda vislumbrar a perfeita silhueta da moça a mover-se com graça e desembaraço, posicionando-se como ele, quase o tocando nos joelhos. Fechou os olhos, tendo-a na retina, e buscou concentrar-se numa tentativa de socorro em seu próprio ego.
“Achamoth não conseguiu, sozinha, antepor-se às poderosas revoluções das trevas da matéria e precisou da ajuda do Demiurgo a fim de dominá-las! - palavras continuavam a ecoar-lhe no cérebro - Abrace-a, possua-a, ela está ao seu alcance, arde de desejo em ser possuída! Ela é seu universo feminino, o perfeito equilíbrio entre mente e emoção, corpo e alma, negativo e positivo. Achamoth desceu para também ser fecundada, não há outra via. Ela está na postura preferida dos deuses, onde todas as correntes universais clamam pelo intercurso das forças... Somente assim a luz se fará!”
A confusão mental e o caos emocional se misturavam. Não sabendo como agir, sentindo o arrebatante e envolvente desejo tomá-lo, ele ainda teve forças para emitir um grito ao Alto:
- Se há um Deus em mim, ajude-me!
Uma grande força então o arrancou daquele corpo e viu-se içado para uma região de rara beleza e puro energetismo. Próximo de onde estava, uma cachoeira quebrava cristalinas e espumantes águas desde grande altura, formando várias quedas sobre patamares. As margens do rio eram um gramado extremamente verde e homogêneo. Na verdade não eram unicamente margens, porém, na totalidade, imenso campo de verde pradaria, onde de qualquer ponto se poderia observar o claro e límpido horizonte.
Aquele panorama, amplo e aberto, provocou-lhe grande alívio e alargamento de seu córtex cerebral, afrouxando a contração de suas forças, produzindo-lhe, assim, novo estado d’alma. No entanto, os átomos mentais vibravam calor provocando emoção e ele procurou a margem do rio, junto à quebração das águas, saltando para larga pedra, voltando-se para a cachoeira, absorvendo de seu frescor. Ao mesmo tempo, recebia no corpo muitos respingos.
Sentindo-se definitivamente recuperado, volveu o corpo, pulando de volta para o gramado, percebendo diante de si uma presença. Era uma jovem, clara e bela, com longo vestido de fino tecido azul, ornado com uma flor branca na altura do coração e cingido com cinto de flores lilás. O cinto, suavemente ajustado, além de trazer visual de elegância e bom gosto, contribuía para acentuar-lhe as delicadas e perfeitas formas. Os cabelos, de um castanho claro, somente tocavam-lhe os ombros; os grandes olhos refletiam esta mesma tonalidade. Sorman contemplou-a, curioso, e ela falou-lhe com simpático sorriso:
- Um pouco mais e não conseguiria desvencilhar-se da terrível pressão exercida por ele. Mas aqui estará a salvo, restabelecendo-se para o retorno.
- Quem é você?
- Chamo-me Sara, fui convocada para vir recebê-lo, embora aqui você deva ficar somente por instantes. A luta continuará, não há como dela isentar-se a essa altura.
- Contra quem, verdadeiramente, luto?
Ela de novo sorriu com a mesma simpatia:
- Você sabe quem é seu adversário e opositor. É exatamente aquele elemental erigido há milênios. Foi necessário que ele de novo despertasse para litigar. Você vive Arjuna neste momento; a indesejável luta é vital para seus superiores propósitos. Nos mais críticos instantes lembre-se dos conselhos e exortações gravados em sua memória, pondo-os em prática, como o faz agora.
Uma súbita contração, um gemido; Sorman dobrou-se quebrando o segmento daquelas palavras.
- Sara - disse com dificuldade, ainda dobrado - ele revolve-se dentro de mim, mesmo aqui me tortura!
- É hora de voltar, não é possível segurá-lo por mais tempo - ela adiantou-se pousando a mão direita sobre a testa de Sorman, elevando a esquerda, aberta, lateralmente à face dele, como se amparasse invisível objeto - talvez uma ânfora com óleo perfumado, ou mesmo com água, - e decretou: - vá, irmão, pois jamais estará só!
No rápido regresso, o lúcido Eu de Sorman assumiu novamente a parte do tabernáculo onde a dramática luta acontecia. Entretanto, não havia superioridade àquela altura - a ninguém se desenhava vitória ou inconteste supremacia. Ambos os contendores haviam neste momento crescido, dimensionando-se mais além, antepondo-se como naturais opositores, como luz e sombra.
“Liberdade, vida!” - grunhia um.
“Morte, morte!” - respondia o outro. Seu corpo sofria transformações, convulsionava, tremia! Ele crispava as mãos, abria e fechava os olhos! A luta era dantesca, incrível, difícil de suportar.
À sua frente - não mais objeto da imediata tentação - Lucéa não sorria, nem estendia as mãos convidativas ao prazer. Ao contrário, em mesma postura do lótus, encerrara-se em si, fechara os olhos, apoiara os braços nas coxas, com mãos uma sobre a outra, junto ao baixo ventre, empertigara o tórax e jazia imóvel como bela e divina esfinge: ausentara-se também! Como nenhuma das frentes vencesse o embate, que permanecia dinamicamente sustentado, somente se prenunciaria a vitória quando as forças de um dos lados falissem. Longe ainda disto acontecer, uma sibilina palavra cruzou a mente de Sorman, fazendo-o inclinar-se ante seu significado. Armistício foi a palavra; logo uma série de rápidas conjeturas desencadeou-se em seus pensamentos e ele aquiesceu. Se era impossível vencê-lo agora, parecia haver sensatez na idéia. Então lhe fluíram palavras:
- Dar-lhe-ei a liberdade. Permitirei que a leve, tenha a vida que deseja, porém não comigo. Busque natureza afim, outro corpo; aja com a cumplicidade que se permitirem, mas não me envolva diretamente nisso. Ainda assim terei responsabilidade em seus atos - você é minha criação! E saiba que, a exemplo de um planeta gravitando em torno de seu sol, um dia retornará em definitivo ao seu lugar original, transformando-se em poeira. Assumo o risco porque o momento assim o requer, entretanto o vigiarei de longe, sem perdê-lo. Não devo permitir que cometa atos demasiadamente perniciosos contra os quais, depois, eu teria de lutar de maneira hercúlea para neutralizá-los dentro da lei de causa e efeito. Isto me obrigaria a experimentar grandes sofrimentos. Aceita, assim, este armistício?
“Aceito!” - a resposta foi imediata.
- Então, vá, deixe-me agora; leve a parte de mim que também é sua e não me roube mais desnecessariamente. Vá, filho de meus perversos pensamentos, produto do mundo e da ignóbil ilusão; viva a liberdade relativa, a vida sem sentido verdadeiro da qual é inseparável, pois lhe confesso: sou impotente agora para impedi-lo de viver em mim e por mim, mas ainda sou suficientemente forte e digno para não lhe permitir conduzir-me e guiar-me. Sei que antes do confronto final e definitivo voltará algumas vezes para de mim levar ainda, a cada vez, um pouco mais de meu “alento animi”, mas pronto estarei para este holocausto!
Um grande estremecimento deu-se em seu corpo; enorme dor atingiu-lhe o peito que pareceu fender-se se abrindo em dois, e sentiu-se dividir. Esvaiu-se quantidade do alento, um gemido angustiado passou entre os seus lábios semiabertos. Ele abriu os olhos ao máximo sem nada ver, contorceu-se e desfaleceu.
Quase como regra, Sorman recuperava a consciência longe do cenário onde um fato se consumava. Era alguma coisa surrealista; ele já não estranhava. Assim, acordou normalmente na cama da cela que lhe fora destinada e sentou-se. Pequena tonteira sobreveio-lhe; ele agarrou-se ao colchão iniciando respiratórios até que isto passasse. Olhando para adiante, viu sobre a mesa nova bandeja, nova taça e novo pergaminho; levantou-se e andou até lá, logo se sentando porque uma espécie de fraqueza o dominou fazendo-o sentir-se desalentado. Firmando as vistas com dificuldade notou que a taça continha líquido branco como leite. Ao lado da bandeja estava o pergaminho - um pouco maior e mais volumoso do que os anteriores - e pretendeu lê-lo antes de tudo, mas a cabeça mal se aguentava sobre os ombros; os olhos, vez por outra, viam formas manchadas, um tanto duplicadas. Resolveu que tomaria o líquido, e deslizou a mão em sua direção, tocando a taça com as pontas dos dedos. Mas temendo virá-la, e derramar o conteúdo, arcou-se e estendeu a outra mão amparando-a com maior segurança, trazendo-a aos lábios. Ela pesava-lhe, as mãos tremiam; com esforço, conseguiu sorver o líquido. Com dificuldade depositou a taça de volta à bandeja, virando-a por acidente, no mesmo instante em que seu queixo tocava-lhe o peito, perdendo os sentidos. Quando voltou a si, doía-lhe a nuca; ele moveu a cabeça para frente e para trás com movimentos lentos, depois com movimentos laterais. Inspirou e olhou para a mesa, tentando tomar consciência do que se passava.
Estava tudo como antes e empertigou o tórax, movimentando os braços como se remasse, puxando-os dobrados para trás. Tendo recuperado as energias, estendeu a mão para o pergaminho, trazendo-o para sob o rosto, abrindo-o. Sua fisionomia permaneceu inalterada enquanto lia a mensagem, cujo teor era o seguinte:
“Parabéns, neófito, você conseguiu. O valor de sua vitória vai mais além do que imagina; só os nobres se expõem a sacrifícios para alcançar sublimes glórias. A injunção dos desejos sob a capa da matéria foi grandemente superada nessa dimensão, porém, como sabe, desejos e matéria não estão suprimidos ainda na densidade revelada pelo ego personal. Tempos virão em que voltará a pelejar nesse mesmo elemento para novas e superiores conquistas. Por ora, as honras desta difícil vitória são todas suas. Algo, entretanto, está pendente. Abra o codificador na página 234, tome lá as referências, decifre o significado do símbolo diante de você. É conhecido desafio de realidade subjacente. Em tempo, a porta encontra-se aberta para o vencedor.”
Curioso, largou o pergaminho, estendendo as mãos para o codificador, abrindo-o na página indicada. Observando o friso, tomou o bloco e a caneta, fazendo anotações devidas. Depois, segurou o objeto, repassando os caracteres das três figuras para o papel, iniciando sua decifração. Sorriu quando percebeu, logo de início, o seu significado. A primeira figura, o cubo, dizia: De Onde Vim. A pirâmide: Quem Sou. A borboleta: Para Onde Vou. Realidade subjacente, pensou, começando a falar:
- Terra, ar, fogo, água, são os meus compostos; como o cubo, tenho quatro faces voltadas para a roda do universo, uma a mais apoiada na Terra e outra ainda voltada para o céu. Do barro meu corpo foi criado; mas muito antes de um corpo eu ter, já vim nascido da argila do Grande Artesão. Eis De Onde Vim, mas não quem sou. Quem sou então? Sou agora uma alma que se levanta da Terra, alicerçada pela sabedoria da experiência e santa busca consciente, lapidada nos quatro elementos que me constituem como as lisas faces e perfeitas arestas da pirâmide. Possuo ainda o conhecimento oculto de um quinto elemento, das leis da inércia e da ação rítmica inteligente. Sou sábio sobre a Terra, minha base é milenar. Com o extremo superior - a mente que domina e comanda o pensamento - busco tomar do infinito para poder elevar-me acima do giro sistemático das reencarnações. Meu coração está purificado. Mas Para Onde Vou? Como unidade nascida da Consciência do Criador, tendo remido a própria Alma, livre da atração da Terra, estarei voando de volta em direção ao Pai, para com Ele, bem mais acima, um dia fundir-me na forma de uma só e divina essência. A missão estará cumprida: O Criador em mim e eu Nele!
Seu rosto espelhava agora tranquilidade. Acabara a batalha, havia silêncio em seu íntimo; calara-se quem lhe exigira extrema agudeza de espírito, coragem e titânica determinação. Fechando o codificador, colocou-o sobre o livro hermético, levantando-se e se dirigindo para a porta. Andaria pelo corredor pela última vez, livre, liberto; mas como reagiria ao deparar-se de novo com aquelas estonteantes moças a convidá-lo a entrar? Assim pensativo, apoiou a mão no trinco e empurrou a porta.
Intensa e surpreendente luz banhou-o; ele levantou as mãos em ato reflexo, virando o rosto a fim de proteger os olhos. Em seguida, sem compreender o que acontecia, voltou novamente o rosto para adiante, fazendo tentativa de enxergar. Quando conseguiu, viu-se ante o belíssimo jardim onde ingressara ao chegar. Desconcertado, mas ao mesmo tempo animado, observou todas as direções, buscando testar a veracidade do momento, e notou haver especial colorido em tudo quanto ali existia. Todas as coisas irradiavam um tipo agradável de energia; esta energia penetrou-o, provocando-lhe uma sensação de integração. Esta integração anelava-se a idéia ou pensamento de que todas as coisas - aves e formas da natureza - estariam dentro dele, ao mesmo tempo fora; mas ele as tocava simultaneamente. A fantástica experiência viera apagar em definitivo o receio que se apossara de sua mente momentos antes de deixar a cela, quando pensara ingressar no corredor. E foi tomado de grande alegria!
Logo as três moças que o haviam conduzido até aqui de novo surgiram. Duas delas o cercaram enfiando em seus cabelos uma coroa de louros, enquanto a terceira jogava-lhe pétalas de flores. Depois cantaram e dançaram. Finda a breve e simples homenagem, iniciaram a jornada de retorno, pulando dentro do lago.
Após deixarem-no na pequena praia próximo das cavernas, se despedirem bailando e desaparecerem na penumbra, ele experimentaria, além da alegria, indescritível leveza. Provar-se e martirizar-se fora o preço. Não obstante, após o descarte da energia mal qualificada de que era portador, detinha neste momento a inefável vida que lhe fora insuflada - este era o grande prêmio!
Assim, tomado de indizíveis vibrações, começou a subir a escarpa, notando a claridade se acentuar e o brilho da lua enfraquecer. Sob as cintilações dos astros no firmamento - entre o negro e o lusco-fusco - envolto ao estereótipo das ondas, chegou ao ápice da escarpa cruzando pelas formações rochosas, vindo alcançar a borda do alcantil onde antes fora deixado. Mal isto se dava, súbita luz explodia diante de seus olhos, formando um grande cogumelo que se abria, deixando entrever uma forma dourada, bela e angelical.
- Ratziel?! - inquiriu em dúvida.
- Sim, neófito, novamente transformado; feliz por seu momento vitorioso. Venho para levá-lo de volta ao lar temporal!
Abrindo os braços em luzes, o divino ser atraiu-o para si fazendo-o flutuar, e partiram do lugar. Pouco depois amanhecia. Ao acordar, Sorman sentia-se leve e feliz, indo de imediato ao armário para pegar o livro. Mas o relato, desta feita, não retratava a íntegra de suas experiências. Na verdade, grande parte fora suprimida, não havendo referência ao que se passara na cela ou contra o quê houvera lutado. Decepcionado, guardou o livro e se preparou para vivenciar mais um dia, trazendo na memória subconsciente, uma síntese do que conquistara.
CAPÍTULO VII
A PROVA DA TERRA
"Tenho mil formas - profetas já me descreveram - carrego todos os males. Derrotei exércitos e crucifiquei deuses dos idólatras. Ninguém me engana, um só dos humanos. Sou terrível, não tenho alma, sou da terra da qual foi feito Adão e sua descendência. Eis quem sou e a quem ousastes chamar para desafiar. Vencei-me ou morrei!"
Cansado de apreciar o panorama que pouco variava, Sorman recostou a cabeça junto ao alisar da janela, na envernizada madeira, e fechou os olhos. Estando os sentidos relaxados, os ruídos externos, em ritmo sempre constante, chegavam-lhe ao cérebro de forma quase hipnótica como numa indução ou num convite ao descanso e ao próprio sono. Vez por outra o apito, o percurso de longa e sinuosa curva, a escalada de um aclive, a largada mais veloz e solta numa descida, a redução na velocidade. Assim ia o trem sob uma cortina de sombras que se acentuava, ora cortando montes, ora rasgando verdes ou inóspitos campos.
Uma forte mão sacudiu-o pelo ombro, fazendo-o acordar assustado: desnecessário ato, pois a estridente voz seria mais do que a conta:
- Estação, hora de descer! O agente, vendo-o abrir os olhos, deixou-o, desaparecendo através do vão da porta. Sorman, passageiro único naquele vagão, apressou-se em sair.
Da plataforma da estação para a rua foi rápido. Anoitecera, fina e azulada névoa descia se espalhando por tudo e enquanto andava Sorman sentia ter recuado no tempo. Ao lembrar-se de que devia procurar um senhor Germano enfiou a mão no bolso e retirou um pedaço de papel, aproximando-se de um dos postes onde ardia lampião a óleo de mortiça luz, relendo o endereço: Rua Oeste, l33. Procurando orientar-se conseguiu ver pequena e retangular placa de madeira, quase a despencar do liso e fino tronco de pequena árvore marginal, lendo os nomes em letras já escurecidas, sulcados à ponta de algum instrumento de metal: Avenida Saturno.
O ruído de cascos em trote, ecoando dos paralelepípedos, o fez voltar-se e ver saindo das brumas pequena carruagem puxada por único e negro cavalo que se deslocava no mesmo sentido de seus passos, e correu para o meio da rua.
- Senhor!! - gritou para o cocheiro, fazendo sinal com a mão para que parasse. O cocheiro imediatamente puxou as rédeas estancando o carro de súbito, olhando-o com reprovação, o admoestando:
- Quase o atropelo, jovem, que atitude tola!
- Queira desculpar-me, mas necessito de uma informação. Onde fica a Rua Oeste?
O cocheiro olhou-o fixamente, franzindo a testa, enquanto o animal espirrava e repuxava as rédeas, agora mais frouxas às mãos do condutor.
- Rua Oeste? - repetiu como se não houvesse entendido.
- Sim, Rua Oeste!
- Você não é daqui? - perguntou o óbvio.
- Acabo de chegar, procuro um senhor Germano, conhece-o?
- Germano Matheus, sim o conheço, é no número l33. A Rua Oeste fica a oito quadras daqui. – apontou para adiante.
- Grato senhor; desculpe-me pela inconveniência. Sorman se afastou.
- As quadras aqui são grandes! - ele falou alto, Sorman parou, voltando-se,
- Quanto terei de andar?
- Mil e seiscentos metros, exatamente, até o cruzamento da Rua Oeste, depois mais cento e cinquenta metros até o número l33.
- Grato uma vez mais - falou reiniciando os passos sobre a estreita calçada. Mais adiante a carruagem emparelhava-se a ele e parava.
- Suba, vou levá-lo! - ordenou o homem.
- Não tenho dinheiro para pagá-lo, senhor.
- Dou-lhe uma carona!
O cocheiro pulou da boleia e abriu a porta, fazendo vênia com a cartola à mão, trazida contra o peito, curvando-se e mostrando sua completa calvície. Agora que descera, era possível ver, precisamente, sua grande estatura e o corpo magro, meio desajeitado, vestido de negro dos pés à cabeça. Mediante o convite, Sorman entrou e sentou-se, tendo a sensação de que ingressava num carro fúnebre. A porta foi fechada; o cocheiro retomou o seu lugar e a escura carruagem arrancou, envolta pela névoa que em poucos minutos se tornara mais densa.
Nem bem o veículo iniciava o trajeto, o cocheiro começou a assobiar e a cantar estranha melodia. Era um canto monótono, cujas palavras diziam de uma viagem em solidão e da dor de viver. O animal trotava obedientemente; o ruído provocado por seus cascos no silêncio da escura e deserta avenida casava-se perfeitamente com a rouca voz do cantor, tornando tudo sombrio e quase lúgubre.
Procurando se desligar da bizarrice, Sorman puxou a cortina abrindo um vão na pequena janela, na tentativa de observar. Não havia vidros e uma porção da névoa penetrou no carro, tocando-lhe o rosto. Apesar do véu, seu olhar alcançava espaços e conseguia enxergar com relativa nitidez, tanto quanto a bruxuleante luz dos lampiões lhe consentia. Mas não via viva alma; somente prédios, sobrados, parecendo inabitados. O cocheiro agora não cantava, murmurava a melodia, não se furtando em emitir prolongados solfejos, como a interpretar lamento e dor.
Ao cabo de alguns minutos, em que o cenário era o mesmo, a carruagem guinou para a direita, entrando por rua estreita. Sorman concluiu que seria a Rua Oeste. Com efeito, logo a carruagem estacionava; o cocheiro abria-lhe a porta com a vênia de há pouco, e ele descia olhando o prédio em frente, procurando o número.
- Do outro lado da rua! Números ímpares são sempre à esquerda! - disse o homem, enfaticamente, esboçando irônico sorriso. Sorman meneou afirmativamente a cabeça atravessando diante do animal, enquanto o cocheiro rapidamente fechava a porta retornando a boleia. Antes mesmo de o jovem atingir a proximidade dos três degraus, antecedentes a entrada do l33, ele de novo tirava a cartola e falava:
- Espero que encontre o que veio buscar, adeus!
- Adeus e muito obrigado pela ajuda, senhor...?
- Ackreonte!
A carruagem desapareceu sob o nevoeiro. Sorman subindo dois degraus segurou a aldrava de cobre esmaecido e bateu três vezes. Após instantes, uma tênue claridade crescia debaixo da porta e o abafado ruído de passos aumentava. Finalmente a porta abriu-se, surgindo um homem.
- Senhor Germano?
- Sim, que deseja?
- Meu nome é Sorman, indicaram-me para que o procurasse.
- Quem?
- Não sei, exatamente, entregaram-me este bilhete.
Sorman sacou-o do bolso e o estendeu. Germano examinou-o rapidamente, parecendo reconhecer a caligrafia, devolvendo-o e abrindo largo sorriso.
- Sorman..., disse?
- Sim, senhor!
- Entre, esteja à vontade!
Germano não era muito alto. Um tanto gordo, de rosto claro e simpático, cabelos quase completamente encanecidos, cheios como os de certos poetas, vestia calças negras justas com largo cinto, camisa branca folgada de punhos longos, e botas pretas de meio cano afiveladas nas laterais com peças prateadas. Trazia dependurado em torno do pescoço corrente de ouro que sustentava largo medalhão, também de ouro, que lhe pendia na altura do peito e em cuja face viam-se gravados signos cabalísticos. Neste instante, levantava o lampião pouco abaixo do rosto, buscando atrair melhor iluminação.
Sorman adentrou, parando a dois passos. Após fechar a porta, Germano veio em sua direção puxando da perna esquerda endurecida, e o conduziu da antessala para um salão, até ampla mesa cercada por meia dúzia de cadeiras. Sentando-se numa das cabeceiras, ofereceu-lhe a cadeira mais próxima, colocando o lampião sobre a mesa, estendendo os braços à frente, entrelaçando suavemente as pontas dos dedos. O também largo anel de ouro, tendo na sua coroa bela safira e novas inscrições cabalísticas, foi pela primeira vez notado pelo jovem.
- Você, certamente, jamais ouviu falar de mim?
- Não, senhor!
- Sou o que chamam um cabalista prático e não costumo aceitar discípulos.
