“Diga a
si mesma que esses sentimentos não importam. Não importa se você sente que ama
a Deus ou não. Sentimentos de amor não têm valor. O que importa é a vontade –
se agarrar à vontade de Deus, cruamente na fé”
Esse é um trecho do livro “Through the narrow
gate” de Karen Armstrong. Essas palavras foram ditas a ela como um conselho
espiritual. Mas o que elas realmente significam?
No mesmo livro, também há a seguinte
passagem, numa cerimônia iniciática em que ocorre um enterro simbólico:
“Ela
havia treinado cada um no caminho pessoal da morte que Deus apontou para ela.
Cada um agora era responsável por completar o simbolismo da cerimônia de hoje e
fazer de sua vida uma morte diária, que a morte final de seu corpo irá
completar”
Acredito que estamos mais familiarizados com
essa segunda ideia: em ritos iniciáticos de várias religiões e sociedades
secretas é muito comum representar a morte como uma etapa necessária para que
ocorra o renascimento espiritual.
Ajahn Brahmavamso conta que o monge budista
Ajhan Chah costumava perguntar para aqueles que vinham treinar com ele: “Você
veio aqui para morrer?”. Um pensamento comum seria: “Não, eu não vim aqui para morrer. Eu vim aqui para me Iluminar e ter
umas meditações legais”. Mas quem deseja isso ainda está pensando com o seu
eu, com seu ego.
Uma das principais razões de não se obter o
que se quer numa meditação está exatamente na ideia de “obter” e de “querer”.
Sucesso na meditação torna-se apenas mais uma das conquistas que queremos
atingir com nosso ego, para nos orgulharmos. Mas esse ego precisa ser
destruído. Ele deve morrer.
Ajahn Chah dizia: “Se você ficar aqui, você morre. Se for embora, você morre. Então por
que não morrer agora?”
Mas estamos aterrorizados. Não queremos
morrer agora, pois nos apegamos demais à noção de um “eu”, de uma identidade
que representa tudo o que queremos atingir no mundo.
Algumas coisas que pertencem ao nosso eu-ego
são as nossas visões de mundo e nossas emoções. Quando alguém nos diz que
estamos errados, nos sentimos pessoalmente ofendidos. Nós nos apegamos demais
às ideias que construímos sobre a vida, fruto de experiências e reflexões.
Além disso, quando alguém nos direciona
palavras duras, nos sentimos tristes ou ficamos com raiva. Por que isso
acontece?
Porque nós amamos aquele “eu” com o qual nos
identificamos. Estamos completamente apaixonados por ele e não queremos
desistir dele por nada desse mundo. Ao contrário, queremos que esse eu seja
exaltado com elogios. Queremos ser amados, respeitados, e buscamos esse amor em
toda parte. E parece que nunca basta. Queremos cada vez mais, pois o ego
precisa se alimentar regularmente para continuar a existir.
Lembro de uma aula de antropologia em que a
professora usou o termo “pornografia da
morte” para se referir à forma que encaramos a morte na época em que
vivemos. Na Idade Média e em outras épocas em que se morria mais por doenças
infecciosas e parasitárias, a morte, além de ser um espetáculo para alguns, era
algo comum, um tema debatido no dia a dia, nas igrejas e nos teatros. Fazia
parte do cotidiano.
Hoje é como se a morte não fosse natural, mas
uma espécie de aberração ou erro que queremos esconder. E esse pensamento se
refletiu em como encaramos a religião hoje.
Não queremos falar de morte e sim de vida. Escondemos
que existe o sofrimento e só exaltamos a necessidade (até mesmo o dever) de ser
feliz, de preferência o tempo todo ou o maior tempo possível.
Em seu discurso “Entendendo o sofrimento”,
Ajhan Chah diz:
“Os
ensinamentos do Buda é que primeiro nós devemos desistir de fazer o mal e
praticar o bem. Em segundo lugar, ele disse que nós devemos desistir do mal,
mas desistir do bem também, não tendo apego a ele, porque também é um tipo de
combustível. Quando há algo que é combustível irá eventualmente pegar fogo. Bem
é combustível. Mal é combustível”.
“Falar
nesse nível mata as pessoas. Elas não são capazes de seguir isso. Então nós
temos que voltar para o começo e ensinar moralidade. Não machuquem um ao outro.
Seja responsável no seu trabalho e não machuque ou explore os outros. O Buda
ensinou isso, mas apenas isso não é o bastante para parar”
Todas as religiões falam de amar e fazer o
bem. Isso é verdadeiro. É precioso. Mas é apenas o primeiro passo na jornada.
