Pequeno Wan andava nos
jardins do palácio sob os olhares da governanta. Havia rumores de que um
general do norte houvera reunido homens e treinado eficiente exército que se
deslocara para as montanhas da região e lá se escondera. Este general, de nome
Kuang, segundo afirmavam ao rei, tentaria tomar o reino pelas armas. O rei não
o conhecia, mas Kuang dizia ter o direito de governar por ser o legítimo
primogênito do antigo rei, avô de pequeno Wan, o qual amara uma cortesã, quando
príncipe, e com ela tivera um filho, o próprio Kuang. Julgava-se, assim,
descendente da linhagem real, a qual pertencia pequeno Wan, sucessor natural de
seu pai, atual rei.
A cortesã, seria uma jovem que se apaixonara pelo
príncipe e desobedecendo as ordens da cortesã-mor, não tomara o chá abortivo.
Como consequência, engravidara e escondera o quanto pudera sua desejada
gravidez. Entretanto, temerosa de que quando descobrissem o fato a castigassem,
deixara o palácio se escondendo em casa de parentes, lá dando à luz ao menino.
Porém, seu primo, ávido por favores, informara a um dos espiões do rei sobre a
criança desconfiando de que se tratasse do filho do príncipe, pois escutara
conversa da cortesã com a prima - sua irmã - em que dissera ter servido ao
príncipe e por ele estar apaixonada. O rei ficou furioso ao tomar conhecimento
do fato e ordenou que a trouxessem a sua presença a fim de interrogá-la.
Uma cortesã amiga, tendo escutado a conversa por detrás
das cortinas, correu antes e a avisou da ordem real, temendo que a matassem e
ao recém-nascido. A mãe tomou então a criança nos braços e fugiu do lugar,
juntando-se a um mercador que partia para o norte e já transpunha um dos
portões da cidade em sua carroça. Não tendo como esconder a criança, assustada,
ela contou-lhe toda a verdade pedindo-lhe ajuda, pois os soldados logo a
procurariam. O mercador temeu se envolver e perder sua cabeça, mas a cortesã
implorou-lhe pelo filho e como ele fosse um bom homem conseguiu convencê-lo a
ajudá-la. Teve ele então uma ideia e deixou a estrada, rumando para um lago que
ficava nas redondezas, onde sabia existir o barco de um sobrinho que nele
morava sozinho. O lago era grande e muitos barcos passavam as noites afastados
sem precisar aportar. O mercador não contou ao sobrinho a verdadeira história,
inventou outra que envolvia um oficial do exército que se julgara traído pela
esposa a quem desejava matar, e mandou que a mantivesse e ao recém-nascido no
interior do lago até que de novo voltasse. Não deveria demorar porque tinha mesmo
de partir para o norte.
Retomando a estrada, fingiu que saia em viagem normal.
Logo os soldados vieram e o cercaram. Mas como ele conhecesse o comandante do
destacamento, rapidamente revistaram a carroça e não o incomodaram. Os soldados
se foram e ele logo retornou ao lago, e da margem, fazendo o sinal que combinara, o sobrinho o viu e remou para a terra. O mercador colocou-os de
novo na carroça, instruindo ao sobrinho sobre o que dizer aos soldados caso
eles aqui aparecessem, pois se descobrissem que haviam escondido a jovem e ao
recém-nascido todos morreriam, e se foi por outra trilha, não sendo mais
encontrado pelos soldados.
O jovem príncipe herdeiro da coroa real, jamais pôde
comprovar a história dessa paternidade e aconteceu de, dois anos depois, seu
pai vir a falecer de mal súbito, e ele o suceder tornando-se o novo rei de sua
estirpe, casando-se e tendo dois filhos. Todavia, qual seu pai, não teve vida
longa, e em combate durante a invasão de hostes provindas do império ocidental,
recebeu uma flechada no pescoço morrendo pouco depois, sucedendo-o seu jovem
primogênito, o atual rei, pai de pequeno Wan, irmão de Kuang, o bastardo.
///
Os jardins do palácio eram encantadores, pequeno Wan
diariamente ingressava por seus caminhos e veredas visitando os recantos de sua
predileção. Fazia-o todas as manhãs, e com certa frequência antes de receber ensinamentos de
filosofia, artes e ciência que seus mestres lhe ministravam. Ultimamente, às
tardes, vinha recebendo disciplinas de artes marciais, necessárias a todos os filhos
da nobreza, pois ocorrendo rebeliões pelo reino ou iminentes perigos pelo país, os nobres
precisavam juntar milícias, protegerem-se ou tanto quanto possível sair a enfrentá-las. Isso incluía
invasões de hostes bárbaras provindas principalmente do norte, e também de outras regiões, e não
obstante seus muros para desestimulá-los não conseguiam detê-los inteiramente nas
suas ânsias de pilhagens, obrigando os reinos aliarem-se para se defender. Por
isto se preparavam desde cedo.
Mas nestes instantes, alheio a tudo, pequeno Wan
aproveitava para se distrair e se deleitar, apreciando as aves raras dos
cativeiros compradas em lugares distantes do reino e em terras estrangeiras, ou
dadas em presentes à família real. Observava também as aves soltas e
domesticadas, que corriam e pulavam pelo chão, que arrulhavam sobre arbustos e
galhos ou que se lançavam em voos curtos e arrodeados. Numa escolhida trilha,
bulia com um esperto e arisco faisão, parava a ouvir o canto de agitados
rouxinóis, ou desafiava a ira de um pavão ao alisar-lhe a nababesca cauda. De
repente, com alardeantes e propositais passos, tirava codornas de sob altas
touças de capins, e elas corriam e pulavam enfiando-se por novos e efêmeros
esconderijos. E os ruídos desses movimentos súbitos ocasionavam dispersivos
voos de assustados pássaros e aves menores, cujo bater de asas ecoava pelo espaço. Ao chegar diante do lago maior, em torno do qual floridos e
artesanais arbustos, entremeados com bonsais e pequenas árvores se
encarreiravam nas margens das vias que se cruzavam – e ali no lago quase todas
vinham morrer - o príncipe lançava à água minúsculas frutas silvestres, ficando
a apreciar as disputas das carpas e peixes dourados que tentavam capturá-las.
Depois, dirigindo-se ao recanto favorito, sentava-se num lance de gramado ao
fundo de um alpendre em formato de túnel, ornado de galhos de um diminuto
arvoredo, e iniciava um suave respirar, procurando sentir à penetração da vida
em seu jovem corpo, conforme lhe ensinavam os mestres.
Ao escutar vozes dos jardineiros ou notar visitas, não
gostava. Eram estranhos se insinuando nos lugares que eram seus, que invadiam
seu particular mundo, vindo estragar seu solitário retiro. Já bastava ter de
fingir que a governanta que o vigiava não existisse. Mais ainda se desgostava
quando via crianças – irmãos, parentes ou filhos dos nobres – a correr e
alardear-se pelos caminhos, a assustar desnecessariamente as aves, a provocar
alvoroços pelos jardins. Aborrecia-se e não raro recusava-se a fazer-lhes
companhia recolhendo-se aos seus aposentos, buscando distrair-se com os jogos.
Mas nem sempre existia em si a disposição para o
isolamento. Em ocasiões, apesar da beleza dos jardins e o prazer que lhe
proporcionava, havia momentos em que uma espécie de vazio penetrava-lhe a alma
e nada daquilo parecia tocá-lo como antes. Por causa dos perigos que poderiam
advir de inimigos infiltrados entre o povo, o rei mantinha severa vigilância
sobre a família, não se descuidando de manter criados e guardas a protegê-la.
Além do mais, sendo Wan o primogênito herdeiro da coroa, havia a necessidade de
manter a postura diante de todos e não podia vulgarizar-se. Nas raras ocasiões
em que viajava de carruagem para visitar parentes, observava os meninos de sua
idade andando livremente e traquinando pelas ruas. Então, imaginava como seria
viver como eles, sem disciplina rigorosa e sem temores, e se excitava com os
quadros construídos em mente, passando a desejar ardentemente a experiência.
Imaginava-se, além disso, cercado de amigos verdadeiros, que o tratavam
simplesmente por Wan, a ensinar-lhe coisas da idade e a quem, em troca,
confiava-lhes pequenas confidências.
Cansava-se, assim, de ser visitado pela parentela, brincar
com primos e irmãos no palácio e somente vez por outra conhecer uns poucos
jovens de outras classes. Mas não tinha muita graça; ele era o príncipe, o
futuro rei, e eles os futuros súditos, e desde já se comportavam como tal. Não
falavam a outro menino, senão ao príncipe, e o tratavam com excessivo respeito,
certamente obedecendo às advertências paternas, e até o temiam. Embora ainda
criança, e por intuição pura, notava-lhes, ademais, certo alívio quando
inventava uma desculpa e se afastava, deixando-os definitivamente. Não era o
que verdadeiramente desejava. Imaginava-se, isto sim, despido da condição real,
da herança que o perseguia e da incômoda responsabilidade de ser o príncipe
herdeiro. Em seus devaneios só tinha um nome, não tinha sangue nobre e nem
precisava agir cautelosamente. Era livre, não era notado e nem reverenciado,
não o elogiavam com falso sorriso e nem se curvavam diante de si com excessiva
e bajulada vênia. Falava o que queria, ia onde desejava e discutia suas ideias
abertamente. Via-se liberto dos protocolos que lhe impunham e das odiosas
caçadas que amiúde o rei organizava e nas quais o levava. Lembrava-se em como o
rei o repreendera quando mais jovem chorara ao ver um faisão atravessado pela
certeira flecha disparada pela possante besta de um dos caçadores. O rei
ameaçara castigá-lo severamente se repetisse aquela vergonhosa atitude, e ele
esforçou-se por obedecer e não mais chorar.
Porém, se por um lado aquela vida cerceada trazia-lhe
amarguras, encontrava ainda assim, além dos passeios nos jardins do palácio,
outras coisas que lhe agradavam. Enviava especial respeito e carinho a Meng
Keng, mestre de filosofia e monge budista. Tinha satisfação em aprender desse
mestre, e lamentava haver épocas em que ele não aparecia no palácio, entregue
às longas meditações no mosteiro onde vivia. Quando, finalmente, ele voltava e
ali se hospedava, o mestre passava horas em sua companhia, ensinando-lhe nos
jardins, andando ou sentando-se à sombra de árvores e sob alpendres. Isso era
realmente bom e Wan se concentrava nas lições esquecendo-se de sua condição
principesca e confinamento. O tempo com o mestre parecia voar e lamentava não poder
alcançar o significado de tantos conceitos que ele expunha, senão em pequenas
partes, ouvindo-lhe a suave advertência, quando insistentemente inquiria: “pequeno
Wan – dizia-lhe Keng – a semente muito jovem lançada ao solo para germinar não
vingará. É preciso estar no tempo certo para que a terra simplesmente não a
devore e dela nada venha restar.”.
Também amava Sheng Huang, o mestre de ciência. Aprendia
muito sobre os metais e ouvia das transformações em utensílios e suas
finalidades. O mestre de ciência não lhe poupava também das lições de
filosofia, mas, principalmente, ensinava-lhe alguns fundamentos do que um dia
chamariam alquimia e suas relações com os cinco elementos. Para as artes,
pequeno Wan não demonstrava grandes pendores, no entanto ocupava-se nas aulas e
procurava absorver.
II
O tempo passava. Pequeno Wan fizera doze anos e sua
alma não digeria de forma adequada o volume de ensinamentos que recebia. Era
próprio da idade e ultimamente isso vinha causando-lhe ansiedades. Os problemas
de seu pequeno universo começavam parecer-lhe grandes demasiados para que os
resolvesse sozinho. Os passeios pelos jardins ajudavam-no a libertar-se de
certa carga de preocupações, mas isso era só momentâneo, e logo retornavam. Era
um começo de duelo entre duas almas: a que ele ia deixando para trás, com sua
infância e ingenuidade, e a que se apresentava para assumir-lhe outros desejos
e atos mais compatíveis com sua transformação orgânica e mental. Ele não
compreendia bem essas coisas e ora se excitava ora se deprimia.
Entretanto, outro tipo de sensação viera hoje povoar-lhe
o íntimo, estimulando-lhe especialmente os anseios. Era algo a mexer lá no
fundo, provocando-lhe estranha inquietação. Sentia-se tolhido, desejava alçar-se
para mais longe. Essa sensação não era como outras: viera anelada a um desejo
clamante por espaço físico, por outro cenário, a uma necessidade de andar,
caminhar fora dos limites que lhe eram mais do que conhecidos – algo diferente
de seus devaneios. E aquilo acionou-lhe uma ideia e a ideia tornou-se forte,
mais definida, agitando-lhe as emoções. Mas como sairia? Olhou para trás e
divisou por entre arbustos a figura da governanta a certa distância,
aparentemente distraída. Por ordem do rei, ela se mantinha sempre a alguns
metros de onde ele estivesse e só se apresentaria numa emergência, ou quando o
príncipe a chamasse. Se Wan resolvesse sair dos jardins ela o acompanharia onde
fosse. Voltando Wan aos seus aposentos, a governanta imediatamente voltaria também
aos seus, e quando ele novamente desejasse ir aos jardins ou a outro lugar
qualquer permitido, deveria mandar chamá-la.
Resolvido, tomou o rumo do palácio, cruzou por
corredores e atingiu seus aposentos. A governanta seguiu-o, e ao verificar que
a porta se fechara voltou-se para a outra ala indo recolher-se. Pequeno Wan
saiu logo depois, andando dissimuladamente, procurando não deixar transparecer
a excitação que dele se apossara. Caminhando pelo corredor da ala principal,
onde ficavam todos os aposentos reais, ele pisava sobre o longo e macio tapete
púrpura, não ouvindo o ruído de seus próprios passos, percebendo somente o leve
roçar de suas ricas vestes de seda, procurando controlar sua respiração
alterada. Pensava se, de algum modo, os guardas nas esquinas dos corredores não
estariam desconfiando de que algo incomum se passava em seu íntimo. Então, seu
coração de menino acelerava; mas ao verificar que os homens permaneciam alheios
ao seu mundo, vinha-lhe certo alívio. Isso se repetiu duas vezes por todo o
trajeto e finalmente chegou diante dos aposentos de seus pais, imaginando que a
esta hora eles não deveriam lá estar; assim abriu a porta e adentrou.
Os aposentos eram grandiosos. Na antessala,
pares de cortinas deslizantes, de fino tecido, se dispunham paralelas,
independentes, vedando total ou parcialmente à visão externa como desejassem os
reis neste ou naquele momento. Por sorte, elas estavam todas cerradas e se
alguém lá dentro estivesse – os reis a descansar ou criados a fazer limpezas e arrumações
– não o veriam, pois ele adentrara sorrateiramente. À esquerda da antessala
existia uma porta, bem ao fundo. Ali, algum mandatário de sua ascendência
mandara construir pequena câmara em nível inferior, e ao que parecia em
princípio, como de única utilidade, para ser somente uma adega particular do rei. Havia,
porém, algo mais lá dentro, e que era dado a conhecer somente aos reis e aos
seus filhos, quando esses já pudessem guardar segredo. E pequeno Wan sabia, o
rei contara-lhe – era uma saída secreta!
Havia outras saídas de emergência no palácio que seriam
utilizadas, como foram no passado, para a escapada dos palacianos em casos de
invasões. Estavam, porém, guardadas por sentinelas, e caso ele desejasse entrar
por alguma delas seria logo interrogado e o rei avisado. Óbvio, portanto, não
poder fazer isto. Mas essa da adega era desconhecida dos demais, pertencia
somente ao rei e sua família e poderia ingressar nela sem ser visto!
Andando até a porta da câmara, abriu-a, principiando a
descer os degraus da escada. A adega era iluminada por lamparinas às paredes
que permitiam razoável visibilidade do lugar. Pequeno Wan tomou uma delas e se
dirigiu para onde existiam grades de escaninhos com prateleiras que
acondicionavam garrafas com vinhos e licores. Aqui era mais escuro, ressentia à
umidade e mofo, e diante da terceira grade de uma das paredes ele contou três
escaninhos para a esquerda, e deste último retirou algumas garrafas, deixando
um pedaço da parede à mostra. Bateu então algumas vezes com o punho fechado
numa pedra retangular, e a viu mover-se ligeiramente. Ao força-la ela saltou,
mostrando-se no formato de uma portinhola. Abrindo-a, descobriu-se um espaço
interior onde tinha uma alavanca instalada lateralmente, que ele, esticando
todo o seu braço a acionou, ouvindo de imediato um estalido e vendo em seguida
a grade inteira a se mover levemente
Após pousar a lamparina numa prateleira e tendo reposto
as garrafas no escaninho, puxou a grade, que veio toda, girando num dos lados,
deixando uma área da parede de pedras completamente à mostra, e apoiou um ombro
naquela parede vendo-a também girar sobre um eixo interno contrariamente ao
sentido de abertura da grade, e se afastou dois passos. Bastante excitado e com
sentimento de vitória, Wan retomou a lamparina e com cuidado ingressou na
escuridão. De dentro, sob a fraca luz, lembrou que tinha de puxar a grade
desde lá de fora e retornou para a adega, trazendo-a de volta para o seu lugar,
girando-a em seu eixo. Novamente naquele espaço escuro, ele empurrou a porta
para a sua posição inicial e juntou-a à grade. A larga porta fora construída
com pedras finas sobre armação de madeira leve, de modo que pelo lado da adega, através
dos escaninhos da grade, parecesse somente um lance da parede, e dentre sombras
e pouca luz Wan acionou novamente a alavanca, ouvindo um estalido, constatando,
pela portinhola ainda aberta na própria porta, que a grade fora definitivamente
encaixada no mecanismo. A certeza de que mantinha oculta a entrada daquela
passagem tranquilizou-o. Finalizando, fechou a portinhola e preparou-se para
explorar o lugar.