- Eu... - Sorman desejou falar, mas ele fez sinal com a mão aberta, pedindo-lhe aguardar, prosseguindo:
- No entanto, honra-me muito atender pedidos de meus superiores no que concerne aos desafios que os candidatos se proponham vencer. Isto, ultimamente, vem se tornando cada vez mais raro. A mim me parece faltarem novos talentos no mundo; neófitos preferem filosofar e meditar a aterem-se ao conhecimento concreto dos elementos, provando-se senhores. Reconheço, contudo, tratar-se de situações realmente difíceis que, nesta segunda opção, exigirão tenaz vontade e muita coragem, coisas que ninguém obtém gratuitamente, a não ser extraindo-as do próprio íntimo sob grande tensão. Você não deve saber conscientemente o que lhe espera, nem ao certo como aqui chegou. Mas é direito seu ser informado neste momento, em certa medida, daquilo com o que se haverá - ele parou como a aguardar qualquer comentário, que não aconteceu, completando - é hora de se decidir; desejando desistir, faça-o antes do início! - ele ajeitou-se na cadeira encostando-se no grande espaldar e o medalhão em seu peito rebrilhou sob a luz. Após rápido silêncio, Sorman perguntou:
- Em que nível estas provas se darão, o que precisarei vencer?
- O termo provas, para mim, não é adequado nesta situação. O que acontece com o candidato à iniciação neste teor não é exatamente um exame, como você já deve ter conhecimento após haver passado por outras experiências. Evidentemente não lhe posso adiantar o que enfrentará, nem quanto precisará ousar, pois o futuro não é tão previsível, tão claro ou óbvio que antecipadamente já o saibamos. Todavia, tanto mais haja o candidato se superado no passado, as situações presentes tenderão a se apresentar mais sutis. Argúcia, rapidez de raciocínio, coragem, fé, vontade, etc., serão necessariamente armas, embora, permita-me enfatizar, situações concretas e palpáveis se apresentarão em que o tato, a reflexão, a sensatez devam se evidenciar. Uma coisa, porém, posso adiantar-lhe: o passado retornará!
Sorman que já tivera a impressão de estar retrocedendo no tempo, não se impressionou com esta última afirmativa. Ademais, nada o assustara até o instante e as palavras de seu interlocutor não conseguiam motivar-lhe ou produzir excitação mental. Entretanto, sentia que seu corpo vinha se tornado mais sólido, pois os movimentos estavam mais pesados, diferentes em muito da leveza experimentada nos planos onde estivera antes. Não tendo mais nada a perguntar, calou-se e aguardou. Germano, então, retomou a palavra:
- Bem, entendo que você de fato pretende se submeter ao que falamos?
- Sim, pretendo!
- Muito bem. Deixe-me então levá-lo inicialmente ao seu aposento, onde poderá descansar. Sorman não estava cansado, mas não quis mudar a rotina de seu anfitrião; assim nada falou, aceitando a hospedagem.
O quarto era pequeno; havia cama, armário, secretária e uma cadeira. A janela encontrava-se fechada; Germano acendeu o lampião na parede, ali o deixando, retirando-se em seguida. Sentado na cama Sorman não sabia o que fazer. Inquieto, levantou-se, resolvendo abrir a janela. Como fosse noite e o nevoeiro continuasse denso, quase nada conseguia enxergar. Assim, buscou o lampião, trazendo-o para o parapeito, procurando divisar através das brumas. Mas sob a fraca luz, sombras se projetavam e podia somente discernir uma árvore mais próxima. O quarto era de fundo. Um sopro frio veio tocar-lhe o corpo; ele fechou a janela, colocando o lampião na secretária, espichando-se na cama. Quando começava a cochilar, acordou de súbito com três fortes pancadas na porta que o sacudiram.
- Entre! - ordenou sentando-se, imaginando tratar-se de Germano. Mas Germano não entrou e ele se levantou indo abrir a porta.
Não havia ninguém; após verificar com mais atenção retornou para a cama em dúvida se houvera escutado ou se sonhara. Deitou-se novamente e mal colocava a cabeça no travesseiro ouviu novas e fortes pancadas, pondo-se de pé, alcançando a porta num abrir e fechar de olhos. De novo não havia ninguém e fechou a porta, deixando a mão na maçaneta em posição de abri-la imediatamente. Novas pancadas aconteceram, mas percebeu-as no próprio quarto, dentro do armário, a dois passos de onde se encontrava. Aproximando-se, posicionou-se diante de ambas as portas, abrindo-as num só tempo. Nova surpresa: o armário estava completamente vazio, não existindo nem cabides, prateleiras ou gavetas; era um grande caixote sem absolutamente nada no seu interior.
Aquilo não era normal e voltou para buscar o lampião a fim de obter melhor claridade; após, pisou levemente a base do armário, mantendo um pé fora, temendo que fosse um alçapão. Aos poucos foi se sentindo mais confiante, acabando por entrar com os dois pés sem que nada acontecesse, passando, assim, a examinar tudo detidamente. Ao bater com os nós dos dedos contra a madeira do fundo percebeu um som diferente que se perdia no vazio, tendo a certeza do que suspeitava. Colocando o lampião no chão forçou a madeira, vendo-a mover-se e abrir uma porta, entrevendo, dentre sombras, uma escadaria em descenso. Novamente lançando mão do lampião resolveu descer.
À medida que descia foi vendo candeeiros presos às paredes - três ao todo - acendendo-os, até que chegou num patamar onde encontrou uma porta, abrindo-a cuidadosamente. Deparou-se, então, com uma espécie de porão. O baixo teto mostrava as vigas paralelas de sustentação, em espaços exatamente iguais. As vigas, apesar de velhas e descoloridas, eram sólidas; Sorman contou-as dando a cifra de sete. Um pensamento fluiu-lhe ao cérebro enquanto contava: “sete vigas de sustentação, sete vias sob alas; a solidez da matéria cujas leis são imutáveis. O homem sobrepondo-se aos elementos; um sobre quatro, sete sob cinco - o reinado no mundo; o reflexo cósmico aprisionado e operativo. A justeza, a razão, a coroa, os limites do horizonte”
Nada havia no lugar, o mofo ressentia; após a última viga, o porão até então quadrangular, afunilava; as paredes terminavam obliquamente, encontrando-se numa aresta onde um vão estreito e alto indicava a saída. Neste ponto, a geometria do desenho convergia suas linhas para a configuração de um pentágono. Sem hesitar, ele entrou pelo vão, vindo se colocar num estreito corredor de altas e lisas paredes, por onde somente era possível passar um corpo de cada vez. Pouco adiante, uma cortina de vento o surpreendeu, apagando a chama do lampião; ele o largou prosseguindo na escuridão. Esse fato evocou-lhe a lembrança de sua primeira experiência, quando ingressara também por escuro corredor. Após caminhar retamente por vários minutos, sem que nada acontecesse, notou ao longe lampejos de luz seguidos de fracos reflexos, apressando-se com maior ânimo. Logo verificou tratar-se de uma tocha presa numa das paredes ante um portal. Encimando o portal e em torno dele, como numa moldura, havia inscrições cabalísticas feitas em peças de ouro que rebrilhavam. Sorman retirou a tocha do suporte, aproximando-a, mas reconheceu a impossibilidade de traduzir as inscrições, resolvendo cruzar logo o portal. Ao transpô-lo, um instinto o fez olhar para trás, vendo neste lado novas inscrições, dizendo em palavras: “águia, touro, leão, homem - viajante, liberte-se pelo saber!”
- Dogmáticas ou instigantes? - inquiriu-se o jovem, referindo-se naturalmente às palavras.
Prosseguindo, notou que o corredor por onde ingressara tornava-se mais estreito. Poucos metros à frente, viu novas palavras na parede esquerda e conduziu a tocha diante delas, lendo-as. Diziam: “Jamais permita a Luz se extinguir. Caminhe no mais árido deserto, afunde no mais horrível pântano, rasteje na mais ressequida terra; a Luz é sua única salvação!”.
Mais adiante sentiu que andava sobre uma espécie de rampa; a medida que avançava, ela se inclinava cada vez mais e procurou se apoiar numa das paredes, mas acabou escorregando, quase caiu, e terminou com os pés mergulhados em água. Ante o inesperado, baixou a tocha e examinou o local, vendo que estava no interior de um canal. O canal era a única opção de passagem, assim foi em frente. A água que batia em seus tornozelos chegou às canelas; de repente, numa depressão, atingiu os joelhos. Ele hesitou e parou para pensar. Jamais voltara em caminhos de provas, mas admitia precisar redobrar a atenção e ter muita cautela, pois não tinha a menor idéia do que agora encontraria, resolvendo, assim, continuar. E não poderia mesmo tomar outra decisão porque, escutando atrás um ruído, voltou-se e estendeu o braço alumiando o trecho, horrorizando-se com o que viu.
- Meu Deus! - exclamou se virando e procurando fugir de enorme crocodilo que se aproximava. Mas como num pesadelo de perseguição, a água provocava resistência e seus pés pareciam estar presos. O crocodilo, ao contrário, nadava com desenvoltura, vindo rapidamente ao seu encalço. E tanto mais se esforçava por escapar, tanto mais o crocodilo se aproximava. Então, o horrível réptil abriu sua enorme boca a fim de apanhá-lo e ele anteviu o inevitável.
Todavia, ao dar um passo a mais afundou num lodo, ficando imerso até a altura do coração, tendo, por reflexo, a idéia de manter os braços levantados, conservando assim a tocha acesa. O lodo era fino, o que lhe proporcionava poder movimentar-se com relativo desembaraço e ele girou a tocha de um lado para o outro, a fim de orientar-se. Mas, desolado, somente via o negro lodo, como um pântano sem fim, e procurou afastar-se dali, preocupado ainda com o crocodilo, ouvindo quase de imediato um mergulho, denotando o deslocamento do lodo.
Poucos passos conseguira dar notou adiante, a dois metros de onde estava, o lodo mover-se, ondular e provocar pequenas borbulhas. Aterrorizado, ficou imóvel, imaginando que caso o réptil subisse, enfiaria a tocha no lodo buscando escapar na escuridão. Com sorte não seria esbarrado, assim também não localizado.
“A Luz é sua única salvação!”, veio-lhe à mente este tipo de alerta.
- Jamais permita a Luz se extinguir! - murmurou como a desejar apoiar-se nesta oportuna afirmativa e ver-se livre do perigo.
Mas não houve mais tempo para outras ilações, pois o crocodilo emergiu à sua frente e avançou. Sorman procurou recuar e assustá-lo, movendo a tocha em sua direção, porém inutilmente. Ele chegou mais abrindo sua voraz boca. Sorman decidiu enfiar-lhe a tocha boca adentro e lutar como pudesse. Morreria sem se entregar, heroicamente, até onde fosse possível. E preparou-se para este desfecho.
“Lux Est Supremus!”, uma voz sussurrou-lhe. Ele repetiu as palavras em voz alta, como estoico salmo de despedida e morte. Porém, surpresa! O crocodilo mergulhou dando uma cambalhota de volta e se foi batendo em retirada, sem ao menos ter lutado. Rindo aliviado, Sorman foi em frente, andando vários metros, até notar que uma estaca e mais outra sinalizavam a provável saída; logo pisou terra firme, sujo e feliz!
Ingressando noutro corredor mais adiante, ele chegou a uma câmara antecedida por outro portal, desta feita mais largo e branco, onde um par de pequenas piras, sobre bases de ferro, ardiam em ambos os lados, proporcionando boa claridade. No alto do portal, no centro, em relevo, coberto por metal de aço, rebrilhava o símbolo de um pentagrama com hastes entrelaçadas. Em cada uma de suas pontas bem como nos intervalos entre uma ponta e outra, havia um diferente caracter da escrita cabalística feito em peça do mesmo metal da figura principal. Em cada extremo superior do portal via-se, em perfeita simetria e réplica, uma grande asa azul como a pretender unir-se à outra do lado oposto e alçar voo com o pentagrama; portanto, embora afastadas, formavam um perfeito par de asas. Sorman examinou atentamente o símbolo, e, como sugerido pelo próprio relevo, sentiu-o desdobrar-se e se projetar, vindo em sua direção, tomando forma reduzida, entrando-lhe no meio da testa. Sua mente foi de imediato invadida de um torpor e o corpo de um estremecimento. Sem se deixar impressionar, cruzou o umbral, vendo-se numa larga galeria iluminada em toda a sua extensão por dezenas de tochas espalhadas em ambas as paredes de pedra.
Indo em frente sem nada encontrar, chegou num ponto onde as tochas terminavam. Dali em diante havia escuridão, que era somente interrompida, mais ao longe, por um tipo de cripta, onde outras tochas ardiam e qualquer coisa a mais existia. Porém, de repente, a tocha que segurava oscilou e a chama se extinguiu. Decepcionado, uma vez que não devia permitir à luz se apagar, ele teve a idéia de voltar e tomar outra tocha, daquelas que iluminavam a galeria, mas não pôde. Uma gigantesca aparição se colocou na saída da galeria. Tinha a cabeça de águia, o tronco nu de homem, e cobria a parte baixa com penas na forma de um saiote. De pernas abertas e braços cruzados, obstava a passagem de volta. Teria, talvez, dois metros de altura, sendo muito forte.
O estranho e híbrido ser fez um único movimento, estendendo um dos braços e apontando para adiante, convencendo o jovem a não tentar retroceder. Sem desejar enfrentá-lo, Sorman volveu o corpo retomando os passos, penetrando cada vez mais naquele trecho escuro. Quando estava próximo da cripta, já recebendo alguma claridade em seu corpo, viu-se cercado por horrendas criaturas de aparência meio humana, meio animalesca, que procuravam cerceá-lo, e parou, não podendo prosseguir. Elas pretenderam investir e atacá-lo. Sorman, embora na defensiva, preparou-se para contra-atacar, sem mesmo saber como. No momento em que a situação ficava mais crítica, veio-lhe a mente o símbolo do pentagrama do portal da galeria e concentrou-se na sua figura. Como resultado, viu-o projetar-se e pairar na escuridão, emitindo luz e energia em derredor. Em vista disto, as criaturas, temerosas, correram espavoridas, indo se esconder em pequenas cavernas ou nas profundas reentrâncias das paredes. Sem mais prender-se, Sorman apressou-se e ingressou na cripta.
A cripta era um lugar especial. Continha, além de archotes de ferro a iluminá-la, um túmulo de pedras. No chão, junto cabeceira do túmulo e ao pé, viam-se potes de barro - um em cada extremidade. Havia também inscrições num dos lados do túmulo, com símbolos cabalísticos. Sorman aproximou-se. O túmulo estava fechado com uma tampa de ferro, nela liam-se as seguintes palavras:
“Abra-o e contemplará o futuro!”.
A tampa continha muitos sinais de corrosão. Sorman segurou-a pela alça, levantando-a sob rangidos, deixando-a aberta e retida no apoio de grossas argolas das dobradiças. Olhando para o interior do túmulo contemplou com desagrado o que se anunciava. Deitado, jazia um esqueleto vestido de negro, segurando um alfanje, que apoiava num dos ombros. Palavras vieram-lhe novamente ao cérebro: “Lembre-se de que nenhum mortal, mesmo no auge de terrenas glórias, deixou jamais de cumprir aos desígnios do tempo. Mas ao neófito se requer morrer antes de viver... A escolha é somente sua!”.
Sorman fechou a tampa do túmulo e andou até seu pé, inclinando-se a fim de examinar o negro pote de barro, notando-o vazio. Foi então até a cabeceira e olhou no interior do outro, o branco, vendo nele água até sua metade.
- A vida parte, o corpo se esvazia, nada mais existe, somente sombra. Mas a alma não se dissolve, deixa sempre um quantum de sua essência no corpo sutil para mais tarde reiniciar o ciclo da terra. Então virá mergulhar em nova e tênue semente que germinará para outras experiências - falou tomado de súbita emoção.
Retomando os passos, deparou-se a três metros com nova e estreitíssima passagem e desejou recuar. Já não tinha a tocha em mão, não podendo sequer ver onde pisaria. Hesitou, mas logo decidiu ir em frente até onde fosse possível e não tentaria qualquer outro esforço heroico. Assim, entrou e foi caminhando lentamente na escuridão. Vez por outra tocava com os ombros nas paredes: ora em pedra, ora em barro; sentia o cheiro de umidade e nalguns trechos seus pés pisavam poças d’água - porém nada via. Adiante a passagem era iluminada por archotes nas paredes, facilitando seu deslocamento. Quando a passagem terminou, viu-se numa área um pouco larga e circular, que tinha um pequeno portal de pouca altura. Seria necessário dobrar-se para conseguir passar; assim ele fez, vindo encontrar novo espaço, como um salão, onde existiam dois outros portais maiores e, entre ambos, um nicho contendo alguns objetos. Havia claridade emitida por tochas e uma abertura ao alto, rigorosamente retangular, por onde era possível olhar o exterior, que neste momento estava tomado por névoa. Ele aproximou-se do nicho vendo um pergaminho enrolado e atado por um cordel ao lado de uma algibeira fechada, também de couro, uma garrafa de vinho tinto e dois cálices. Já acostumado com pergaminhos, ele estendeu a mão e o tomou, desfazendo o laço que o atava, abrindo-o e começando a lê-lo:
“Neófito, aqui você chegou não por obra do acaso. Deixou atrás de si etapas vencidas, que foram preparadas criteriosamente, cujos significados são de sua própria trajetória de obreiro e discípulo menor do passado. Foi e é necessário ainda um retrospecto, uma recordação a alma, uma objetiva apropriação de como se desenrolam etapas da dramática peregrinação daquele que se lança a conquistar, após calcar-se na experiência palpável, - básica para se reinar no mundo dos desejos e emoções exacerbadas. Sua alma mortal viaja nas dobras do passado detendo na memória fatos, os quais, em circunstâncias outras como vivência, houve de conquistar, e que o espírito definitiva e impassivelmente guarda e possui. Não notou quanto de coragem e determinação teve de usar para prosseguir? Desceu ao mundo inferior penetrando labirintos de seu próprio ser, na certeza de auto eliminar entraves e fraquezas. Após o primeiro portal - marco de sua primeira iniciação - já houvera passado pelo ar que lhe apagara a chama, obtendo depois do fogo a permissão de novamente portá-lo. Em seguida a água, onde não temeu andar, a impureza da lama, o perigo real do crocodilo da concupiscência que lhe devoraria os valores já conquistados! A luz venceu salvando-o! Veio a sabedoria dos antigos, a presença da cabala, a magia, - o portal de sua segunda iniciação. Nessa fase o mago domina os elementos, porém até quando ou quanto?
Um dia a gloriosa luz se apagou, e, dela desnudo, o iniciado precisou novamente andar na escuridão para experimentar outras verdades encobertas pela capa da matéria. Mas sobrou-lhe a força inerente, a magia outrora conquistada dos elementos que necessariamente, - como realizado mentalmente com o pentagrama, - a usou contra as formas horrendas das sombras. Em seguida, a necessidade de novamente desapegar-se dos poderes desta mesma magia. E você reiniciou os passos rumo a outras experiências. Na vida do iniciado é necessário, sempre, desapegar-se para de novo conquistar, morrer para renascer. O iniciado do passado é sempre um neófito diante da sabedoria do presente. Eis porque contemplou a morte na especial cripta ardente - porque ela ali precisa estar. É morrer para conquistar. O estreito e escuro caminho que palmilhou em seguida é a flagelação, o período de trevas do qual falei há pouco, mas desta feita num ponto evolutivo mais alto do que o anterior. Nesse estágio não há luzes, nem intuições ou indicações - somente a fé pode conduzi-lo adiante. Homem ame a vida desconhecida! E você chegou novamente na luz, onde pôde reorientar-se e estar diante de novos mistérios, tendo de dobrar-se para poder passar pelo portal mais largo. É a humildade do iniciado que se inclina ante a superior sabedoria.
Ei-lo, pois, diante dos dois outros portais. Não notou ainda o que está assente sobre eles? Pois vá até o portal da direita e veja o que o encima, depois o outro...
Sorman levantou os olhos observando o local mencionado, nada vendo. Caminhou, então, até mais próximo descobrindo qualquer coisa encoberta, esticando-se e passando a mão. A poeira que ali existia foi se soltando surgindo um símbolo pintado em cor branca, um Alpha e mais outro, um Aleph. Fazendo o mesmo no portal da esquerda, viu outro símbolo em cor negra, um Ômega, e outro, um Tau Voltando ao pergaminho, retomou a leitura: ... não poderá, neófito, entrar por qualquer dos portais sem antes firmar um compromisso. Estará, assim, diante do desconhecido, ao qual somente os fortes e destemidos podem contemplar, onde vida e morte reúnem-se para zombar dos néscios, pusilânimes e adoradores. Para esses, contemplá-lo é sinal de loucura e morte, por isso conscientemente não ousam. Mesmo fortes tremeram ante sua aterradora presença e ao se acovardarem, viram-se arremessados aos infernos e despedaçados.
Ao alto vê uma abertura - a única saída para quem não deseja continuar. É a saída honrosa. Coloque-se debaixo dela e aguarde. Uma corda lhe será lançada e mãos a puxarão içando-o, se a ela segurar-se. Estará, pois, encerrada a sua caminhada. Não se sinta, entretanto, abatido se esta for a sua escolha: outros já a fizeram antes. Porém, se desejar ir em frente, vá até o nicho, tome a pequena algibeira de couro e lance um punhado de seu conteúdo no ar!”.
Sorman enviou o olhar para a abertura, vendo através dela o espaço nebuloso e baixou o rosto mirando os dois portais. Enquanto fazia isto, rolava o pergaminho nas mãos. Porém não demorou a se decidir: andou até o nicho, largando lá o pergaminho e tomou a pequena algibeira de couro. Era marrom e macia e voltou três passos.
- O que tem de ser, será! - afirmou sem aparente emoção, desenrolando o cordel, enfiando-lhe os dedos e folgando-a. A seguir, derramou um pouco do que ela continha numa das mãos - terra preta - e lançou-a no ar.
Nada aconteceu de imediato. Passados poucos minutos, inquieto, começou a imaginar que aquilo se tratava, unicamente, de mero simbolismo. Eis, porém, que do chão se levanta escura nuvem, como emergindo das profundezas da terra e passa a tomar forma. Tinha, aproximadamente, dois metros de altura; ao conformar-se em definitivo materializou-se num ser envolto por negro manto. Abraçava-se apertadamente contra o peito, encurvando-se como ave de rapina, cuja retração significaria a tomada de forças para um salto fatal. Ficara de perfil para Sorman, mas neste momento se voltava lentamente, encarando-o com diabólico sorriso, portando no olhar estranho brilho. O negro semblante era indescritível, porém sua imagem penetrava na alma causando calafrios. Assustado, Sorman recuou um passo e ele, lentamente ainda, com o mesmo sorriso nos lábios, foi assumindo postura mais altiva, elevando o rosto e empertigando o tórax. Descruzava os braços e abria-os como se desejasse voar. Neste instante, Sorman viu em seu capuz a palavra MORTE, e nas faces interiores do manto, muitos signos e figuras. Repelente odor emanou dele; o jovem começou a tossir e lacrimejar. Senhor e dominador, o ser falou:
- Insensato, por que me chamastes? Tenho comigo todas as pestes e ignomínias. Sou sábio e justiceiro, trago em mim a morte. Desafiai-me, mortal, sem ao menos saber que possuo a idade de todas as eras; aos incautos venci e venci, arremessando-os aos infernos, despedaçando-os como os abutres despedaçaram as entranhas do infeliz Prometeu - e eu ali estava!
Assim fiz e tal farei, pois sou o limite exato entre o passado e o presente e por mim somente passará quem de fato vencer-me - um a cada vez!