Karen Armstrong, em “Through the narrow gate”, conta que no período em que foi freira na
década de 60 usava um chicote para mortificação corporal, para diminuir a noção
de um “eu”. Ela devia diminuir a si mesma ao máximo através de confissões e
penitências, para desaparecer, quase como o nirvana budista. Como
diz Fr. Jacques Philippe no livro “Searching
for and Maintaining Peace”:
“Ah! Qual é o coração que não gostaria de
possuir virtude! É o que todos desejam. Mas quão poucos são aqueles que aceitam
cair, ser fracos, que ficam contentes ao ver a si mesmos no chão e deixar que
outros o vejam nessa condição”
Esses métodos, como o cilício (usado pelo
Papa João Paulo II), comuns na Idade Média, hoje não são tão incentivados,
porque na época em que vivemos o corpo é muito mais valorizado que o espírito,
embora práticas ascéticas ainda sejam comuns na Índia. Não parece saudável ou
parece até mesmo um pecado ferir o corpo em nome de algo que alguns nem
acreditam que exista. Muitos céticos exigem provas de que exista Deus ou um
espírito, mas os filósofos nos lembram que até hoje ninguém ainda provou que o
mundo material existe, que não é uma ilusão, algo que Kant considera um
escândalo.
É verdade que até mesmo na Idade Média se
recomendava não exagerar nas mortificações corporais e só realizar tais
práticas sob estrita supervisão. São Francisco de Sales diz em seu livro
“Filoteia”:
“Há virtudes que a almas simples parecem
maiores que outras e portanto são mais estimadas; a única razão disto é que
essas virtudes, estando mais próximas de seus olhos, lhes dão mais na vista e
se adaptam mais a suas ideias, que são muito materiais. Por isso o mundo
prefere comumente a esmola corporal à espiritual, os cilícios e disciplinas, os
jejuns e andar descalço, as vigílias e toda sorte de mortificação do corpo, à
brandura, à benignidade, à modéstia e a todas as mortificações do espírito e do
coração, que são, contudo, muito mais excelentes e meritórias. Escolhe,
Filoteia, as virtudes que são melhores e não as mais apreciadas, as mais
excelentes, e não as mais aparatosas. As mais sólidas e não as que fazem muito
alarde e têm muito brilho exterior”.
Afinal, as austeridades externas são feitas
tendo em vista uma austeridade interna: uma mudança de coração, de espírito.
Mas o que é esse amor que não é amor (não é o
amor que conhecemos) que deve ser buscado? É comum que o budismo Mahayana acuse
o budismo Theravada de querer destruir o amor e a bondade. O que realmente se
busca é destruir uma forma de amor com apego e uma bondade com interesses:
aquela bondade que se realiza buscando algo em troca. A bondade que ainda se deve
cultivar no budismo Theravada se chama “Metta”: amor bondade.
No meu post anterior “A jornada espiritual não é confortável“, um dos pontos levantados
nos comentários foi se no fundo em todas as escolhas que fazemos não buscamos
uma satisfação pessoal. Aquele que busca por vontade própria um caminho de
sofrimento para destruir o ego não o faz também por paixão pelo próprio ego?
Ele também não deseja algo em troca para si mesmo?
Minha resposta, que também vou reproduzir
aqui, foi que essa é uma visão chamada na filosofia de “egoísmo ético”: a noção
de que até mesmo quando ajudamos alguém o fazemos por egoísmo.
No entanto, a essa visão se contrapõe o
altruísmo ético: de que é possível realizar um ato como ajudar alguém tendo em
vista cumprir um dever, e não buscar recompensas. Nessa visão é possível
realizar ações que não visem nosso conforto e prazer e que podem até mesmo
destruir nossa felicidade e liberdade e a felicidade de outrem. O objetivo é o
valor da ação e não seu efeito. Ou, como diria Kant: “que a justiça seja feita,
mesmo que o mundo pereça”.
É claro que uma pessoa que não acredita no
espírito, no transcendente, pode considerar essa visão niilista. Isso porque
estamos agarrados à ideia de que só vale a pena fazer algo se esse ato nos
trouxer algum resultado no mundo material ou mental, como felicidade, seja para
mim ou para outros. Para alguns parece estranha a noção de fazer o bem apenas
porque “é a coisa certa” e não porque isso vai me deixar feliz.
Kant defende que fazer o bem por amor ao
dever e não por amor à sensação boa que sentimos com isso ou ao grau de
felicidade alcançada é melhor, porque assim faremos o bem todas as vezes. Nos
outros casos, só faremos o bem conforme nossas flutuações de humor ou nossos
cálculos de utilidade.
Essa é a base das religiões: o amor pelo
dever, ou amor por Deus, vir antes do amor humano, que não é tão estável.
Lembrando que amor por Deus significa seguir os mandamentos (não matar) então
esse argumento não tem o menor sentido para apoiar atos de terrorismo.