Havia adiante degraus, e pequeno Wan desceu-os
cuidadosamente, andando depois sobre um piso em leve declive dentro de um túnel
sustentado por pilares, revestido de pedras. Ao longo das paredes, a distâncias
regulares, existiam lamparinas e tochas presas, prontas para serem usadas.
Alguns trechos apresentavam umidade no piso, depois o piso tornava-se outra vez
seco. Pequeno Wan nunca houvera explorado essa passagem, senão, em companhia do rei, visto somente como abri-la e de novo como camuflá-la, mas agora, ingressando nela sozinho, sentia temor quando olhava para adiante vendo somente
sombras, e ansiava chegar logo ao final, esperando não ter nenhuma surpresa
desagradável. Nessa expectativa, andou boa distância até ouvir ruídos de água
corrente. Adiante, o túnel terminava, mas o vão de saída achava-se parcialmente
encoberto por um tipo de trepadeira, havendo no chão plantas arbústeas. O ar
ali se impregnava de forte aroma que serviria para manter afastados répteis
venenosos, dentre eles escorpiões e serpentes. Wan conhecia essas plantas e
abriu passagem com as mãos, rasgando o frágil emaranhado de folhas e finos
galhos, alcançando o amplo espaço de uma gruta. Assustado, viu alguns
esqueletos amontoados, outros agrilhoados às paredes. Um rio corria pelo meio
da gruta, cortado adiante por estreita ponte. A poucos passos, notou à margem
próxima dois largos barcos atados em pequenas estacas e um idêntico na outra
margem. Sob a fraca luz da lamparina examinou-os, notando em ambos a
conservação e o trato, evidenciando estarem preparados para imediato uso, como
certamente estaria o outro na margem oposta. Mas o rei, sozinho, não faria
isto; deveria então haver outras pessoas que cuidavam deles! E o rio, para onde
conduziria? Uma coisa era certa, já não deveria mais estar sob a área do
palácio. Estaria sob um ponto qualquer da cidade!
Seguindo pela ponte deixou a gruta para trás e caminhou
por outro longo trecho. Quando isto terminaria? Sentia-se sufocado, ansiava por
ar puro. Alguns passos adiante viu degraus encavados numa rocha, e os galgou.
Vinham terminar numa pedra côncava no desenho de uma marquise; estreito facho
de luz penetrava por quase imperceptível fenda do teto indicando, talvez,
provável proximidade da saída. O mesmo forte cheiro impregnava em torno e
reconheceu entre os grossos arbustos e matos, idênticas plantas que repugnavam
répteis. Largando a lamparina, se lançou sobre eles – eram longos e cerrados,
havendo curvas na sua extensão – e conseguiu atravessá-los com extrema
dificuldade, pondo-se finalmente de pé. Com satisfação respirou novo ar e novo
aroma, verificando encontrar-se no interior de uma floresta, provavelmente
naquela a leste dos muros da cidade, na qual nunca estivera!
E agora? Estava só num lugar desconhecido, embora pleno
de vigor natural ao seu inteiro gosto. Olhou em torno e observou o Sol em
réstias. Sombras espalhavam-se sobre arbustos e pelo chão vindo encontrar
verdes lances de alta grama, pés de minúsculas plantas e folhas caídas. Havia
clareiras interligadas e uma pedreira circundante, não alta, interrompida num
trecho de pouca largura. Pássaros iniciaram um recital, insetos
sobrevoavam; flores gentilmente se abriam, e todos pareciam cumprimentar o Sol,
o dia, a vida! Seria imensa essa floresta, calculava, esquecendo-se do temor
inicial que há pouco o abraçara, resolvendo caminhar, já tomado de crescente
satisfação mesclada a uma sensação de liberdade!
Distraído, preso na observação, Wan experimentava um
gosto jamais imaginado, atraído agora pelo suave rumorejar de água, vendo
adiante, em meio às árvores, raso riacho a deslizar em pequenas quedas.
Satisfeito, descalçou os sapatos adornados em seda, segurando-os com as pontas
dos dedos, e entrou na água, refrescando-se. Em seguida, subiu pelo estreito
leito parando num certo trecho, pois lhe chamara a atenção, a poucos metros
dali, espremida sob dois troncos velhos e caídos, uma pequena gruta. Ali se
dirigiu, e arcando o jovem corpo, dobrando levemente os joelhos, pouco encurvado,
conseguiu nela ingressar vindo sentar-se num ressalto de pedra lisa. Devido à
tensão pela difícil caminhada empreendida, sentia-se um tanto fatigado e
começou a inalar profundamente, na tentativa de relaxar e recuperar alguma
energia. Porém, não durou muito essa postura, logo se sobressaltando. Lá fora
se produzia uma mistura de ruídos e sons; aquilo aos poucos crescia tornando-se
mais próximos. Ele agora os reconhecia e se assustava. Eram estalidos e
farfalhar de galhos, espirros e marchas de cavalos, e vozes de homens. Ele
então se agachou indo se arrastar lentamente até a entrada da gruta, parando a
observar.
O que viu causou-lhe grande espanto e recuou dois passos! Tratava-se de uma
divisão de exército que ali bem próximo se mobilizava por dentre a mata, com
homens vestindo armaduras de guerra e rumando, ao que tudo indicava, em direção
da cidade. Coração aos pulos, pequeno Wan voltou ao interior da gruta
procurando ocultar-se melhor. Que fazer? Sem dúvida precisava retornar e avisar
ao rei; se eles atacassem pegariam a todos de surpresa. Aguardou que os
soldados passassem, mas eram muitos, aquele desfile parecia interminável.
Finalmente, desapareceram de vista e quando mal escutava seus ruídos a se
perder na distância saiu da gruta, calçando os sapatos. Teria de voltar,
reingressar na passagem pela qual viera e rapidamente alcançar o palácio.
Saindo do riacho, pôs-se a procurar a trilha que antes palmilhara, mas não conseguia
encontrá-la. Entrava e saía de trilhas idênticas, e aquelas o levavam sempre a
locais diferentes. Isso o ia deixando nervoso e cada vez mais apreensivo. Seu
corpo tremia, o rosto afogueava. Depois de algumas tentativas reconheceu
finalmente a trilha, nela ingressando apressadamente. Porém, ao ouvir novas
vozes e ruídos estancou, pulando para detrás de arbustos, bem a tempo de passar
dois cavaleiros, olhando para o alto das árvores, a empunhar arcos e flechas,
provavelmente procurando por caça.
Pequeno Wan tremia. Se o descobrissem e viessem
saber tratar-se do príncipe herdeiro, estaria irremediavelmente perdido: o
aprisionariam e provavelmente acabariam com ele. Mesmo assim, retomou
a trilha tão logo os cavaleiros desapareceram, e, pé ante pé, procurou avançar.
Mas não pode ir muito longe. Ali, próximo das clareiras onde estivera antes,
aninhados e alojados em torno da pedreira circular, à sua volta interna e sob
árvores, soldados acampavam. Seria, imaginou pelas aulas que recebera sobre
táticas de guerra, uma patrulha de retaguarda a dar cobertura à divisão que se
adiantava e que certamente, mais à frente, se preparava para atacar. Pequeno
Wan via isso estirado no chão, dentre a sarça, e não poderia atravessar e nem
alcançar a passagem que o conduziria ao palácio.
De repente, pela trilha principal, os dois cavaleiros
vistos há pouco retornavam e se dirigiam ao comandante da patrulha, anunciando
que muitos soldados estavam a caminho, e, tão logo chegassem ao acampamento, iriam
desmontar e aguardar ordens do general Kuang. Ao ouvir isso, pequeno Wan
arrastou-se para trás, afastando-se do lugar. Estava desolado e desorientado.
Mas pouco durou esse estado emocional, por que de novo escutou ruídos e vozes
vindos de outro lado. Seriam, sem dúvida, os soldados mencionados que se
juntariam à patrulha e que aguardariam as ordens de Kuang. Ele correu para
outra direção, procurando esconder-se, chegando resfolegado junto a uma grande
árvore de grosso tronco, cuja base constituía pequenas paredes, ali se
aninhando, julgando-se a salvo. Que faria: como poderia alcançar o palácio?
Estava no meio de uma floresta que lhe era estranha e desconhecida; não saberia
orientar-se e nem sair dela, achando-se impossibilitado de voltar pelo único caminho
que conhecia. Ademais, chegando a noite, o frio, e o soldados lá permanecendo,
onde ficaria? E se houvesse por aqui animais ferozes, poderia ser encontrado
por algum. E quanto ao exército de Kuang, iria realmente atacar o reino e
conquistá-lo? E sabendo disso nada podia fazer; era um inútil, nem como
mensageiro servia!
Tomado destes angustiantes pensamentos, começou a chorar,
baixando a cabeça, apoiando-a sobre os braços que descansavam aos joelhos.
Quanto mais se angustiava mais lágrimas rolavam-lhe pelas faces.
- Príncipe Wan! – aquela voz penetrou-lhe os
ouvidos e ele parou o choro, não tendo, porém, coragem de levantar a cabeça.
Teria imaginado, ou seria algum espírito da floresta? – Príncipe Wan,
levante-se, venha! Ele então olhou, e, entre um misto de temor e surpresa, viu
um jovem bem à sua frente, de lisa cabeça a reluzir por um fragmento solar a
tocá-la. Pequeno Wan levantou-se de imediato.
- Quem é você?
- Sou Yang Te-Chun, mestre Keng mandou-me buscá-lo.
Venha, príncipe, você corre grande perigo! Apoiado nessa informação, seu
coração encheu-se de esperança e ele se animou.
- Para onde vamos?
- Para o mosteiro!
- Não, não posso. Tenho de voltar, eles vão atacar a
cidade e o palácio, o rei precisa saber!
- Não há tempo, príncipe, eles estão espalhados por quase
todos os lados. Até as estradas estão tomadas, são muitos!
- Tenho de tentar assim mesmo, você precisa ajudar-me -
pequeno Wan excitava-se.
- Príncipe, quando a situação está desfavorável é mais
sensato recolher-se e aguardar. O general Kuang, inimigo de seu pai, aliou-se a
outro exército que veio de longe, atravessando as estepes. São milhares, nem dá
para contá-los!
Pequeno Wan baixou os olhos e prostrou-se. Lágrimas de
novo molharam-lhe as faces. Yang Te-Chun pôs-lhe a mão no ombro e o consolou:
- Sei, príncipe, que seu nobre coração sofre. Se você
pudesse muito faria, porém não agora. Nada no momento é mais sábio do que
sairmos daqui. Mestre Keng nos aguarda, vamos, conheço uma trilha que nos
conduzirá a salvo - dizendo isso Yang Te-Chun caminhou adiante e pequeno Wan o
seguiu.
A trilha que tomaram, a princípio nada apresentava de
especial, entretanto na medida em que se interiorizavam pela floresta ela
desaparecia de vista e era necessário redescobri-la. Yang Te-Chun, na frente,
afastava galhos, agachava-se sob troncos parcialmente tombados e contornava
obstáculos. Subia em montes, entrava por grutas abertas pelas extremidades e continuava, seguido
de perto por Wan. Adiante, andaram por riachos e os deixaram, ingressando
novamente na mata fechada. Durante o tempo em que caminhavam não foram
surpreendidos e nem escutaram ruídos de soldados em trânsito, mas assim mesmo
Yang Te-Chun seguia cautelosamente. Em certo momento, quando pequeno Wan quis
dizer-lhe algo, ele fez sinal de silêncio e apontou para adiante. Finalmente,
alcançaram a periferia da floresta, uma espécie de ferradura onde,
mais abaixo, viam-se plantações de trigo e milho, e pelas bordas, margeando um
canal, campos de arroz que se estendiam para muito além da floresta. Yang Te-Chun sorriu e voltou-se para pequeno Wan,
parando e apontando:
- Além da planície, entre as colinas, adiante, fica o
mosteiro.
Tendo observado o que seu guia lhe apontara, pequeno Wan
voltou-se e procurou lugar onde sentar, encontrando um toco de árvore ceifada.
Yang Te-Chun, vendo-o assim, aproximou-se e sentou-se diante dele na verde
relva que se estendia até o início dos trigais, cobrindo o chão em declive.
- Como você me encontrou?
- Mestre Keng orientou-me.
- Como ele sabia que eu ali estava?
- Ele sabia.
Pequeno Wan mirou-o com mais atenção. Yang Te-Chun
olhava-o simplesmente. Vestia-se de branco como neófitos do mosteiro e calçava
sandálias
- Penso que não deveria ter deixado o palácio. Como
estarão todos agora? - falou Wan inconformado, com fisionomia entristecida.
- Príncipe Wan, suas preocupações procedem, uma vez
que é sua família. Porém, tendo deixado o palácio por que agora arrepender-se
uma vez que sua alma ousou? O filhote de pássaro ao pular do ninho não o faz
por rebeldia nem por estupidez. Logo aprende a voar e escolher o seu próprio
alimento.
- Que faço então? - perguntou ainda desanimado.
- Confie, príncipe, confie.
Instantes depois eles retomavam os passos alcançando os
trigais, desviando-se por um caminho secundário, precavendo-se, talvez
inutilmente, de não serem vistos por ninguém. Ao aproximarem-se dos portões do
mosteiro o Sol já ia alto, bem sobre suas cabeças, e tendo subido os degraus da
escada Meng Keng surgia pela porta, estendendo os braços para receber pequeno
Wan. Ele abraçou-se ao mestre e novamente chorou.
- Príncipe Wan, acalme-se.
- Mestre, eu desejava estar no palácio e lutar ao lado do
rei.
- Deixe as armas para os soldados. Um jovem como você é
precioso demais para cair atravessado pela espada de mãos assassinas.
- Mas os reis, minha família, perecerão?
- A vida dos homens é conduzida por mistérios somente
desvendados nos momentos certos. As águas rolam em seus cursos, porém nem todas
vão ao mar.
III
O mosteiro tinha ótimo serviço de escuta. Os monges,
neófitos e discípulos andavam pelo país em suas peregrinações de auxílio ao
povo, encontrando sempre alguém para dar-lhes notícias sobre o que desejassem.
Mas as notícias que chegavam para pequeno Wan eram desanimadoras. Já se
passavam sete dias desde que o exército comandado por Kuang e por outro general
de povo bárbaro houvera atacado a cidade. O exército do rei aguentara o quanto
pudera, porém o inimigo, além de mais numeroso, se preparara com táticas que
surpreenderam os citadinos. O combate não levara mais que dois dias. Kuang,
tendo avançado, bombardeara o portão principal dos muros da cidade,
destruindo-o e o transpondo. Lá dentro, encurralara ao exército adversário, ou
ao que dele restara, fazendo-o render-se; daí marchara para o palácio,
tomando-o sem a menor resistência. Imediatamente após este ato, mandara
anunciar que o reino era seu, coroava-se o novo rei e exigia obediência
incondicional. Informava, ainda, que aniquilaria impiedosamente a qualquer
rebelião porventura insurgida contra seu reinado e executaria a todos os
sobreviventes, como o fizera com a família real que não mais existia.
Essa última notícia os monges obtiveram-na de mercadores
que tinham conseguido especial autorização de ir e vir através do portão
principal, ao exercício de suas necessárias atividades, uma vez que por cinco
dias, desde a sua tomada, a cidade permanecera sitiada. Somente após esse
período, julgando-se senhor de toda a situação, Kuang mandara que os portões
fossem reabertos e a vida da cidade retomasse aos poucos a sua rotina.
Ao saber da execução de toda a sua família pelo general
Kuang, pequeno Wan chorou inconsolavelmente e maldisse a sua sorte. Lamentava
uma vez mais não ter podido ao menos avisar ao rei do ataque inimigo que tão
rápido se desfechara, pegando-os a todos desprevenidos. Calou-se após e não
pronunciou uma só palavra durante três dias. Mais tarde, quando os religiosos
do mosteiro já podiam de novo entrar livremente na cidade, embora tudo
estivesse severamente vigiado por patrulhas que se mobilizavam e soldados
controlassem os lugares mais estratégicos, eles souberam que, na realidade,
ninguém houvera visto os corpos da família real e da criadagem. Afirmavam que
no momento da invasão dos soldados pelos corredores e cômodos do palácio, a
família real provavelmente não mais lá se encontrasse. Kuang, diziam, houvera
mentido para intimidar o povo a fim de que aceitasse logo a ideia de ser ele
seu novo soberano, e o exército disperso não encontrasse motivações para,
ocultamente, se rearticular, visando qualquer possível reação.
Estariam ou não mortos, ninguém tinha certeza. Mas ficava
a esperança de o rei surgir um dia e expulsar os invasores, retomando a cidade.
