sábado, 14 de janeiro de 2017

O Cristianismo e a Gnose

                                                                                                  
  Já definimos a gnose no seu aspecto tradicional, dizendo que ela era a aspiração a uma experiência mais profunda. Após termos estudado os precedentes gnósticos no seio da Grande Tradição, citando o bramanismo, debruçando-nos sobre a doutrina de Zoroastro, que originou a síntese maniqueísta, eis-nos, pois, chegados à gnose propriamente dita, que é filha do pensamento grego e singularmente pitagórica. Veremos como a gnose conseguiu penetrar no seio do cristianismo, com o velho fundo neopagão, para finalmente perecer asfixiada pelo dogmatismo da igreja nascente.

  A filosofia grega, tende-se a esquecê-lo hoje, cumpriu a missão de vulgarizar as teorias esotéricas. Os filósofos da Antiguidade, que também eram sábios, sentiram, com efeito, a necessidade de duas doutrinas: uma pública, outra secreta. Se a Grécia antiga forneceu físicos como Tales, legisladores como Sólon e Drácon, teve um iniciado de primeira importância: Pitágoras. Este não escreveu jamais sua doutrina secreta, senão com sinais esotéricos e sob a forma de um simbolismo perfeitamente elaborado.

  Nada de extraordinário, portanto, que ele tenha sido citado como modelo pelos neoplatônicos de Alexandria, os verdadeiros gnósticos e a patrologia cristã, como um precursor.

  De fato, a sua doutrina é a primeira síntese à volta de uma teoria central; aí reencontramos a doutrina oculta do Egito, esclarecida e simplificada pelo gênio grego. Particularmente, a filiação com Hermes Trimegisto é evidente: a lei do mistério, que uma vez mais oculta a grande verdade e o conhecimento absoluto, não pode ser revelada senão aos iniciados.

  No presente estádio do raciocínio não deixaremos de relacionar o princípio de Pitágoras com o Sol dos antigos egípcios, quando o profeta da religião solar, o grande sacerdote de Amon-Ra, do alto do templo de Tebas, desvendava o conhecimento ao novo iniciado; este, recordando-se de passagem do Livro dos Mortos, acedia ao conhecimento apoiado pela visão das três pirâmides e dos astros, que lhe descreviam como deviam ser as suas futuras residências. Se uma prega do véu de Isis se erguia para rapidamente cair, o iniciado podia, no entanto, sentir a satisfação de ter entrevisto os mistérios supremos. Além disso, terminada a iniciação, ele tornava-se sacerdote de Osiris, ou seja, guarda do sublime conhecimento.

  A vida tempestuosa de Pitágoras assemelha-se, em certos pontos, à visão da Barca de Osíris, lançada no meio das águas furibundas, tal como podia imaginar o iniciado egípcio navegando no Rio dos Mortos; todavia, Pitágoras prosseguiu sempre o seu caminho, sem ter deixado sair da rota a sua embarcação, em nenhum momento da existência. Ele viu Cambises, à frente dos exércitos persas, invadir o Egito – lembra o sonho de Zoroastro – saquear os templos sagrados de Mênfis e de Tebas e destruir o templo de Amon. Porém, as desventuras de Pitágoras não terminaram aqui: foi internado por Cambises na Babilônia, então centro de irradiação dos profetas hebreus e da mestiçagem dos povos sobre que a Ásia despótica triunfava.

  Todas essas provações ensinaram a Pitágoras que as várias religiões eram apenas raios de uma mesma verdade: ele possuía a chave, a síntese de todas as doutrinas na ciência esotérica. A experiência adquirida evidencia-lhe que a humanidade se encontrava ameaçada pela Ásia, devido à ignorância dos seus sacerdotes, ao cientismo obtuso dos sábios e ao caos de suas democracias. Pôde voltar, enfim, à sua pátria.

  Regressando à Grécia, Pitágoras teve longas entrevistas com os sacerdotes helênicos, informando-os sobre a sua iniciação egípcia, os mistérios de Osíris e o ocultismo babilônico. Só depois de ter formado pitonisas e de transformar Delfos num centro de vida e ação espiritual é que ele parte para a Grande Grécia e Crotona, onde viria encontrar a morte com mais trinta discípulos. Mas o fim que se propunha estava atingido; a escola pitagórica dura ainda dois séculos e os seus ensinamentos chegaram até nós por intermédio de seus inúmeros discípulos.