É claro que o amor humano também é belo e é
um bom começo segui-lo. Mas há um próximo passo, que para alguns pode parecer
doloroso, especialmente para aqueles que se sentem desconfortáveis com a noção
desse segundo amor, que não é exatamente amor, já que ele transcende tudo
aquilo que nossos sentimentos experimentam geralmente e que nossa lógica pode
conceber, fundamentando-se numa forma de onisciência.
Tendo essa ideia em mente, já se torna mais
fácil analisar o parágrafo inicial, que antes parecia tão estranho:
“Diga a si mesma que esses sentimentos não
importam. Não importa se você sente que ama a Deus ou não. Sentimentos de amor
não têm valor. O que importa é a vontade – se agarrar à vontade de Deus,
cruamente na fé”
É bem parecido com a ideia apontada por Ajahn
Chah: no começo você se livra do ódio e cultiva o amor. Depois, até mesmo o
apego ao amor deve ser superado, porque ele também é um combustível que nos faz
sofrer, que nos queima. Mas se não houver nem ódio e nem amor não há ego.
Assim, ocorre o apagar e com ele o nirvana. Ou, traduzindo na linguagem cristã,
somente quando não há um ego Deus poderá nos preencher.
A frase “não
importa se você sente que ama a Deus ou não” significa que, como Kant
disse, se fôssemos rezar somente quando estamos felizes e sentimos que amamos
Deus e o mundo, deixaríamos de rezar quando experimentamos secura espiritual e
não nos sentimos dispostos. Mas se rezamos pelo dever, por fé, o fazemos todas
as vezes.
Vejamos o que São Francisco de Sales nos diz
em “Filoteia”:
“Grande
é, pois, o erro de muitas pessoas, que creem que o serviço prestado a Deus sem
gosto, sem ternura de coração, seja menos agradável a sua divina majestade. A
ternura torna as nossas ações mais agradáveis a nós mesmos, julgando-se pela
deleitação que produzem; têm, entretanto, muito mais suave odor para o céu e
são de muito maior merecimento diante de Deus, feitas num estado de secura
espiritual”
“Não
merece grande louvor servir a um príncipe nas delícias da paz e da corte; mas
servi-lo em tempos tumultuosos e de guerra é um sinal de fidelidade e
constância. A bem-aventurada Ângela de Foligno diz que a oração mais agradável
a Deus é aquela que se reza contrafeito, isto é, aquela que fazemos não por
gosto e por inclinação, mas reagindo para vencer a repugnância que aí achamos
devido à nossa secura espiritual”
“O
mesmo penso também de todas as boas obras; porque, quanto maiores empecilhos,
sejam interiores, sejam exteriores, encontramos, tanto mais merecem diante de
Deus. Quanto menor é o nosso interesse particular nas práticas das virtudes,
tanto mais resplandece a pureza do amor divino”.
Com isso tudo não quero dizer que seja errado
amar ou ter amor com apegos. É apenas uma explicação para os que acham estranho
ou extremo se falar tanto de dor e sofrimento nas religiões: a cruz de Cristo,
as asceses de Buda. É claro que nos sentimos mal com isso. Não precisamos nos
entregar a essas ideias ou práticas que nos levem a entendê-las se não estamos
preparados. Nós podemos, e é bastante natural, seguir cada um em seu próprio
ritmo. Mas é bom saber que existem essas próximas etapas, para nos servir de
inspiração.
De qualquer forma, não há um único caminho
para chegar lá e o caminho mais rápido e mais sofrido não é necessariamente o
melhor. Não precisamos nos retirar para viver nas montanhas. Podemos alcançar
muito desse entendimento aqui mesmo. Muitos dos grandes santos viveram no
mundo. E não é preciso ser um santo para entender muitas coisas importantes.
Um dos conselhos mais necessários, que pode
ser um bom começo, é não temer tanto falar sobre o sofrimento. Não fugir da
Noite Escura da Alma, da batalha com Mara, pois caímos no abismo para deixar
algo para trás, e assim, mais leves, nos elevarmos com o divino. Também é bom
lembrar que aquilo que nossos sentidos não conhecem ou nossa razão não alcança
(como o espírito, ou o amor onibenevolente) podem ser buscados com esperança e
confiança no testemunho daqueles que chegaram lá antes de nós.
(Na imagem de abertura do post, temos a cena
célebre do sacrifício de Isaac por Abraão, largamente comentada na obra “Temor
e Tremor” de Soren Kierkegaard, que representa esse equilíbrio delicado entre
amor humano e divino
Fonte: Um Amor Que Não é Amor
Wanju
Duli | 27 de julho de 2016
Magia+do+Caos – Projeto Mayem
Rayom
Ra
http://arcadeouro.blogspot.com.br
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