Para pequeno Wan esta notícia veio trazer-lhe nova vida e passou a crer na fuga
de sua família através da passagem secreta a qual também utilizara. Envergando
assim novo ânimo, falou a Meng Keng dessa certeza, desculpando-se, entretanto,
de não poder fornecer maiores detalhes da passagem, devido ao juramento que
fizera ao rei. Ao ouvir isso, Meng Keng somente sorriu.
///
Cinco anos se passaram. Nesse período muitas coisas
sucederam no reino. Kuang mostrava-se sem o menor tino para administrar. Seu
temperamento era, na maior parte do tempo, imprevisível e egocêntrico, revelando-se,
ademais, amante do excessivo luxo e de inúmeras mulheres. Impusera pesadas
obrigações e taxas ao povo, exigira grandes parcelas sobre a produção de
cereais e aos outros tipos de alimentos em todo o reino, além de fazer
encaminhar para o palácio preciosas pedrarias, objetos de artes e fina
louçaria. Havia épocas em que bebia muito vinho e disso se aproveitavam as
cortesãs que o rodeavam dia e noite, para obterem, em meio as suas promessas
luxuriosas, aquilo que desejavam. Porém, em decorrência de seu desinteresse
para com os problemas do povo, a tristeza e o rancor grassavam no reino. As
grandes festas comemorativas de ciclos anuais, não encontravam mais a mesma
animação de outrora. Os muitos e variados desfiles, antes ricos em pândegas, foguetório
e fantasias, que o povo nas ruas organizava, não atraiam mais interesse, e os
poucos que eram realizados, arrastavam-se pela falta de alegria e espírito. Em
vários níveis da vida social do reino a escassez de alimentos já começava a
incomodar e os setores produtivos não conseguiam acumular o suficiente para a
população, visto a necessidade de alimentar primeiro o exército do rei
usurpador e a seus animais, o que consistia em enorme dispêndio. A situação só
não se tornara ainda mais dramática pelo fato de o exército aliado a Kuang ter
abandonado a cidade, depois de seguidos desentendimentos entre os dois
generais.
Sentindo-se, pois, sempre relegado e não vendo o
cumprimento integral do que lhe fora prometido, o general bárbaro inquirira a
Kuang desafiadoramente, em visita que lhe fizera ao palácio, acompanhado
somente de sua escolta. Desejava ele, de imediato, a parte do reino que lhe
caberia e que a exploraria durante alguns anos a fim de acumular os bens que
pretendia ir embarcando para suas terras. Kuang, na verdade, jamais tencionara
honrar a palavra assumida e mantinha-o sob a expectativa de logo estabelecer os
limites de seu mando, porém não o fazia. Irritado, após forte discussão no
salão real, o general investiu contra Kuang de alabarda à mão a fim de
transpassá-lo, porém, um dos homens de Kuang fora mais rápido e atingira-o
mortalmente com uma lança, seguindo-se ferrenha luta dentro do palácio, tendo
os homens da escolta do general finalmente se rendido. Kuang, apesar do ataque
pessoal que sofrera naquele exato momento, preparara-se justamente para esse
desfecho, colocando suficiente número de homens pelo palácio a bloquear todas
as comunicações. Assim, mais dia menos dia liquidaria mesmo com o general e
abafaria a reação de seus soldados.
Mas a história não terminaria nisto. Ainda como
estratégia para surpreender ao exército ex-aliado, Kuang mandara convocar
imediatamente todos os oficiais do comando do outro general para uma reunião
extraordinária no palácio, como se a ordem partisse de seu próprio general, o
que não lhe fora difícil conseguir através de um traidor, a quem muitas
promessas foram feitas, moedas colocadas em suas mãos e cortesãs deixadas à sua
disposição. Assim, na medida em que os oficiais iam chegando ao palácio com suas
escoltas, eram desarmados e levados para as celas no subterrâneo. Pode Kuang,
desta maneira, tornar o exército mercenário completamente acéfalo, e propôs aos
oficiais se despojar de suas principais armas e melhores montarias, e deixar o
reino. Caso se negassem seriam mortos e seu exército dividido em dois. Os que
quisessem permanecer se incorporariam ao seu comando, sem regalias, e os que
não quisessem seriam expulsos do reino.
Na realidade, Kuang não queria executar a nenhum oficial.
O general que morrera não obtivera total adesão da confederação das tribos que
formavam a nação bárbara a que pertencera. Nessa empreitada de guerra, saíra de
sua região para aliar-se a Kuang, após ter duelado com seu maior rival e tê-lo
morto. Para evitar mais conflitos entre eles e desnecessárias mortes, a
confederação decidira aceitar a partida desse exército, porém com oficialidade
mista, isto é, composta de membros de escalão das várias tribos. A morte do
general não abalaria muito a união das tribos, pois ele era tido como
dissidente e perigoso, todavia o assassinato dos outros oficiais sim. Kuang
sabia disto e não desejava experimentar o ódio conjunto das tribos bárbaras
numa guerra que lhe seria desvantajosa. Já bastaria não compartilhar com a
confederação dos ganhos dessa atual conquista, o que não afastava o perigo de
represálias.
Sem saída, o oficialato misto das tribos, preso por
Kuang, aceitou partir, abandonando o reino e o país com suas falanges,
marchando pelas trilhas das montanhas, não sem antes jurar sanguinária
vingança. Vendo, entretanto, que seu exército se reduzira à metade, Kuang,
temeroso de perder poderio, enviava seus emissários às regiões do norte e
arrebanhava novos mercenários. Mas não conseguindo ainda o número desejado,
decretara serviço militar obrigatório para os jovens acima de quinze anos, a
fim de ensiná-los a lutar e fazer parte de seu efetivo, além de incorporar
antigos soldados do reino. Os que se recusassem comparecer teriam suas famílias
jogadas no fundo dos porões e os bens que possuíssem sequestrados.
Aterrorizados e coagidos, os convocados foram obrigados a se apresentar ao
exército invasor. Porém, vendo as dificuldades que adviriam em comandar
eficientemente jovens soldados cativos, os militares começaram a doutriná-los
sobre comportamento, disciplina e fidelidade, estendendo esse condicionamento
aos ex-soldados do rei. Ganhariam regalias os que mais se dedicassem e se
destacassem; suas famílias seriam assistidas e não passariam por privações. Ao
contrário desses, os que não fossem aprovados receberiam castigos e punições e
não se dispensaria qualquer auxílio aos seus familiares, podendo até existir
condenações ou execuções deles, ou de familiares, em casos de comprovadas
rebeldias ou falta de empenho.
Em pouco tempo viram o plano dar algum resultado. O ideal
de fidelidade ao antigo rei cedia ante os clamores das necessidades, e logo
cooperavam e recebiam as recompensas, esquecendo-se do alto preço de servir em
coração ao antigo governante, mas terem o estômago a arder de fome. Melhor
agora, com as necessidades imediatas atendidas e novas promessas de ganhos do
que a vida difícil de antes. Ademais, nunca seriam acusados de traidores porque
haviam sido compulsados a se incorporar ao exército invasor.
///
Por outro lado, a vida dentro do mosteiro decorrera
nesses cinco anos como se fora um universo à parte. E de fato era quase isso.
No início, pequeno Wan permanecia como um refugiado que se escondia do mundo. O
mosteiro era grande, tinha três largos salões onde os monges e discípulos
realizavam suas meditações e rituais, além de alojamentos, cozinha, refeitório
e outras dependências. Corredores ligavam as alas interiores do prédio e
escadas uniam os andares. Não havia móveis decorativos ou supérfluos, somente o
necessário, e isso incluía uma enorme estante na biblioteca lotada com
pergaminhos e comprida mesa ladeada de bancos onde liam em silêncio. Quando
conversassem, meditassem ou estando a realizar algum ofício religioso,
faziam-no geralmente de pé ou sentados no chão, conforme a situação requeresse.
Os mais velhos, cujas juntas já não lhes permitissem ocupar posturas de pernas
cruzadas, ou ficar mais tempo de pé, sentavam-se sempre em bancos ou cadeiras
de bambu.
Além do prédio
principal, existiam os anexos exteriores em que funcionavam a lavanderia,
banheiros, a oficina onde fabricavam velas, a outra oficina em que, vez por
outra trabalhavam com metais ao fogo, a dispensa armazenadora de cereais, de
chás e remédios in natura, de alimentos perecíveis e não perecíveis onde faziam
também pão, e um grande galpão guardando diversos outros materiais, tais como,
colas, resinas, rolos de pergaminhos, pincéis, tinturas, telas, cordas e outros
objetos, e ali, diariamente, exercitavam a escrita ou trabalhavam fabricando ou
ensinando. Por último, nesse bloco tinha a carpintaria, na qual também os
jovens aprendiam a conhecer as qualidades da madeira e suas transformações em
utensílios que, quase todos, uma vez acabados, eram doados às famílias que os
encomendassem ou que simplesmente os necessitassem. Finalmente, noutro anexo
separado desse bloco, funcionava uma segunda cozinha, bem maior do que aquela
de dentro do prédio, com grandes panelas, tachos de cobre e um fogão à lenha em
que a principal refeição do dia era feita.
Havia uma pequena casa mais afastada dos anexos e do prédio principal que consistia de uma dependência onde, principalmente neófitos e discípulos em provas permaneciam em clausura, ficando a meditar dias seguidos trancados sem sair, e uma saleta contígua com diminuto banheiro e uma portinhola na parede, através da qual eram colocados seus alimentos e bebidas sobre uma base de madeira e retiradas as tigelas e pratos já utilizados.
Nos limites internos do mosteiro, um jardim e um pomar
eram cultivados onde colhiam os frutos maduros, e próximo dali, na área
arborizada, algumas figueiras cobriam parte do solo e pequeno córrego se
insinuava. Era nesse agradável recanto, ao ar livre, em dias secos primaveris
ou de verão que eles os despendiam a meditar ou simplesmente a caminhar em
laser, indo e vindo. Para além muros, perdendo de vista entre montes
ou em planície aberta, vicejavam na generosa terra em primeiro plano as plantações de trigo,
milho e arroz e nas áreas menores, mas plenas de produtos,
as verduras ou tubérculos e variedade de frutas. Em tempos de plantações ou de
colheitas era intenso o movimento dos camponeses a trabalhar, cujas famílias,
por vezes, viam seus efetivos de mão de obra somados de um ou outro dos
budistas do mosteiro, que, voluntariamente, desejasse labutar como parte de sua
formação, treinamento e disciplina.
Toda a terra, produtiva ou não, em grande e total
perímetro muitíssimo além da cidade real, pertencia ao reino. O reino era um grande
feudo e todos tinham obrigações e deveres para com ele e com sua sobrevivência.
Assim é que os arrendatários de terra se viam obrigados a ceder metade de sua
produção para o governo, ficando para si com a metade da outra parte, deixando
a outra metade para a divisão entre dezenas de outras famílias de vassalos ou de camponeses
livres contratados, às vezes chegando a bem mais de uma centena de famílias. Havia, entretanto, outros tipos de
propriedades, que eram concessões com relativa autonomia, e que representavam
feudos dentro do grande feudo. Tratavam-se de casos especiais não veiculados às
regras gerais vigentes – muito embora nos limites da lei e dos decretos reais –
podendo representar pequenas, médias ou grandes extensões de terra, ou
províncias, cabendo ao mandatário real – o rei – estabelecer oficialmente suas
dimensões e termos de privilégios. Essas concessões ou feudos, entretanto, por
maior que fosse o desfruto de suas autonomias, jamais deixavam de dar
obediências ao governo, e o rei detinha poderes oficiais sobre eles, bem como a
todas as demais propriedades em que necessitasse fazer valer sua vontade.
Assim, podia convocar servidores quando achasse conveniente, recrutar homens em emergências,
para reforçar o seu exército, exigir maior parte da produção
agrícola em tempos magros ou de calamidades, ou negociar quaisquer outras
mudanças nos termos dos contratos e da diversidade da produção, até de comércio,
que fossem mais convenientes às necessidades do reino ou da família real. Não
obstante, em épocas de normalidade, mediante novas negociações, podiam ser
reduzidos os percentuais de suas obrigações com o governo naquele ano, e desse modo
seus suseranos voltavam a administrar a produção com maior margem de ganhos.
E as concessões incluíam também os budistas do mosteiro,
estando não obstante isentos de outras obrigações que viessem colidir com sua
filosofia religiosa. Assim é que não serviam ao exército e nem eram convocados
para tarefas outras, a menos que desejassem realizá-las voluntariamente.
Viviam, pois, em seu mosteiro, praticamente sem qualquer tipo de ingerência do
reino, existindo respeito às suas convicções tanto pela realeza como pelo povo.
Como a concessão incluía uma extensão de terra fértil, eram obrigados a
mantê-la produtiva, o que era feito através do trabalho de famílias
contratadas, e como tinham de dar ao rei o quinhão a ele pertencente, o faziam
exemplarmente, sem subterfúgios, dividindo com aquelas famílias o restante da
produção da metade que lhes cabia, oferecendo-lhes o maior percentual.
Os budistas viviam modestamente e só aceitavam a terra
com o principal fito de auxiliar as famílias que contratavam para nela
trabalharem. Não havia neles, evidentemente, a busca do lucro e deixavam os
camponeses trabalhar sem o jugo da produção em grande escala. Mas tanto melhor
para o povo do campo se mais produzissem sem usura. Os monges, além do respeito
que granjeavam do povo pela religião, atuavam, também, como médicos e
farmacêuticos. Curavam doenças através de seu conhecimento de anatomia e
medicina de plantas, e estendiam auxílio aos acidentados. Quando saiam do
mosteiro em peregrinações, quer nas aldeias ou nas cidades, levavam
estritamente o necessário, e se alimentavam do que lhes davam a comer, dormindo
onde lhes permitissem. Era seu voto de pobreza e humildade.
///
Wan logo se prendeu a observar as atividades dos
budistas, passando a acompanhá-los com vivo interesse. Podia circular à vontade
pelo mosteiro e isso lhe causava grande bem estar. Estranhou, a princípio, não
ser reverenciado e nem saudado com a vênia com que todos o deferiam no palácio.
Na realidade, somente o cumprimentavam com meneios de cabeça, que baixavam
levemente, e juntar de mãos, como era comum entre todos. As reverências maiores
e mais demoradas exerciam-nas diante da grande estátua de Buda, em bronze, num
dos salões que era o templo e santuário de seus principais rituais. Ali, muitas
lamparinas ardiam e muito incenso e ervas aromáticas era queimado.
Passada essa estranheza, pode sentir-se de fato mais
livre. Era príncipe por herança de sua nobre estirpe, mas isso no monastério
era de relativa importância por que não o olhavam por esse lado, senão,
fundamentalmente, como uma unidade no todo portadora de divindade ainda em
repouso, que um dia seria buscada com o vigor e a energia daqueles que creem,
despertando para a verdadeira vida!
Não havia meninos no mosteiro, ele era o único. Os
mais jovens ultrapassavam os dezoito anos e se engajavam ao noviciado, na
expectativa de um dia chegarem ao discipulado e a monges. Dentre esses se
achava Yang Te-Chun e pequeno Wan sentia crescer uma afinidade com ele, difícil
de explicar, mas que lhe era natural e fluente. Nos momentos de lazer, Yang
Te-Chun o procurava e saiam a andar pelo jardim, pomar ou sob as figueiras, por
onde cortava o pequeno riacho. O rapaz respondia as perguntas do príncipe como
pudesse.
- Como entender isto, Yang Te-Chun? - insistia às vezes
Wan.
- Príncipe Wan, há entre você e eu distância tão pequena
que podemos vencê-la estendendo um braço. Porém, esta distância pode
representar um oceano quando nossos olhos não enxerguem somente as formas da
própria distância, ainda que toquemos um ao outro.
- Não posso compreender o que fala, Yang Te-Chun!
- Vê esta folha de figueira? - ele abaixou-se
pegando-a do chão - há nela a história de todo o universo que existiu e existe,
além de guardar o porvir. Porém, esqueça isto por enquanto e trate primeiro de
observar os fatos menores que o cercam, depois os maiores, até que um dia
concluirá que o universo dentro do qual os seus sentidos vivem, ainda assim lhe
seja pequeno. Então entenderá o que nos diz a simples folha de figueira.
- Você me confunde, Yang Te-Chun!
- Assim é, assim me fazem também Meng Keng e os
outros monges. Essa é minha busca e um dia verei claro e sabiamente, mais do
que as palavras dos veneráveis mestres agora possam me ensinar - completou
sorrindo, largando suavemente a folha no ar.
Ao acompanhar as atividades no monastério Pequeno Wan dia
a dia assimilava os hábitos e atitudes dos budistas. Acordava cedo, com o
nascer do Sol, acompanhava a saudação ao astro e ao novo dia, e meditava na
medida em que seu pequeno treino e entendimento lhe permitiam. Fazia com os
monges, discípulos e novatos o desjejum; escutava as lições e a distribuição
das tarefas do dia e aguardava a chegada de um ou outro do povo que, de alguma
sorte, vinha pedir ajuda. Antes, porém, se retirava e se ocultava para não
despertar curiosidade sobre sua pessoa. Dentro do mosteiro, presenciou, certa
vez, preparativos para determinada solenidade ritualística. Ficou triste ao ser
comunicado de que não poderia assisti-la, permanecendo fora do santuário. Todavia,
ficava a escutar, ainda que abafados, os cânticos e mantras da abertura da
cerimônia, percebendo que depois silenciavam.