  A cadeia dos grandes iniciados não se quebra com a desaparição de Pitágoras: o ateniense Platão deveria, muito naturalmente, recuperar o facho do conhecimento. Foi por intermédio do grego Argitas que Platão obteve um manuscrito de Pitágoras (1). A obra Timeu é, neste sentido, uma verdadeira condensação da cosmogonia pitagórica.

  (1) Os manuscritos de Pitágoras não conseguiram sobreviver até à nossa época. A biblioteca de Alexandria possuía um, anotado por Plotino e fechado num rolo de ouro, mas os cristãos incendiaram todas essas riquezas (Destruição do Serapeum no século IV, ordenada pelo imperador Teodósio).

  A época em que viveu o filósofo ateniense era tanto ou mais agitada do que aquela em que viveu o seu mestre: derrota naval dos Aigospotamos, tomada de Atenas pelos Espartanos, coroada com a chegada de trinta tiranos, e a agonia da independência ateniense.

  Timeu, de Platão, criando um verdadeiro santuário filosófico, abriu uma “antecâmara” à iniciação. Eis porque a Academia de Atenas, fundada pelo divino Platão, se prolonga na grande escola de Alexandria, cujo principal representante foi Plotino (205-263).

  Este, neoplatônico por excelência, continua a tradição do paganismo nas Enéades. O seu filho espiritual, Jâmblico, sucessor de Plotino, que viveu no século IV, tenta reatar (nos Mistérios do Egito) a tradição esotérica dos sacerdotes de Amon, mas os seus esforços foram abafados pelo cristianismo triunfante.

  Isto explica-nos que, para combater a influência da Igreja, os gnósticos tiveram de procurar refúgio no seu seio, chegando assim à gnose cristã, ou gnose propriamente dita.

  Compreendem-se desde logo os esforços doutrinais desenvolvidos pela Igreja a partir do século II, para se desembaraçar dessa “invasão” que atraía os espíritos mais elevados da comunidade cristã.

  A gnose dos primeiros séculos é muito mal conhecida porque a Igreja se apressou em misturar as pistas, o que não nos surpreende. Os especialistas da gnose cristã distinguem dois ramos principais: a gnose síria e a gnose alexandrina. Na primeira, os principais representantes foram Simão, o Mágico, Saturnino e os ofitas. Na segunda, encontramos Basilides, Valentino e seus discípulos, Carpócrates, os Docetas, etc.

  Está fora de qualquer dúvida que este movimento constituiu de fato um grande perigo para a Igreja, porque arriscava dividi-la em múltiplas seitas e capelas, escapando ao controle dos sacerdotes. No entanto, os gnósticos eram espíritos superiores; estes homens possuíam o que a experiência trouxe (parcialmente) mais tarde à Igreja e que na altura lhe faltava totalmente: uma cosmogonia, uma filosofia do cristianismo, assim como a fixação das suas relações com o paganismo e o judaísmo; numa palavra: a gnose trazia à Igreja uma inteligência mais profunda da sua fé.

  Mas a sofisticação do movimento eclesiástico provoca a sua perda. A Igreja, com efeito, pretextando esta filosofia que se substituía à revelação, condena a tentativa do paganismo de viver à sombra da Igreja.

  Em relação ao cristianismo, a gnose procura situar-se numa posição de superioridade. Tanto mais que os gnósticos não visam negar o valor exemplar de Cristo; por vezes consideram-no uma criatura divina, desprovida de existência carnal, que se pode dizer perfeita, e em outras ocasiões, já o consideram muito simplesmente um homem dotado de uma grande força de alma e da intuição da sabedoria.(2)

  (2) Assim, os carpocráticos pertencentes à gnose alexandrina viam em Jesus um homem de carne e osso, cuja excepcional força da alma tinha sabido triunfar de todas as formas do mal. Carpócrates vai mais longe: libertando-se de toda a moral, despreza a noção cristã do bem e do mal. Esta atitude prefigura, a mil e quinhentos anos de distância, a filosofia nietzschiana da libertação do homem.

  O gnosticismo do segundo século, que conhecemos por intermédio de Simão, o Mágico, desenvolve-se na Síria e parece bastante marcado por influências hebraicas e orientais, enquanto a gnose alexandrina tem as suas raízes na filosofia grega, filha da luz, e na ciência sagrada do antigo Egito. Certas atitudes testemunham, porém, uma fonte comum às duas correntes de pensamento; antes de mais, a recusa do Velho Testamento, da Lei de Moisés e do seu escrupuloso Decálogo. A moral não saberia, numa tal ética, acompanhar a sabedoria resultante do conhecimento.