Dizendo isto andou dois passos em direção a Sorman e ante esta proximidade ele foi assaltado de profundo terror. O ser, percebendo isto, sorriu mais intensamente e continuou - sereis presa fácil de vossa própria fragilidade: tomar-vos-ei cativo e vos arrebatarei deste mundo para sempre! - e estendeu a mão esquerda sobre o jovem, buscando atrair-lhe. Sorman titubeou, sentindo a lucidez ir se apagando, porém reagiu, negando-se a se entregar sem luta, concentrando todas as suas energias em seu próprio íntimo. As forças cresceram, o terror se foi e conseguiu dominar-se. O ser então voltou à sua postura inicial rindo estrepitosamente, falando após: - coragem, desafiante, coragem para tentar, mas nada conseguistes ainda, estamos somente começando. Dir-vos-ei então mais de mim: sou aquele que esteve sempre à sombra dos mistérios do passado, desde o mais remoto. Destruí, sempre, sorri dos falsos e prevariquei da sabedoria. Nenhum rei imperou sem a minha presença. Templo algum foi construído para sua própria glória, sem que eu ali não estivesse. Fui, sou e serei a porta pela qual os após libertos foram obrigados a cruzar. Muitas eras de humanas conquistas já se foram, sinais de suas passagens se apagaram: o mar os lavou, a areia os soterrou e a poeira não mais encontra formas para nelas assentar-se. Mas eu aqui estou, redivivo, sempre presente - jamais parti, jamais morri! Vi Antúlio na Atlântida, os precursores da Caldéia, os antepassados de Platão. Assisti a esfinge surgir, devorar e ser morta - o Nilo nascer, secar e de novo mover águas. Lá continuo a existir e aqui me apresento. Tenho mil formas - profetas já me descreveram - carrego todos os males. Derrotei exércitos e crucifiquei deuses dos idólatras. Ninguém me engana, um só dos humanos! Sou terrível, não tenho alma, sou da terra da qual foi feito Adão e sua descendência. Eis quem sou e a quem ousastes chamar para desafiar. Vencei-me ou morrei!
Sorman de novo tremeu. O impacto daquelas revelações o atingiu, colocando-o conscientemente diante do maior dos desafios, o mais angustiante obstáculo e o mais aterrador dilema. O sobrenatural ser prosseguiu:
- Julgai, pois, vencer-me pelo fato de aqui ter chegado? Nada sabeis de si próprio, mas eu sei. Conheço-vos desde imemoriais tempos e tenho-vos guardado aqui dentro de mim!
- Prove-o! - desafiou-o finalmente Sorman, recuperando-se. O ser de novo riu com estardalhaço.
- Pois bem, provarei - disse dando dois passos para trás, sem tirar os olhos de Sorman, ficando diante do portal da esquerda, levantando um dos braços retamente, até a altura do ombro, deixando à mostra o interior deste lado do manto. Os signos e figuras começaram então a mover-se como se possuídos de súbita vida e ele sacudiu energicamente o manto, ondulando-o, fazendo-o descortinar imagens à percepção do jovem.
Sorman viu as imagens assumirem proporções pessoais ligando-se a elas, participando delas como se decorressem no exato instante. Estava lá um jovem e hirsuto guerreiro, chefe de uma legião de bárbaros, e pessoalmente executava seus prisioneiros amarrados, decepando-lhes as cabeças.
- Não!! - gritou angustiado e sufocado.
O ser ondulou novamente o manto, apagando a seqüência de imagens, fazendo novas surgirem. Sorman, outra vez jovem, sacerdote de uma religião ou seita, ricamente paramentado, subia os inúmeros degraus do altar piramidal. O sol nascia quando ele atingiu o topo, as pedras rebrilhavam sobre seu manto cor de vinho. Um tambor iniciou a percussão de uma lenta marcação, os outros instrumentos começaram a tocar. Ele se voltou para o astro, elevando os braços e orando, em seguida baixou-os. O carrasco imediatamente dobrou-se ante a sacerdotal figura, depois se levantou e enterrou a adaga no coração do adolescente, fazendo-o sangrar abundantemente, vendo correr o sangue até a pira sob o chão, misturando-se ao fogo.
Sorman gritou novamente, implorando para que aquilo terminasse. O ser fez então as imagens cessarem. Silêncio. O ser mirava-o com o sorriso desenhado no rosto, insensível à sua aflição. Após segundos, tendo reunido forças, Sorman falou um tanto ofegante:
- Provou-me conhecer não a mim, mas ao meu passado. As imagens me têm, porém não sou eu quem ali está. As reminiscências não são a vida, obviamente o presente não é o passado. Mostre-me, pois, o meu futuro, o que haverei, por que isto me parece mais coerente!
- Mostrar o futuro é desvendar mistérios que ainda não foram formulados; não me é lícito isto fazer. Ademais, o futuro tem dois segmentos e uma só vertente: o primeiro é o do vulgo, daqueles bilhões a quem anima mundi escraviza, que seguem o mesmo curso e um só destino. Seria fácil prever-lhes, mas desnecessário. O segundo é o dos iniciados, mas estes fazem, eles próprios, os seus desígnios! Todavia voltemos ao presente, uma vez que aqui estais. Não há mais como recuar; vosso tempo esgota-se - o ser trouxe então os braços dobrados ao rosto escondendo-o para depois abri-los, encaminhando-se para o nicho, estendendo as mãos e atraindo a garrafa de vinho e os cálices, que voaram. Olhou para a rolha e ela saltou, deixando a garrafa aberta. Enchendo ambos os cálices, ele falou: - o vinho é um símbolo de sacrifício. Bebê-lo-emos para selar o nosso compromisso. Somente um de nós virá saborear a vitória - e arremessou um cálice ao chão. Aproximai-vos, jovem, apanhai-o, pois é da terra que vem à existência! - o cálice estava de pé e cheio; Sorman andou até o local abaixando-se, trazendo-o após seguro na mão, se levantando em seguida. O ser elevou a mão com o cálice, pronunciando: eis o selo de nossa aliança! - então voltou-se para Sorman, saudando-o, logo sorvendo o líquido. Sorman sorveu também o seu. O ser então lançou o cálice e a garrafa de encontro à parede, quebrando-os, indicando este procedimento ao rapaz que fez o mesmo com o seu cálice. Ele sorriu e decretou nova e definitivamente: - vencei-me ou morrei!
Imediatamente estranhas, fortes e quase insuportáveis vibrações envolveram Sorman; ele viu-se um náufrago em busca de uma tábua de salvação. O ser continuou:
- Estais disposto a tudo sacrificar a fim de transpordes a porta?
Em meio a ruídos, sons, angústias e sufocação; diante de imagens que vinham e se apagavam confundindo-o, ele conseguiu responder:
- Sim, estou!
- Dareis a vossa vida em troca, se preciso for?
- Dá-la-ei!
A sufocação e a angústia aumentavam; Sorman já nada via, somente escutava ao longe.
- Lerei vosso íntimo. Caso não haja suficientes obras para essa finalidade, morrereis fisicamente, arrancarei o vosso coração e ainda arrebatarei vossa alma, levando-a comigo.
Sorman não conseguiu mais falar. Uma dor penetrou-lhe o peito e ele chorou pesaroso, por julgar-se sem obras às quais mostrar.
- Que eu morra se para nada sirvo! - declarou entre lágrimas, voltando à consciência, vendo o ser a sua frente, rijo como estátua.
Silêncio. O negro ser abriu novamente os braços à altura dos ombros, mergulhando numa espécie de transe, semicerrando as pálpebras. Abria-as e as fechava parcialmente, revirando os olhos. Passados segundos, que para Sorman pareceram horas, ele respirou profundamente abrindo os olhos e baixando os braços, reassumindo o seu estado de antes, trazendo de novo a si próprio plenos movimentos. Em seguida, como um magnânimo, elevou majestático seu braço direito, apontando o indicador para Sorman, sentenciando:
- Vossa coragem e desapego vos salvaram, neófito. Não julgarei vossas obras, não me terás mais pela frente. O Guardião Negro do Umbral cumpriu sua missão, nada mais tendo a fazer aqui
Dizendo isso girou três vezes de braços abertos, parando de costas para Sorman. Imediatamente surgiu-lhe resplandecente luz branca; de seu interior emergiu outro ser, de alvíssimos cabelos até os ombros, vestido de manto totalmente branco, trazendo uma tiara de igual cor, que lhe cingia a cabeça, onde se viam estampados na testa alguns símbolos. Também lhe cingia a cintura um largo cinto dourado em que adiante vinha destacar-se a figura de radiante sol. O luminoso ser, sorrindo, apontou para o portal da direita fazendo sinais cabalísticos com mãos e dedos, desaparecendo em seguida tão surpreendentemente quanto surgira, deixando Sorman atordoado sem saber o que pensar.
Resolvido, entrou pelo portal indicado chegando noutro salão menor vendo que ambos os portais davam, exatamente, para o mesmo lugar, nada ali havendo, senão única e ardente tocha. No lado oposto havia outro portal de tamanho normal, encimado pelos símbolos Alpha e Ômega, Aleph e Tau, na cor branca e preta, tal como nos portais anteriores. Ele cruzou o umbral vendo-se diante de pequena escada de três degraus em ascenso, iluminada por um candeeiro numa das paredes, subindo-a rapidamente, alcançando uma porta em justaposição `a parede. Forçando-a, viu-a dar sinais de que se moveria, resolvendo apoiar-se nela com um dos ombros. A porta abriu-se a um ângulo de sessenta graus, movendo-se de volta quando dela se afastou. De novo nela se apoiou até que a abrisse completamente e já no outro lado deixou-a retornar, verificando estar mergulhado em total escuridão. Ao abrir os braços, tocou as mãos em lisas paredes, descobrindo-se no interior de nova e estreita passagem, ficando a decidir qual direção tomar, vendo ao longe, num dos extremos, tênue e quase imperceptível claridade, resolvendo caminhar para lá. Logo verificou tratar-se de outro vão por onde a claridade penetrava. Ao cruzá-lo, constatou com surpresa estar de volta ao mesmo porão onde antes estivera, atravessando-o sob a fraca luz de um lampião, alcançando a porta de madeira. Abrindo-a, subiu a escadaria iluminada pelos três candeeiros, entrando no armário e finalmente no quarto de onde inicialmente partira.
Na parede, novo lampião lançava luz ao ambiente. Ele observou que haviam colocado roupas limpas sobre a cama - calças pretas, cuecas e camisa branca de punhos longos. No chão, aos pés da cama, viu larga bacia com uma toalha dobrada no seu interior; sobre a toalha havia um sabonete e uma esponja. A um lado da bacia, estavam duas grandes ânforas cheias d’água; noutro lado repousavam um espelho de pequena moldura com uma escova de cabelos, e, mais afastado, a um canto, jaziam um par de botas pretas de canos curtos e um par de meias na mesma cor. Ele imediatamente se despiu entrando na bacia. O lodo houvera impregnado sua roupa, passara ao corpo e ressecara. Após o banho, vestiu-se e colocou o espelho sobre a secretária, apoiando-o na parede, mirando-se e escovando os cabelos molhados.
Suave aroma de flor de laranjeira emanava de seu corpo - sentia-se leve e naturalmente limpo. Não demorou, ouviu três ligeiras pancadas na porta, indo abri-la. Era Germano que, puxando da perna esquerda, entrava sorridente. Portava especial brilho nos olhos azuis, e estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo.
- Parabéns rapaz, você portou-se com dignidade. Foi corajoso, sensível e determinado.
- Obrigado, mas houve momentos de lutas angustiantes.
- Momentos assim são parte do universo homem. Ninguém está isento disso. Importante na sua trajetória, foi ter superado as vacilações, reagido e imposto a verdadeira coloração de seu ego - ele olhou em redor como se não conhecesse o ambiente, voltando a mirar Sorman - se desejar, poderemos dar como encerrada a sua participação nesta seqüência de desafios. Como já lhe disse, não acho apropriado o termo provas para aquilo a que você se submeteu, embora reconheça existir duas principais, óbvias e opostas resultantes: vitória ou derrota. Aquele que abandona a caminhada, não desejando enfrentar o maior desafio, não ganha nem perde na relativa acepção da palavra, mas fica em suspenso. Entretanto, o derrotado, em última análise, tem outros méritos, superiores talvez aos daquele que desistiu, porque ousou e desejou avançar. Desistir é a mais fácil das opções. O permanente desafio se resume em avançar sempre, mostrar-se corajoso e estar preparado a fim de apropriar-se de certos aspectos das forças dos elementos. E você conseguiu dominar-se, extraindo de seu íntimo os reais valores que possuía, apresentando-os à objetividade. Sua vontade é clara e definida, os obstáculos - necessários existirem para a afirmação dos propósitos - não foram todavia suficientes para demovê-lo dos colimados objetivos. E dentro deste quadro de situações bem sucedidas, vejo em você qualidades pessoais para conclamá-lo a um novo desafio, desde que assim deseje, se não estou sendo redundante.
- De que se trata?
- De um ritual, cujos participantes seriam você e eu. O ritual, como nos legaram os antigos, é o chamamento de forças dentro de uma ordem e ritmo, para finalidades mágicas - isto, sem dúvida, é do seu conhecimento. O mago e operador submete os elementos da natureza à sua vontade - ou luta contra eles a fim de dominá-los. A eficácia do resultado se deve, principalmente, ao firme e decidido desempenho do mago e ao seu conhecimento na recitação de fórmulas corretamente aplicadas.
- E em que isto viria me beneficiar e onde estaria exatamente o desafio?
- Nada posso prognosticar sobre os resultados. Tudo estará condicionado a uma esfera pessoal - a você e ao que é seu - com os possíveis perigos que possam acontecer; este é o desafio!
Sorman refletiu e tomou rápida decisão:
- Está bem, vamos ao ritual.
Saíram pelo corredor. Ao seu término entraram por uma porta descendo uma escada. Nova porta e um salão. Havia ali instrumentos e materiais de experimentos como usavam os antigos: ventosas, fornos, chaleiras, crisóis, peças de ouro, prata e cobre, pedaços de ferro, chumbo, recipientes contendo ácidos, mercúrio, anotações de fórmulas, tubos de ensaio e muitos outros. A um canto, sobre larga e rústica mesa, havia grandes livros, tabelas, pequenos instrumentos de cálculos astronômicos e uma luneta. Na parede estava afixado imenso calendário feito à mão, provavelmente pelo próprio Germano, em que os dias do mês achavam-se sob retângulos contendo anotações em formas de símbolos. Ao lado, outro calendário mostrava um grande e detalhado mapa astrológico, indicando as principais efemérides do ano. O centro do mapa se constituía no zodíaco crivado de linhas em cores diferenciadas, em cujos alongamentos e extremos viam-se também símbolos.
- Este é meu laboratório onde passo a maior parte do tempo - falou simplesmente, sem se deter, indo buscar um lampião aceso.
Em seguida, entraram por um vão de porta protegido por negra cortina, passando para uma antessala que se ligava a outro ambiente. Era estreita, quase um corredor, onde havia armários. Germano abriu um deles retirando de seu interior duas vestes brancas, entregando a maior ao seu acompanhante. Continuaram. No outro extremo daquele pequeno cômodo pararam diante de nova porta que Germano abriu, adentrando. Sorman o seguiu parando após dois passos, profundamente admirado com o que via, apesar da pouca iluminação.
Era alguma coisa como um santuário, um ambiente de magia por assim dizer. No chão, a poucos passos de onde entrara, havia um círculo perfeitamente traçado, de cinco metros de diâmetro, que fora sulcado no próprio solo, num grande bloco de granito. O círculo era plano no mesmo nível do bloco de granito sem qualquer ressalto, sendo, porém, de massa branca endurecida como cimento. O seu traço teria a largura de dez centímetros. No interior deste círculo, no seu total diâmetro, achava-se circunscrita a figura de um pentagrama, também sulcado no solo, justaposto ao bloco de granito, mas cujas hastes e braços eram de peças de aço. A largura das peças de aço era a mesma do traçado do círculo. Na parte externa do círculo, a cada ponta do pentagrama, se desenhava um símbolo bem como nos intervalos entre uma ponta e outra, e na parte interna do círculo, entre seus braços, e no seu núcleo central. O pentagrama, embora fosse maior, tinha exatamente a mesma forma daquele que Sorman contemplara num dos portais por onde passara. Um pouco além, à volta do círculo e dos símbolos externos, percorria uma faixa de terra preta de um metro de largura, regularmente assentada, também justaposta ao bloco de granito. No fundo, se destacava um imenso altar encavado numa pedreira.
O altar era diferente de tudo quanto Sorman vira até então. O local em que fora construído era uma enorme gruta. O teto do santuário onde Sorman entrara tinha quatro metros de altura; seu comprimento terminava quando a gruta começava. Mas a gruta era muito alta. O teto do santuário, ao terminar sua extensão, subia retilíneo dentro da gruta formando meia parede para cima, encontrando o teto da gruta que era o segmento superior da pedreira rústica do altar. Devido a formação da pedreira a gruta era irregular, porém espaçosa.
A sete metros da pedreira, que era a parede do altar, elevavam-se duas colunas cilíndricas, uma preta e outra branca, de sete metros de altura e um metro de diâmetro, que não tocavam o teto. Distavam entre si também sete metros. Após as colunas, na pedreira ao alto, pouco abaixo do teto, um disco de sete metros de diâmetro com a face voltada para adiante fora ali esculpido, indicando que se apoiava a um ângulo de noventa graus sobre outro disco menor que teria um metro de diâmetro, deitado horizontalmente, e que era um semicírculo. Fora esculpido como se metade dele emergisse do interior da pedreira. Abaixo, à distância de setenta centímetros, em posição paralela ao disco anterior, havia outro disco esculpido, maior, que teria três metros de diâmetro em mesma situação com relação à parede de pedra, mostrando-se também em semicírculo. Mais abaixo, um terceiro e semelhante disco maior, que teria cinco metros de diâmetro, situava-se em idêntica posição aos dois anteriores, guardando igual distância de setenta centímetros do segundo disco. Formavam, pois, três segmentos em sucessivos tamanhos diferentes, dispostos como degraus semicirculares, respectivamente, com a mesma distância um do outro. O disco em posição vertical, que estando em projeção de grandeza absoluta era muito maior do que cada um dos três outros, continha um círculo relativamente menor no centro, de cujo ponto central partiam doze raios em direção à periferia, ultrapassando-a em vinte e cinco centímetros. Cada raio era desenhado com duas linhas em fuga, que na sua origem eram unidas, mas se destacavam e se abriam à medida que se afastavam do centro, deixando finalmente a largura de sete centímetros no extremo final do seu segmento, fora do disco. O espaço compreendido entre um e outro dos doze raios, estava preenchido por nomes e símbolos; no interior do segmento de cada raio havia somente um nome, somando-se, pois, no total, doze diferentes nomes.
Os três discos esculpidos em posição horizontal abaixo do grande disco, mostrando-se em semicírculos, continham inscrições em textos em ambas as faces, bem como detinham diminutos signos sulcados nos seus arcos, de quinze centímetros de espessura. Os pequenos semicírculos centrais neles desenhados bem como todas as inscrições neles contidos, na face superior, eram pretos, e na face inferior, eram brancos. Já os signos sulcados na espessura de seus arcos tinham cor preta até as metades dos arcos; as outras metades dos arcos tinham signos na cor branca. Os símbolos e textos eram réplicas uns dos outros; assim o que havia na face superior de um disco em branco, havia na face inferior deste mesmo disco em preto, como também nas espessuras dos segmentos de seus arcos. O círculo central menor do grande disco era preto. Os seus doze raios eram brancos; todos os outros nomes bem como os textos e símbolos que nele havia eram pretos.
Sobre um suporte no chão, três grandes espadas se achavam fincadas; eram de feituras diferentes nas lâminas e cruzetas. Uma delas tinha a feitura em cruz reta; a outra tinha as extremidades em duas meias luas; a terceira - de cruzetas duplas de ouro, com as extremidades ligeiramente encurvadas para fora - trazia incrustações de sete pedras preciosas em cada cruzeta. Ao lado, apoiados num artesanal candelabro de aço, em forma de grande taça - que possuía dois braços com três bicos de luzes cada um, formando com os orifícios da coroa outra representação trina de luzes - viam-se um tridente, também de aço e uma baqueta. Tanto o tridente como a baqueta e o candelabro portavam escrita e símbolos.
Suave ruído de água caindo e rolando, provinha da esquerda do observador, onde a pedreira continuava num só bloco e se estendia depois do altar a noventa graus como parede lateral. Ao tocar o solo, após deslizar pela pedra e formar diminuta cachoeira, a água corria pelo interior de um canal aberto adiante do altar, e desaparecia por outro canal vertical e subterrâneo à direita, na base da pedreira.
Em cada uma das brancas paredes laterais do santuário, dependuravam-se sete candeeiros de ouro em carreiras, a distâncias iguais, havendo, portanto, catorze candeeiros no total. Não existiam janelas; em seus possíveis lugares viam-se dois respiradores retangulares com telas de grosso arame em largas malhas, pintados de preto. A porção central do teto achava-se encoberta por uma grande peça de lã branca, que deixava cair dois longos puxadores que estavam presos às paredes, envolvendo dois pequenos, decorativos e encurvados prendedores de metal dourado, feitos sabres. Frisos pintados de ouro e sancas esculpidas com rostos de anjos vinham unir-se nos quatro cantos das junções teto-paredes. Abaixo destas junções, lateralmente à porta de entrada, a mais ou menos um metro e meio do chão, havia pequenas prateleiras de mármores branco e preto em cantoneiras de meias canas, uma em cada lado, contendo outros objetos de ofícios de rituais. No chão, ao longo do rodapé de um lado, Sorman observou um comprido acendedor, que em princípio não entendera sua utilidade, pelo fato dos candeeiros serem facilmente alcançáveis com as mãos. Todas estas coisas Sorman examinara atentamente, com profunda admiração, retornando após o salão do santuário.
Germano, que houvera contornado o círculo por fora da faixa de terra que passava ao largo da gruta, ficara aguardando. O jovem foi então em sua direção sentindo as fortes vibrações que emanavam de todo o ambiente. Sem delongas, Germano apoiou o lampião em sua base junto ao altar e enfiou a veste pela cabeça, cingindo-a. Era como um manto de longas e folgadas mangas que ia até os tornozelos. Sorman o imitou e aguardou.
- Vamos iniciar o ritual - disse Germano enquanto enfiava a mão dentro do bolso da calça e retirava um relógio preso a uma corrente, ambos de ouro, abrindo-lhe a tampa - duas e cinquenta da madrugada - falou, recolocando-o no bolso, olhando para o teto e depois para Sorman - vá até aquele lado - apontou - e puxe comigo a cortina. Assim será mais fácil e rápido abri-la. Sorman, contornando a faixa de terra, lá chegou liberando o puxador de seu prendedor. Ambos puxaram-na. Pouco a pouco, viam o teto de vidro surgir e a névoa noturna se mostrar. Estando a cortina amplamente aberta, Sorman colocou-se novamente ao lado de Germano. Ele olhava para o céu parecendo calcular, depois apontou: - aqui, exatamente nesta posição, está a constelação de gêmeos; para ela voltaremos nossa atenção. Precisaremos das luzes de Alpha Geminorum e Beta Geminu.