- Yang Te-Chun, eles estão trancados em silêncio há quase
dois dias, por quê? - perguntou à tarde, na caminhada habitual.
- Meditam, príncipe, meditam!
- E quando sairão de lá?
- Em três dias, cinco ou semanas. Ficarão desligados de
seus corpos o quanto for necessário.
- E depois?
- Voltarão ás suas atividades normais.
A reclusão durou, exatamente, vinte e sete dias. Naquela
manhã, pequeno Wan observava como os discípulos levavam para o santuário
tigelas com sopas e taças com licores. Depois, eles saiam e recolhiam-se ao
alojamento, com rostos tranquilos e sorrisos nos lábios.
Certa manhã chuvosa, Meng Keng surgiu no alojamento onde
pequeno Wan se encontrava e o trouxe rapidamente pelo corredor, adentrando pelo
santuário onde ficava a grande estátua de Buda, ignorando as perguntas do
príncipe. Ainda em silencio, contornou o monumento e parou atrás, apontando exatamente
para o primeiro dos três degraus, sobre os quais Buda repousava. Abaixou-se e
colocou as mãos no degrau, solicitando que Wan fizesse o mesmo, começando ambos
a forçá-lo. Para surpresa do príncipe, parte do degrau foi aos poucos
deslizando deixando à mostra um vão escuro. Em seguida, Meng Keng levantou-se,
indo buscar uma lamparina, voltando imediatamente e principiando a descer uma
escada, ordenando que Wan o seguisse. Ao término, Wan notou estarem num grande
salão e Meng Keng foi até a parede acendendo outra lamparina. Com melhor luz,
Wan podia ver agora tratar-se de outro santuário – embora no porão –
provavelmente com as mesmas dimensões daquele de cima, onde aqui também vários
objetos estavam guardados, limpos e bem conservados. Ao alto, em espaços
regulares, existiam aberturas entre paredes duplas que se constituíam em
respiradores a absorver o ar externo.
- Os soldados de Kuang estão chegando, fique aqui e não
tema! - disse-lhe, finalmente, o monge.
Meng Keng retornou rapidamente e deslizou o comprido
degrau de volta para a posição anterior, fechando a entrada. Pequeno Wan
permanecia imóvel e assustado. Em seguida, escutou os passos do monge que se
afastava, e levantou a cabeça acompanhando-os com os olhos, como se pudesse ver
através do teto. Nem se refazendo ainda do susto foi de novo atraído por outros
passos, desta feita, muitos, e apressados. Eles cruzaram todas as direções do
salão e depois cessaram, dando lugar ao silêncio. O silêncio foi rápido
começando cânticos e o timbrar de metais que se prolongaram.
Cansado de ficar em pé, ainda tenso e temeroso, Wan
buscou o lugar sob a lamparina acesa e recostou-se na parede, ficando atento.
No outro lado e ao fundo do salão sombras pairavam; ele ouvia os cânticos, os
instrumentos e tentava se acalmar. Ficou no mesmo lugar até que de novo o
degrau fosse mexido e deslizasse, abrindo um facho de claridade dentro do
ambiente. Rapidamente se levantando ele sentiu o coração palpitar mais forte.
Havia agora novo silêncio; os ruídos que acusava proviam do degrau que
deslizava. Ansioso, pregava os olhos na abertura que aos poucos se alargava.
Estava um tanto desnorteado; não sabia quanto tempo se passara, se adormecera,
e nem se lembrava de quando os monges haviam cessado os seus cânticos.
Finalmente, os pés que conhecia começaram a descer os degraus. Já via aparecer
a ponta da veste do mestre, mas os soldados viriam atrás? Meng Keng então
surgiu inteiro e parou após o último degrau.
- Os soldados já se foram – um leve sorriso esboçou-se
nos seus lábios – está tudo bem. Wan correu e o abraçou, colando o rosto em seu
peito.
- Não tive medo, mestre, estou aprendendo a
confiar! – disse, como se fora total verdade, afastando-se um passo, olhando-o altivamente.
- Confiar é necessário. Porém, é sempre mais
reconfortante quando vemos o resultado daquilo que o bom senso apontou.
- O que eles queriam, mestre?
- Oh, visita de reconhecimento. Queriam saber o que
fazemos e lembrar-nos de que devemos continuar produzindo para eles. Mas não
aumentaram a nossa cota de obrigações – finalizou, encaminhando-se para a
parede, apagando a lamparina dali e se preparando para subir.
Mais tarde, pequeno Wan saberia por Yang Te-Chun que os
soldados vieram decididos a inspecionar rigorosamente todo o mosteiro, porém
tendo encontrado os monges cantando e tocando os seus instrumentos, sem
dar-lhes a menor atenção, não se animaram em prosseguir. Hesitaram e recearam
interromper o ritual, ainda mais que da porta olhavam a grande estátua de Buda
parecendo temê-la. Meng Keng estava ao lado do oficial comandante da patrulha e
após rápida e superficial vistoria pelos arredores, ouviu dele as seguintes
palavras:
- Nosso rei, o general Kuang, manda dizer que
respeita a grande ciência dos monges deste mosteiro. Não deseja aumentar a
participação de suas obrigações para com o governo e pede que, em suas visitas
à cidade, não deixem de assistir aos seus soldados quando algum mal os afetar,
ou ir atendê-lo, pessoalmente, se ele necessitar de sua reconhecida medicina.
Meng Keng curvou ligeiramente a cabeça e respondeu:
- Envio ao general Kuang agradecimentos por sua bondade
bem como votos de prosperidade para todo o reino. A humilde sabedoria que
possuímos nada seria se o Venerável Buda não vivesse. Felizmente, Ele vive.
Nossa medicina é para todos. Fique tranquilo o mandatário do reino. Com a
presença do Venerável em nossos corações os assistiremos conforme deseja o rei.
///
Pequeno Wan forçava disciplinar-se, buscando sempre os
conselhos dos mais experientes. Além de Yang Te-Chun, seu melhor amigo,
relacionava-se com outros jovens e, comumente, via-se incluído na roda de
conversas, orações ou meditações que realizavam. Certo dia Meng Keng chamou-o
na varanda.
- Príncipe Wan, tenho boas notícias para você: sua
família vive! - disse calmamente, sentado numa cadeira. O príncipe excitou-se,
seus olhos brilharam.
- Eu sabia, mestre, tinha certeza! Mas onde?
- Numa província de um primo do rei, a leste. Hospedam-se
na casa dele, Cheng Chia os viu - disse apontando para o missionário que estava de pé, ao seu lado. Cheng Chia sorriu e confirmou com aceno de cabeça.
- E como estão eles, Cheng Chia, você os viu a todos? -
perguntou ansioso.
- Sim, eu os vi a todos. Primo do rei já me conhece e a
Meng Keng. Ele confia em nosso silêncio e discrição, por isso levou-me até seus
familiares. Sua mãe, a rainha, estava doente. Nada grave, mas precisava de
cuidados. Dei-lhe a medicação necessária. Os outros estão bem - ele de novo fez
reverência acenando com a cabeça.
- Você contou-lhes que estou vivo?
- Não tinha autorização para fazê-lo, nada disse.
- Príncipe Wan – interrompeu suavemente Meng Keng –
devemos conduzi-lo de volta para sua família. Seus corações estão pesarosos com
a perda que supõem aconteceu. Ficarão muito felizes em revê-lo. Pequeno Wan
calou-se e como assim permanecesse Meng Keng reiniciou: - algo errado, príncipe
Wan? - ele levantou o rosto mostrando os olhos entristecidos.
- Mestre, eu não quero ir, desejo ficar aqui! -
falou devagar, porém firmemente.
- É o príncipe, precisa juntar-se aos seus. Não
podemos oferecer a um príncipe o que ele tem por direito. Somos humildes
monges!
- Não preciso de cuidados especiais, desejo ser
monge como você - reafirmou sem hesitação. Meng Keng olhou-o com brandura e
admiração. Então, levantando-se, dobrou-se ligeiramente em habitual reverência
e retirou-se para dentro da casa.
Naquela noite, pequeno Wan debateu-se, falou e teve
sonhos ruins. Os jovens que dormiam no alojamento se preocuparam com sua
agitação. A certa altura da madrugada, enquanto ele falava e se debatia, Yang
Te-Chun aproximou-se, sentando-se na beira da cama, e pôs-lhe a mão na suada
testa chamando-o. Pequeno Wan acordou de súbito, sentando-se e abraçando-se ao
amigo.
- Não quero ir, não quero! - falou apertando-o contra o
agitado coração. Yang Te-Chun envolveu-o num suave abraço e depois o largou.
- Príncipe, tenha calma. Todas as coisas têm uma solução.
Confie e exponha seu coração ao Venerável.
Pequeno Wan pareceu compreender as palavras de Yang
Te-Chun e ajeitou-se na cama, colocando os pés no chão, sobre as sandálias.
Então fechou os olhos, orou e trouxe as mãos ao peito, em gesto de quem segura
o coração, para depois levantar a cabeça, ainda de olhos fechados, e elevar as
mãos juntas e semiabertas adiante, até a altura do rosto, em oferenda. Tomado
de uma indizível presença, ainda de rosto levantado, ele abriu as mãos com
suavidade e as afastou lentamente, ficando certo tempo com os braços a frente,
paralelos, e mãos ainda abertas. Baixando o queixo, trouxe as mãos espaldadas
novamente ao encontro do jovem coração, apertando-as um pouco, soltando-se
depois. Em seguida, sem nada dizer, com gestos tão suaves quanto na oração que
oferecera, deitou-se e adormeceu de imediato. Yang Te-Chun, vendo-o mergulhar
em sono, cobriu-o com a coberta recheada de penas de aves, e se afastou,
fazendo sinal de silêncio aos companheiros que, a dois passos, a tudo
assistiam.
Dia seguinte decorria sem novidades. Pequeno Wan,
entretanto, não tinha a mesma alegria de sempre, permanecendo a maior parte do
tempo calado. À tarde, pouco antes do Sol se pôr, quando os jovens encerravam
suas atividades nos cuidados dispensados ao jardim e retornavam ao alojamento,
Meng Keng foi-lhe ao encontro, trazendo-o a um canto, posando-lhe a mão sobre o
ombro falando com habitual calma:
- Os mais velhos estivemos reunidos, conversando sobre o
seu caso. Surgiu entre nós uma ideia que gostaríamos de praticar, com seu
consentimento. Trata-se do seguinte: enviaremos aos reis uma mensagem escrita
por seu próprio punho, na qual dirá que está bem neste lugar e aqui deseja
continuar. O mensageiro levará o pergaminho e uma peça de roupa para que a
examinem e atestem ser sua e explicará de que maneira você chegou ao mosteiro.
Evidentemente, os reis estranharão tal pedido, porém o mensageiro lhes
explicará que é desejo pessoal do príncipe aqui permanecer, podendo o rei
enviar uma pessoa de sua confiança para comprovar o que dizemos. O rei
aceitando o pedido, o mensageiro solicitará dele uma declaração que permitirá
ao príncipe aqui permanecer durante o tempo em que a situação perdurar – pequeno
Wan alegrou-se com a ideia, mas antes que pudesse dizer algo, o monge
prosseguiu: - entretanto, devo esclarecer que, uma vez formalizada esta
situação com a autorização real, o príncipe deixará de ser príncipe no mosteiro
para tornar-se um noviço, realizando, por obrigação, todas as tarefas que lhe
couberem, sem quaisquer privilégios. Pequeno Wan olhou-o admirado e após
segundos indagou:
- E se eu não conseguir realizar tudo conforme exigem,
serei mandado embora?
- Perderá a oportunidade de ser um dos nossos -
disse simplesmente o monge.
- Eu quero, preciso tentar! - decidiu-se rapidamente.
- Então providenciaremos o que planejamos – confirmou
Meng Keng, dobrando-se em suave reverência, afastando-se em direção da casa.
Pequeno Wan ainda permaneceu por ali, excitado, observando a luz mortiça e
descolorida detrás das montanhas, onde o Sol já mergulhara.
Noutra manhã, Meng Keng colocaria nas mãos de Wan
reduzido pergaminho e um estojo contendo tinta e uma pena, a fim de que
escrevesse a mensagem. Ele correu a um canto sentando-se no chão, e, sobre
pequena banqueta, escreveu segundo a orientação recebida. Meng Keng aprovou o
texto e mandou trazer uma peça das vestes que o príncipe usava ao chegar ao
mosteiro, que a haviam guardado. Depois chamou ao mensageiro, o próprio Cheng
Chia, entregando-lhe os objetos, dando-lhe todas as instruções necessárias
liberando-o para partir. Cheng Chia reverenciou a ambos e se pôs imediatamente
a caminho.
Passados dois meses Cheng Chia retornava informando que
os reis haviam chorado e festejado ao saber que o filho vivia, tendo feito
muitas perguntas. Ao lerem a mensagem estranharam o pedido do príncipe, por que
desejavam vê-lo e abraçá-lo, imaginando que esse mesmo sentimento se passasse
em seu coração. Entretanto, após refletirem, consideraram mais sensato ele
permanecer por enquanto no mosteiro; não havia mesmo condições de completa
segurança onde estavam e temiam que Kuang pudesse vir a descobri-los mandando
matá-los a todos. Tencionavam vê-lo mais tarde e conversariam sobre seu
destino. Não obstante, o rei enviava a declaração para Meng Keng, dando-lhe a
tutela temporária do filho, na expectativa de que a situação um dia mudasse. A
declaração foi suficiente para o monge, que a mostrou para o príncipe.
- Meu pai, o rei, consentiu! - exclamou Wan exultante.
- Isso significa que poderá abraçar a vida
monástica, conforme seu desejo, até que o rei decida outra coisa.
- Serei monge, graças ao Venerável! - afirmou ignorando o
resto. Meng Keng uma vez mais o olhou com admiração.
Começara-lhe, a partir dali, outra vida no mosteiro. Como
iniciante, foi conduzido a realizar as tarefas iniciais, que significavam
buscar despir-se do orgulho e reafirmar a intenção de prosseguir. Embora
entrando na adolescência, teria de demonstrar essa vontade a fim de que mais
tarde, ao atingir idade adulta, viesse a reconfirmar o seu desejo de
prosseguir. O primeiro ato que oficializava essa aceitação era cortar a trança
e tosar a cabeça. Ele assim fez e após a tonsura ofertou a trança a Buda, em
ato simbólico. Foi lhe dada a veste branca, e diante da estátua do Venerável,
repetiu as palavras de intenção em aprender a servi-Lo. Jurava lealdade e
obediência aos seus mestres, entregando-lhes confiantemente sua vida, a fim de
que o ensinassem.
Passavam-se os dias e pequeno Wan se desempenhava
alegremente de suas tarefas. Nunca reclamava, realizando tudo com admirável
dedicação. Às tardes, como de hábito, passeava pelo mosteiro. Certa manhã, um
grupo de missionários preparava-se para partir em direção a um vilarejo onde
souberam existir algumas pessoas doentes que lhes haviam mandado pedir ajuda.
Meng Keng designara um monge do conselho para ir junto, incluindo Yang Te-Chun
e pequeno Wan. Isso surpreendeu Wan, deixando-o preocupado.
- Ninguém o reconhecerá, irmão Wan. Poucos o conheciam
fora do palácio e nesse vilarejo distante jamais suspeitariam tratar-se do
príncipe. Porém, silêncio! - disse Meng Keng tranquilizando-o.
Pequeno Wan partiu com o grupo. Nos cinco dias seguintes,
até alcançarem o vilarejo tiveram alguns percalços. Pegaram chuva, dormiram em
celeiros, viajaram de carona em carroças puxadas por bois ou cavalos e comeram
pouco. À chegada, nem mesmo puderam descansar, começando logo a atender o povo,
preparando remédios, realizando rezas e atos de curas. Pequeno Wan auxiliava
aos mais experientes e ajudava no amparo físico aos doentes. O trabalho
despendeu-lhes mais de trinta dias, ao cabo dos quais deixaram o vilarejo
debaixo de muitos louvores, reverências e reconhecimentos da população, que se
ajoelhava ou beijava-lhes as mãos.
///
Estando quase a completar dezoito anos, jovem Wan
achava-se ante o umbral de sua primeira iniciação. Já deixara o noviciado e
respectivos estágios e se preparava para receber a primeira graça que o traria
ao discipulado no caminho a monge. Seria sua primeira grande decisão após o
noviciado e dali em diante tudo em seu íntimo se mostraria diferente. Algo
começava desde já a se manifestar em si e necessitava provar-se ao máximo para
não se enganar. Nesses cinco anos em que aqui vivera obtivera belos
ensinamentos, visitara muitos lugares e realizara tudo o que se requeria a um
noviço. Da família real tivera somente notícias, pois Kuang, temeroso de uma
rebelião enviava constantemente patrulhas para vasculhar todo o reino, e
mediante isso os reis optaram por se manter escondidos, contrariamente ao que
haviam planejado de início. Assim, não puderam visitar o mosteiro e rever o
príncipe. E nem Wan, por ordem de Meng Keng, saíra a visitá-los mesmo em grupos
de peregrinos. Entretanto, ninguém suspeitava do que estaria para acontecer.