  Como deixamos entender, existe uma certa continuidade entre os místicos pagãos e os gnósticos cristãos, como o testemunha a utilização comum de certos símbolos absolutamente característicos: os principais são a taça e o livro (volumen), que transmitem a revelação; todavia, já o sublinhamos; a gnose cristã, e especialmente a síria, continua penetrada de orientalismos (3) próprios da tradição hebraica, ou melhor, dos cultos semitas, nas suas manifestações em que se faz apelo ao culto da Grande Mãe ou princípio feminino. O Evangelho de Eva e a Pistis Sophia, especialmente (único gnóstico que chegou na íntegra aos nossos dias), são marcados pela influência hebraica e multiplicam as entidades segundas, antepassados dos múltiplos demônios da Cabala.

  (3) Isso não impediu Rosenberg, em Le Mythe du XX siécle, de reivindicar a gnose e os autores gnósticos como os precursores da ética nacional-socialista. É verdade que como inimigo encarniçado da Igreja, Rosenberg encontrava nesta filosofia um apoio às suas teorias pagãs.

  A atitude relativamente à sexualidade é todavia radicalmente oposta à ética judaica e cristã e determina a concepção gnóstica.

  Quase todos, seguindo o exemplo de Marcion, condenam as relações sexuais, que conduzem à procriação; em suma, ao aprisionamento de novas almas à matéria. De fato, tal atitude impõe um juízo moderado. Se os gnósticos rejeitam estritamente o ato carnal no que diz respeito ao iniciado, admitem no entanto o casamento dos simples leigos, que podem ceder nos princípios sem se deixarem todavia dominar pela matéria.

  Esta posição não é compreensível senão integrando-se numa determinada visão do mundo. Se considerarmos que, para os gnósticos, a humanidade perdeu a chave do saber, entrando assim no caos, o objetivo da continência será, evidentemente impedir que o reino das trevas se perpetue enquanto o homem não tiver encontrado a essência do seu ser e a pureza original que fazia a glória dos seus luminosos antepassados (4).

  (4) O horror gnóstico da carne corrompida encontra-se nos trovadores do século XII, todos penetrados da espiritualidade cátara, ou neognóstica. O fim será o serviço do amor ou amor cortês, sentimento puramente espiritual que consagra o ser amado à castidade.

  Do mesmo modo, na gnose luciferiana, particularmente nos ofitas e nos peratas, encontramos uma reminiscência do conhecimento primordial: a serpente: a serpente da Bíblia não é mais considerada como o símbolo do mal, mas como uma mensageira do Deus da Luz, ou mesmo ele próprio; a saber, o Logos. Ao passo que o demiurgo tinha fechado Adão e Eva num mundo miserável; Lucifer concedeu-lhes a ciência do bem e do mal, ou seja, a gnose salvadora ou divinizadora.

  A ideia gnóstica, imitando a forma da serpente, não é retilínea, mas circular, ela vai de Deus a Deus, através do mundo proveniente dele; do espírito ao espírito, passando pela matéria; da vida à vida, passando pela morte. O único produz o todo e o todo torna-se único. É o sentido do símbolo antigo da serpente mordendo a cauda. É a “torrente que se escoa de si próprio” do místico alemão Eckhart.

  O gnóstico está persuadido de que o homem pode descobrir o segredo íntimo da unidade do mundo, na condição de penetrar aos bastidores do teatro cósmico e mobilizar toda a eficácia das suas potências espirituais para rasgar o véu de Maia.

  Para a gnose, a fé não é suficiente e não lhe é mesmo reconhecido valor próprio.

  Através da complexidade dos mitos voluntariamente confundidos, distingue-se assim uma linha de pensamento contínua que se precisa com uma força bastante grande na manifestação mais bem elaborada da gnose; referimo-nos à filosofia basilidiana.

  Eis porque, após este rápido esboço sobre o conjunto da corrente gnóstica, o nosso exame se dedicará particularmente ao estudo da gnose alexandrina e Basilides.

  Com efeito, iremos apercebermo-nos de que a ótica basilidiana foi recuperada pela filosofia alemã moderna e especialmente pelo grupo Thulé, que contava entre os seus membros Rosenberg e Dietrich Eckhart, principal iniciador de Adolf Hitler. É evidente o interesse desta escola.