Sorman, apesar de partícipe destes iniciais preparativos, nada comentou. Germano tomou todas as providências e o instruiu em algumas coisas. Trouxe para dentro do círculo alguns objetos e fincou o comprido acendedor pelas proximidades, num orifício adrede existente no piso, começando propriamente o ritual. Fez as invocações de abertura realizando movimentos; a seguir tomou certas posturas consideradas mágicas, ao quê Sorman observava algumas, ou imitava outras. Em certo instante, foi até um ponto da periferia do círculo, esticou a mão para fora e trouxe o comprido acendedor, estendendo-o em direção do lampião junto ao altar, trazendo em seu pavio a chama. Em seguida foi falando nomes, reverenciando e acendendo os sete candeeiros de um lado, depois os sete do outro, finalmente recolocando o acendedor apagado no seu lugar.
Voltando-se para o altar fez invocações aos elementos. Sorman, conforme instruído fazia coro. As energias, pouco a pouco, iam se tornando intensamente poderosas. Sorman conseguia manter-se consciente com alguma dificuldade. Seu corpo vibrava e se tornava cada vez mais leve. No momento em que Germano invocou as luzes das estrelas Alpha e Beta de Gêmeos, Sorman sentiu-se deixar o corpo e projetar-se para um espaço desconhecido onde nada existia. Era tudo vazio sem ser escuro, mas a luz existente era de pálida claridade, não se definindo. Encontrava-se só e assustou-se por não ter como sair dali. Ao longe, como distante eco, ouvia a voz de Germano que continuava a conduzir o ritual. Uma angústia começou a se apossar de si. Ele viu alguém chegar sob uma forma de luz opaca e acinzentada. Ao aproximar-se mais notou-lhe a fisionomia e o corpo - era ele próprio! Ao parar, a réplica de sua imagem olhou-o com irônico sorriso.
- Não me reconhece mais irmão, faz tanto tempo assim que conversamos? - aquela voz causou-lhe indescritível mal estar e ele sentiu vontade de chorar, todavia conteve-se.
- Desde quando não nos vemos?
- Ora, irmão, sempre estivemos juntos, desde Adão, não se lembra? Quantas vezes pensou me ter morto, acabado comigo. Mas eu ressuscito sempre, você me permite renascer.
- Quando estivemos juntos pela última vez? - insistiu Sorman. Ele riu e passou a mão no queixo, fingindo pensar.
- Lembra-se de nossa luta lá em cima, do armistício? Lá eu estava..., ,digamos, mais sutil, mais dentro do seu pensamento.
Sorman olhou-o perplexo, ele deu dois passos.
- Afaste-se de mim, não se aproxime!
- Por que teme, não confia em suas forças? - ele deu outro passo. Sorman ficou opresso, sentindo toda a gama de sensações já conhecida, contra a qual lutara em verdadeiro campo de batalha.
- Afaste-se, já lhe disse!
Súbito, viu-se repetindo estas mesmas palavras dentro do círculo mágico, olhando para Germano. Por segundos não conseguiu atinar com o que se passava, até que Germano colocou-lhe um polegar na testa e outro na altura do coração, dizendo:
- Desperta! - ele estremeceu e voltou à consciência.
Germano reiniciou as invocações, Sorman o acompanhava. Eis que de novo viu-se projetar para outro espaço, um lugar agora de intensa luz que, ao contrário do anterior, transmitia a sensação de liberdade e certa leveza. Nada via em redor, unicamente a luz que provinha do alto. Em certo ponto, acima, ela se concentrava num facho mais intenso, formando a curvatura de um arco, como uma ponte, cujo extremo oposto não era possível ver. Sorman, sem saber o que fazia ali, aguardou. Pouco se passou quando viu uma forma surgir, descendo daquela concentração de luz, se aproximando. Era inacreditável! A réplica de seu corpo tinha desta feita aura luminosa de translúcidas emanações. Viera sorrindo, mas não qual o outro que escarnecera; ao invés, portava alegria e beleza no rosto, como o próprio Sorman jamais possuíra - era incomparável! Uma fugidia emoção de reconhecimento e identidade tocou-lhe o coração, porém não tendo ancoradouro se esvaiu, deixando-o à mercê, envolto tão somente pelas suas objetivas conjeturas, a inquirir da natureza daquela outra insólita aparição.
- Quem é você?
- Sou parte de sua vida, como aquele com quem esteve a pouco - respondeu com suavidade. Isto veio trazer-lhe maior confiança, que não decorria tanto pela revelação, mas pela forma como lhe chegava. As palavras, como ditas, conduziam vibrações perfeitas que lhe soavam na mente e no peito, transmitindo-lhe também surpreendente conforto. Era um amigo que ali estava, mas que amigo seria este, como podia ser parte de sua própria vida? Sem estas respostas de objetivas inquirições - que apesar de tudo teimavam em permanecer - ele se aguçou. O outro se aproximou ficando a dois passos. Sorman captou-lhe mais sutilmente sua atmosfera sob a gama de sensações, experiências, idéias e pensamentos - coisas extraordinariamente familiares e amplas. A isto se seguiu como se, após ter mergulhado em profundo sono, sentisse agora despertar e a verdadeira vida retornasse, integrando mente e personalidade. Sentia-se realmente vivo e um sentimento de realidade veio comungar, sobreposto por inexcedível luz a permear-lhe os pensamentos. No profundo de seu íntimo ele sabia disto, porque muitas vezes esta realidade sentida intercedera entre seu mental e a agonia provocada pelo eterno cogitar. Assim, envolto por aquela aura amiga, sabedor, mas ao mesmo tempo vacilante, ainda perguntou-lhe:
- Há quanto tempo se afastou de mim? Era quase a mesma pergunta feita ao outro, todavia anelada a um quê de apelo e lamento.
- Desde que me mostrei deixando-o. Minhas últimas palavras soaram seguidamente no seu cérebro físico, até que você tomasse a decisão de buscar.
Sorman então se lembrou daquele repetido sonho, de sua aparição e das palavras: “Sorman, vou partir, é preciso!”. O sofrimento que após se desencadeara, veio-lhe à memória, mas desta vez não o tocou, tornando-se um fato à parte, sem vida emocional, simplesmente como a lembrança de algo que um dia não lhe houvesse pertencido. Ele continuou:
- Aqui vim para lhe falar sobre estas pequenas coisas. Você está novamente galgando os degraus da iniciação. Não pergunte por quê; é alguma coisa que entenderá mais tarde se prosseguir até o final. Lembre-se: a cada um segundo as suas obras; e me permito acrescentar: e ao que ainda mais lhe pedirão. Mas saiba que tanto eu como o outro viveremos em você até sua definitiva ascensão. Somos irmãos gêmeos, porém ele foi o primeiro. Não obstante, é você quem decidirá ao qual permitir nortear-lhe os pensamentos e rumos: é lei da Terra. Mas até agora você foi brilhante! Dizendo estas palavras ele deu um passo atrás, sorriu e acenou em despedida, virando-se em direção da ponte, nela subindo e desaparecendo sob a luz.
Tendo terminado o ritual, Sorman voltara ao quarto. Pensava sobre o que se passara quando Germano o interrompeu, vindo novamente visitá-lo. Puxando a cadeira da secretaria, apontou para a cama onde Sorman foi se sentar, logo falando:
- As coisas do ritual talvez não tenham se passado conforme você imaginara. Minhas palavras iniciais pretenderam alertá-lo acerca de um possível perigo advindo do desafio de nele participar. O perigo existiria em dois níveis: embaixo, dentro do círculo, caso brechas acontecessem, e, acima, no que dizia respeito unicamente a você, no reencontro com sua primeira projeção - o eidolon! O ritual que realizamos invocou somente um tipo de força associada aos elementos, sendo por isto bastante seguro. Mas você de nada sabia - e aqui está a qualidade de sua atitude – por que o porte do ritual e a exposição ao desconhecido eram-lhe novidade e você entrou no círculo disposto a enfrentar quaisquer possíveis consequências. Confiou e se despiu de temores e preocupações. Foi perfeito nisto, como o foi ao longo de seu desempenho nas etapas acontecidas. O futuro é o tempo, e este, se vivido com sabedoria e mente preparada trará as soluções dos enigmas que latejam no imo de cada um. Dizendo isto, ele enfiou a mão num bolso das calças, e retirou um estojo na forma de pequeno baú, abrindo-o - quero dar-lhe esta lembrança. - E se levantou, fazendo sinal para que Sorman fizesse o mesmo, tomando do estojo um medalhão preso a um cordão, ambos de ouro, colocando o cordão em torno do pescoço do jovem - Mais do que um adorno, o medalhão servirá, principalmente, como um amuleto contra as forças sinistras! - disse em tom profético.
O medalhão pendia pouco abaixo do coração. Sorman o pousou na palma da mão, examinando-o. Era belo, uma obra de arte; mostrava as faces com entalhes de signos cabalísticos. O jovem agradeceu e sentaram-se, ficando a conversar, até que ouviram batidas na porta de entrada. Ao invés de apressar-se em atender, Germano sacou o relógio do bolso abrindo a tampa e comentando:
- Seis e quarenta e cinco; ele jamais se atrasa. Venha, o cocheiro irá levá-lo à estação, o trem chega às sete.
Lá fora Ackreonte o aguardava, tendo deixado a porta da carruagem aberta. Sorman se despediu de Germano com forte aperto de mão, virou-se e se adiantou, enquanto punha o medalhão para dentro da camisa, passando diante do cocheiro, que se dobrou em vênia, subindo no veículo. Ackreonte, então, fechou a porta, recolocando a cartola na cabeça e falou-lhe através da janela:
- É um grande prazer transportar tão ilustre passageiro!
CAPÍTULO VIII
A PROVA DO AR
"Face a isto, sinto-me parte de um mundo absolutamente falso, sem nenhuma consistência, que, apesar de fantasticamente ilusório, atua-me e me leva de roldão. Sou na verdade, em meio a tudo isto, o simultâneo palco, o roteirista coadjuvante, o ator e o privilegiado espectador."
As grandes e brancas asas o abraçavam sem tocá-lo. Em seu interior, envolto por suaves vibrações que lhe ampliavam os sentidos, ele flutuava gostosamente. Sentia-se volátil, livre, confiante! Olhava para baixo e via a Terra tornar-se cada vez menor, mais distante; isto lhe trazia a sensação de poder - ela não o cerceava mais neste instante, tinha escapado de seus limites! A viagem prosseguia; entravam agora por outras alturas. O sol ao longe brilhava – nada mais havia - tudo era um imenso e belíssimo azul!
Sorman levantou os olhos procurando o rosto angelical de seu condutor. Ele se mantinha concentrado, olhando sempre para cima. Em dado momento a atmosfera tornou-se turbulenta; ele tremeu, jogou para um lado e para o outro, baixou o rosto, olhou em torno e projetou mentalmente translúcida redoma. A turbulência agora se chocava agressivamente de encontro à redoma, causando deformações; ameaçava. Sorman se preocupou; havia real perigo, a redoma se rompendo poderiam ser afetados. Mas Ratziel, impassível, como se estivesse singrando sobre águas pacíficas, não se importava; concentrava-se tão somente no invisível, talvez numa oitava superior. Como ele podia voar assim, de asas fechadas?
De novo invadiram outro espaço; era claro sem ser branco, Sorman não compreendia o que estava vendo. Não existiam formas, também não havia distâncias: seus corpos estavam submersos, porém integrados num todo. Ratziel não se deteve, imprimiu maior velocidade no seu voo e rapidamente saíram dali, entrando noutra dimensão - pelo menos assim supôs Sorman - e nesta nova faixa vibratória mergulharam. Pouco depois, se aproximavam de um orbe semelhante à Terra e penetravam em sua atmosfera.
Foi sufocante. O ar enchia-lhe os pulmões, pesava-lhe. Ratziel, vez por outra, estancava no ar, também respirando com dificuldade, se adaptando aos poucos. Chegaram a uma região cercada de montanhas. Havia enormes picos cobertos de neve e gelo. Ratziel passou ao largo se dirigindo para alta colina, vestida de imenso gramado verde, entremeado de conjuntos de frondosas árvores e tendo pequena floresta. Cores e sombras misturavam-se a variadas qualidades de flores que enfeitavam aquele vasto tapete. Acima de tudo, dominava pequeno e gracioso chalé, de onde se podia ter ampla e privilegiada vista das montanhas em derredor. Ratziel largou-o próximo ao chalé, dizendo:
- Aqui será o palco de vossas próximas experiências. Não sei quanto tempo se passará até que de novo nos reencontremos. Vede que a região é pródiga. Ali abaixo, naquela floresta, encontrareis variados frutos. Não temais prová-los, apesar de todos vos serem desconhecidos, porque são bons. Não existe o menor perigo de animais ferozes, nem de malfeitores, porém cuidai-vos e vivei o melhor que puderdes!
- Que farei neste lugar?
- Descobrireis!
- Estarei em degredo; terei feito algo errado em minha vida? - insistiu. Ratziel sorriu, olhou em torno e respondeu:
- Não há limites para a alma liberta. Um corpo não é suficiente para aprisioná-la se ela deseja alçar-se. Porém, se degredo for, quantos não desejariam aqui estar?
Ratziel silenciou. Sorman moveu-se na direção do chalé subindo até a varanda, sentindo o perfume leve e suavemente adocicado que dimanava de sua madeira, abrindo a porta e adentrando. As dependências, apesar de pequenas, eram confortáveis; ele atravessou a sala examinando o quarto, a cozinha e o banheiro, satisfazendo-se com o que viu, saindo novamente a procura de Ratziel, não o encontrando.
Determinando-se a conhecer os arredores, andou em torno do chalé. De todos os ângulos em que observava via a magnífica e incomparável paisagem. As montanhas próximas detinham o verde, porém as mais afastadas e as mais altas cobriam-se de neve ou gelo, recebendo um tom azulado da envolvente atmosfera. Era tudo muito belo e inspirativo. O ar, neste momento, proporcionava-lhe avigorar-se; ele já respirava a plenos pulmões, não mais sentindo a sufocação que experimentara na chegada. O sol, acima das montanhas, provocava rebrilhos nos cristais de gelo. Vez por outra, uma pequena e transparente nuvem se deslocava - flutuava ao vento, - envolvia e abraçava elevações. Pássaros em bandos ou sozinhos viajavam despreocupados; aves de grande ou médio porte, plumosas ou não - desconhecidas a Sorman - se arremessavam às alturas. Algumas planavam e desapareciam detrás dos montes ou montanhas.
Olhando para baixo, ele reparou melhor na beleza desta colina - em sua natureza, nas múltiplas cores que se espraiavam largamente - sentindo vontade de descer e explorar um pouco de seu espaço. Enquanto descia e palmilhava o meandrico caminho, não se furtava nem se cansava de continuar lançando olhares de admiração ao espetáculo natural que o circundava.
Poucos metros havia caminhado quando se deparou com um poço de onde podia puxar água; mais abaixo entrou pela pequena floresta em que frutos maduros existiam em abundância, conforme dissera Ratziel. Provou um ou outro e interiorizou-se através dos caminhos, parando junto a uma cascata numa pequena clareira. O frescor da cristalina água e a placidez do local eram divididos por borboletas, pássaros e pequenos animais. Eles não se espantaram com sua presença, antes se afastaram oferecendo-lhe espaço. Sorman sentou-se na relva junto à margem; mecanicamente dobrou as pernas em padmasana e de imediato lembrou-se de Rama, dos períodos de meditação no ashram e tentou afastar estas lembranças da mente. Não obstante, por mais que se esforçasse, as lembranças teimavam em permanecer, fazendo-o rever muitos quadros que julgara esquecidos.
O ar neste recanto possuía alguma umidade; ele sentiu o corpo esfriar, resolvendo voltar para o chalé. Não sabia ainda, exatamente, por onde começar, quais provas teria inicialmente diante de si, ou se estas, enfim, logo aconteceriam. O lugar era de tão rara beleza e energetismo que não cabia pensar em situações penosas a serem experimentadas.
De volta, não entrou. Ao invés, sentou-se à beira da varanda e novamente estendeu o olhar para a direção das montanhas, ficando a apreciá-las demoradamente. Quando se deu conta, estava outra vez na postura do lótus e fechou os olhos, iniciando um pranayama, permanecendo depois em quietude. Vez por outra abria os olhos, fixava a paisagem na retina, fechava-os, e suavemente voltava a se desligar. Não sentindo mais o corpo - entrando quase em dharana - teve sua atenção voltada para as proximidades. Ouvia ruídos de passos que ecoavam fortes em sua mente, obrigando-o a retomar os sentidos e abrir os olhos definitivamente. Com surpresa, viu aproximar-se estranho e pequeno ser, e, ainda envolto por aquela atmosfera de enlevação, julgou-o, a princípio, uma visão. Porém não se tratava de alguém etéreo: era real como ele, Sorman. O pequeno ser, ademais, tinha o tronco, membros e cabeça proporcionais a sua estatura de, talvez, um metro e meio; usava os negros cabelos em franja sobre a testa e sobre a nuca, cobrindo-lhe as orelhas e parte das faces. Fino bigode lhe proporcionava certo ar austero. Vestia-se com camisa enxadrezada, de mangas compridas, parcialmente dobradas, calças e botas azuis.
- Bom dia, senhor - cumprimentou já a poucos passos de Sorman, largando antes no chão o saco que trazia e juntando as mãos adiante em gesto de união e paz - desculpe ter interrompido sua meditação, não tive a intenção de importunar; aguardaria até que terminasse.
- Não tem importância, que deseja?
- Meu nome é Assur, moro lá no pé da colina e venho sempre ao chalé quando chega um hóspede. Devo preparar boas e adequadas refeições, além de colher frutas silvestres e trazê-las, caso as prefira no próprio chalé.
Ele falava rapidamente; tinha voz jovial e agradável; com isso perdia aquele ar meio austero que parecera possuir ao chegar. Mas era impossível prever sua idade. Sorman assentiu levantando-se, sinalizando para que entrasse. Assur então dobrou-se, agarrando o saco, e o jogou às costas, trazendo-o consigo. Mal entrou na cozinha já se fez operoso. Friccionando com incrível rapidez um aparelho de madeira, cujo pino provocava aquecimento, acendeu folhas secas, jogou sobre elas cascas de árvores, depois finos cavacos e finalmente pedaços de lenha seca. O fogo estava pronto; ele mexeu em panelas, colocando-as na chapa do fogão, sobre perfeitos e sucessivos círculos que eram as tampas que fechavam as bocas, tendo antes retirado os dois menores de duas outras bocas a fim de permitir ao fogo por ali melhor aquecer. A seguir, lavou os tubérculos e folhas que trouxera, usando um recipiente de madeira semelhante a uma gamela; cortou os tubérculos, enrolou as folhas, secionando-as em finos pedaços, e levou-os separadamente ao fogo, começando depois a preparar uma salada crua. Após, tirou do fogo a panela dos tubérculos e os amassou, colocando-os em pasta na outra panela com um pouco mais de água e de minúsculos pedaços de cascas secas, semelhantes à canela.
Sorman permaneceu o tempo todo observando-o, às vezes puxando assunto - ele não se sentia nem um pouco constrangido – e em certo instante assim falou em resposta a uma pergunta:
- Não sei do mundo afora, vivo somente nesta região desde que nasci. Meu pai, que também nasceu aqui, fazia o mesmo que eu faço e meu filho, um dia, certamente fará igual. Sou feliz assim, não desejo que nada mude.
Estas palavras desanimaram Sorman em suas tentativas de uma sondagem do lugar e quando aquilo que Assur cozera ficou pronto o pequeno limpou tudo, colocando toalha na mesa, arrumando-a com louças e talheres. Feito isso, retirou do saco algumas folhas verdes, pondo-as na pia, perguntando a Sorman se ele desejava chá. Ante a resposta afirmativa, ele as lavou, ferveu água e jogou algumas dentro da chaleira, abafando. Enquanto as folhas permaneciam em infusão, ele explicou:
- Virei todos os dias nesta mesma hora para lhe preparar o almoço. Antes do anoitecer voltarei com outras coisas. É bom que me diga do que não gostou a fim de que eu possa mudar. É aconselhável passear pela colina de manhã e ao entardecer. Porém, antes do sol se pôr, é conveniente estar de volta, a menos que leve um lampião e agasalho. Se precisar de mim para qualquer coisa é só descer e seguir a margem do córrego; acabará encontrando minha casa - quando o chá ficou pronto, ele abriu o armário retirando pires e xícaras - esta xícara verde é minha, uso-a sempre que tomo chá com os hóspedes – dizendo isto encheu as xícaras, estendendo a branca para Sorman. O chá era bom, algo cujo paladar Sorman jamais antes houvera experimentado, e ao repeti-lo, Assur ensinou-lhe: - as folhas que estarão neste recipiente de barro - ele o retirou do armário, ficando nas pontas dos pés - não duram mais do que um dia, perdendo a qualidade. Para fazer esta mesma quantidade, utilize três folhas maiores e uma pequena. Esta proporção dá o paladar que acaba de experimentar, pois combina certo duas qualidades diferentes de plantas. Não se esqueça também de avivar sempre o braseiro ou terá dificuldade para fazer um novo! Tendo terminado, Assur colocou as folhas restantes no recipiente que retirara do armário, recolocou-o no lugar, despediu-se e se foi, descendo a colina.
Sorman saiu de novo à varanda. O sol estava quase a pino e a temperatura agradável; ele se pôs novamente a pensar sobre sua situação. Vinha-lhe à mente a imagem de Ratziel, dizendo não saber quando se veriam outra vez. Este era outro planeta, vira a Terra ficar para trás; por que precisara viajar para tão longe? Preso a esta indagação, desceu e foi caminhar fora do chalé, ouvindo um trovão se anunciar. O eco do ribombo reproduziu-se muitas vezes detrás das montanhas até desaparecer. Em seguida ouviu outro.
Sem se deter, contornou a graciosa habitação e novamente mergulhou em conjeturas. Após três voltas resolveu entrar e sentar-se numa cadeira da sala, ficando a olhar para o nada. Nenhum estímulo o movia; sentia-se esvaziar por dentro e ante a ameaça de tristeza, levantou-se e foi se acomodar no chão, próximo à parede, voltado para a porta aberta, de onde entrevia um pedaço do formidável panorama, dobrando as pernas em padmasana.
Estando concentrado, sentiu leveza no corpo e a sensação de desprendimento. A mente a princípio vagou, porém como depois a comandasse, ela abriu-se em percepção podendo então deter imagens. Viajava sobre a encantadora região; via as montanhas e as sentia. Era alguma coisa extraordinária - ondas vibratórias partiam do interior daqueles relevos transmitindo-lhe diferentes gamas de vida. O gelo, a neve, as pedras e tudo mais que ali existia tocavam sua sensibilidade mental; no entanto, nada lhe afetava: captava as ondas e estas lhe traziam mensagens de harmonia e vida integrada. Era algo mágico, um ato da indecifrável natureza. Por outro lado, pensava se o que experimentava não seria um pré-estado do samadhi ensinado pelos iogues. Mas também não podia crer nisto, por que muito embora aquelas informações exsudadas do seio das montanhas e de sua superfície lhe chegassem à mente, estaria longe ainda de vivenciar a pura luz, a verdadeira e total integração do espírito - o grande êxtase!
Enquanto assim estava, seus sentidos emitiram sinais e foi arremessado para baixo. Algo o incomodara, e ao ingressar ex abrupto num outro campo vibratório, mergulhou também de volta ao corpo, coração aos pulos! Despertando, viu a porta bater violentamente, as cortinas das janelas esvoaçarem e a toalha da mesa dobrar-se. Nuvens carregadas encobriam o céu; a luz do sol desaparecera. Era iminente a chuva e ele foi se arrastando fechar as janelas.