Kuang, havendo recomposto parte do efetivo de seu
exército, que se reduzira à metade pela partida daqueles que havia expulsado,
julgava-se de novo suficientemente forte. Como fosse inábil para governar e
estivesse encontrando dificuldades em administrar o comércio e a produção do
reino, principalmente de alimentos, começou a preocupar-se. De nada lhe valeram
as ameaças, punições e execuções que realizara contra o povo citadino e
camponeses. A situação não mudava, e quando parecia que iria mudar, algum fato
novo surgia, como se tudo conspirasse contra ele. Assim, sucessivas pragas
dizimavam parte das lavouras; enchentes estragavam plantações ou prolongadas
secas castigavam a terra, acabando com a possibilidade de boas colheitas. Sem
saber o que fazer de modo a resolver esses problemas, o tirano lançou olhar
para mais distante, começando a ambicionar novas conquistas.
Havia dois reinos vizinhos: um no leste e outro no oeste
e ele engendrou um plano. Nesses últimos dias enviara mensageiros a ambos os
governantes fazendo-os sabedores de suas dificuldades. Os mandatários reais não
se manifestaram; ademais, naturalmente desaprovavam o modo como Kuang usurpara
o trono do sul e lamentavam não terem prestado ajuda ao antigo rei pela aliança que tinham firmado há muitos anos. O ataque de Kuang os havia pego de surpresa, pois acreditavam todos, que os rumores sobre a intenção do tirano de tomar o reino seriam falsos como algumas vezes acontecido no passado, quando chegaram a reunir os exércitos para combater o esperado ataque que não se realizara. Terem relaxado a vigilância foi-lhes o erro fatal existindo agora um temor procedente de que Kuang, verdadeiramente, atentasse um dia contra eles.
Kuang já soubera-lhes desse medo, e passados alguns dias, sem que
recebesse respostas ou auxílio, enviou novos mensageiros, desta feita
encarregados de ameaçar-lhes. Aquilo provocou alerta geral e turbulência nos
reinos, do que habilmente se aproveitou o rei deposto – pai de jovem Wan – para
estabelecer contatos, propondo aos reis do leste e oeste juntar os exércitos e
atacar Kuang. Como o antigo rei conhecesse os pontos estratégicos de sua
cidade, atacariam sob sua orientação e buscariam invadi-la. Vencendo, se livrariam definitivamente de
Kuang e da instabilidade e temores que sua presença nas vizinhanças provocava-lhes; o rei reassumiria o reino do sul e voltariam a viver sem ameaças de
guerras ou invasões. Eles aceitaram unir-se e lutar contra Kuang, apesar de possuírem somente dois exércitos
Porém, como desconfiassem de que Kuang não demoraria em
cumprir suas ameaças, uma vez que não estavam dispostos a ajudá-lo, enviaram
espiões ao sul com a finalidade precípua de obter o mais rápido possível essas
informações, enquanto treinavam os seus exércitos nas montanhas,
preparando-se para a guerra. Ademais, tinham fortes suspeitas de que o tirano
atacaria primeiramente o leste, por ser o reino mais próximo e o mais rico;
dessa maneira, precisariam estar atentos às emergências, juntando os exércitos
o mais rápido possível a fim de lutar. E não estavam enganados. Kuang realmente
se preparava para atacar o leste, sem saber da renovada aliança. Todavia, tendo os
espiões contado aos aliados o que tinham ouvido e presenciado, eles
rapidamente se reuniram invertendo a estratégia, partindo ao encontro de Kuang.
Na região montanhosa entre os dois reinos, os aliados se
esconderam e aguardaram que Kuang penetrasse os caminhos do desfiladeiro. Sem
suspeitar, os inimigos fizeram o exato percurso que os aliados desejavam e
foram atacados. Kuang, ao ver que caíra em armadilha, gritou feito animal
enfurecido, exigindo o que podia de seus homens. Porém, sob uma chuva incessante
de flechas, os soldados iam perecendo sem ter onde se esconder. Kuang então
voltou com parte de seu exército furando a retaguarda, se evadindo do
desfiladeiro, sendo perseguido por uma divisão aliada, enquanto seus soldados
que haviam permanecido em luta nas montanhas se rendiam. Kuang conseguiu voltar
à cidade e desesperadamente reuniu as forças que lhe restaram a fim de resistir
aos exércitos que logo o atacariam. Mas eles não atacaram. Antes, colocaram-se
em redor dos muros da cidade, e ao comando do antigo rei fizeram inteligente
cerco em todas as saídas que ele conhecia, ali permanecendo a sitiá-los.
Na realidade, isso não os afetaria de imediato, pois
conseguiriam sobreviver por muitos dias, mas era uma forma de coagi-los. Os
soldados nativos daquele reino em serviços forçados ao tirano, sabedores agora
de que havia um triunvirato contra Kuang, em que seu antigo rei participava,
ficaram atentos e esperançosos. Kuang, entretanto, estabelecendo maior
vigilância, ameaçou executar a qualquer daqueles soldados pego tentando
desertar, e a toda sua família. E faria isso pessoalmente. Anunciava também,
aos que conseguissem o seu intento de fuga, que suas famílias teriam a mesma
sorte. Eles então, temerosos, nada fizeram, permanecendo em seus postos.
Mas o antigo rei achava que não deviam esperar mais. Então,
convencidos por ele, os reis aliados determinaram aos seus exércitos atacar
definitivamente a cidade, visto neste momento Kuang não ter condições de
oferecer-lhes maior resistência. E assim fizeram, sendo ajudados ainda por um
fator que somou decisivamente na sorte da batalha: os jovens soldados da
cidade, em dado momento por decisão pessoal, atacaram corajosamente aos guardas
dos portões principais, abrindo-os para a penetração dos aliados. Isso tonteou
aos homens de Kuang, desarticulando sua hoste, fazendo-os debandar, assegurando
dessa maneira a vitória dos aliados. Kuang tentou fugir, mas foi cercado. Ao
ver-se perdido, correu para o alto de uma das torres do palácio e de lá se
jogou, morrendo instantaneamente. O povo então saiu às ruas para saudar os
soldados e conduzir o rei em seus braços depositando-o no trono do palácio. Ali
mesmo, no palácio, os três reis reafirmaram o antigo pacto de não agressão mútua,
pois não interessava a nenhum deles apossar-se de outro reino.
IV
O rei mandara fazer obras no palácio enquanto a família
real se deslocava de seu refúgio a caminho do reino. Enviou também mensagem ao
mosteiro, ordenando que jovem Wan se apresentasse, pois desejava revê-lo e
abraçá-lo depois de tantos anos. Mas foi surpreendido com a notícia de que,
nestes dias, ele não poderia ausentar-se do mosteiro, estando em meio aos
preparativos para a cerimônia de iniciação, tendo entrado em meditação. Estranhando
tal resposta, o rei tomou a carruagem e dirigiu-se ao mosteiro. Meng Keng veio
recebê-lo, conduzindo-o à pequena sala de recepções.
- Vim para levar o príncipe! - disse em tom de ordem. O
monge reverenciou-o, respondendo:
- Jovem Wan prepara-se para iniciar novo estágio em sua
vida. Daqui para diante novo processo de transformação deverá acontecer em sua
mente. É seu desejo obter a experiência.
- Ele é o príncipe herdeiro, sabe disto Meng Keng! -
interrompeu-o o rei. Meng Keng de novo curvou-se ligeiramente e retomou:
- Sem dúvida, majestade, e muito nos honrou a autorização
para jovem Wan aqui permanecer não somente em exílio. E nessa condição honrosa
para nós ele também recebeu ensinamentos, revelando-se ótimo noviço, amando ao
Reverendíssimo com verdadeira devoção e aprendendo com rara habilidade. Jovem
Wan é alma valorosa – os olhos do rei fulguraram – mas seria prudente, o sábio
rei tentar ler seu coração e adivinhar seus desejos. Não creio que será fácil
para ambos este reencontro.
O rei mostrou preocupação na fisionomia e seus olhos piscaram
com maior intensidade.
- Deixe-me ver meu filho agora! - ordenou.
- A vontade do rei será imediatamente atendida – dizendo
isso o monge se curvou e foi até a pequena base de canto, tomando um guizo, agitando-o.
Logo a porta abriu-se e um jovem aproximou-se.
- Traga irmão Wan, o rei deseja vê-lo!
O jovem curvou-se para ambos e retirou-se. O rei e o
monge permaneceram em silêncio: o monge de pé olhava adiante, tranquilo, como
se meditasse. As mãos juntas à frente, uma sobre a outra, apoiava-as levemente
na parte superior do ventre, próximo ao coração. Imóvel ali ficara. O rei, ao
contrário, embora sentado, mostrava-se irrequieto, ora coçava as mãos, o
queixo, ora mexia-se ou tamborilava nas coxas. Seus olhos, vez por outra,
fixavam-se ansiosamente na porta. Para o monge o tempo seria fugidio, quase
inexistente; para o rei seria pesado e interminável. Finalmente, a porta
começou a abrir-se, e o rei, não suportando mais aquela expectativa, pôs-se de
pé num só e brusco movimento. Jovem Wan adentrou.
Surpreendentemente alto, acima de todos, cabeça raspada,
rosto tranquilo, vestindo alva e simples túnica, descalço, com suaves passos,
caminhou em direção ao rei que o mirava com grande emoção. Era admirável sua
figura causando grande impressão. Não era mais o menino que corria pelos
jardins do palácio, e cuja imagem tantas vezes evocada nos anos de separação,
ainda permanecera na memória paterna como imperecível recordação. Essas imagens
agora se diluíam e na medida em que Wan se aproximava algo mais excedia de sua
presença: uma nobreza maior, talvez mais rara e extraordinária nunca antes
vista no reino! Súbito sentimento de orgulhou brotou do coração do pai: o
príncipe era belo e já era um homem!
- Pai! - disse com brandura, curvando-se ligeiramente.
- Filho - disse o rei, abrindo os braços e o abraçando.
Meng Keng retirou-se e fechou a porta, deixando-os a sós. Passados aqueles
instantes emotivos o rei começou:
- Vim buscá-lo, Wan, o palácio e o reino são novamente
nossos. O inimigo foi destruído e arrancou a própria vida do corpo. Nada mais
existe a temer – jovem Wan fitou-o em silêncio e uma sombra desceu em seu
olhar. O rei, embaraçado pelo silêncio do filho, retomou: - mandei chamá-lo,
disseram-me que não podia ir: que acontece, como desobedecem assim ao rei?
- Eu tomei a decisão, não eles. Mandei dizer-lhe o que
lhe disseram - jovem Wan falava sem demonstrar emoção, com admirável
autocontrole.
- Que se passa, Wan, acabou-se o exílio, é o príncipe,
precisa voltar e preparar-se como nobre que é, um dia será o rei - ele com mãos
abertas gesticulava energicamente.
- Um dia serei monge, já decidi. Não posso abandonar
o mosteiro agora. No momento recolho-me e medito para a cerimônia de aceitação.
- Nasceu príncipe e príncipe é! Tem de viver sua própria
herança, insisto. Eu, o rei, nesse instante anulo o documento de tutela que dei
aos monges.
- Perdoe-me meu pai e rei, não deixarei o mosteiro!
- Não ama mais a seus pais, sua família. Mas a despeito
disto o sangue real corre-lhe nas veias, isto jamais negará. Que fizeram de
você, que ideias puseram em sua cabeça?
- Eles jamais tentaram mudar-me. Eu os aceitei
naturalmente; aceitei ao Venerável, eu O quero e jurei-Lhe devoção e lealdade.
Abdico a todos os meus direitos de príncipe herdeiro em favor de meu irmão;
nada mais desejo do mundo, exceto servir Buda!
O rei mal acreditava no que ouvia, deixando-se cair na
cadeira, baixando o rosto, passando os dedos trêmulos sobre a testa. Ficou assim
por instantes, abatido, mas logo elevou o olhar altivamente mirando o príncipe.
- Sabe que posso levá-lo, queira ou não?
- Sim, mas de que adiantaria? Tomaria meu corpo, não
minha vontade. Isso, ao contrário, somente reforçaria meu desejo de ser livre!
- Foge da responsabilidade, vejo agora, teme-a! É mais
fácil esconder-se no mosteiro, sob a desculpa de atender a Buda. Porém, saiba,
amo-O também, mas sou rei e como rei vivo. Creio compreender o que se passa em
seu coração. Mas venha, caminhe ao meu lado, eu o ajudarei a encontrar de novo
a coragem! - o rei, já de pé, estendia-lhe a mão.
Jovem Wan não mais falou. Vira a tremenda distância que
se alargava entre o seu mundo interior e o mundo do rei. Como explicar-lhe se
era julgado covarde? Covarde não era, mas estaria realmente certo de sua
decisão? Não se lembrava de haver escutado a voz interna a dizer-lhe qualquer
coisa como: caminhe, não se perturbe, nada ouça do mundo! Ao contrário, nesses
dias tudo lhe parecia volúvel. Aquele edifício de ideias pacientemente
construído através dos anos tornava-se frágil; ameaçava desmoronar. A prova era
essa: estaria certo ou errado na sua decisão?
- Venha, filho, o rei tem um primogênito, e esta dádiva
divina é você. É o escolhido, reinará sobre homens, guiará mentes e corações, é
seu destino!
No peito ainda a dúvida e jovem Wan perturbou-se - fugia
realmente do mundo? O silêncio agora se impunha de ambas as partes. E tudo
convergia sobre a jovem alma! Finalmente tenso e dando visível mostra de sua
impaciência, o rei retomou:
- Uma vez que não atende aos meus clamores vou-me
embora para não usar de meios que insultariam a casa do Venerável. Mas
voltarei. E quando aqui de novo estiver será para levá-lo em definitivo. Pense
nisto, ou como queira, medite. Porém, saiba: é meu filho amado! - dizendo isto
andou até a base do canto, tomou o guizo e o agitou. Não demorou, Meng Keng
surgiu. O príncipe permaneceu na mesma posição, olhando para adiante, imóvel, e
o rei, sem mesmo olhar para o filho, retirou-se do mosteiro.
Os dias se passavam. A família real finalmente chegava e
se juntava ao rei. As obras palacianas ainda estavam por concluir-se, porém o
que já haviam feito permitia-lhes instalarem-se com conforto. A rainha,
ultimamente, não vinha gozando de boa saúde e chegara muito cansada. O caminho
final em que a pequena caravana viajava não ingressara nas trilhas ao mosteiro
e a rainha, apesar de ansiar pelo reencontro com o filho, não tivera condições
de para lá se dirigir. Assim, tomara a decisão de mais tarde enviar emissário
para chamá-lo, isto é, se ele já não estivesse em casa à sua espera, tendo
deixado o mosteiro.
Dia seguinte, apesar do descanso noturno, ela, pela
manhã, não apresentava melhoras, continuando, ademais, bastante fatigada. Mas
quis de novo ouvir notícias de Wan, visto não tê-lo encontrado no palácio
conforme se esperançara. O rei, novamente, em rápidas palavras, pôs-lhe a par
dos acontecimentos, repetindo o que contara em sua chegada. Como antes, ela não
demonstrava chocar-se. Na verdade, encarava os fatos com aparente normalidade.
Nessa manhã, ficou longo tempo em silêncio, caminhando depois pelo salão,
dirigindo-se para uma das sacadas de onde podia ter vista privilegiada da
cidade. O rei, tendo ido verificar como andavam as obras pelos arredores voltou
logo, vindo procurá-la. Uma surpresa desagradável, no entanto, o aguardava, e a
encontrou estendida no chão, junto à porta do salão que abria para a sacada,
gritando por ajuda.
Levaram-na de imediato aos seus aposentos e a trataram
com ervas aromáticas a fim de que reagisse. Ela de fato reagiu, sentando-se e
apoiando-se em almofadas na cabeceira da cama. Mostrava-se pálida, com negras
manchas sob os olhos. O rei, temendo algo pior, enviou emissário ao mosteiro e
mandou chamar Meng Keng. Tendo sido informada disto, e por intuição, ela,
ignorando os conselhos dos médicos da corte, mandou que a vestissem com suas
vestes de gala em fina seda, tendo se adornado com joias e se banhado em
essências, indo após para o salão principal, assentando-se no trono ao lado do
rei, lá permanecendo. O rei não entendendo sua postura rogava-lhe para que
fosse deitar-se, aguardando ao monge em seus aposentos. Ela estranhamente nada
respondia, permanecendo altiva a olhar para adiante, como se visse algo no
vazio.
O emissário houvera partido na primeira parte da manhã e
sendo quase meio dia, pouco tempo decorrera desde que a rainha houvera se
assentado no trono. Assim, logo anunciavam que o monge chegava acompanhado de
três outros budistas. Foi somente nesse instante que a vida emocional pareceu
voltar-lhe e ela ajeitou-se, sentindo o coração aquecer no peito. A porta
abriu-se, Meng Keng entrou e os três o seguiram. Ela então o viu,
reconhecendo-o de imediato. O rei não exagerara, mas ele era mais belo ainda do
que imaginara. Vestido simplesmente, caminhando como humilde discípulo de um
sábio, não obstante, excedia-se em realeza. Seu porte era imponente – o mais
alto de todos. Jovem Wan era forte, apesar da vida asceta que abraçara, e
deixava transparecer muito mais do que pretendia ser! Nova chispa de emoção
subiu-lhe do coração para os olhos e ela chorou. O rei, apercebendo-se de seu
estado, segurou-lhe a mão. Ela, meneando a cabeça, sem tirar os olhos do filho,
pretendeu indicar que estava tudo bem.