  Para Basilides, o caos é obra do demiurgo (criatura que pretende imitar Deus); mas Deus, pela sua ação, anima a matéria, donde a identificação íntima entre os dois princípios, a luz e as trevas, no seio do mundo material. O homem, pelo espírito que ilumina a sua alma, é possuidor da luz e pode chegar a obter o conhecimento com a condição de não ceder ao mundo das trevas, que também existe nele e à volta dele, no reino da degenerescência material e do regresso ao caos, na corrupção do sangue e no triunfo da quantidade sobre o princípio aristocrático.

  Na escala da criação, o homem é o mais afastado do caos e do inorganizado; igualmente, entre os homens, certas raças formadas por eleitos estão mais próximas do que outras do espírito divino. E entre estas, no cimo, encontra-se colocada a raça branca que é o acabamento da ideia criadora; ser-lhe-á dado o poder de dominar a matéria e todo o cosmo, continuando sempre fiel ao princípio de pureza existente nela.

  Para os gnósticos, e em particular Basilides, “toda a evolução viva consiste numa diferenciação e numa separação, numa distinção de matéria ordinariamente misturadas”.
 
  Concepção muito moderna, para os gnósticos o mundo espiritual é num arquétipo que fundamenta a sua origem no mundo material, para seguidamente se afastar sempre mais para o infinito e para o imaterial (segundo a expressão, de outro modo incompreensível, “o que está no alto é como o que está em baixo). Assim, Basilides considera o mundo como um todo organizado e hierarquizado onde a matéria não se separa radicalmente do espírito. No alto reina o Espírito, que é o Logos: o pensamento, que toma consciência dele próprio; em baixo estende-se o pneuma, que é um pensamento inconsciente dele próprio, mas de essência puramente espiritual; depois o éter, parte diferindo unicamente em grau da alma do mundo material; o pneuma é representado como a alma do mundo rodeando o universo terrestre; o cristianismo nomeia-o Espírito Santo.

  Segundo a filosofia grega e a terminologia de Empédocles, “nascença não existe para nenhum ser mortal, como também não existe um fim, que seria a morte. Tudo é simplesmente mistura e troca de elementos. Nascimento é o nome inventado pelos homens. Quando os elementos se misturam e aparecem tanto nos homens e nos animais selvagens como nas plantas e nos pássaros, os homens chamam nascimento; os elementos separam-se e então chamam-lhe morte infortunada”.

  Assim, as substâncias começam a organizar-se. Seguindo as leis puramente mecânicas da sua gravidade respectiva. O espírito que, para Basilides, é material e composto de átomos muito finos, eleva-se e rapidamente regressa ao seu princípio. O pneuma, que é já uma matéria mais opaca, estende-se como um invólucro exterior à volta do mundo. O éter eleva-se e espalha-se sob o pneuma. Vem seguidamente o ar, que preenche a região imediata. Até aqui verifica-se apenas um processus essencialmente físico. Mas, porque cada um destes elementos contém um espírito elementar, a cosmologia científica iria transformar-se em cosmologia mítico-religiosa. Desse modo, a gnose reconcilia, numa visão de grandeza, o que a ciência moderna pretendeu separar (contrariamente ao que os seus inimigos pretendiam, apresentando-a como uma doutrina de morte e destruição).

  Mas a evolução do mundo não está fechada. A última parte do espírito cósmico deve erguer-se na direção do espírito universal; somente então a harmonia será restabelecida e o mundo terá encontrado o seu acabamento, graças à instauração de um escalonamento normal: espírito, alma, corpo. Trata-se de uma compenetração recíproca, do mesmo modo que o corpo, a alma e o espírito do homem concorrem para uma unidade orgânica. A obra de salvação é a instrução das criaturas sobre a verdadeira natureza, de toda a criação, tal como foi desejada por Deus, mas que não pôde terminar.

  Uma vez mais é o conhecimento, a gnôsis, que deve salvar o homem, não uma fé cega.

  Todo o pecado do homem é o seu desejo que o conduz a pretender transgredir a própria natureza. A aspiração contra a natureza, assim como a ascese pura e o desejo de franquear os limites estabelecidos ao homem pela natureza e pela vontade concordante de Deus, toda a aspiração deste gênero lançam o homem num sofrimento sempre renovado.