A chuva caía fartamente; raios e trovões ainda eram ouvidos. Sorman, tendo terminado a refeição, olhava para fora, em pé, encostado à porta. Jamais presenciara semelhante quadro: nuvens claras e espessas provocando chuva sobre a neve e o gelo, o verde contrastando com os alvos mantos! Uma região aparentando oposições, todavia possuindo o equilíbrio dos elementos!
A temperatura caíra sensivelmente; ele se agasalhara com um pulôver que encontrara no armário do quarto em meio a outros vestuários; calçara meias de lã e chinelos com forração interna. Após apreciar o vivo panorama por certo tempo, entrou fechando a porta, indo à cozinha colocar cavacos e rachas de lenha a fim de alimentar o fogo, pondo água a ferver, fazendo chá.
Enquanto tomava o saboroso e quente líquido, voltava a pensar: neste lugar tinha todas as condições para estar motivado, mas começava a sentir solidão. Isto não acontecera antes onde estivera. Naquelas ocasiões, seus pensamentos e sentimentos se polarizavam na expectativa de inusitados acontecimentos. Trabalhava o mental e moviam-no as emoções. Porém, neste exato instante, seu mundo parecia querer dormitar; o ego se esvaziava e não lhe subsistia qualquer tipo de aguçamento. Um princípio de tristeza então o abordou, despertando-lhe rápidas recordações da vida adolescente e das fases agudas no ashram. Imediatamente procurou afastar estas flutuantes lembranças a fim de não lhes permitir campear e ganhar força. Pela primeira vez, desde que encetara a longa caminhada da iniciação, preocupava-se com seu ego, chegando a temer algo como um estado depressivo a assaltá-lo. Esta incongruência vinha existir justo aqui, onde, afinal, a prodigiosa natureza era apropriada justamente para a busca da paz; mas o sentimento, a emoção e a razão ameaçavam colidir.
Esta última reflexão atemorizou-o novamente e um volteio do pensamento, como um corisco, o fez sentir saudade de casa, de seus pais e da empresa. É verdade que a distância acirra a melancolia; ela cresce e começa a consumir. E quanto mais longe se está, mais se quer, mais se deseja; isto já acontecera. No ashram, a melancolia o atacara causando-lhe forte crise que o obrigara a abandonar tudo e voltar para casa. Exatamente ali começava um novo ciclo de experiências - outra vida! Seriam, pois, estas recordações e emotividade também o início de outro ciclo, devendo considerar desde já encerrado o ciclo anterior no qual se emaranhara?
Estava longe, muito longe mesmo dos problemas de sua vida humana. De nada adiantaria acalentar pensamentos imprecisos, atrair desejos ou emoções passadas, consumir-se em nostalgia. Dessa maneira, pretendeu largar as recordações e não mais recuar no tempo, mas ir de encontro ao futuro próximo - à realidade a conquistar! Porém, o que conquistar, onde encontrar o desafio contra o qual se atirar? Aqui chegara com esta única intenção; viera fortalecido pelas recentes conquistas, laureado e autoconfiante. Pelo visto nada ainda acontecera e sentia enfraquecer-se. Sua vontade, a coesão das idéias, o ideal único e irrefutável da vitória - essas coisas lídimas e principais - já não ocupavam o primeiro nível de sua atenção; desconcentrava delas! O pensamento divagador ocupava-o; as emoções envolviam-no; só faltava cair em lágrimas. Precisava reagir, lutar contra si próprio, seu único adversário no momento!
Como se o fato de reagir mentalmente demandasse antes mover-se e caminhar, ele se levantou, atravessou a sala e abriu a porta, olhando novamente para as montanhas sob a incessante chuva. Ao contemplá-las, buscou ao mesmo tempo quebrar aquele elo que o atava às lembranças e escapar da sensação depressiva que aos poucos chegava. Por algum tempo lutou para não permitir a invasão, recalcando as imagens ou limpando a mente dos desagradáveis pensamentos, porém surpreendeu-se ao se ver batendo com o punho contra o corrimão da grade que acompanhava e adornava a extensão da varanda. A madeira ecoou ante o violento impacto e parte da estrutura da grade vibrou toda. Mas ele não perdera o controle sobre suas emoções, nem se abalara mentalmente. Descarregara tão somente o excesso de energia que seu metabolismo fabricara: a bem dizer, reagira fisicamente! Voltava as costas para a porta aberta, tinha dado dois passos adiante ficando colado à grade, e recebia respingos da fria chuva. Tinha ímpetos de descer, andar pelo gramado, respirar liberdade, mas não ousava: chovia forte, o chão encharcara. Que lástima!
Anoitecera, a chuva continuava. Sorman alimentara o braseiro e encorujado próximo ao fogão se aquecia. A tremeluzente luz do lampião, sobre a pequena e quadrada mesa a um canto, provocava sombras que cobriam trechos do chão e paredes. Ao se moverem brevemente pelas oscilações da chama, abriam configurações de soturnas analogias, proporcionando subsídios onde substanciar e exaltar o animismo. Mergulhado sob esta atmosfera, ele voltava a experimentar diferentes doses de amargura que se atrelavam às lembranças. Elas se levantavam do estofo mental e as energias mal qualificadas, também subconscientes, as imantavam assegurando-lhe permanente estado depressivo.
Não era Sorman quem ali estava, porém outra natureza psíquica despida dos lépidos e surpreendentes malabarismos do pensamento com que costumava vestir as mais variadas conjeturas. O quadro era patético. Nesse momento, sua mente carecia do exato e vigoroso raciocínio que alavancava e galvanizava poderosas vibrações, elegendo soluções plausíveis. Em decorrência disto, os fatos envelhecidos e ultrapassados que rememorava e remoía, descerravam, pouco a pouco, obscuras e sombrias perspectivas e o empurravam cada vez mais para baixo. Assur não retornara como houvera prometido; a solidão pelo isolamento doía-lhe na alma, fazendo-o sentir-se desprezado. Era um infeliz. E neste mundo de imagens e reações negativas, criado por sua própria energia, ele permaneceu por muito tempo, o suficiente para enfadar-se e resolver dormir.
A despeito de seu estado emocional dormira profundamente e nem bem a luz matinal enfraquecia as noturnas trevas, ele se remexia e acordava. Após o asseio foi à varanda. As sombras definitivamente se desmanchavam, tornando-se quase imperceptíveis, como se a terra as tragasse. A chuva cessara; poucas estreitas e compridas nuvens vagavam preguiçosamente, permitindo ao azul mostrar-se na sua quase totalidade. A consistência da luz obrava de novo o milagre da ressurreição das cores: elas reproduziam detrás dos recortes das montanhas os vários tons violeta e róseo em faixas sobrepostas. Ao contemplar as elevações à distância, ele as via ante os coloridos reflexos como gigantescos imãs que a essa hora atraíam para o seu interior correntes imensuráveis de energia e força. Essa visão mental, que diferia do olhar estimulante da imaginação poética, vinha testemunhar a objetiva forma dos efeitos físicos e químicos de uma realidade anterior ao romantismo. Com olhos fixos nos multicoloridos efeitos do exato e mecânico movimento do astro rei, ainda não visível, ele várias vezes inspirou e expirou, também em ritmo exato e matemático, sentindo a energia fria penetrar-lhe mente e corpo, e esses reagirem forte e vigorosamente, na instintiva busca de transformar e adaptar a baixa temperatura que os invadia, para sua pessoal calidez.
A coroa solar surgira; em poucos segundos as cores coadjuvantes de sua corte se deitaram saindo de cena; todos os espaços foram preenchidos de calor e luz clara e o dia se iniciou propriamente. Ao circunvagar o olhar pelos arredores Sorman o parou numa pequena forma que, abaixo da colina, se deslocava em sua direção, reconhecendo-o de imediato: era Assur, que em poucos minutos alcançou os limites do chalé acercando-se dele.
- Bom dia, senhor. Trago coisas sua refeição matinal. Não pude vir ontem devido à chuva, por isso cheguei mais cedo hoje.
- Bom dia, Assur, a chuva o assusta?
- Não gosto de molhar-me. Sempre que chove eu não saio.
- Verdade? E chove muito nesta região?
- Não muito. Está chegando o período das chuvas, mas ainda não é bem a hora; o aguaceiro de ontem veio mais cedo!
Assur entrou portando o saco às costas. Abriu-o e retirou de seu interior algumas frutas e um volume protegido por um pano branco, depositando-os sobre a mesa. Foi à cozinha voltando rapidamente, trazendo interessante fruteira. Era de barro queimado, bem acabada, reluzente e envernizada na forma de uma estrela irregular. Ele acondicionou algumas frutas menores nas pontas e as maiores no centro. Em seguida desmanchou a pequena trouxa, dirigindo-se a Sorman:
- São bolinhos. Se o seu paladar apreciá-los trarei mais - Sorman provou e gostou - farei chá para acompanhá-los - e se encaminhou outra vez para a cozinha. Sorman experimentou uma fruta maior. Depois tomaram chá. O jovem se lançou nos bolinhos, comendo-os todos. Após, Assur preparou o almoço e, ao terminar, guardou novas folhas no recipiente do armário; deixou tudo em ordem e se despediu.
As energias do alvorecer haviam feito bem a Sorman: ele reagira. O breve e descontraído diálogo que travara com Assur fora-lhe também benéfico. Não voltara a cair naquele marasmo mental da noite anterior, porém ao ver-se novamente sozinho, algo como um eco não identificado começou a se anunciar em seu íntimo. Súbito estremecimento tomou-o; ele rapidamente foi ao quarto, calçou os sapatos e deixou o chalé, pisando a umedecida grama, a tempo de ainda ver Assur, resolvendo igualmente descer. Sem desejar alcançá-lo não se apressou. O sol já aquecia, ele tirou o pulôver pela cabeça, jogando-o às costas, enlaçando suas mangas suavemente pouco abaixo do pescoço.
Assur não se voltara uma única vez e penetrara na floresta desaparecendo de vista. Curioso por não vê-lo rumar para casa, movido por um impulso, Sorman apertou o passo logo se acercando da floresta. Sem mesmo hesitar nela ingressou, procurando divisar a pequena figura a quem seguia, olhando entre árvores ou sobre arbustos, não o vendo. Passou então a procurá-lo com maior determinação, apressando-se e vasculhando em derredor a medida que percorria uma trilha mais larga. Não sabia exatamente porque fazia isto: seria mera curiosidade, um exercício mental ou somente uma tentativa de se manter ocupado para fugir de si mesmo. Mas não importava agora, desejava sim encontrá-lo sem ser visto. Tendo alcançado a clareira onde estivera no dia anterior, prosseguiu em frente, resolvendo parar em certo trecho e tentar ouvir. Apurando a audição, buscou perceber ruídos de gravetos sendo quebrados, o farfalhar de galhos ou coisas semelhantes. Sem lograr êxito nesse intento, mas sem dar-se por vencido, reiniciou os passos pela trilha, tendo antes a idéia de examinar o solo para ver se encontrava pegadas. Nesse local, a terra estava mais visível; não havia tantas camadas de folhas secas, gramas, raízes e forrageiras em geral: estava úmida e amolecida pela ação da recente chuva; seria possível, dessa maneira, observá-la com maior facilidade. Com efeito, acusou pegadas. Satisfeito, apressou-se em segui-las, tendo mais adiante que sair da trilha, vendo-se diante da inclinação que ali principiava, começando a subi-la, apoiando-se em grossas árvores ou agarrando-se a finos e maleáveis troncos, finalmente atingindo com dificuldade a chapada de um barranco. Olhou para baixo notando o quanto escalara. Entretanto, dessa posição não podia ver dali tudo o que deixara para trás. Nesse patamar, o solo se apresentava semelhante à pequena estrada, e ele caminhou retamente, observando sempre as pegadas. Seus sapatos estavam irreconhecíveis, afundavam na terra, já nem era possível vê-los tamanha a quantidade e espessura do barro que neles houvera aderido.
Indo em frente, embrenhou-se novamente pela vegetação, misturando-se ao verde das folhas, rompendo com mãos e pés as amarras dos finos cipós que se agarravam ao chão em malhas e redes, ou parasitavam os troncos, e chegou noutro local onde o terreno não sendo tão íngreme, permitia-lhe melhor movimentação. Continuou a subir e mais adiante o entreviu em meio a folhagens, parando e se ocultando. Assur dependurara o saco num galho e colhia frutas, amontoando-as junto a um tronco seco. Assobiava e murmurava uma cantiga enquanto se esticava a fim de alcançar as frutas. Em dado momento, galgou o tronco de uma árvore, atingindo um galho empencado de frutas, e sacudiu-o com cuidado, fazendo com que as frutas maduras caíssem e rolassem. Descendo, buscou-as, juntando-as ao lote que amontoara; tomou depois o saco e limpou-as no tecido do próprio saco, retirando de seu interior o mesmo pano branco no qual levara os bolinhos para o chalé. Selecionando algumas frutas, depositou-as no pano, segurou suas pontas amarrando-as, e fez pequena trouxa. Enfiou depois as demais frutas e a pequena trouxa dentro do saco, reiniciando a subida.
Sorman, oculto pela vegetação, a tudo observava e não desejando perdê-lo de vista seguiu-o de imediato, mantendo-se a certa distância, procurando não ruidar nem se fazer visível. Após subir outro grande trecho, Assur contornou uma rocha não muito alta nem muito larga e desapareceu. Sorman apressou-se, contornando a mesma rocha, parando, porém, quando o viu andando sobre a lisa e larga pedra que se arremessava para a floresta, à borda de um pequeno despenhadeiro. Assur ia em direção de uma pessoa que se assentava na postura de padmasana. O estranho possuía longos e negros cabelos que lhe caiam às costas, vindo pousar na pedra onde ele se assentava, dobrando-se em algumas voltas. Branco tecido descia diagonalmente ao seu tórax, à frente e às costas, cingindo-lhe o baixo ventre, envolvendo-o entre pernas. Encontrava-se de frente para o sol, cujos luminosos raios se infiltravam nos entremeios das árvores, tocando parcialmente seu corpo e rosto, projetando sua sombra não totalmente cheia, exatamente na direção onde Sorman estava. Aquela visão provocou-lhe verdadeiro redemoinho mental e emocional; o coração pulsou com maior ritmo; a respiração tornou-se quase opressa, e por pouco não deixou escapar sonora exclamação, conseguindo, todavia, conter-se.
Assur posicionou-se ante aquele homem que meditava, lançando-se ao solo em reverência; depois ficou de joelhos, enfiando as mãos dentro do saco, e retirou as frutas que embrulhara. Depositou-as diante dele, abriu o pano e as deixou à mostra. Em seguida, lançou-se de novo ao solo. Ao levantar-se, caminhou para o outro lado da rocha, não sem antes elevar o rosto, virando-o suavemente, encontrando propositalmente o olhar de Sorman. Sem nada dizer ou sinalizar prosseguiu, alcançando a volta da rocha, e desapareceu.
Sorman ficou a observá-lo. O anacoreta permanecia imóvel como a própria rocha ali existente e passados alguns minutos o jovem resolveu se aproximar, rodeando-o cuidadosamente. Ao contemplar-lhe o rosto, quase completamente coberto pela barba que se alongava até suas dobradas pernas, reconheceu algo familiar na escondida fisionomia, embora o homem estivesse de olhos cerrados. Mas não houve tempo para reflexões, o homem moveu o abdome inspirando profundamente. Ao exalar, Sorman sentiu a cabeça girar e as pernas automaticamente se dobrarem, sentando-se também em padmasana, descalçando os sapatos e se descartando do pulôver, que jogou para o lado. Permaneceu imóvel por alguns segundos, que lhe pareceram anos. Havia em derredor uma aura de puro magnetismo; através dela dimanavam paz, harmonia e suave perfume de rosas. O homem não era alto, no entanto assumia proporções de um gigante; sua ereta postura se impunha de tal forma que tudo à volta parecia menor, sem importância. A gruta, atrás, onde ele se protegia das intempéries, estava impregnada de sua vibração. Sorman acusava isso com a sensibilidade agora mais ampliada, enquanto aos poucos incursionava naquela atmosfera santificada.
Ele moveu ligeiramente a cabeça e Sorman saiu daquela rigidez em que se prendera, passando a observá-lo com todos os sentidos alertas. O anacoreta continuou a mover a cabeça, virando o rosto lentamente para um lado e para o outro, ainda de olhos fechados, parecendo exercitar o pescoço a fim de aliviar a cerviz de uma demorada tensão a que a havia submetido. Então inspirou profundamente, elevando o tórax ao máximo, como se pelo alento o espírito reentrasse no corpo e abriu os olhos.
Ao sorrir, Sorman o reconheceu atirando-se para adiante, estendendo os braços e tocando as mãos na pedra. Na postura do lótus, assim encurvado, lembrou mítica e sagrada ave, cujas asas se fechavam em direção da terra e a cabeça se deitava buscando assimilar forças naturais. Ao retomar a postura ereta do tronco - a ave ressurgia para a vida - vibrou o mais puro amor em seu coração, juntando as palmas das mãos diante do peito, dizendo com amplo sorriso:
- Mestre!!!
Rama uniu as mãos em igual gesto, respondendo:
- Amado discípulo!
Jamais lhe passara no pensamento tal reencontro, muito menos nesse lugar. O simples contato com a aura do mestre produzira-lhe súbita elevação em todos os níveis do ser. Resquícios de preocupações, temores ou melancolia cederam espaço para novos e superiores estímulos. Sentia-se agora fortemente enobrecido; de novo acreditava em suas possibilidades. Ao reconhecer Rama, alguma coisa a mais aconteceu: brotaram-lhe vibrações de amor que se maturavam silenciosamente no oculto de seu coração, e, incontidas, se anelaram a um sentimento especial. Este sentimento, ao mesmo tempo em que reverenciava ao mestre, liberava também outro de uma estirpe inferior, represado e contido em seu subconsciente, que o compensou, redimindo-o perante sua própria consciência. Em verdade, sempre se sentira covarde desertor, alguém que ingrata e egoisticamente olvidara as principais mensagens recebidas do mestre. Esse frustrante sentimento estigmatizara-o, punira-o! Deixara o ashram, mas o ashram amargamente em si permanecera, queimando-o ao longo dos anos como dolorosa expiação. O ashram, em última análise, era Rama e Rama aqui estava - o reconhecera! Então os tinha a ambos diante de si: isto possuía grande significação.
- Não há palavras que expressem minha alegria ao revê-lo. Como iria imaginar reencontrá-lo em tão distante lugar? - disse Sorman entre alegre e emotivo.
- A distância somente existe nos falsos parâmetros do pensamento.
- O ashram está longe, você parece meditar aqui por muito tempo - insistiu sem ter refletido sobre as palavras de Rama - meu corpo físico dorme, o seu dormirá de mesma maneira? - Rama somente sorriu, deixando-o embaraçado, mas ele continuou - durante o tempo de meu afastamento do ashram, venho passando por estranhas e fascinantes experiências. Não obstante, minha vida parece não me pertencer. Vejo-me seguidamente diante de desafios; aparentemente eu os escolhi, aceitei-os a fim de chegar a melhor avaliação de meu próprio ser, preparando-me dessa maneira para novas conquistas. Porém, a despeito disto, questões inevitáveis emergem em minha mente abordando ângulos que me parecem incoerentes. Constantemente me pergunto se estou realmente avançando, recuando ou simplesmente me encontro estacionado no mesmo ponto onde sempre estive desde o início, apesar de todo o movimento e envolvente clima das situações. Os desafios que supero são para mim reflexos do passado, e relacionado a isto, parece existir alguém possuidor de poderosa mente dominadora da matéria mental e de seus efeitos, que a manipula a seu bel-prazer, vivendo à parte, observando-me dia e noite. Nesse domínio, ele extrai do interior de minha psique personificações de meus temores e fraquezas. Na realidade, - concluo, - são fantasmas de meu “eu” que se colocam diante de minhas próprias cogitações ao longo dos argumentos adrede arranjados, configurando quadros e encenações. Face a isso, sinto-me parte de um mundo absolutamente falso, sem nenhuma consistência, que, apesar de fantasticamente ilusório, atua-me e me leva de roldão. Sou na verdade, em meio a tudo isto, o simultâneo palco, o roteirista coadjuvante, o ator e o privilegiado espectador. Se o passado já se conformou, definindo sua indelével passagem no espaço-tempo, pergunto-me porque razão devo evocá-lo, trazendo-o de volta ao cenário, ressuscitando-o. Seria necessário reabilitá-lo? Tudo o que me dizem - e nisto participam os fantasmas de minhas próprias fantasias - é que necessito retomar o domínio de certos aspectos dos elementos a fim de reafirmar-me nas bases para não cair e rolar por terra. Mas os perigos enfrentados nesta retomada, se não vencidos ou pelo menos contornados, causar-me-iam a morte prematura, o final de minha atual manifestação personalidade, ou, ainda, o possível fechamento das portas às minhas aspirações de iniciado. A verdade, o cerne de tudo, acha-se para mim até o instante concretamente inabordável e, - salvo por conclusões conduzidas por abstrações, - cogito quanto ainda me enganarão se nada faz realmente sentido.
Rama lentamente descruzou as pernas, esticou-as e as massageou em certas articulações, apertando-as com as pontas dos dedos; com isso rapidamente se levantou aproximando-se de Sorman. Seus longos cabelos dividiam-se, abrindo-se sobre os ombros e braços, tocando também as laterais das pernas até abaixo dos joelhos. A barba vinha-lhe até a altura das coxas; ele arcou-se com suavidade colocando o dedo indicador na testa do jovem, emitindo um breve som mântrico.
Como se fora um foguete rumo à estratosfera, Sorman voou para cima, acompanhado de Rama, chegando ambos a uma pequena região de fantástica beleza, descendo sobre um monte. Rama então falou-lhe:
- Discípulo, aqui tudo é beleza e perfeição comparado a Terra. A vida é um bálsamo e as pessoas reverenciam, minuto a minuto, ao Deus único em seus corações. Vede o céu como é belo. A luz do astro rei toca todas as coisas com suavidade, parecendo cantar e vibrar permanente melodia - e de fato o faz. Não há dores nem amarguras; a morte não os assusta porque sabem que ela não os rouba nem os priva da vida. Seu temível espectro ficou no passado, perdendo-se em sua memória. Desceremos e visitaremos algumas de suas casas para conhecer de perto este paraíso. - Dizendo isto, Rama estendeu as mãos, passando-as abertas em torno da cabeça de Sorman, sem, contudo, tocá-lo, conformando em redor invisível película, fazendo o mesmo movimento sobre si - Devemos nos tornar invisíveis para melhor observarmos - disse ao mesmo tempo em que o segurava e se projetavam para baixo.
Chegando à cidade escolheram uma casa, nela entrando. A casa era arredondada, as dependências mostravam diferentes simetrias, os móveis e objetos em geral possuíam formas e padrões interessantes. Habitava ali uma família de quatro pessoas; eram todos felizes, se respeitavam, o ambiente transpirava leveza e harmonia. Percorreram depois outras casas idênticas, vendo sempre pessoas felizes. Porém, numa delas, havia um jovem, a sós, no seu quarto, sentado na cama, pensativo. Seu rosto mostrava ar de preocupação e algo que ainda não haviam visto nas pessoas: tristeza.