Eles se aproximaram, e para surpresa do rei, jovem Wan
ajoelhou-se e apoiou o rosto nas pernas da rainha. Ela, sem conter as lágrimas,
acariciou-lhe a lisa cabeça, e levantando-lhe carinhosamente o rosto, arcou-se
e o beijou.
- Mãe, que alegria revê-la! - balbuciou com os olhos
brilhando de emoção, erguendo-se um pouco mais.
- Filho querido! Ela o abraçou e chorou
convulsivamente.
Jovem Wan, depois, foi abraçar os irmãos e outros parentes que faziam parte da comitiva real exilada devido a ocupação inimiga, saudando-os com carinhoso calor, e permaneceu ao lado da mãe durante todo o tempo
em que ela esteve sob os cuidados de Meng Keng, e mais ainda, quando três dias
depois o mestre se fora com os dois outros monges. Entretanto, antes que
partissem, a rainha fez um pedido ao monge para um ato de exorcismo e de
bênçãos no palácio. Explicara-lhe que desde sua volta vinha sentindo sufocante
pressão e seguido mal estar, achando que nada dessas coisas teria realmente a
ver com seu estado de saúde. Nessa última noite, tivera pesadelos e a sensação
de sombras pretendendo abraçá-la; ouvira gritos e gemidos. Isso, sem dúvida,
era o resultado do mal que se personificara em Kuang e que no palácio ainda
persistia ameaçando as pessoas. O monge assentiu com a cabeça, arcou-se em
vênia e se retirou para providenciar o que lhe fora solicitado.
Mais tarde, acompanhado dos dois auxiliares e de jovem
Wan, Meng Keng percorria as principais dependências do palácio e locais por ele
escolhidos, queimando ervas aromáticas, vocalizando mantras e invocando forças
de exorcismos e bênçãos. Após o ato partiram, deixando Wan no palácio.
A decisão em ficar partira do próprio Wan e preparava
toda a medicação para a rainha, seguindo as prescrições de Meng Keng. A rainha
sentia-se confortada e feliz e isso a ajudava na recuperação. A par de
assisti-la no ministramento dos remédios, Wan orava seguidamente a Buda,
invocava mantras e pedia forças para ajudar na cura. Passara-se uma semana,
nesse dia a rainha e o filho achavam-se nos jardins do palácio em mais um de
seus passeios. Novamente ela voltava ao assunto da vocação despertada em Wan.
- Dedicarei minha vida integralmente em serviço a Buda.
Desejo chegar a monge - ele reafirmava o que tantas vezes já dissera.
- Isso me dá grande satisfação, Wan, mas o rei deseja sua
volta ao palácio.
- Não posso abandonar Buda neste momento, não posso! - e
silenciava como que amargurado. Mais adiante, eles pararam debaixo de belo
alpendre ornado de flores que sobressaiam ao longo de farta e elegante
trepadeira a subir e se espraiar pelas treliças do teto.
- Lembra-se quando você corria por aqui, assustando aos
pássaros e espantando as codornas?
- Sim, sim! - ele respondeu com leve sorriso apreciando a
lembrança.
- Foram anos
difíceis no exílio – lembrou séria – já não acreditava que voltaríamos para casa
livres, sem a sombra da morte sobre nossas cabeças – ela elevou o olhar para o
céu, tanto quanto debaixo do alpendre podia divisar – o céu é mais bonito aqui,
a vida é mais vida. Só estes momentos valem-me pelos dias de angústias e
incertezas! – seus olhos voltaram-se para Wan e com movimento lento ela elevou
a mão acariciando-lhe o jovem rosto – e você filho, sofreu muito com esta
separação? - perguntou como se ultimamente já não houvessem falado sobre o
assunto.
- Fui mais feliz. O Venerável plantou a paz no meu
coração e a confiança em minha alma. Embora pensasse em vocês e sentisse a
falta da família, era consolado. O tempo semeou muitas lições. Aprendi a ser
mais paciente e a aguardar os acontecimentos.
Prosseguiram. Ao final daquele agradável passeio, Wan
dirigiu-se a rainha, anunciando a decisão:
- Como a senhora está bem, rainha, minha mãe, não
necessitando mais do meu auxílio, irei procurar o rei para informar-lhe que
volto ao mosteiro amanhã pela manhã a fim de retomar minha preparação. Almejo
ardentemente a iniciação. Antes, porém, desejo sua bênção quanto a esta escolha.
A rainha desviou o olhar para os girassóis a certa
distância, enquanto pensava. Seu rosto ficou inerte, porém uma translúcida e
invisível claridade tomou-a clareando os seus cabelos encanecidos. Logo ela
voltou-se para Wan, dizendo-lhe com tranquilidade:
- Não posso abençoá-lo ainda, filho. É necessário
refletir mais vezes sobre o assunto e meditar. Mas peço-lhe não procurar agora
o rei com esta intenção. Conversarei com ele sobre sua decisão, da qual ele tem
conhecimento desde que por último no mosteiro ambos conversaram. Será melhor
assim, o rei pode zangar-se mais. Jovem Wan olhou-a um tanto surpreso, dando
depois um passo atrás, arcando-se em respeitosa vênia, tomando-lhe a mão e a
beijando.
Manhã seguinte Wan partiu, mas não sem levar mensagem da
rainha para Meng Keng, convidando-o ao palácio para conversarem, tão logo lhe
permitissem suas ocupações. O rei não quis despedir-se do filho, alegando um compromisso, ausentando-se do
palácio, ficando somente a rainha para as despedidas. Aliás, durante a semana
em que Wan a assistira, o rei e o filho, haviam trocado somente poucas
palavras, evitando falar sobre o principal assunto que os dividia e separava.
Na tarde do dia seguinte, chegava ao palácio um mensageiro do mosteiro trazendo
a resposta do monge. No pequeno pergaminho ele dizia ter imenso prazer em
visitar aos reis o que pretendia mesmo fazer em poucos dias, visto nova fase do
tratamento precisar iniciar-se. Porém, nada urgente, já que tivera notícias por
Wan de sua excelente recuperação. Despedia-se da rainha enviando aos monarcas
augúrios de longa vida e sábias decisões.
Dois dias depois chegava Meng Keng, se instalava nos
aposentos que, no passado foram-lhe sempre reservados e nesse instante
descansava. Pouco depois, procurou a rainha, sendo recebido em seus aposentos
onde também se encontrava o rei. Antes que conversassem, o monge examinou-a
atentamente afirmando que prepararia novos remédios com os ingredientes que
trouxera. Mas não havia motivos para preocupações porque ela estava bem.
Terminada a consulta, ficou-lhes à disposição.
- Meng Keng – iniciou ela, sentada na beira da cama,
ladeada pelo rei – preocupa-me Wan. Não, evidentemente, pelo amor que dedica ao
Venerável, ou pelo respeito que envia a sua pessoa, monge. Seu destino sim, ele
é o príncipe herdeiro do trono, mas recusa-se assumir isto.
O monge sentado adiante com elegante porte apesar dos
anos apoiava as mãos sobre as coxas enquanto atentava para as palavras da
rainha. Tendo ela calado, ele suavemente elevou a mão direita e os olhos para o
alto, iniciando:
- O Venerável colocou este dilema na jovem alma do
príncipe. Não creiam, o rei e a rainha, que ele não sofre pela decisão a qual
afirma ter tomado. Príncipe Wan é inteligente como poucos: sabe que contraria
os amados pais e àquilo que está escrito nos costumes por muitas gerações. Não
foi Meng Keng quem forjou essas ideias no seu pensamento nem a magnífica
devoção em seu coração. Foi Buda, ele o chamou naquele dia, ele o protegeu
contra os ferozes inimigos do reino, trazendo-o para mais perto de Si. Se o
Venerável fez isto, outras coisas mais ainda fará. Portanto, a vida de jovem
Wan também é de Buda.
- Mas o reino, Meng Keng, é dele também. Ele nasceu
predestinado a isto, é o primogênito! - insistiu o rei, impaciente.
- Queira perdoar, majestade. Seria estultícia duvidar da
sabedoria do Venerável. Melhor do que ninguém Buda sabe quem é príncipe Wan.
- Que fazer, então? – inconformava-se o rei – como
aceitar algo que não alcançamos? Seria necessário Buda também nos mostrar!
- Meng Keng, você disse que meu filho sofre pela decisão
tomada, por quê? Estará ele de alguma forma em dúvida? Terá a certeza absoluta
de que Buda é seu senhor e servi-Lo é seu desejo mais intenso?
- Em tempos de paz florescem os campos incomparavelmente,
os córregos rolam cantarolando mais livres do que nunca, as flores sorriem de
maneira peculiar, deliciadas pela fresca aragem que contrasta aos mornos e
belos raios do Sol. O tempo escoa fácil; o coração humano bate amorosamente e
sem reservas, inebriando-se ao trinar do poético rouxinol. Então o devoto
levanta os olhos para o céu e diz: “Amo-Te, Venerável, pelo amor que puseste em
meu coração, pela esperança que minha alma acolhe, pela certeza da verdadeira e
eterna vida, cheia de venturas, que me aguarda em Teu reino e além dele. A Ti
juro amar-Te sem jamais duvidar de Tua presença e de Tua infinita sabedoria!”
Quando, entretanto, chega o tempo das turbulências, o céu fecha-se e a natureza
cala-se. Os dias são pesados, às vezes insuportáveis. Um canto lúgubre vem
penetrar aos ouvidos e tentar à razão, procurando demonstrar que o real é o
sólido e vive melhor quem sabe aproveitar os prazeres da vida material. O resto
são sonhos sem consistência. E entre recordações doces gravadas na lembrança,
somente na lembrança, e a realidade concreta sentida e apalpada naqueles dias,
o devoto permanece. Como não esperar que uma alma assim vacile e experimente
amarguras?
- Pobre Wan – disse a rainha entristecida – ofertarei
incenso e óleo ao Venerável para que O ajude a vencer.
- O que é vencer? Quem é vencedor nesta luta?
Aquele que abandona a vida do mundo ou quem enfrenta com coragem suas
responsabilidades? - o rei perguntou.
- As obras de cada um estão escritas no seu
coração. Se um grande Ser como o Venerável Buda as lê e as toma de seu autor,
chamando-o, este será vencedor ao atendê-lo, não importa quando e nem como.
Entretanto, somente homens de boas obras são os escolhidos.
O momento era de reflexão e calaram-se até que a rainha voltasse
a indagar:
- Monge, meu filho é muito amado. É o mais doce de todos,
sempre foi. Queremos ajudá-lo de alguma forma, além de implorar a Buda, que
fazemos?
- Aguardem e vivam. O Venerável haverá de mostrar ao
príncipe o que fazer quando este tempo passar - dizendo isto, o monge fez
reverências aos reis e retirou-se, indo para os seus aposentos.
Tendo combinado os ingredientes que trouxera – a maior
parte em pastas ou líquidos – Meng Keng compôs a necessária medicação que o
tratamento exigia e ministrou-a a rainha. Ela observou todas as recomendações e
agradeceu ao monge. Nada mais tendo a fazer no palácio, Meng Keng despediu-se e
se foi, tomando a carruagem que a rainha lhe houvera colocado à disposição.
V
Jovem Wan permanecia no voluntário exílio. Para
alcançar o que desejava, o príncipe escolhera o mais árduo caminho. Assim é que
durante sete dias se recolhia e obedecia às regras que determinavam um início
suave em suas práticas, para depois alcançar um ápice em que o jejum e a
meditação um pouco mais longa eram requeridos. Na fase dos três primeiros dias,
Wan somente orava em dois períodos, um pela manhã e outro pela tarde. Entre um
e outro momento de oração ele devia sair, passear ou realizar leves tarefas à
sua escolha. Alimentava-se pouco e impunha-se o silêncio. À noite, dormia no
próprio santuário da casa de meditação. Na fase do quarto dia ele não mais saia
e vocalizava seguidos mantras, permanecendo longos espaços de tempo na mais
absoluta quietude. Finalmente, do quinto ao sétimo dia jejuava e meditava,
dormindo não mais do que três horas na madrugada, sendo acordado e obrigado a
levantar-se e a permanecer em reflexões até o Sol nascer. Se desejasse, ingeria
um licor especial que lhe ampliava a sensibilidade e a percepção dos sentidos.
Nas fases compreendidas entre o quarto e o sétimo dia,
Meng Keng o visitava todas as tardes, examinando-o com seu olhar percuciente e
ordenando que lhe servissem este ou aquele chá ou um caldo morno. Nas vezes em
que voltava e percebia que o frugal alimento não fora tocado, estando Wan a
exacerbar no jejum, reprovava-o. Wan então acatava a reprovação do mestre e desligava-se
temporariamente de seu estado mental, alimentando-se. O tempo passava e jovem
Wan prosseguia na tenaz perseguição ao seu objetivo.
Para não tornar aquela reclusão perniciosa para a mente,
Meng Keng, findo o sétimo dia, ordenava-lhe sair do pequeno santuário e
reintegrar-se ao cotidiano do mosteiro. Após a readaptação alimentar
misturava-se aos demais religiosos, passando a executar as tarefas que já
conhecia. Dessa maneira, ele quebrava aquela cadeia forjada nas práticas ou
posturas mentais, não permitindo um desnecessário e prematuro mergulho no
ascetismo, decorrendo daí que a consciência não perderia as rédeas do comando e
nem a lucidez do pensamento. Caso contrário, poderia ser desastrosa para o
neófito uma desordem mental, pois adviria a consequente demência pela sufocação
da proporção humana dos fatos. Renovando suas energias, Wan retornava ao
santuário, quatro ou cinco dias depois, e novamente isolava-se por outro
período de sete dias, recomeçando os mesmos passos com a mesma determinação e
sob a vigilância do monge, seu mestre.
Nesta última fase da meditação, algo que até então
desconhecia vinha acontecendo em sua mente. Ao invés de visões, luzes ou sons a
se desdobrarem ante a exaltada percepção, uma vontade superior forçava-o a refletir
e conjeturar. Pensamentos se concatenavam e emergiam de sob a isolante capa que
formara no subconsciente. Eles escapavam e se apresentavam, obrigando-o a
repassar fatos de sua vida e colocá-los diante de situações de dúvida. Em vão
tentou abafar esse desfile de intenções; os pensamentos teimosamente
permaneciam a falarem-lhe – podia até escutar suas vozes a inquiri-lo! Como não
pudesse mesmo fugir disso, passou a conviver com eles.
Mais tarde, essa vontade superior voltaria de maneira
diferente, mostrando-lhe imagens de sua vida e de situações que ainda não se
haviam cruzado. Via-se assim rapaz como agora e príncipe, cercado da família
real e em passeios. Em solenidades o povo gritava seu nome, oferecendo-lhe
presentes. Ele era sua esperança de um rei sábio e bondoso. Depois tornara a
ver-se menos jovem, no trono, tendo ao seu lado formosa rainha que sorria a
endereçar-lhe vibrações de amor e admiração. Seu coração bateu mais forte; quem
seria aquela jovem? Isto obnubilou as imagens, turvou-as, e as fez desaparecer.
Ele abriu os olhos e admirou-se.
Ao terminar este período de sete dias, Wan, como sempre,
reintegrava-se ao coletivo do mosteiro. Nessa tarde, encontrava-se no armazém
quando Yang Te-Chun veio chamá-lo, a pedido de Meng Keng. Ele passou a tarefa
para o próprio mensageiro e rumou em direção ao santuário do Venerável onde,
nessa hora, o monge costumava estar.
- A rainha deseja vê-lo - disse-lhe Meng Keng sentado no
descanso, enquanto Wan se ajoelhava diante dele e curvava ligeiramente a
cabeça.
- Minha mãe, por quê? - redarguiu surpreso, tomando
postura de assentar-se.
- A rainha não informou o motivo, chama-o simplesmente.
- Mas mestre...
- Vá, irmão Wan, nesta pausa de sua preparação isto não o
prejudicará. Certamente é importante, pois a rainha é sensata e pediu-me para
enviá-lo o mais breve possível.
- Sim, mestre - falou resignado.
///
Wan tomou a trilha dos trigais e se dirigiu para a
cidade. O sol há pouco se levantara; as sombras ainda esticavam-se lentamente
pela relva, pela terra e sobre capões. Preguiçosas, iam se encolhendo quase
imperceptivelmente, dando ainda cobertura aos pingos do orvalho que resistiriam
até a chegada dos raios do grande Pai. Wan pisava-os despreocupadamente;
umedecia as sandálias e molhava os pés levemente. O perfume da manhã não o
inebriava, mas o exalante viço transferia-lhe ânimo, fortalecia-lhe células,
recarregava-lhe o organismo que pela madrugada relaxara e descansara! Aqui e
ali um pássaro cantava, um inseto zunia, uma leve e fresca brisa ia e vinha. O
céu estava limpo. Toda essa espontânea festa da natureza vinha trazer-lhe nova
sensação, e ele começava a sentir como se o peso da concentrada atividade com
que nesses dias convivera finalmente se aliviasse.