- Vede, discípulo, como em meio a tanta harmonia existe alguém insatisfeito e triste. Tentemos descobrir qual seria o motivo destes inoportunos sentimentos - dizendo isto, Rama aproximou-se do triste rapaz, puxando Sorman para junto de si, colocando a ponta do indicador de uma das mãos na testa dele, e fazendo o mesmo com o indicador da outra mão na testa de Sorman. Fechando os olhos, falou: - concentrai, discípulo, para captarmos as vibrações do campo das idéias do rapaz. Sorman então começou a perceber imagens.
- Estou conseguindo ver, mestre!
- Relatai o que se passa.
- O rapaz formou uma nuvem em torno de sua mente com a energia do pensamento. Esta nuvem traz diversas nuances de cores e formas.
- Tentai captar o teor das vibrações, lede a nuvem!
Sorman então ingressou com a mente no interior da nuvem, sofrendo pequena convulsão, mas logo fazendo a leitura.
- Ele sente desânimo e desmotivação. As coisas em derredor nada lhe dizem, não lhe trazem nenhum significado, e seu íntimo não o alenta a inverter a situação. Parece estar morto apesar de vivo.
Rama descolou os dedos de ambas as testas, desmanchando e desativando a ponte que houvera feito, começando a circular as mãos abertas em torno da cabeça do rapaz. Em determinado momento parou os movimentos e de novo colocou o indicador sobre a testa de Sorman.
- Vereis o que estou vendo. Fiz os registros de sua vida mostrar uma faixa de seu passado. Notai como o rapaz foi iniciado nos mistérios da natureza, incorporando forças e com elas atuou. Depois, em vidas subseqüentes, ignorou os conselhos de seus mestres abandonando a meta das iniciações, não prosseguindo na bonita estrada. Entretanto, é bela alma; com esta beleza interior viveu o melhor que pode em sucessivas encarnações. Neste momento atingiu o clímax de suas experiências externas, não vendo mais atrativos na vida, necessitando de novos estímulos. Precisará retomar os caminhos iniciáticos, e, dependendo de suas aptidões, poderá encontrar estímulos neste mesmo lugar após buscar pelo autoconhecimento. Como não é possível fazer retornar o passado em forma concreta ou tangível, senão por imagens e registros psicométricos, de alguma sorte esse retorno no tempo precisará ser feito. A retomada das forças da natureza se impõe. A chama do desejo superior precisa urgentemente ser reativada e voltar a arder em seu coração ou, vida após vida, fracassará no desalento. Assim antevejo o rapaz buscando a realização, e pergunto-vos, discípulo: haverá alguma semelhança entre vós e ele?
Sem mesmo aguardar pela resposta, Rama descolou o dedo da testa de Sorman voltando a mover as mãos espaldadas sobre a cabeça do rapaz. Ao terminar, o rapaz exalou profundo suspiro e olhou para adiante, parecendo ver no invisível a solução de seus íntimos dilemas. Em seguida, se levantou deixando o quarto. Sorman refletiu e concordou com o mestre. Rama sorriu e colocou a mão em seu ombro, recitando novo mantra. Imediatamente Sorman foi sugado para cima, depois precipitado das alturas, abrindo os olhos ao sentir-se de novo estável, vendo Rama diante de si a descolar o dedo de sua testa e sentar-se à sua frente, sobre a lisa pedra, na postura do lótus, como ele estava. Parecia não haver se passado tempo algum desde que Rama o tocara.
- Mestre, seria este o enigma de minha vida, o motivo de eu precisar voltar ao passado?
- Presenciastes uma situação alheia onde alguns momentos do percurso daquela vida podem, hipoteticamente, ser coincidentes com os vossos. Há em vós outros valores que o rapaz não possui, por isto não pode haver perfeita coincidência em tudo. Duas consciências jamais serão absolutamente iguais, nem tão pouco quase iguais. As conquistas de cada uma e suas necessidades são diversas. Portanto, o enigma eu de vossa vida continuará prisioneiro em vossa mente até conseguirdes libertá-lo.
Aquele dia seria inesquecível para Sorman. Ele permaneceu em companhia do mestre que lhe passou novos ensinamentos, repassando outros comunicados do ashram. Ao cair da tarde explicou-lhe como obter melhor aproveitamento nos períodos de meditação. Fê-lo entender, ou rememorar, que a técnica do domínio mental é perfeitamente possível, desde que tenazmente exercitada dentro de certos parâmetros. Cada um tem seu próprio limite para suportar a saturação mental. Uma vez ultrapassado este limite, ocorrerão danos irreversíveis. Assim, nos estágios iniciais, este mandamento não pode nunca ser esquecido ou desprezado. Porém, com o avanço do praticante, este cuidado se tornará menor num sentido e facilmente manipulado noutro, pois ele aprenderá a tratar sua própria energia mental com técnica apurada, sabendo quando e como aliviá-la nas tensões ou se reabastecer dela nas necessidades.
O sol começava a declinar, dentro em pouco a tarde findaria e Sorman propôs-lhe ficar:
- Dormirei aqui mesmo na gruta e despertarei meditando em sua companhia.
- Isto não será possível, discípulo. A noite é muito fria, não a suportareis sem adequados agasalhos. Ademais, precisareis alimentar-vos apropriadamente e relaxar. O sono vos é necessário e importante. No chalé tendes melhores condições e todas as coisas de que precisais. É bom irdes. Decepcionado, Sorman levantou-se, juntando as mãos e trazendo-as unidas contra o peito, saudando-o:
- Mestre!
Rama respondeu e abençoou-o elevando a mão em sua direção, balançando-a aberta no ar e, de olhos fechados, pronunciou rápidas e ininteligíveis palavras. Sorman retornou ao chalé. Ao chegar estava ainda claro apesar de o sol ter desaparecido. As coisas estavam em ordem: a mesa posta e os alimentos preparados. Ele imediatamente se dirigiu ao banheiro e tomou longo banho.
Anoitecera. Gelado ar invadia a casa; ele agasalhou-se, fechou portas e janelas e acendeu o lampião. Após, trouxe a salada para a mesa e procurou aquecer a panela do caldo simultaneamente ao recipiente do chá, constatando, porém, que o braseiro era fraco e insuficiente para o desejado. Jogou então cavacos de lenha sobre o braseiro a fim de avivar o fogo, conseguindo o seu intento; logo estava à mesa a comer, depois a sorver o quente chá.
Nesse momento se encontrava na varanda. Ao olhar para as cercanias, admirou-se do manto noturno, excessivamente negro, que rapidamente havia cerrado os espaços, obstruindo a visão. O céu, entretanto, ante a observação, mostrava-se extremamente vivo e cintilante, sendo essa a primeira vez que o contemplava à noite. Com efeito, milhares de astros oscilavam com perfeita nitidez, como jamais houvera visto; alguns cambiavam rápidos matizes, fazendo o firmamento adquirir ares de alegre suntuosidade. A figura de Rama veio-lhe à mente e relembrou as situações vividas ao longo do dia. À medida que as imagens reapareciam em sua memória, um tipo de expectativa, um estranho anseio, vinha estimular-lhe as emoções. Isso o deixou atento e de imaginação ativa, resolvendo que não mais permaneceria no chalé; pela manhã voltaria à gruta e lá ficaria em definitivo. Pretendia levar o que lhe fosse necessário: ao lado do mestre concluiria o seu tempo neste lugar. Assim decidido continuou a observar o céu até sentir sono, indo para a cama.
Ao romper da manhã se levantou como se a campainha de um despertador fosse acionada, vendo-se num pulo diante da janela, abrindo-a e recebendo o frio ar no rosto. Começou imediatamente a remexer no armário, pegando o pulôver e o vestindo. Encontrou uma grande mochila - própria e adequada para excursões - acondicionando em seu interior um cobertor; descobriu depois uma esteira de palha enrolada num canto do armário; tomou-a e saiu do quarto. Precisaria de pouca coisa, se mais fosse necessário, voltaria para buscar. Após o asseio foi à cozinha para fazer chá, mas não conseguiu acender o fogo com o aparelho que Assur manipulava com destreza e desistiu. Fez então rápido desjejum com um pouco de salada que sobrara da noite, comeu uma fruta e deixou o chalé, carregando os objetos.
Ao chegar à gruta não viu Rama. Caminhou até o meio da pedra e girou maquinalmente trezentos e sessenta graus, varrendo o espaço com o olhar como se, de alguma sorte, pudesse achá-lo pairando no ar. Largou a mochila e a esteira e entrou na gruta, examinando-a atentamente, notando-a sem o menor vestígio de que fora habitada. Algumas pedras tinham fungos; pequenas teias de aranha prendiam-se às paredes. Estava fria e inanimada, sem aquela viva aura magnética que a permeara no dia anterior quando Rama meditava. Intrigado, deixou a gruta e rodeou a rocha, atingindo o limite da elevação, olhando para baixo e cercanias, nada vendo. Agachou-se, estudando as pegadas na terra próximo à rocha, localizando as suas próprias recentemente deixadas, misturadas às de ontem e às de Assur, e nada mais, obtendo a certeza de que por ali o mestre não caminhara. Uma pontada lancetou-lhe o peito, anelando-se a fino sentimento de amargura. Aquele fugaz sentimento premonitório ganhou corpo e peso, trazendo-lhe a certeza mais concreta: o mestre não voltaria, que fazer?
Triste, voltou à pedra sentando-se, ficando a cismar e a inquirir-se: teria estado realmente com Rama ou seria essa, nova e estranha situação como tantas em que se envolvera? Mas se tudo fora miragem, como então guardara em si as lembranças dos novos ensinamentos que recebera? Miragens são efêmeras - aparições insulsas - não deixam rastros nem provas de sua existência, e ao retornar ao chalé levara consigo novas energias e a presença do mestre. Comovera-se, reagira ao reencontro; impossível imaginar a realidade - estivera de fato com o mestre! Súbito lembrou-se de que Assur servira o mestre, pelo visto o servia sempre; ele era a testemunha, saberia onde Rama estava!
Imediatamente abandonou o lugar descendo as elevações e os declives, chegando à clareira onde havia a pequena cascata e o córrego. Tendo em mente a indicação que Assur lhe dera, prosseguiu pela margem do córrego, logo deixando a floresta, ganhando o campo e vindo banhar-se plenamente da generosa luz solar. Continuou a caminhar, seguindo sempre o curso das águas: mais adiante viu uma graciosa casa de madeira. Cruzou pequena ponte, percorreu um caminho ladeado de pedras e plantas arbústeas, aproximou-se da casa e parou diante da varanda. A porta estava fechada e ele chamou:
- Assur!
Como resposta, ouviu somente grasnos de gansos detrás da casa. Chamou novamente e os grasnos se repetiram; desistiu então e pisou o cuidado gramado, contornando a casa, vendo pequenos canteiros ornados com desconhecidas e coloridas flores. Chegando ao fundo, encontrou pequena construção, também fechada, que seria um armazém, um depósito ou uma lavanderia. Mais além, viu algumas árvores agrupadas, proporcionando boa e acolhedora sombra e no perímetro maior, afastado dali, notou como o arvoredo formava um anel, constituindo-se num pequeno e atraente bosque.
Tendo feito a volta completa em torno da casa, verificou que todas as janelas e portas encontravam-se fechadas, concluindo não haver ninguém no seu interior, resolvendo explorar as redondezas. Um vento começou a soprar repentinamente, açoitando galhos e folhas, provocando o flexionar das altas e maleáveis copas do arvoredo. Adiante, ele encontrou canteiros de verde e viçosa horta cercados de espantalhos, e sorriu. Mais na frente atingiu pequeno corte de uma suave elevação, já longe das sombras do bosque, onde um campo se espraiava até boa distância, terminando num aclive onde começava a floresta e estancou os passos. Como não tivesse mesmo encontrado Assur, enveredou pelo campo aspirando ao gostoso odor de terra e grama, sob a permanente ação dos raios solares, chegando ao limiar da floresta. Orientando-se, guinou para a direita procurando o melhor ponto onde atravessar o córrego, encontrando interessante recanto sob finas e compridas árvores envoltas por marginal vegetação semiaquática. Dentre suas longas e encurvadas folhas, espigavam flácidos caules cobertos de penugem rósea, terminados em taças vermelhas e brancas. Bancos de areia avançavam para o interior do leito; era possível pisá-los e pular sobre as águas sem se molhar.
Já na floresta, retomou a trilha em direção à rocha, logo pisando a laje, indo imediatamente guardar os seus pertences que esquentavam sob um facho de sol. Estendendo a esteira no interior da gruta, jogou a mochila sobre ela e sentou-se na postura do lótus, ficando inerte e desanimado, olhando para fora sem nada ver ou pensar.
Por sobre a gruta e em redor havia muita vida. A natureza obrava e cantava, vibrando sua permanente nota sem qualquer dissonância. As conquistas dos reinos, mesmo de seus mais insignificantes representantes, são sentidas pelo todo, num só corpo, pela sucessão de movimentos e instintos. Na realidade, quem vence um desafio não leva nenhum mérito especial pelo triunfo - não há triunfo isolado: neste particular o coletivo é o vencedor! Vida ou morte, não importa; qualquer musgo ou fungo, arbusto ou árvore, inseto ou réptil; um ser aquático, um animal ou uma ave, todos, têm de desempenhar os seus papéis, simplesmente vivendo ou morrendo, estas são definitivamente as conquistas! Todas as coisas giram assim, pelo menos é o que acontece na Terra; a vida instintiva sabe responder somente desta maneira: vivendo ou morrendo, isto não teve um começo nem terá um fim, acontecendo a renovação ciclo após ciclo. Morrer para seu voraz caçador viver; caçar e matar para sua própria sobrevivência. Mesmo os unicelulares, os informes: todos obtêm suas energias de fontes alheias; nenhum sobrevive sem matar, arrancar, ou comer o mais fraco. Com o homem não podia ser diferente. Ele é gregário, como são os seres afins dos reinos inferiores, e também dependente!
O tempo passou. Sorman ali permaneceu, olhando e nada vendo. Na realidade, se decepcionara, perdera as esperanças de rever Rama; até Assur desaparecera. No caminho de volta, concluíra existir um perverso sincronismo entre os seus passos e os movimentos ao redor que o surpreendiam a todo instante. Além da natural decepção, seu ânimo se abatera. O ânimo provém da perspectiva do prazer. Quanto mais se acalenta essa perspectiva, mais os mecanismos da psique trabalham e intentam a conquista. E quando o prazer não se concretiza, o substrato termina em nada, perdendo sua flexão para fora; o emocional que fluía vigorosamente em direção ao objeto imaginado ou real, era sua vibrante alma. Tendo o caminho chegado ao fim, as emoções em exacerbada formação, e as sensações subjacentes, terão de retornar ao seu ponto de origem - e voltam adicionadas de um sentimento de frustração. Estando, porém, insufladas já ganharam forma e corpo não podendo mais ser reabsorvidas, permanecendo pelas cercanias do mental, agredindo a psique, provocando inicialmente a depressão; em muitos casos a imediata reação violenta.
A depressão, entretanto, pode ser vencida antes mesmo de se manifestar. A meditação é um instrumento que reduz a potência dos ataques da energia-forma criada e mal qualificada, escudando a psique. Como resultado, a energia-forma perde pouco a pouco a sua força de ação invertida ou retrátil, não conseguindo provocar impactos diretos, evitando-se assim, das manifestações coordenadas, também a violência. Não recebendo novas insuflações, a energia-forma enfraquece, perde seu poder de coesão e se desagrega. Este desbloqueio pode acontecer de imediato, ou durar tempo indeterminado, dependendo do treino mental de cada um e de sua natureza psíquica.
Sorman, talvez na inconsciência de suas atitudes, optou por neutralizar a frustração, não emergindo para outros estados vibratórios superiores nem, ao contrário, submergindo para níveis subconscientes a fim de contrapor argumentos - o que neste último caso o traria rapidamente para a depressão ou dicotomias intermináveis e exaustivas. Ao invés, estancou o processo pensante, travando qualquer possibilidade de cogitação ou reflexão, e anulou a ação inversa da forma criada no animismo. Assim permaneceu por horas. Em certo momento, cansado, estirou as pernas sobre a esteira e puxou a mochila, aconchegando-a com o cobertor para sob a cabeça, dormindo. Mas não dormiu muito, só o suficiente para relaxar e aliviar a mente da tensão dinâmica que exercera ao manter os opostos equilibrados. Ao acordar e sentar-se, viu na porta da gruta um pano branco estendido e aberto, sob meia dúzia de belas e maduras frutas.
- Assur! - exclamou, levantando-se imediatamente, pulando sobre as frutas, correndo em redor a procurá-lo, não o encontrando; voltando, todavia animado, e, de certa maneira, reconfortado porque não estava só!
Enquanto comia, já pensando em voltar à casa de Assur para saber de Rama, viu chegar um camaleão que se aproximava aos poucos em pequenas e rapidíssimas corridas. Já na entrada da gruta, ao ver Sorman, o camaleão parou, ficando estático, e quando lhe atirou um pedaço da fruta que comia, o camaleão assustado fugiu desaparecendo. Aquele pequeno e insignificante acontecimento forneceu-lhe, no entanto, elementos para que refletisse e, por uma analogia qualquer ou um argumento sem aparente consistência, achou que Assur iria proceder como aquele camaleão: fugiria sempre, não adiantando assim ir procurá-lo!
O sol se pôs e a noite caiu. Sorman, agasalhado, cobertor enrolado no corpo, sentava-se na esteira dentro da gruta e se lamentava. Tolo fora em não trazer o lampião; agora mal enxergava um metro. Pensara em retornar ao chalé, mas seria imprudente, poderia perder-se ou pisar em falso, rolar por alguma ribanceira e se machucar; assim desistira da idéia. Desta maneira, aqui ficara acalentando ainda um fio de esperança de que Rama aparecesse - outra provável tolice!
Nada mais tendo a fazer além de meditar, resolveu novamente se concentrar, tomando habitual postura de padmasana. Aos poucos foi se desligando dos cricridos de grilos, do piar fortuito de aves noturnas e do macio ruidar de folhas sob a aragem. De repente ouviu vozes e rumores que o fizeram voltar à consciência, abrindo imediatamente os olhos, apurando a audição. Mas as vozes se calaram, os rumores cessaram e ele voltou a perceber os sons da natureza em derredor. Voltando a se concentrar, ouviu de novo vozes, desta feita acompanhada de risos.
- Quem é? - perguntou, olhando inutilmente em torno. Como não obtivesse resposta, descruzou as pernas e se levantou, se descartando do cobertor, caminhando em direção da saída da gruta, tateando pedras e o próprio chão. Porém, nada viu nem mais ouviu, e resolveu prosseguir se apoiando na rocha, alcançando as proximidades da floresta - alguém aí? - gritou, ouvindo tão somente o ruflar de asas de um assustado pássaro e o quase imperceptível eco de sua própria voz. Ficou imóvel por alguns minutos com a respiração inicialmente presa, soltando-a pouco a pouco. O frio ar esfriava-lhe a cabeça e o rosto, ele puxou o capuz protegendo-se. Nada mais tendo a fazer, retornou à gruta sentando-se na esteira, e se enrolou novamente no cobertor, retirando o capuz da cabeça.
Retomando a postura do lótus, buscou se concentrar, mas as vozes e os risos voltaram. Com a repetição do fato ele entendeu que aquilo estaria sintonizado com sua mente. Como insistisse em se manter concentrado, as vozes e os risos se multiplicaram em dezenas e centenas. Mas ele resistia, procurando se manter sereno, na certeza de que não conseguiriam molestá-lo. Nesse comenos, uma forma negra pairou ante sua percepção e uma voz se fez imperiosamente audível de seu interior:
“Não conseguirá o seu intento, você não pode, é tíbio!”
Sem se deixar abalar, Sorman manteve-se concentrado, logo vendo o rosto de uma jovem que lhe falava:
“Moço, não lhes dê ouvidos, eles são perversos, não desejam que você alcance o seu objetivo. Se permitir, eles o aprisionarão como fizeram comigo...” Suas palavras foram interrompidas por uma negra mão que lhe tapou a boca e a arrancou dali. Risos estrondaram enquanto a moça grunhia e se calava de vez.
O vozerio perturbador o acompanhou por longo tempo; em certos momentos podia até sentir presenças, como se fossem sólidas. Resolvendo se levantar, foi à porta da gruta e contemplou o único panorama que o negrume não conseguira apagar, que era um trecho do céu entre copas de alto arvoredo. A baixa temperatura – bem mais sentida do lado de fora da gruta - de alguma sorte servia para tirá-lo da letárgica sintonia que a prolongada concentração produzira, sobrevindo-lhe uma reação. Com isso, podia se libertar completamente do vozerio e refletir sobre o que vinha acontecendo. Mesmo encapuzado e envolto pelo cobertor, o ar gelado, e às vezes um breve vento ali fora, faziam-no trepidar sobre a umedecida laje de pedra; logo ele voltava para o interior da gruta a fim de se concentrar, mas o vozerio e os risos também voltavam.
Mais tarde, noutra rápida saída, notou como o céu vinha perdendo o escuro tom de fundo e os astros mostravam os seus brilhos enfraquecidos. Ao invés do negro, um tom acinzentado se manifestava. Em breve, novos tons se mesclavam e o céu se tornava mais claro. Com isso, o manto de trevas sobre o planeta também se enfraquecia. Seus olhos já conseguiam furar o denso bloqueio e entrever formas antes não percebidas. Mas ainda estava escuro..., Sorman não entendia o que se passava, que fenômeno seria esse, porque muito embora perdesse a noção do tempo na exata decorrência, restava-lhe ainda alguma percepção de sua passagem: e na sua conta o alvorecer ainda demoraria! Na verdade, alguma coisa lhe dizia que se estivesse no planeta Terra neste instante, seria quase meia-noite!
Curioso, suportou um pouco mais a exposição ao intenso frio e viu o céu ganhar tonalidade azul arroxeado com faixas de cinza claro. A noite perdia outro tanto da sua espessa e negra presença e a visão para ele melhorara consideravelmente.
Resolvendo voltar para a gruta, sentou-se na esteira e mal cruzava as pernas, ouvia um grito de socorro. Quase imediatamente surgiu na entrada da gruta uma jovem nua. Neste exato instante, o céu recebeu nova carga de luz, passando a ter fundo róseo carregado, sobreposto a um véu azul. Esta refração clareou parcialmente a superfície do planeta. Mediante a nova transformação Sorman conseguiu ver o rosto da jovem, reconhecendo a mesma pessoa que lhe falara numa de suas visões.
- Eles estão atrás de mim, não deixe que me levem! - suplicou-lhe. Subitamente, de sobre a gruta, pularam três homens cobertos de negro e agarraram-na. Ela gritou e esperneou, mas eles desapareceram levando-a.
Sorman não alterou sua postura; imóvel, a tudo assistiu sem interferir. Passados poucos minutos, ele se levantou e caminhou até a pedra olhando em torno, vendo unicamente as formas das árvores ainda tomadas pela névoa escura, e o trecho do céu que se descortinava limpo, impregnado do róseo e azul. O manto noturno houvera rasgado, porém era ainda noite. Recolhendo-se em reflexões, concluiu que teria de conviver com estas estranhas e perturbadoras aparições, não as temendo, do contrário ver-se-ia envolto por elas podendo ser afetado em seu equilíbrio mental. Com este raciocínio, retomou a postura do lótus, já sob a gruta, voltando a se concentrar.
As vozes e os ruídos jamais cessavam; após nova e infrutífera tentativa de entrar em meditação ele abriu os olhos. Mas a visão neste momento ficara turva e nada conseguia ver com nitidez. O panorama além gruta, desta feita, misturava-se a sombras e a algo como uma cortina obnubilada. Esse estranho amálgama movia-se, produzindo deformações e imprecisão naquilo que antes ele conseguia vislumbrar. Era qualquer coisa plástica, meio transparente, meio gelatinosa, inexplicável e inexata, porém obscura, e dentre esta turvação ele percebeu chegar alguém que tinha asas, que as fechou tão logo aterrissou na entrada da gruta. Porém, sem a suficiente nitidez que a obnubilação provocava, somente conseguiu acompanhar seus movimentos parcialmente. A aparição, após ter parado na entrada da gruta e tê-lo observado, entrou e se posicionou nas proximidades, ao seu lado, sentando-se numa pedra, ali permanecendo. Sorman, com esforço tentava ver melhor a negra figura sem, entretanto, conseguir discerni-la, todavia notou-lhe a alta estatura, talvez como a sua; isto o agoniou, mas assim mesmo arriscou-se a alguma coisa:
- Quem está aí? - a negra aparição moveu as asas, descolando-as ligeiramente como as aves que se ajeitam, provocando ruidar característico do roçar de penas, e as fechou. Mas não respondeu. Sorman insistiu - Você pode falar? Diga o que deseja? A aparição não falou. Sorman, incomodado, aguardou alguns minutos. Mas como as coisas não tomassem nenhum outro rumo e aquela estranha cortina continuasse a obstruir a visão, ele desejou sair e verificar lá fora qual a extensão deste novo fenômeno. Principalmente, receava ter de se digladiar com aquela presença, pois nada sabendo dela não tinha certeza se o atacaria tentando matá-lo, ou se pretendia expulsá-lo da gruta. Assim, cautelosamente, descruzou as pernas, evitando movimentos bruscos e se levantou. Imediatamente ela pulou adiante, ruflando as asas e as abrindo amplamente, com a declarada intenção de impedi-lo.
- Deixe-me passar! – gritou. Ela moveu as asas para adiante, quase unindo-as e as manteve assim por segundos, abrindo-as de novo, amplamente, repetindo este movimento mais duas vezes, dando a entender que o mandava sentar-se. Temeroso da disposição dela, ele voltou a sentar-se e cruzou as pernas.
Nesta situação ele permaneceu por longas horas; quando se cansava e se levantava a fim de provocar a circulação das energias pelo corpo, a aparição imediatamente pulava adiante e ali ficava roçando as asas, atenta. Ao sentar-se, ela voltava ao posto sentinela ao lado, deixando livre a passagem no meio da gruta. Isto aconteceu cinco vezes, mecanicamente, rigorosamente igual, como a animação de um sinistro presépio.
Em dado instante a obnubilação foi penetrada de luz e começou a clarear, ganhando nitidez. Sorman olhou para a aparição na tentativa de ver sua real aparência, mas ela rapidamente deu-lhe as costas e se lançou aos pulos para fora da gruta, arremessando-se da pedra em deselegante voo sumindo de vista. A claridade aumentou e a obnubilação desapareceu por completo. Com alívio, Sorman viu um facho de luz solar tocar o piso da gruta na forma de uma flecha, e uma pálida névoa azul claro se insinuar dentre as árvores da floresta. Então se levantou, largando o cobertor, e saiu a fim de saudar o sol, fazendo-o com tamanha efusão como se há anos ele estivesse ausente, inspirando o frio ar com satisfação.
Andando em torno da pedra começou a se exercitar. Seus nervos estavam tensos e as pernas doíam-lhe, reclamando do duro castigo que lhes houvera imposto na longa noite. Sentia-se, evidentemente, cansado, e enquanto se exercitava fazendo um retrospecto mental do que sucedera, pensava também no que fazer daqui para frente. Após muitas voltas, buscou um local onde uma faixa de luz solar se projetava e ali sentou-se, puxando uma vez mais o capuz para a cabeça que esfriara, dobrando as pernas em postura de padmasana, prosseguindo em seus pensamentos.
Sentia-se muito confuso. Ao reencontrar Rama as coisas pareciam, enfim, se ajustar. O mestre mostrara-lhe fatos, projetara-o para situações e dera-lhe excelentes lições. Ia tão bem que decidira compartilhar da gruta com ele. Todavia, eis que tudo de novo muda, o mestre desaparece e nada mais lhe resta. Os pensamentos que se clareavam voltaram a ficar desconexos, sem aparente ligação. O sentido das coisas novamente se tornava enigmático; esta última noite se transformara na mais longa e penosa de sua existência. Olhou para adiante e dentre o verde das grandes árvores percebeu o sol, sentindo despertar-lhe a lembrança de que já o vira percorrer este trajeto três vezes. O tempo escorregava diante de si e veio-lhe a imagem de seu corpo físico em seu quarto. Como reagiriam seus pais ao constatarem que ele não despertava? Respiraria, estaria cataléptico e rígido? Se o julgassem morto, tê-lo-iam certamente enterrado! Ante esta hipótese, sentiu uma contração no ventre e a sensação de horror.
Baixando o rosto, pousou os olhos sobre a pedra e novas imagens vieram povoar seus pensamentos. A clausura na cela onde estivera vinha-lhe à memória e relembrou que enquanto lá permanecera ficara totalmente sem referências do tempo. Fora alertado sobre isto, porém voltara exatamente ao amanhecer, reconduzido por Ratziel. Resolveu retornar ao chalé. O calor já chegara; ele retirou o agasalho e o enfiou na mochila, juntamente com o cobertor; tomou a esteira a enrolou e preparou-se para partir.
Contornando a rocha, pôs os pés na terra, mas recuou assustado, dobrando um braço e protegendo o rosto. À sua frente, semi-materializada, quase tangível, entre um estado gelatinoso e transparente, a negra aparição ocupava agora uma porção do espaço, impedindo-o de prosseguir. Estava tão próxima que lhe ouvia o roçar das penas, sentindo no rosto o deslocamento do ar ao abrir-e-fechar de suas asas. Mas a despeito da forma quase sólida, não se mostrava com nitidez, existindo diante de seu corpo uma cortina turva, que era parte da mesma obnubilação que se espalhara na gruta quando aqui na madrugada ela chegara.
Sorman, tendo se recuperado parcialmente do susto, relutava em voltar para a gruta, pensando escapulir, descendo pela elevação. Ela então percebendo isto, recuou ligeiramente e provocou movimentos de asas, tal qual fizera na gruta, advertindo-o para que voltasse. Em vista desta determinação, não pretendendo mesmo enfrentá-la, pois nem sabia o real significado de sua presença e da intromissão nas suas decisões, virou-lhe as costas e retornou para a pedra.
Em pé, no meio da laje, ele ficou imóvel por vários minutos. Admitia ter-se metido numa grande enrascada, não sendo mais o dono de sua vontade, mas prisioneiro! O susto já passara de todo, ele se encaminhou para a gruta jogando o cobertor sobre a esteira, nela assentando-se. Finalmente deitou-se. Sentia-se esgotado das energias corporais e psíquicas e dormiu de imediato. Ao acordar, a posição do sol já mudara bastante; o astro percorrera todo o arco ascendente, encontrando-se a meio caminho da descida. Seu corpo estava ainda um pouco dolorido; ao sentar-se e se espreguiçar, viu na entrada da gruta alguma coisa lá deixada. Era uma cabaça com água acompanhada de duas frutas do tamanho de maçãs. Estando faminto, afinal fazia muitas horas que por último se alimentara, comeu-as rapidamente - eram macias, se desmanchavam na boca - e bebeu da fresca água. Mas não ficou satisfeito; era pouco alimento, e entendeu que o desejavam vivo, porém não forte.
Sem nada para fazer, cismado com a inusitada situação, circunspeto, andou da gruta para a pedra e desta de volta à gruta. Fez isto várias vezes, por muito tempo. Em certo instante teve uma idéia, apressando-se a colocá-la em prática. Era simples: desejava testar a real vigilância da aparição, se ela estaria atenta ou se conseguiria ludibriá-la. Entrou na gruta e ficou quieto por certo tempo, depois saiu pé-ante-pé, agachado, quase se arrastando, contornou a rocha pelo lado oposto, e chegando a terra, preparou-se para descer. Mas sequer avançou um metro; a aparição surgiu comandando para que voltasse - e ele retornou uma vez mais para a pedra!
Quando a tarde enfraquecia, o sol mergulhava e os pássaros em bandos chilreavam a toada de despedida, Sorman, na sinuosa beirada da pedra, observava. Com olhar distante, parado, ele traspassava a barreira de galhos e folhagens, vendo mentalmente o fundo róseo e lilás que a luz solar ainda provocava nos recortes das montanhas. Este exercício de imaginação, vinha acompanhado da lembrança do que acontecera na noite e madrugada anteriores e da expectativa do que novamente o esperava, assaltando-o desagradável reação. Era desalentador saber de antemão com o que teria de se defrontar!
Um refluxo mais frio do ar integrou-se àquela pictórica atmosfera; um primeiro lance de sombras noturnas assomou, ganhando rapidamente realce, cobrindo a terra. Sorman girou sobre os calcanhares e se dirigiu para a gruta, tomando a mochila, abrindo-a e retirando de seu interior o agasalho. Mal o vestiu, ouviu às costas conhecido ruidar de penas, voltando-se de súbito para a entrada da gruta, contemplando assustado a total figura da aparição.
Era horrível. As faces cobriam-se de ralas penas feito negra e aderente pele artificial, e rebrilhavam como se estivessem envernizadas. Da estreita lisa testa sobressaiam, esquisitamente, pontiagudos cornos. Tinha comprido e massudo nariz adunco e proeminente boca de grossos lábios que, entreaberta, deixava parcialmente à mostra dois pares de afiadas presas. Enquanto movia a cabeça com idêntica animação e rapidez das aves, seus grandes e arredondados olhos varriam todas as direções, como se buscassem perceber o menor movimento antes mesmo dele se configurar. As grandes asas, agora fechadas, decisivamente dobravam-lhe a envergadura, tornando-a quase gigantesca. O tórax era peludo, com seios: tinha braços, mãos excessivamente grandes, dedos quase normais - grossos e meio encurvados - que lembravam garras. Trazia o baixo ventre coberto de penas, não se sabendo qual órgão sexual se definiria. As pernas, também peludas e de homem - como os braços - tinham pés de formato híbrido, de homem e ave. Tudo nela era negro, exceção da esfera dos olhos, presas e dentes. Híbrida e indefinida, aliás, seria a totalidade da criatura, que se deslocou, bizarra, em direção a Sorman, entre pequenos pulos e manquitolantes passos, mexendo as asas fechadas e pela primeira vez emitindo algum som que eram guinchos guturais modulados ou murmurados.
Ao vê-la se aproximar Sorman foi tomado de terror, temendo o pior. A criatura, chegando a dois passos, pulou para cima e abriu as asas, voando sobre sua cabeça, fazendo rápido rodopio, agarrando-o no ar pelas costas e enfiando os antebraços sob suas axilas. Abraçou-o, apertando-o contra o peito, levantou-o e o carregou para fora da gruta com incrível facilidade.
A criatura o levou para o alto pico de uma montanha gelada, muito além do alcance visual de um observador que estivesse no chalé ou nas proximidades. Os efeitos da refração solar eram os mesmos acontecidos há poucos minutos. A tarde vista desta montanha ainda desfalecia; as sombras somente agora começavam grassar.
O deslocamento fora muito rápido – haviam voado à extraordinária velocidade - isto provocara tonteiras em Sorman. Quando se recuperou parcialmente, conseguiu encarar a criatura que, imóvel, se posicionava a três metros. Aos poucos, porém, as sombras os vinham envolvendo e Sorman já não enxergava com a mesma nitidez de antes. Ainda se adaptando ao lugar, entre o impacto de abrupta mudança de situação e a perplexidade de agora, ele lançou olhar em torno, vendo os acidentes geográficos da região, principalmente montanhas, muitas e enregeladas, formando uma cadeia abaixo do nível onde estavam, e notou o pedaço do céu detrás de tudo, tomando-se cada vez mais de obscuridade.
Então voltou-se de súbito para a criatura - ainda imóvel como esdrúxula e monstruosa estátua - ao acusar palavras em seu cérebro:
“Deseja, de fato, ascender aos páramos das alturas espirituais?”
A indagação chegava-lhe num tom de desafio, descrença e sutil sarcasmo. Sem despregar-lhe os olhos ele respondeu à voz alta, confiantemente:
- Sim, desejo!
Imediatamente a criatura foi animada de ação pulando sobre ele, tomando-o pelas costas exatamente como antes, arremessando-se num novo no espaço e atravessando a cortina de sombras quase noturnas. Logo aterrissou noutro pico, também gelado, mais alto e mais distante, onde o mesmo fenômeno do fim de tarde se repetia e as sombras ainda não abraçavam. Ao ser colocado no regélido solo, tendo a criatura se afastado, sobrevieram-lhe novas e mais intensas tonteiras; ele quase caiu, vendo tudo escurecer nas imediações. Mas não caiu, conseguindo manter-se de pé, encarando a criatura à sua frente, como no outro pico.
Nesse instante, as cores do céu tiveram rápido ocaso, perdendo bastante de sua notável nitidez e brilho, tornando-se quase opacas. O suave manto escuro se introduziu anunciando que a noite estava a caminho.
“Deseja, ainda, ascender aos páramos das alturas espirituais?”
- Sim, desejo! - a resposta saiu-lhe com dificuldade; ele sentia fraqueza nas pernas, o ar quase lhe faltava. Olhando para a criatura, via-a tremer como se fosse duplicar.
Ela novamente voou sobre sua cabeça, o agarrou levando-o para mais longe, pousando noutro pico gelado de maior altitude. Desta feita Sorman não conseguia se manter de pé; caia e se levantava, mas lutava bravamente a fim de não se mostrar fraco ou derrotado ante aquele horroroso ser. Seu corpo estava endurecido do frio.
As sombras começaram a se espalhar. Pela quarta vez, na mesma tarde, Sorman via o crepúsculo e a noite se aproximar. Desalentado, ele se sentara e permanecia sem forças, opresso, mal respirando. As formas em derredor tornaram-se todas escuras e distantes; uma horrível sensação de mal estar e desfalecimento o dominavam; ele mal ouviu a terceira inquirição:
“Deseja, ainda, ascender aos páramos das alturas espirituais?”
- Sim! - respondeu, perdendo totalmente a consciência.
O intenso frio fê-lo despertar na gruta. Estava deitado na esteira sobre o cobertor e sentou-se, olhando para a impenetrável escuridão. De imediato não pode atinar com nada e somente após segundos tudo lhe veio à memória. Sem outra qualquer reação, ficou olhando em direção da floresta. Passados minutos, o frio estando a incomodar, levantou-se e trouxe o cobertor para as costas, nele se enrolando. Cobriu-se com o capuz e se dirigiu para fora a passos lentos, quase cambaleantes. Suas juntas estavam endurecidas; ele se encolheu mais, ajeitando melhor o cobertor de encontro ao corpo, olhando para o céu com ansiedade, buscando rever um pouco de luz. Entretanto, pareceu-lhe que, como ele, os astros estavam abandonados, tamanha a distância a que se encontravam. Era-lhe difícil imaginar neste momento, com este estado de espírito, que em torno de qualquer daqueles pontos oscilantes existiriam planetas em órbitas, trasladando e provocando nas suas rotações dias e noites, acolhendo ruidosas massas humanas, cheias de vida e esperança. Se havia isso, estava propenso a duvidar! Sentia-se como se a irrealidade o permeasse, não sabendo ao certo quando e nem como as coisas que vivenciava teriam algo de concreto, ou a sua própria visão das coisas; pior, se ele mesmo seria real! Já deveria estar acostumado a isso, esta mesma visão interior e deformada do mundo, já várias vezes a tivera!
Ao dar-se conta de que sentia fome e sede, não duvidou do concretismo destes apelos e saiu a tatear pelo chão, à procura de alguma outra fruta ou de água. Inútil esperança, nada achou, e, amuado, retornou à gruta., sentando-se na postura do lótus. Maquinalmente fechou os olhos buscando se concentrar para, talvez, esquecer o que o assolava. Não demorou e as conhecidas vozes e risos recomeçaram. Aborrecido, sem a paciência de antes em fingir que não existiam, ele abriu os olhos, ficando, porém, surpreso ao perceber, lá no fundo, bem distante, - inicialmente como ruídos, mas logo como identificados sons, - o mesmo vozerio e risos, que aos poucos se afirmavam, tornando-se perfeitamente audíveis. Agora não tinha mais dúvidas: quer concentrado, abstraído ou na vigília, os perturbadores sons o perseguiriam: seria algo de enlouquecer!
Em certa hora a sede e a fome o flagelavam mais. Sem pretender entregar-se a lamentos ou desânimo, ele procurava esquecê-las, mantendo-se concentrado como se nada estivesse sentindo. As vozes e os risos inexplicavelmente tinham cessado. Havia profundo silêncio na gruta, nem mesmo eventuais ruídos externos eram percebidos. Nessa atmosfera, ele conseguiu ficar em quietude por pouco tempo. Não demorou, notou à sua frente uma silhueta. Ela animou-se de movimentos na figura de bela mulher, girou em provocantes requebros numa dança sensual, fez outros trejeitos, se aproximou e correu as mãos em torno dele, tocando-o por sobre a roupa em todas as partes. Seus verdes olhos eram como esmeraldas, o desnudo e voluptuoso corpo rebrilhava; ela o acariciava e se afastava, dançando ao inaudível acompanhamento de tambores, flautas, flautins e chocalhos; de novo flexionava o corpo para trás; provocava-o, deslizava as mãos nos seios e baixo ventre, passava a língua entre os lábios. Um perfume exalou dela; ao senti-lo ele se desarmou, excitando-se sobremaneira, interrompendo o bloqueio que levantara entre seu mundo e as imagens, perguntando-se finalmente se ela seria real, pois além do perfume, experimentara perfeitamente suas mãos sedosas e a delicadeza de seus toques.
Ela passou a chamá-lo, murmurando aos seus ouvidos, falando seu nome, convidando-o. Percebendo que sua resistência chegava ao fim, estando já no ponto crítico, ele emitiu forte e prolongado grito. O grito encheu a gruta, escapou para fora, ganhou liberdade e desapareceu dentro da floresta. Ele, ao contrário, prisioneiro sem algemas, permaneceu. Voltava aos dominadores sentidos, abrindo os olhos na escuridão, ouvindo novamente gargalhadas e apupos. A despeito do intenso frio, o suor cobria-lhe a testa; ele se levantou e saiu, tentando reagir.
Mais tarde ao voltar a sentar-se na esteira, não desejou concentrar-se, preocupado com nova investida das trevas, procurando ficar desperto. De olhos abertos nada via, mas assim ficava. No entanto as vozes voltaram mais avassaladoras, cerceando-o seguidamente:
“Liberdade, liberdade!”, provocavam-no. “Sorman, Sorman!”, chamavam-no e riam.
Diante dessa luta, com sede e fome, a fraqueza parecia querer abatê-lo. Utilizava todas as suas energias para não se deixar envolver emocionalmente, mantendo as personificações das trevas distantes. Percebendo isto, elas investiram com nova tática e Sorman viu-se ante uma bandeja contendo uma ânfora, um copo cheio d’água, frutas maduras e bolinhos como os fizera Assur.
“Tome-os - a voz dizia-lhe - é só pegá-los. Não seja tolo, os seus valores pessoais são incontestáveis. Você é probo e sincero. Sua lealdade para com o espírito está mais do que provada; por que este inútil sacrifício? Ninguém lhe pediu isso. A fome e a sede são do corpo, nada têm a ver com o espírito. Se adoecer, as coisas ficarão piores! “
O aroma dos alimentos evolou-se, invadindo-lhe os mecanismos do cérebro. Apesar da boca seca, ele salivou. Sem pensar, em ato instintivo, levantou o braço e tomou o copo. Era tão real que pesou em sua mão e trouxe-o contra os lábios, abrindo-os para beber a água. Mas um lampejo de vontade consciente interceptou aquele ato que se consumaria, criando uma resistência. Por detrás da mecânica cena, ele se negava a entregar-se com essa facilidade a quem tanto o torturara. O ato de beber e comer, é verdade, não representava nada em valores espirituais: a natureza provera o homem dessa necessidade básica para a sua sobrevivência. Mas não deveria fazê-lo agora; era também sua prova resistir aos desejos; a vontade precisava subjugar os clamores do corpo - tinha de ser forte!
A água já quase tocava-lhe os lábios quando, reunindo forças, levantou o braço que descansava na perna e segurou o copo, arrancando-o da outra mão, lançando-o à distância, vendo a bandeja imediatamente desaparecer. Então fechou os olhos, apertando-os, e, pela primeira vez em muitos anos orou, lembrando-se de uma oração que Olga lhe ensinara na infância, da tentação de Cristo!
As vozes se acalmaram. Horas depois ruídos começaram. Eram passos, milhares, como os de um exército em marcha organizada. Ecoavam dentro da gruta. Ele se levantou indo lá fora, pensando ver alguma coisa. Porém nada viu e os ruídos súbita e estranhamente cessaram. Virando as costas retornou para dentro. Mal fez isto os passos recomeçaram. Ele novamente voltou à pedra, - mas os passos cessaram! Aborrecido por estar sendo vítima de mais esta desagradável provocação retornou em definitivo, pretendendo nada mais averiguar, e sentou-se. Então, uma onda de vaias invadiu o ar, tão forte e prolongada, como jamais ouvira igual.
Trazendo as mãos aos ouvidos não conseguia ensurdecer-se - verdadeira avalanche se desencadeava impiedosamente. Temendo enlouquecer, precisando fazer alguma coisa, ele passou a gritar indignado, também a apupar e fazer coro. Mas se cansou, as vaias prosseguiram. Já tonto e sem forças, pensando que desmaiaria, teve sua atenção trazida para o fenômeno dos céus, vendo o negro manto ser penetrado de algum reflexo de luz. Animado, reagiu e se levantou, indo para fora, notando os astros irem perdendo algo de sua nitidez.
Então, tomado de estranho e inconcebível impulso, passou a pular e dançar como um ameríndio num ritual de guerra, ritmando o corpo ao imaginável tocar de tambores, curvando-o levemente para frente, ficando sobre um pé e sobre o outro, girando sempre em círculo. Vez por outra levantava a cabeça dando pequenas tapas na boca, entrecortando o agudo grito que proferia.
O invisível exército pareceu sentir a insólita reação e cessou a onda de vaias, como se observasse. Sorman, percebendo o recuo, parou e trouxe as mãos abertas e espaldadas às orelhas, encostando nelas os polegares, abrindo e fechando os dedos unidos para adiante, várias vezes, como flácidas ventarolas, fazendo caretas e de novo vaiando-os em declarada represália. Depois, reiniciou a dança e os agudos gritos de guerra. Ao cansar, parou definitivamente sentando-se ofegante, já vendo o céu mesclar-se de azul e cinza e as trevas se tornarem menos densas. Trazendo o capuz à cabeça, cruzou as pernas em padmasana, iniciando compassado respiratório, visando controlar seu próprio ritmo e absorver um pouco do cansaço. O exército parecia ter sido derrotado: fora verdadeiramente surpreendido com a contraofensiva; ele agora acreditava estar tranquilo nos próximos momentos.