Deixando a trilha que cortava e dividia os campos dos
trigais, ingressou entre carreiras de um milharal pertencente como os trigais,
ao mosteiro, e caminhou rente aos pés de milho, se desviando ou se agachando,
esquivando-se de roçar em suas longas e pendentes folhas. Era uma brincadeira,
dava-lhe prazer; ele adorava participar dos pequenos espaços, sentir-se como
que integrado àquela natureza, à plantação. Adiante ouviu vozes de mulheres e o
estalar de galhos de pés de milho, que já nesses instantes da manhã iam sendo
ceifados. Os golpes das ceifeiras ecoavam-lhe aos ouvidos num ritmo forte e
cruel, e ele apressou-se para não mais ouvir, esperando não ter de presenciar
aquilo pelo caminho.
Depois, ganhou uma campina ampla e aberta e sentiu-se de
novo a sós. O Sol já aquecia, a brisa desaparecera; somente ao longe um ou
outro guincho de um gavião ou o agudo timbrar de um pássaro vinham
sobressair-se ao silêncio temporário que o lugar lhe consentia. Isso o inspirou.
Os sentidos, tão habituados a acolher o silencio, se prepararam como se ele
fosse meditar, e ele sobrelevou-se de sua atenção nos passos que dava,
desligando-se da observação. Nada havia com o que se preocupar: o chão era
homogêneo, não via nenhum trecho acidentado e podia andar confiantemente.
Aquela presença com que se habituara ultimamente a
conviver nos períodos de meditação veio-lhe então tocá-lo suavemente – tão suave
como era esse momento – e a reconheceu. Mas não o tomou como de costume. Ao
invés, em propositais e leves incursões, veio despertar-lhe reflexões,
pensamentos próprios e pertinentes, trazer-lhe companhia – tirá-lo daquela
solidão. Lembrava-se então de que nada comentara com Meng Keng a respeito das
recentes experiências que detivera na meditação. Mas ecoavam-lhe na memória
palavras e situações que se criaram na imaginação. Sim, imaginação, que mais
poderia ser? Como admitir ser rei se não era isso que desejava? De que maneira
reinar como ansiava aquele povo, se não possuía a sabedoria do mundo com suas
maldades? Sabedoria era do espírito, dos ensinamentos de Buda e de suas
inolvidáveis verdades. A libertação era a meta; uma vida somente se
justificaria se dedicada à busca. A experiência do Venerável; sua vitória
esmagando as ilusões dos enganadores sentidos, à Mara e aos poderosos deuses
inferiores e tenebrosos, fora a grande lição. Ele era a salvação, somente ele!
Sábio era quem o seguia, principalmente quem o compreendia. Exatamente isso ele
buscava, e para melhor compreendê-lo se purificava, e se aceito fosse nessa
primeira iniciação, tinha a certeza, sabia-o, daria um grande impulso em suas
aspirações, arregimentaria mais luz, e quem sabe, vê-Lo-ia nem que fosse uma
única vez!
Estancou os passos ao deparar-se com límpido e estreito
riacho e agachou-se puxando a longa e clara veste, tocando o joelho nu sobre o
solo, fazendo concha com as mãos. Trouxe água para o rosto e o refrescou.
Depois molhou a cabeça e a nuca e levantou-se; pulou o riacho e prosseguiu. Ao
longe já divisava as muralhas que circundavam a cidade e tomou a estrada.
Começou a palmilhá-la; era longa, somente terminaria ao cruzar os portões da
cidade. Apesar da distância que o separava do objetivo, não desanimava. Não
pretendia sentar-se à margem, aguardar por uma carroça ou pelo transporte de um
animal, cujo dono lhe oferecesse montaria. Desejava caminhar, necessitava isso,
mesmo que se cansasse, e não desejava companhias a conversar, pretendendo estar
só. Recusaria essas ofertas se viessem acontecer.
Chegando finalmente aos enormes portões, viu que se
encontravam abertos e a passagem livre. Livre era ele também para tomar o rumo
que escolhesse. Já ia longe o tempo em que seu pai, o rei, temeroso de que o
raptassem ou fizessem-lhe algum mal, não lhe permitia andar a sós para além do
palácio. No período em que Kuang tiranizara, ele não viera à cidade por
temor em ser reconhecido, ainda que isso fosse uma remota possibilidade.
Porém, em povoações, aldeias, vilas, províncias e até cidades estivera em missão com os
irmãos sábios e mais velhos. E após a derrota de Kuang voltara aqui, à cidade, uma única vez, percorrendo-a rapidamente de carruagem, preocupado com o estado de saúde
da rainha, pouco podendo ver ou atestar.
Mas hoje era diferente e algo lhe tocou o íntimo, uma
curiosidade veio roçar suas reflexões e súbita decisão o fez mudar a direção dos
passos. Já havia entrado na cidade. A rua principal era a mais larga, mas ele
resolveu deixá-la tomando outra, abandonando o rumo e objetivo único que
intentara de logo atingir ao palácio. Agora não tinha pressa, e chegou numa
praça onde existia ao centro pequeno lago circundado por mureta de pedras, ali
se sentando. Enquanto descansava ia observando o movimento das pessoas pela
rua. Olhou em redor e constatou que a cidade estava empobrecida. Nos cinco anos
de ocupação inimiga a vida deteriorara e o povo sofrera. Via rostos desiludidos
e corpos emagrecidos pelas privações. Que lamentável! O rei teria muito
trabalho para novamente trazer esperança ao seio desse povo e progresso para todo
o reino. A atmosfera estava tão tensa que ele podia até perceber no ar lamentos
e choros, embora por ali, visivelmente, ninguém estivesse lamentando ou
chorando. Um homem pobre que passava o viu e se aproximou lentamente, olhando-o
com muita atenção. Em chegando, fez reverências, ao que Wan respondeu.
- Saudações, jovem, peço-lhe bênçãos do Venerável. Wan,
agora, acostumara-se a isso, repetia-se sempre nos lugares onde ia.
- O Venerável senhor Buda o abençoa - respondeu trazendo
as mãos unidas de encontro ao peito. O homem levantou mais o rosto.
- Que faz aqui nesta manhã, jovem?
- Vou ao palácio, a rainha deseja ver-me - respondeu com
simplicidade, quase ingenuamente.
- A rainha o chama jovem neófito? - ele olhou-o de cima
abaixo - então será você sua majestade, o príncipe Wan?
- Sim - respondeu com inalterada postura. O homem
lançou-se ao solo de joelhos. Já ouvira falar de Wan e de sua vocação para
seguir Buda. Não era segredo sua vinda anterior ao palácio e os cuidados
dispensados à rainha. Levantando-se, arcou-se em nova postura e falou com
inusitado sorriso - Sidarta Gautama era príncipe. Buda abençoa o príncipe,
abençoa o reino. Wan será rei, Buda reinará!
- Não, não! - exclamou Wan. Mas o homem virou-se e saiu
correndo, a quem encontrava dizia, apontando para Wan:
- Príncipe Wan será rei, Buda reinará na terra!
Wan, assustado, deixou a praça rapidamente, acreditando
que o estranho era demente, retornando por onde viera. Mas alguns o seguiram,
proclamando:
- Viva Buda, viva o príncipe!
Wan apressou-se, mas a notícia correu mais rápida. E por
onde ele ia havia sempre um sofrido rosto a sorrir-lhe com esperança. Adiante
já eram muitos e o príncipe podia ver a extensão do sofrimento de seu povo,
traduzido por aquela febril esperança.
- Buda, Buda! - repetiam agora num coro que soava como um
lamento ou ansioso apelo. Os olhos de Wan começaram a umedecer; ele resistia e
sufocava as lágrimas. No entanto, a visão obnubilava e ele via somente
embaçados vultos.
- Buda, Buda! - as vozes continuavam com sincero
sentimento, em respeitoso coro, e Wan não conseguindo mais conter sua emoção,
permitiu às lágrimas rolarem-lhe pela face.
Pouco durou aquele estado emotivo, por que súbito arroubo
devocional veio tomá-lo irresistivelmente e lançou-se ao chão, prostrando-se de
joelhos. Um silêncio profundo desceu sobre todos e tocados pela inspiradora
força daquele gesto, arremessaram-se também ao chão em reverência. Ficaram
assim por certo tempo: Wan e o povo, até que o príncipe, sentindo uma paz
invadir-lhe o coração, levantou-se. Desaparecia de si aquela excitação antes
experimentada e a forte emoção que o conduzira às lágrimas. O povo também se
levantou e Wan dirigiu-se a todos, não como inexperiente jovem que era, porém
como irmão mais velho no tempo, calejado na arte do sacerdócio e com certo dom
de profetizar:
- Buda os ama e estará sempre presente nos corações
sinceros. Não chorem e nem lamentem as perdas e as faltas. Não atraiam mais
sofrimentos. A vida é toda ela uma sucessão de provas. A razão da existência
vive com todos, não somente com reis, conquistadores ou monges. E se a
verdadeira Vida está em todos, Buda também está. Sim, ele reina e sempre
reinará – o Altíssimo e Venerável a tudo sabe – não Wan, pequeno e humilde
servo. Além disto, meu pai é o rei do povo. E ele reconquistou o reino de mãos
cruéis e assassinas. Melhores tempos virão, creiam. Agora me deixem ir só. A
rainha, minha mãe, chama-me! – e partiu dali, sem que ninguém mais o seguisse
ou lhe lançasse palavras de adoração.
Nenhuma outra surpresa viria encontrá-lo e prosseguiu
silencioso e solitário pela principal via da cidade. Sua atenção não mais se
voltava para o mundo exterior; já presenciara o suficiente – a experiência
vivida e os fatos ruidosos haviam passado. O que lhe ficara, sem embargo, como
sentimento vivo e insólito, era o que sentira intimamente, e que indelevelmente
marcara sua memória como à ferro em brasa. Fora tudo realmente fantástico, que
lhe transformara os movimentos e as emoções, que se repercutia ainda
intensamente em sua alma. E não era somente ele neste exato instante a ocupar
um só corpo e um só espaço, mas também algo maior, mais digno e senhor pleno que com
ele simultaneamente convivia.
Apesar de tudo, do insólito presente, não desejava arguir
sobre o acontecido, nem admitir ou negar. Mergulhado estava em exaltada paz
mental e emocional, como se houvesse acontecido prolongada e bem sucedida
meditação, cujo resultado jamais antes vivenciara. Era tudo novo em si e não
existiriam pensamentos ou palavras que conseguissem expressar este superior
estado. Assim, fez calar toda e qualquer possível cogitação, procurando
simplesmente aproveitar aquele momento.
Chegando ao palácio foi logo procurar a rainha. Não era
ainda meio dia e informaram-no que ela estaria na sala de banhos, em sua
piscina e como não devesse lá entrar, procurou, ele próprio, aposentos,
dispensando o auxílio da criadagem. Nos aposentos, foi de imediato para a
janela, parcialmente aberta, abrindo-a completamente, permitindo à generosa
claridade penetrar mais. A janela descortinava vista para verde gramado
entremeado de pequenas plantas roxas em minúsculos canteiros, ao redor dos
quais faixas de outras qualidades de grama se dispunham. Era simplesmente um
arremedo dos belos jardins do palácio, ao qual Wan já conhecia de seu tempo de
menino, e que vinha terminar poucos metros adiante, nos limites de florida e
viva cerca, onde novo lance da propriedade, amplo e aberto, e com poucas
árvores, continuava.
Debruçando-se lançou olhar para fora a fim de apreciar o
lugar, mas quedou surpreso, apoiando as mãos sobre o peitoril, ao ver uma jovem
correndo sobre o gramado, perseguindo o voo inconstante de amarela borboleta.
- Venha, não fuja, você é tão bela! - dizia. A borboleta
ameaçou pousar sobre pequeno ramo verde num canteiro, e ela apressou-se em sua
direção. Entretanto, fugitiva, bateu de novo as grandes asas e arremessou-se em
direção da janela onde Wan observava, passando diante dele.
A jovem o vendo parou. Os olhos de Wan brilharam de
admiração ao contemplá-la. Ela, envergonhada, baixou o olhar mirando o gramado.
O príncipe, ainda preso na admiração, sentiu uma crescente reação mexer com seu
íntimo, ficando assim por breves instantes. Porém, quando ela de novo elevou o
rosto reencontrando-lhe o olhar, Wan sentiu as faces queimar e embaraçou-se,
não sabendo o que fazer até que se largando de sobre o peitoril fez-lhe sinal
reverente, trazendo as mãos unidas junto ao coração, ao que ela timidamente
respondeu. Ele, a seguir, entrou rapidamente sentando-se na cama. Estava um
tanto atordoado, o coração batia-lhe descompassadamente e levantou-se quase de
imediato, procurando novamente a janela, se esquivando de aparecer, grudando-se
à parede na tentativa de ver sem ser visto. Mas não conseguia revê-la e
aproximou-se mais, imbuindo-se de maior coragem, assomando amplamente naquele
espaço, percorrendo com rápido olhar cada metro do jardim. Entretanto, não mais
a viu!
Wan deixou os aposentos e apressadamente começou a
percorrer os corredores. Quando saia de uma das alas e ingressava no corredor
principal dos aposentos reais, deparou-se com seu pai. Não esperava aquele
encontro e um desapontamento apertou-lhe o coração; ele lutou contra aquilo e o
saudou com a vênia de sempre, procurando trazer naturalidade ao gesto.
- Meu pai! - disse enquanto curvava-se.
- Não sabia que houvera chegado. Faz quanto tempo está
aqui? - o rei, após responder a saudação, procurava ser também espontâneo, pois
da última vez em que haviam estado juntos ele se recusara despedir-se do filho.
Desajeitado, trazia alguns pergaminhos que quase caiam-lhe das mãos e de sob o braço braço apertado contra o tronco
- Na verdade, acabo de
chegar e saia de meu quarto para rápido passeio. A rainha está na piscina, pelo
que fui informado, e aguardo o momento de vê-la.
O rei olhou-o com disfarçada ternura. Apesar dos anos de
separação e das discordâncias não conseguira fazer calar a admiração que lhe
endereçava. Era algo forte e nobre que lhe escapava ao controle forçando-o a
desejar ao filho sempre o melhor. Havia em seu íntimo, além da admiração de
pai, certa submissão ao espírito, algo de inacessível julgamento que lhe dizia
no silêncio ali estar alguém melhor, mais capaz, que faria coisas que ele
próprio não conseguira. Por não poder identificar com nitidez a essa linguagem,
não sabia assim traduzi-la, mas entendia ver o príncipe desviar-se deste
natural destino e se sentia abalado.
- Wan, meu filho, avisaram-me de que chegara! A rainha
apressava-se pelo corredor, vindo da sala de banhos, acompanhada de duas
serviçais. Wan saudou-a com vênia, mas ela o abraçou fortemente como mãe.
- Vim ao atendimento de seu chamado, minha mãe, de
que se trata? - disse após o abraço, quando ela recuava um passo. A rainha
olhou para as serviçais e com suavidade bateu palmas por duas vezes. Elas
dobraram-se em reverência, andaram de costas alguns passos, volveram os corpos
em direção da sala de banhos e rapidamente se evadiram.
- Durante a refeição falaremos. Ela o examinou mais
detidamente, dizendo em seguida: você parece-me fatigado e ao mesmo tempo
excitado, algo se passa?
Wan lançou-lhe olhar de surpresa e admiração.
- A viagem, talvez - respondeu embaraçado - fiz a
pé!
- A pé, Wan, por quê? É longa e cansativa e não sabemos
se ainda há perigos.
- O Altíssimo viajou comigo, nada havia a temer. Ademais,
atendi a um desejo de meu íntimo; foi um bom exercício.
- Mas cansou-se - ela repreendeu-o com suavidade - agora
aproveite, vá até uma das piscinas e tome um banho com sais aromático. Relaxará e se
sentirá melhor, depois descanse, mandarei chamá-lo quando a refeição for
servida. Wan reverenciou-a e ao rei com leve aceno de cabeça e volveu o corpo
se retirando. Ela virou-se para o esposo, que em silêncio a tudo ouvira,
segurando-lhe o braço, ajudando-o com os pergaminhos, e caminharam em direção aos aposentos.
Tendo se afastado e contrariamente à sugestão da rainha,
Wan tomou rumo oposto à sala de banhos. Terminado o corredor, ultrapassou largo
umbral indo sair no átrio externo principal, amplo e longo, cujo teto era
sustentado por colunas em toda a sua extensão. Entre uma coluna e outra se
divisava com facilidade ao panorama que a todos encantava e que eram os
jardins. Fora daquele átrio, em majestoso pátio, deitava-se e se esparramava verde
gramado, configurando interessante tapete como a ali estar para também saudar e
receber pessoas. O mesmo gramado se estendia até certo trecho, causando aos pés
dos palacianos e visitantes gostosa maciez.
Wan lançou olhar em derredor e desceu ao degrau único, ganhando o gramado. Sua mente, não obstante, ignorava a beleza do lugar
que tanto amara na infância, beleza esta que havia decrescido pelo menor
cuidado que o tirano o houvera dispensado, mas que encantava ainda. Seus olhos
atentos varriam aos meandros e quebras dos jardins, buscando adivinhar onde ela
estaria; se atrás deste ou daquele largo e cheio capão, daquela cerca viva, de
florida abélia ou de uma arália arbústea. No entanto, não a encontrava, embora
viesse percorrendo a quase todos os jardins e chegasse a alcançar o exato local
onde a vira. Desapontado, desistiu de procurá-la e entrou, resolvendo que
acataria a sugestão de sua mãe quanto ao banho, porque se encontrava suado e
acalorado.