Porém enganou-se. A negra criatura aterrissou diante dele e sem dar-lhe tempo de pensar ou reagir, pulou sobre sua cabeça, tomou-o nos braços e o levou pelo espaço, como antes, em extraordinário e veloz voo. Sobre o enregelado pico, voltado para o lado oposto onde há poucas horas estivera, a criatura o largou, afastando-se três passos. Olhando em derredor, Sorman via unicamente o grande anel de luz ainda esmaecida, interrompido por gigantescos vultos vestidos de mantos noturnos, que eram as montanhas. Cansado e enfraquecido pela temível provação a que o submetiam, não tinha mais a mesma postura de antes. Sobrara-lhe, entretanto, a coragem dos heróis visionários que sempre olham para o alto, vendo o que os outros não conseguem ver, e tenazmente perseguem ao almejado ideal!
Assim, tendo observado o irregular anel de obscura luz e os vultos que o interrompiam, ele pousou os olhos na negra criatura, pouco dela discernindo, e aguardou. O silêncio descia sobre eles. E de forma tão profunda como era aquela abismática altura, a cujo ápice fora transportado. Incomodado, o corpo gelado, sentiu as pernas tremerem afastando-as mais um pouco, como se esta nova postura o confortasse dando-lhe, em definitivo, a firmeza e a base que ameaçavam ruir. Mas não aguentou e desabou, ficando no chão, genuflexo, procurando, entretanto, manter-se altivo, olhando para a criatura. Ela finalmente abriu as enormes asas e voou sobre ele; tomou-o e o carregou para outro mais elevado pico.
Novamente genuflexo, Sorman trazia a mão à testa, apoiando-a com os dedos tentando vê-la através das sombras. Imóvel, a exemplo do que antes fizera, a criatura ali ficou. Sorman não sentia a mesma sensação de tonteira ocorrida nos primeiros voos - parecia ter-se acostumado às alturas - mas, sim, fraqueza e frio! Quando ameaçava ceder e aos poucos se dobrava para frente, tendo já a mão esquerda fechada e apertada pela direita adiante do corpo, braços colados pressionando os flancos, a criatura voou sobre ele, segurou-o e o levou ao terceiro pico!
Como um farrapo Sorman lá foi deixado. Joelhos paralelos - encolhido e trêmulo - apoiava-se nos cotovelos, com antebraços cruzados no peito, mãos fechadas e apertadas, e o rosto a um palmo do chão. Mantinha o olhar sobre a estática criatura - que mais parecia sinistra esfinge - mal entrevendo suas pernas, escutando as inquisidoras e conhecidas palavras que vibravam em seu cérebro:
“Deseja, ainda, ascender aos páramos das alturas espirituais?”
- Sim, sim, sim! - respondeu, ao mesmo tempo em que palmeava o gélido chão, a fim de evitar a humilhante queda. A criatura então voou sobre ele, agarrou-o, trouxe-o de volta para a gruta, depositando-o na esteira e desapareceu. Enrolando-se no cobertor, ele aqueceu-se rapidamente e dormiu.
Não foi um sono tranquilo. Ele acordava, gemia e se virava. Em certa hora sentou-se, mantendo-se envolto pelo cobertor. Já era visível a cerração que ao nascer do sol costumava dissipar-se. Entre o despertar quase súbito e a conscientização do momento ele permanecia alheio, meio atordoado, sentindo uma fraqueza que não lhe permitia fixar os olhos em nenhuma forma sem que essa não oscilasse. Em verdade, estava sem forças e demorou ainda alguns minutos até que tomasse pé de toda a situação.
Não amanhecera ainda. O tom cinza da atmosfera, em meio à presença de sombras, demonstrava isso. Quando Sorman pretendeu levantar-se para caminhar lá fora, eis que se antepõe à porta da gruta, ressurgindo, a negra e assustadora criatura. Saltitando e manquitolando, a emitir guinchos como grunhidos, ela se aproximou e o tomou, levando-o ao mais alto pico onde densas nuvens pairavam, mas já perdiam um tanto da sua escura coloração.
Uma emanação mais forte de luz irrompeu detrás do entrecortado horizonte, acentuando a claridade e as cores do planeta. Sorman, sentado, sonolento, quedado como se perdida fora a sua luta, apoiava-se numa das mãos, deixando o outro braço inerte sobre as pernas dobradas para o lado. Pendia suavemente a cabeça, pousava os olhos no chão, e parecia estar desprovido da mínima energia. À sua frente, a três metros, encoberta por fina película do remanescente véu da noite, a taciturna criatura aguardava.
Alguém olhando de certa distância certamente julgaria presenciar uma indefesa e fraca presa, sem a menor possibilidade de lutar ou reagir, diante de seu algoz que cruelmente a torturava. Extenuava-a ao máximo, para depois vir comê-la aos poucos. E não estaria de todo errado. A horrível criatura tirara-lhe toda e qualquer possibilidade de reação e defesa. Era forte e invisivelmente o vigiava. Impossível, portanto, escapar-lhe... E naquela prostração, ele de novo ouviu a mesma voz e a mesma inquirição:
“Deseja, ainda, ascender aos páramos das alturas espirituais?”
- Sim! - respondeu seca e brevemente, como o monossilábico lamento de um moribundo.
A criatura, cumprindo o repetido ato daquele esquisito ritual, voou mais uma vez sobre ele, segurou-o e o trouxe para outro pico. Ao ser colocado no chão, algo extraordinário aconteceu: ele manteve-se de pé, lúcido e mais forte. A criatura, como sempre fazia, afastou-se três passos, ficando a observá-lo imóvel e silenciosamente.
De sua posição relativa de observador ele via novamente o dia amanhecer, sem que a coroa solar ainda rompesse os limites entre o céu e a terra, e a atmosfera em torno se rasgasse de mais luz. A claridade avançava rapidamente; seu cérebro, por outro lado, era tocado simultaneamente das vibrações de repetidas palavras:
“Deseja, ainda, ascender aos páramos das alturas espirituais”? Em pé, ao contrário do ocorrido nas recentes interpolações, ele não encontrou dificuldade em responder, reafirmando sua disposição:
- Sim, desejo!
Novo e súbito influxo de energia, quase de euforia, o invadiu; ele adquiriu extraordinária nitidez no olhar e clareza mental. Ficava tudo óbvio, leve, fácil! Com esta disposição, com as energias corporais renovadas, foi descido ao terceiro pico, já nem se lembrando de que há pouco se consumia e a morte o abraçava.
“Confirma, definitivamente, seu desejo de ascender aos páramos das alturas espirituais?”
- Sim, confirmo!
A criatura o tomou e o trouxe de volta à pedra da gruta, ali o deixando. Sem mesmo pousar, girando no ar, ela rumou para o poente saindo de cena.
Em chegando à gruta, tudo era diferente. A manhã rompia e a luz abundante impunha-se. Havia nova e vibrante vida naquele árido lugar, na floresta, no seu próprio corpo, em tudo! Não tinha fome ou sede; agia normalmente, andava sobre a pedra, sentia alegria! Como isto acontecera?
Resolvido a sair dali, entrou na gruta, enfiou o cobertor na mochila, enrolando a esteira e rapidamente ganhou a floresta. Desceu as encostas e os declives se aproximando da base plana à margem do córrego. Pouco depois, subia o monte e cruzava o verde gramado. O sol esquentava; ele parou retirando o pulôver, espremendo-o dentro da mochila. Em poucos minutos atingia o chalé.
Verificou que tudo estava em ordem como noutras vezes: a mesa posta, a fruteira com frutas e na cozinha, panelas tampadas sobre a chapa do fogão. Mas não se interessou; foi ao banheiro tomar demorado e gostoso banho, saindo e trocando de roupa. Voltando à cozinha, examinou o alimento que Assur preparara não desejando prová-lo, indo à varanda observar o fantástico cenário. Antes de qualquer conjetura, enviou emissão de pensamento à Ratziel, desejando mais do que nunca que ele viesse e o levasse de volta ao lar. Acreditava ter cumprido sua parte e vencido as provas, nada mais tendo a fazer aqui. O lugar era belo, porém seu lar material o atraía neste momento, precisando voltar. Ademais, após tantos dias ausente a preocupação com seu corpo físico era compreensível, não sabendo em que estado o encontraria.
Com efeito, Ratziel surgiu adiante com amplo sorriso a iluminar-lhe o belo rosto. Os dourados cabelos tocavam-lhe os ombros, rebrilhavam ao sol; ele pisava a grama como se flutuasse. Tamanho se excedia em majestade que mais parecia um deus. Algo a mais existia nele que Sorman antes não percebera.
- Vossa preocupação foi sentida por mim; vosso desejo de imediatamente voltar será atendido.
A alegria despontou em seu coração, mas a dúvida emergiu.
- Terei cumprido o que me foi proposto, ou estarei abandonando o campo de provas antes do tempo?
- Nada mais vos exige aqui a presença. As provas foram vencidas, é hora de partir.
Essas palavras o aliviaram completamente. Ratziel, fazendo breve movimento de mão, tornou-o leve como uma pluma, atraindo-o para mais próximo. Ambos levantaram do solo, mas ao invés de tomar a direção das montanhas Ratziel foi abaixo, passando ao largo da floresta, chegando às proximidades da casa de Assur que estava sobre a ponte. Neste momento, ele observava o córrego; ao vê-los acenou alegremente em despedida e Sorman, também acenando, enviou-lhe vibrações de agradecimento pela ajuda recebida.
Chegando a casa era noite e viram Olga enxugando as lágrimas aos pés da cama, ladeada por Eduardo que se mostrava extremamente preocupado e triste. Um clima de tensão se espalhava pelo ambiente. Arcado sobre o corpo de Sorman o médico da família auscultava seu coração com o estetoscópio. Após, voltou-se para o casal, dizendo:
- As batidas cardíacas estão realmente muito fracas, também o movimento respiratório. Seus reflexos desapareceram. Diria que neste momento se mantém unicamente pelas funções vitais do inconsciente, parecendo aqueles doentes terminais que permanecem vivos pelo uso de aparelhos. É bem estranho o seu estado.
Olga explodiu em choro, Sorman, preocupado, olhou para Ratziel que tranquilamente lhe falou:
- É chegado o momento de retomardes o aparelho físico. Lembrai-vos, discípulo, as provas são meros obstáculos cuja principal finalidade é testar o candidato na sua capacidade de resistência, vontade e fé nas verdades do Alto. Entretanto, nem sempre será assim. No cotidiano, não as tereis elaboradas com a intenção precípua de mostrar um resultado previsível. As provas virão naturalmente ao convívio com os irmãos do mundo, interligadas às desigualdades, paixões e injustiças - características comuns das massas despreparadas nos caminhos da evolução das raças. Será vossa maestria que terá de lidar com as situações. Bebereis por um tempo a doce ambrosia dos deuses; não vos embriagueis, todavia, com o sabor deste inefável néctar. Adeus!
Ao olhar mais fixo de Ratziel, um torpor invadiu-lhe a mente e ele não conseguiu manter os olhos abertos. Desejava, antes, dizer algumas palavras ao amigo e mestre, mas teve de guardá-las para outra oportunidade, pois lhe tomara forte sono hipnótico fazendo-o mergulhar num vazio e despertar na cama sob o incrédulo testemunho do médico e alegria incomum dos pais.
Não sabendo o que diagnosticar, o médico achou que ele estaria com estafa; por causa disto dormira tanto, deixando-lhe, assim, prescritas algumas vitaminas e recomendando-lhe alimentação forte. Ao saber que eram nove horas da noite, que teria dormido quase vinte e quatro horas, Sorman não acreditou. Trazia na memória as passagens do sol naquele céu; a isso se somaria pelo menos três dias no tempo da terra. As noites que lá se seguiram, trouxeram-lhe novas impressões e embora não se lembrasse da exata seqüência de todos os fatos acontecidos, tinha lampejos de consciência, vendo perfeitas imagens de muitas coisas. Achava que conversara longamente com alguém, talvez um mestre, e sentia uma espécie de temor ante uma presença que não visualizava.
Mais tarde, estando sós, e tendo convencido Olga de que estava bem e iria trabalhar na manhã seguinte, não necessitando de nenhum cuidado especial, foi ao armário e tomou o livro. Sob a luz do abajur de cabeceira, abriu-o e leu o que ali estava consignado.
CARTA DO MESTRE AO DISCÍPULO
“Amado discípulo. Não olvideis de que vosso mestre esteja convosco mais tempo do que pensais. Na realidade estamos juntos a cada segundo; assim pudemos conviver integralmente nessa jornada que tão brilhantemente acabais de cumprir. Sempre tive a confiança de que venceríeis a todos os obstáculos e mereceríeis o galardão. Tal foi vossa incontestável vitória que pudestes antecipar o vosso retorno definitivo, cumprindo todas as etapas em cinco dos sete dias normalmente necessários. Nada ficou pendente; nenhuma tarefa precisará ser revista no futuro. Hosanas ao humilde herói!
Bem sei que ainda não meditastes sobre a recente viagem, os fatos lá acontecidos - muitos, estranhos e inimagináveis - e a bela paragem onde permanecestes. Noutra ocasião, certamente, lá voltareis, não como aspirante em provas, mas em visita, e podereis explorar outros recantos e conhecer habitantes do que julgastes ser outro planeta. Notastes como o tempo lá passou mais depressa, comparativamente com a Terra? Cada três dias contados naquele magnífico lugar equivalem somente a um dia daqui, onde vossa consciência se encontra mergulhada. O tempo é ainda um fator desconhecido pela ciência humana no seu verdadeiro significado. As esferas dos mundos se entrelaçam e vibram em diferentes padrões, daí criando vácuos e aberturas em pontos de intercessão. Um eixo de intercessão é a referencia entre os padrões vibratórios de tempo de todas as dimensões. Ao se viajar de uma dimensão para outra, nela penetrando, seus padrões vibratórios se mostrarão superiores se sua matéria for mais sutil e inferiores se sua matéria for mais densa. Não é a solidez da matéria que virá determinar a velocidade do tempo - ela é consequência de um processo geral de idade. A matéria evolui com o correr dos séculos, como evoluem todos os padrões da dimensão inteira na situação do universo. A qualidade da matéria, isto sim, é realçada pela composição de seus átomos. Assim, em termos relativos, há dimensões mais altas do que outras. Entretanto, existe a particularidade de uma só organização molecular ter a sua imagem multiplicada com idêntica reprodução e viver o fator espaço-tempo em diferentes condições. A matriz já poderá ter desaparecido enquanto suas reproduções, pelos anais terrestres, duram, ainda, milhões de anos!
As leis da matéria precisam ser vencidas. O homem não pode ficar eternamente subjugado aos apetites ou necessidades biológicas de seu equipamento carnal. O efeito somático, nefasto, de indesejáveis vibrações do mental inferior, que encontram eco no corpo físico, tem de ser dominado pela razão superior. O verdadeiro homem, o divino filho de Deus, precisa nascer, crescer e ficar adulto para depois tornar-se rei na Terra. Vós sabeis, discípulo, que sem esforço e vontade nada se obtém, a nada se chega. Nem mesmo quando o rei que existe em cada um quiser descer e libertar-se do jugo da matéria e nela reinar, não o conseguirá, a menos que o homem inferior envide os seus melhores esforços para este desiderato. E por que o homem inferior faria isso, sabendo que seu espaço seria tomado por um estranho que reinaria sobre si? Porque após muitas interações em diferentes veículos, ele já sofreu demais, trazendo para si muitas dores, desespero, às vezes, vivendo sem nenhum sentido.
Esse homem inferior, o pequeno rei da matéria, como sabeis, chama-se a personalidade, o ego reencarnante. Ele é da natureza; em cada corpo reinicia o mesmo ciclo de vida e morte, mas sozinho não conseguirá escapar desta cruel reincidência a si mesmo imposta. Qual será, pois, seu destino final? O final simplesmente...! A rendição total e irrestrita ao rei que ainda não conhece; a purificação de seus veículos; sua morte pela própria escolha e a ressurreição com o rei! Meu pai e eu somos um! Lembrai-vos das sábias palavras do rei do mundo?
Mas isto não é fácil, discípulo e irmão, por que para se conhecer o pai, o divino filho precisará reabilitar a matéria de que o seu reflexo é feito - sabeis disto, sois um iniciado!
Eis porque o iniciado luta na Terra, vence etapas e crucifica-se a si mesmo - para que o rei viva nele! A libertação, em verdade, é a grande meta!
Todas estas coisas de que vos falo e mais o que ainda não vos falei, estão dentro de vós, em vossa mente. A mente é um universo tão amplo, que seus mistérios não podem ser descobertos numa só incursão. A mente é tudo; a totalidade do universo fenomenal é a mente; ela contém e é contida por tudo que a rodeia; é o Criador nela e ela no Criador - é um paradoxo, dirão alguns. Sim, confirmarei, um divino e fantástico paradoxo no qual todos se encontram, mas que, ao abandonarem as referências humanas, se lhes revelará rigorosamente perfeito e estupendamente grande para que o julguem com pequenos valores. As ideias mudam, os conceitos verdadeiros se robustecem com novas visões e os ideais se renovam!
Do que se passou convosco, discípulo, nada ficou fora de vosso universo mental. Tudo sempre esteve dentro de vós - todos os momentos. Os personagens com os quais vivenciastes, e as provas e desafios enfrentados foram reais, tanto quanto é real vosso próprio mundo interior e vossa mente brilhante. Quem sou, de onde vim, para onde vou? Lembrai-vos do que vós mesmo respondestes a vós próprio? Pudésseis agora projetar as imagens gravadas na vossa mente, veríeis a vós próprio participante e espectador de todas as sequências em que antes estivestes inserido; mas não creiais na irrealidade dos fatos. Jamais esqueçais de que a mente do Criador é um grande universo que participa dentro de pequenos universos - os homens. E se o universo é real é porque a mente o criou e o contém e nele está contida. Mas se Maia existe é porque o real criou Maia; então Maia é real na medida em que o real existe. Eis por que, nesta analogia, a imaginação pode tornar-se uma realidade no mundo de Maia!
Seria tudo um grande sonho? Mas o sonho acontece quando se dorme, não quando se está na vigília. A vigília é o domínio dos sentidos pela mente; então quando a mente dorme os sentidos também dormem e quando ela está acordada também estão os sentidos! A mente, dessa maneira, vê, ouve, cheira, toca e saboreia através dos sentidos, mas os sentidos são Maia e Maia é um grande sonho – então sonhamos acordados e o falso se torna real. De outra sorte a vida seria uma grande mentira, e não é!
Há o relativo e o real. O relativo reflete imperfeitamente o real, todavia para se chegar ao real é preciso antes viver no relativo e dele libertar-se. A dor existe no relativo e precisa ser experimentada e sentida para aquilatar-se o que se quer e o que não se quer; o real é o outro lado de tudo, onde não há dor – então vive-se a dor no relativo!
Assim, discípulo, é fácil ver-se que neste mundo a mente possui estes dois necessários aspectos. O relativo não deixa de ser real por causa dos sentidos, mas não se exclui dos efeitos secundários das leis universais de causa e efeito, ao passo que a mente real é por si absoluta sobre o relativo, e não se subjuga aos efeitos.
Descestes aos infernos para dominar os elementos, ou seja, dentro de vós mesmo vivenciastes vosso próprio Hades; à Prosérpina desprezastes. Seria tão igual este Hades ao qual vivestes, daquele mitológico e terrível punidor de homens de atos iníquos? Os elementos são a própria natureza. Por que Hades subjuga-os neste processo de provas, e não Júpiter, no alto do Olimpo? Estaria a narrativa mitológica - tão rica e com definidos escalões hierárquicos - sendo, pois, subvertida nos seus inegáveis poderes? O de baixo mandaria agora no de cima?
Eis aonde desejo chegar, discípulo, para vossa reflexão. Vereis onde o relativo cruza seus valores com os valores da mente real. O inferior se voltando para o superior. O inferno purificando a si próprio para subir aos céus. Meditai!
O Enigma Eu de vossa existência ainda não foi desvendado. Se os quatro a tudo comerem, os três de fome morrerão! Não morrerão mais, não permitistes. Um dia aos quatro matareis, sei disto, vós também já sabeis, porém não antes de ter vivido o Enigma e dele extraído a essência do saber e do ser. Então vosso caminho de provas será outro!
Nesta breve despedida em que a ausência é inexistente e sem distância, deixo-vos carinhoso amplexo e a lídima certeza de que outro homem agora vive em vós, pronto e preparado para a jornada vitoriosa, talvez final que vos está reservada. A estrada mostra-se por sobre os cumes dos montes já escalados, mas precisa ainda ser trilhada. Entendereis o valor da advertência que vos faço neste instante: não despregueis os olhos do ideal mais alto, porém não tireis os pés da estrada!
Vosso Mestre.”
Tendo terminado a leitura, em sua mente novas imagens desfilavam; sequências interrompidas do que lhe acontecera naquela região mostravam-se. Era tudo muito rápido, no seu íntimo emoções diversas se manifestavam, até que, apagando a última imagem, o revolvimento íntimo também cessou: voltava-lhe aquela mesma paz e estado de harmonia que houvera experimentado nos derradeiros momentos de sua difícil provação.
Trazendo de novo a atenção ao livro, que abria e apoiava nas pernas, estando sentado na cama, folheou outras páginas, mas nada mais encontrou, colocando-o de lado. Ao refletir sobre os recentes acontecimentos e no que detinha na memória desde que estas coisas se iniciaram, subsistia-lhe a dúvida - velha e infinda duelista - e questionava-se: vivera de fato aquelas aventuras? Tratava-se de coisas tão fantásticas que lhe pareciam inverossímeis. Não conseguia aceitá-las de imediato, carecia de provas concretas - mas como obtê-las se a nada material poderia bastar-se?
O livro seria uma prova, pensou, ou um truque - ousou. Tinha forma e volume, porém enquanto dormia alguém poderia vir no seu quarto e trocá-lo, substituindo-o, assim, pelos novos textos que leria. Mas quem teria interesse nesta mirabolante manobra, e por quê? Quanto a Ratziel, as poucas palavras que dele ouvira na casa ao pé da serra, quando pela primeira vez abrira o livro; aquela sensação de desmaio que tivera e sua feia cara a se mostrar subitamente - seriam, sem dúvida, mera ilusão! Levantando-se foi à janela e puxou para cima a esquadria da vidraça, olhando o jardim entre a luz e a sombra.
Retornando à cama, retomou o livro e o levou de volta ao armário. Logo precisaria devolvê-lo a Bruno. Entretanto, um objeto no interior do armário chamou-lhe a atenção e ele o pegou. Era um pequeno estojo. Abriu-o e segurou a joia que acomodava, trazendo-a para próximo do rosto, examinando-a. Era um medalhão de ouro preso a uma corrente também de ouro, que não se lembrava de possuí-los. A bela e artesanal joia mostrava signos cabalísticos gravados em ambas as faces. Ao fixar a atenção neles sentiu a mente vaguear, tomar direção e rapidamente rumar por longo caminho, parando sobre um largo e claro rosto, de olhos azuis e cabelos encanecidos, reconhecendo-o de imediato, exclamando entre sincera alegria e fluente emoção:
- Germano!!!
Fim do Primeiro Livro
[ Direitos Autorais: Registro No 127763 ]
[ ISBN 85-98874-06-X ]
[ Autor: Rayom Ra ]
Blog do Autor http://arcadeouro.blogspot.com.br
Email do autor:
http://rayomra278@gmail.com
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EDITORA DO POETA
Rua Pedro Teles, 167 – Rio de Janeiro - RJ
Continua com: A Fraternidade
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