Ao retornar aos aposentos após o banho e sentar-se sobre
a beirada da cama, notava em si como aquela aura de paz e divindade houvera
cedido ao aspecto eu de sua personalidade, vendo-se agora envolto por ansiosa
expectativa. A expectativa, no entanto, não lhe trazia outras complicações e
nem o atormentava em mente – em si era controlada ainda – mas fora suficiente
para envolvê-lo e subtrair-lhe um quantum de sua paz! A despeito do relaxante
banho, sentia-se, na verdade, ainda um tanto fatigado. Seria pela longa
caminhada que empreendera desde o mosteiro até o palácio, seria pelas
experiências que acumulara nesta manhã – ou por tudo. Assim, determinado a recuperar essas perdas, acomodou-se e empertigou o corpo, apoiou as
palmas das mãos nas coxas, calcando os pés descalços no chão e os afastou
ligeiramente. As pernas, como os pés, ficaram paralelos e fechou os olhos
elevando ligeiramente o rosto.
Logo observava os irresistíveis efeitos de sua mente
treinada e comandou as energias que lhe reavivaram todo o corpo. Após, relaxou,
alterando a postura de pés, mãos e pernas, procurando sobrelevar-se em
meditação, assim permanecendo boa soma de tempo. Despertou entre um misto de
susto e decepção, ao ouvir o chamado de uma serviçal da rainha, convidando-o ao
salão de comensais onde a refeição seria posta. A decepção ficara por conta de
não ter conseguido sucesso na tentativa de chegar a um verdadeiro estado
meditativo. Levantando-se, após responder ao chamado, não seguiu de imediato
para o salão, tendo antes chegado à janela e contemplado o jardim.
No grande salão de comensais, além de toda a família
real, também se encontravam alguns convivas e Wan sentiu o coração palpitar
mais fortemente ao ver, dentre todos, a jovem que o impressionara. O lugar à
direita do rei o aguardava e para lá se dirigiu, arcando-se em reverência aos
monarcas, sentando-se. A conversa cessou quando a rainha imediatamente falou:
- Príncipe Wan, não creio que deva se lembrar dos primos
do rei que vivem em próspera e povoada província à oeste do reino – Wan
olhou-os com maior atenção, não os reconhecendo de fato, embora lembrasse que
muitas vezes vinham pessoas tratar de negócios com o rei. Eles todos se
levantaram e o reverenciaram ao que Wan também se levantou e respondeu. Eram
sete pessoas, contando-se três rapazes, duas moças e o casal de duques, os
primos do rei. – Quando por último aqui estiveram, prosseguiu a rainha, você
era ainda uma criança e hoje nos honram novamente com sua visita. A rainha
silenciou, acenando suavemente com a cabeça, e eles se sentaram. Então fez
timbrar a sineta e os serviçais se apressaram em servi-los.
Na realidade, ali estava o núcleo principal de um clã que
habitava a província onde possuía muitos bens. Dominava a agricultura, pequenas
indústrias e o comércio da região. O duque era primo do rei em afastado grau de
afinidade. Há passadas gerações fora concedido ao seu bisavô e descendentes
explorar a província, por decreto do também bisavô do atual rei, tendo o duque
se tornando mandatário universal da província por herança. A grande e próspera
propriedade abrigava milhares de pessoas, entre a vassalagem, comerciantes e simples aldeãos,
distribuídas entre o campo e seus arredores e vilas existentes. Durante a
ocupação militar inimiga, o duque soubera que o tirano desejava interrogá-lo,
já que obtivera informações sobre sua descendência. Temeroso de que, na
verdade, ele desejasse mesmo executá-lo e a sua família, se ocultou com todos
os familiares. O usurpador para lá viajara pessoalmente, fazendo o levantamento
de toda a província e suas glebas, contabilizando os seus bens e meios de
produção. Esta parte do reino estaria a cabo do outro general – aliado de Kuang
–- a fim de explorá-la e administrá-la, e fora um dos motivos de Kuang ter
protelado a sua repartição, por tê-lo enchido os olhos e lhe despertado grande
cobiça. Após o assassinato do general, Kuang tomou-a e a explorou como quis.
A visita que a família fazia ao palácio tinha o propósito
da reafirmação de seus laços, após tudo o que acontecera, e da necessidade de
atualizar os termos de seus contratos de exploração, comercialização e
percentuais taxas que o governador da província fazia encaminhar aos cofres
do tesouro real, além de rearticular outras disposições consideradas gerais. O
reino inteiro sofrera com a humilhante administração de Kuang e nada mais
natural do que de novo se reaproximassem e reavaliassem toda a situação.
Durante a refeição, em que pouco falavam, Wan e a moça
trocaram alguns rápidos e tímidos olhares, o que a rainha discretamente
observava. Ao final, o rei chamou o duque para que se reunissem no seu
gabinete, juntamente com os ministros conselheiros do reino, a fim de
continuarem os assuntos, e se retiraram. A rainha também se levantou no que foi
acompanhada pela duquesa, indo em direção das cadeiras de descanso de uma das
sacadas, deixando propositalmente os jovens reunidos. No entanto, para surpresa
de Wan, a moça também se levantou, e, curvando-se com usual vênia, retirou-se,
deixando-o confuso. Ele permaneceu em conversa fútil com os jovens e seus
irmãos e passado algum tempo arranjou motivo para retirar-se, dirigindo-se à
rainha.
- Minha mãe - começou após o ligeiro aceno de cabeça -
peço-lhe permissão para ausentar-me. Estarei em meus aposentos quando desejar
conversar, já que foi esse o motivo de eu ter deixado temporariamente o
mosteiro e vir atendê-la, embora tenha sido agradável o reencontro com nossos
primos que nos honram com sua visita – as últimas palavras disse-as voltado
para a duquesa, esboçando natural sorriso, ao que ela acenou em encanto e
agradecimento. A rainha, por outro lado, lançou-lhe olhar um tanto angustiado,
mas assentiu, estendendo suavemente a mão e indicando com o lenço,
concedendo-lhe a permissão.
Wan, entre confuso e cismado, tomou o rumo de seus
aposentos. Por que ela o evitava? Fazia então papel de tolo e devia esquecê-la.
Seriam certamente armadilhas de seu ser inferior objetivando impedir-lhe de
chegar a Buda e obter a remissão das pretéritas vidas em que se entregara aos
prazeres do mundo. Reagiria. Esqueceria esse desagradável momento e voltaria
sua atenção somente ao Venerável. Pensando assim, ingressou por outro corredor
dirigindo-se à biblioteca real, frequentada unicamente por sua família, e lá
adentrou. Ao percorrer os escaninhos examinava este ou aquele pergaminho, e o
devolvia ao lugar original. Em dado instante, achou aquilo que
inconscientemente buscava que a ele próprio pertencia. Era o pergaminho dado
por Meng Keng quando o mestre vinha ministrar-lhe ensinamentos no palácio. Ao
examiná-lo, a imagem do monge e suas esquecidas palavras retornaram-lhe
inteiras, revivendo-as como se ecoassem nesse exato instante aos seus ouvidos: “pequeno
Wan, tome este pergaminho e guarde-o. Não o leia agora, não é ainda o momento.
No futuro lhe será muito útil e muitas vezes o consultará.”
Wan sorriu e retirou-se da biblioteca, alcançando seus
aposentos, passando a ler o texto que continha máximas budistas, referências
aos oito caminhos do devoto e também muitos enigmas. Os enigmas continham,
todos eles, trigramas, simbolismos e indicações que levavam a interpretá-los, e
Wan observou-os com inusitada curiosidade, absorvendo-se na tentativa de
decifrar um ou outro, usando da ciência da adivinhação que os monges ensinavam.
Ficou assim, sem se dar conta do tempo, até que foi despertado pelo chamado de
uma serva informando-o que a rainha o convidava aos jardins e ele confirmou que
para lá iria imediatamente.
Pouco depois, o príncipe descia o degrau do átrio e
pisava os caminhos dos jardins a procura da rainha, logo a divisando ao longe,
às costas, sentada sob um alpendre. O Sol já rumava para o poente, tendo
iniciado o percurso de seu último quadrante no céu, mas tardaria ainda o seu
inteiro mergulho. Agradáveis sombras estendiam-se pela via que o príncipe
palmilhava, e, vez por outra, seu corpo era tocado pela luz solar. Estava calor,
porém abrandado por fresca aragem, e ao aproximar-se do alpendre e observar
melhor as brancas vestes de sua mãe, notou-a, também, a conversar com alguém
encoberta pela sarça. De novo seu coração bateu em descompasso quando a
reconheceu e parou diante de ambas, saudando-as com vênia. A rainha respondeu
com leve aceno de cabeça e a jovem se levantou inclinando-se.
- Mandou chamar-me, minha mãe? A rainha assentiu
levemente.
- Quero que conheça melhor Sing Su, pois não tiveram
oportunidade de conversar. Wan excitou-se ao de novo contemplá-la sentindo-se
abalar. A jovem percebendo isso reagiu com timidez, olhando para o chão, em
seguida erguendo o rosto. Tenso, Wan retomou:
- Sing Su – disse, outra vez se inclinando.
- Príncipe Wan – respondeu-lhe dobrando-se com
delicadeza.
- Sing Su é a filha mais jovem dos duques que nos visitam
e a mais inteligente. É realmente muito prendada, destaca-se no aprendizado das
artes. Creio que ambos têm muito a conversar. Vou passear pelos jardins
deixando-os a sós. Após leve aceno a rainha se levantou e se afastou. Mais
adiante a ela juntou-se uma serviçal.
Wan permaneceu ainda de pé, sem controle da situação.
Fora tudo tão rápido, quase abrupto! A jovem, em silêncio, mirava de novo o
chão e após instantes ele finalmente conseguiu retomar:
- Sing Su, por que não nos sentamos?
- Sim! - ela respondeu se acomodando, no que foi seguida
por ele. O príncipe sentia o chão fugir-lhe de sob os pés.
- Sing Su... - ele hesitava -... você...alcançou a
borboleta? - completou com alívio.
- A borboleta? ... - ela olhou-o admirada - ela...fugiu!
- Oh, lamento. Você ama as borboletas?
- Sim, muito!
- Mas elas fogem, não?
- Sim, fogem!
- Que pena!
Silêncio. Wan reuniu alguma coragem e continuou:
- Sing Su, você me acha tolo?
- Tolo, príncipe, não, oh, não! - ela respondeu
assustada.
- Então por que Sing Su fugiu hoje do salão?
- Eu... - ela baixou o olhar mirando o chão. Em seguida,
levantou-se se curvando ante Wan, que surpreso aguardava - perdoe-me príncipe,
Sing Su que é muito tola - ela continuava a mirar o chão. Wan também se
levantou - Eu estava envergonhada!
- Mas, Sing Su, a borboleta voou porque quis, você não
teve culpa!
- Sim... a borboleta voou.
Novo silêncio e Wan convidou-a novamente a se sentar.
- Sing Su, como é sua vida na província?
- É boa.
- Sing Su é muito bonita – Wan encorajava-se – você está
prometida para algum noivo?
- Não, eu nunca desejei. Meu pai rejeitou um pedido, foi
melhor assim.
- Você gostaria de morar aqui no reino?
- Sim... , mas agora não posso!
- Não, por quê?
- Bem, só posso vir morar no reino se algum noivo daqui
me tomar por esposa.
- É verdade... que tolice minha!
- O príncipe vai ser monge?
- Sim, é meu desejo.
- Oh...sim?
- Bem... o rei não quer...mas eu quero...isto é, eu
preciso decidir, jurei dedicar-me ao Venerável.
- Isto é para sempre?
- Um neófito ou discípulo podem quebrar um juramento, um
monge não!
- E quanto falta para você ser monge?
- Muitos anos ainda, estou somente começando a servi-Lo.
- Oh! - ela pareceu compreender.
Ambos silenciaram. Neste hiato puderam fazer rápida
avaliação de suas ideias e Wan reiniciou:
- Sing Su eu gosto de você, seu coração irradia alguma
coisa importante, toca o meu. Ela mirou o chão e calou-se.
- Não foi a borboleta...- conseguiu finalmente
murmurar.
Dois dias depois o duque e sua família partiam de volta
para a província. Wan, de pé em seus aposentos, mirava ao adorno que Sing Su
lhe ofertara em seu último encontro. Sob a claridade ofuscada pelas nuvens
escurecidas, que rapidamente se assenhoreavam dos espaços, ele percorria com o
olhar aos contornos do pequeno dragão em cobre reluzente, incrustado de pedras
preciosas. A luz sem vida não provocava qualquer rebrilho no belo objeto, porém
isto no momento era de somenos importância por que seus olhos unicamente se
moviam sobre o dragão sem nada ver. Na mente a cena era revivida com acalanto.
Sing Su, com delicados e precisos movimentos, retirava o adorno de sobre a
veste, tomava-lhe a mão direita, e nela o depositava com suavidade. Olhava-o
nos olhos, enquanto permanecia aconchegando-lhe a mão. O calor de suas mãos,
Wan sentia-o ainda, e mais a vibração de seu jovem e apaixonado coração. Era
algo irreal; corajoso para uma tímida moça como Sing Su; além de tudo, os
costumes condenavam jovens se presentearem se não houvessem sido dados em
promessas de casamento e ofertados os dotes. Era uma tradição que ali neste
encontro se quebrava, sendo ao mesmo tempo um segredo de ambos. Depois, ela
recolhia as mãos, se inclinava e se retirava.
Um corisco rutilou e fez o adorno ganhar rápido rebrilho;
depois outro e mais outro. Em seguida, um sopro de vento veio sacudir sua veste
e Wan se voltou para fora olhando ao enegrecido céu e ao jardim, onde finos
galhos tremulavam e folhas eram arrastadas sobre o gramado. Fechou a mão, como
que protegendo ao exposto e delicado dragão, e lançou a mente em direção de
Sing Su, preocupado com o provável temporal em sua trajetória. Estaria ela
abrigada ou teria ultrapassado a essa ameaça dos revoltosos elementos?
Preocupação era algo que aprendera a suprimir, não ativar com energia mental,
mas agora o envolvia e o fazia reagir.
O vento uivou pelas paredes do palácio, novamente dobrou galhos e
plantas, balançou-os e os fez ruidar. Novo açoite e submissão, e Wan sentiu no
rosto um arremesso de poeira que o obrigou a comprimir os olhos e esfregá-los,
tratando logo de fechar a janela, provocando escuridão no quarto. Correu as
mãos pelas paredes encontrando uma lamparina, retirou-a do fixador, levando-a
para fora do quarto, tomando o fogo emprestado de outra do corredor; trazendo-a
de volta e retornando-a ao seu lugar original. Quando seus olhos se acostumavam
com a claridade do ambiente, ele buscou a pequena algibeira de pano que
trouxera do mosteiro e cuidadosamente guardou nela a lembrança de Sing Su;
depois se sentou no chão, cruzando ligeiramente as pernas, apoiando os braços
esticados sobre os joelhos, em postura estranha às suas disciplinas. Os
antebraços pendiam à frente, soltos e paralelos, e as mãos balançavam quase
imperceptivelmente. Aquela postura lembrava mais o descanso de um trabalhador do
campo do que de um budista ou príncipe. Ao longe um trovão ribombava e o vento
ainda açoitava.
Com pensamentos confusos, o príncipe tentava colocar
as coisas em seus lugares. Sing Su ocupava a maior parte de si, mas isto lhe
trazia um refrigério na alma e morna presença no coração. Quando tornaria a
vê-la? Se a quisesse, precisaria decidir-se logo, conversar com o rei, pedindo-lhe
que procurasse o duque para ofertar o dote. Caso se demorasse, surgiria outro
pretendente, então poderia perdê-la para sempre!
Estremecendo ante um grande estrondar sobre o palácio ele
se levantou. Forte chuva começou a desabar, provocando ruídos na janela. Nova
rajada de vento intensificava a violência da chuva e Wan andou até a
proximidade da janela, parando a um passo dela. Dali podia ouvir perfeitamente
a água encharcando a grama do jardim onde Sing Su correra em perseguição a
borboleta. “Não foi a borboleta”, ouvia-a dizer em tímido murmúrio,
porém com a graça que só as virtuosas possuem. Onde estaria neste momento? – de
novo advinha-lhe preocupação, e resolveu orar e pedir que nada lhe
acontecesse e aos que com ela viajavam. Acomodou-se então no chão, com pernas
cruzadas, trazendo as mãos juntas adiante, não sem antes saudar Buda com
sacerdotal gesto. Por algum tempo permaneceu concentrado em profunda oração até
que, abrindo os olhos, levantou-se. Como percebesse que os elementos não
fustigassem mais com a mesma violência de antes, resolveu abrir a janela.
O céu ainda estava cinza, mas as nuvens haviam perdido
aquela espessa camada. Continuava a chover sem os impetuosos açoites do vento
que abrandara, por isso podia chegar-se mais e observar a paisagem. O frescor
do ar tocou-lhe as faces, provocando-lhe certa reação, e ele elevou o rosto
olhando para adiante, mais longe. O Venerável permanecia em si; ele viajou em mente e
alma para o grande santuário do mosteiro e diante de Buda inclinou-se e o
reverenciou. E agora, que Lhe diria, e a Meng Keng, e aos irmãos religiosos do
mosteiro?
Por Rayom Ra
[Direitos autorais, registro No. 127763]
Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com.br
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