  Qualquer desejo irrealizável deve ser portando reprimido pela razão, e, especialmente, os desejos sexuais: ao menos pela elite, dado que o instinto genético representa a função central do homem. Basilides, seguido por Isidoro, considera o amor um desejo não moral, natural mas não necessário, que retira o homem de seu destino mais nobre; para eles a natureza e a moralidade consistem portanto em satisfazer o instinto genético, excluindo a atitude amorosa. Basilides encontra em Platão apoio para esta tese. A propósito da transfiguração, o Timeu nomeia, entre os impulsos irracionais que o homem deve vencer para escapar do ciclo de nascença, o amor confundido de prazer e sofrimento.

  A ótica basilidiana concorda nisto com o poeta e filósofo alemão Richard Dehmel, assim como com o místico mestre Eckhart (em Le Mythe du XX siècle, Rosenberg não poupa elogios ao místico renano e compreende-se porquê...).

  Para Basilides houve uma queda descendente do germe seguida de uma evolução ascendente.

  Esta filosofia assemelha-se em muitos pontos ao paganismo de que os gnósticos não recusam o fundo da sabedoria. O nome desse deus é igual ao Mitra dos pagãos; de fato, o nome de Abraxas, que significa deus, adicionado aos valores numéricos a cada letra da palavra, dá o número de dias do ano, ou seja, o número de rotações da Terra à volta do Sol. Ora, a palavra “Mitra”, totaliza o mesmo valor numérico. O Sol é Hélios, e Mitras Abraxas é o arconte que abraça nele, como única unidade, o conjunto do círculo solar. Mitras e Hélios estão em relação como pai e filho. Mitras é o grande deus; Hélios é o seu logos, graças ao qual ele se desenvolve, cria um mundo e aí desempenha o papel de medianeiro entre o homem e Deus, tal como o testemunha a liturgia de Mitra e o discurso do imperador Juliano sobre Hélios rei.

  Finalmente, a metafísica de Basilides é um panteísmo muito elaborado, herdeiro da filosofia grega, resultante de um sistema inteiramente original.

  Estes princípios foram mais tarde retomados e Goethe que era um iniciado, serviu-se da imagem gnóstica desenvolvida por Basilides, dos mundos intermediários separando o homem de seu princípio que é Deus. É a “multidão bem conhecida que se alastra como a tempestade à volta da vasta atmosfera, e que de todos os lados prepara o homem para uma infinidade de perigos. O bando dos espíritos vindos do Norte excita contra vós línguas em forma de tridente. O que vem do Este alimenta-se sugando os vossos pulmões. São os desertos do Sul que os enviam; eles juntam chama sobre chama próximo da vossa cabeça; e o Oeste vomita uma turba que primeiro vos refresca e acaba por devorar vossos campos e searas. Sempre prontos a causar prejuízos voluntariamente escutam o vosso apelo e obedecem-vos mesmo, para melhor vos enganarem; anunciam-se como enviados do céu, e quando mentem é com uma voz angélica” (Fausto, de Goethe).

  Como Hildegard, Goethe bebe na mesma fonte comum: a Weltanschauung gnóstica, na qual toda a entidade que se erga entre Deus e o homem – anjos maus, espíritos dos astros, ventos, etc. – possui uma grande importância. Deus só de fora pode intervir no cosmo, enviando o pensamento de Deus, o Logos, que trará o conhecimento aos homens. O homem não poderá encontrar a via, pelo simples fato de ele possuir em si próprio o mundo inteiro: é um microcosmos no seio de um macrocosmo; é composto de matéria. Mas contém igualmente o Logos, o espírito divino que reina sobre as regiões superiores do cosmo. Da Terra, o homem eleva-se pelos seus esforços até à Lua atravessando o reino hostil dos demônios – a camada ionosférica que reenvia as ondas verdes na direção da Terra. Assim, a epopeia moderna dos cosmonautas reata com a ciência a visão gnóstica da evolução. Armstrong, o chefe da expedição lunar, é um crente, e seus pensamentos, no decurso da viagem astral, foram para Deus.

  Em face do perigo que representa esta insurgência, particularmente sensível em Basilides, do neopaganismo, a Igreja reage com brutalidade, e no Concílio de Niceia, em 325, a gnose nas suas diversas escolas foi condenada em bloco. Como Leisegang sublinha, a gnose pertence à atmosfera espiritual grega: é a Antiguidade e o seu pensamento livre que os bispos quiseram destruir. Oriundos da filosofia helênica, os gnósticos negavam a origem revestindo a sua doutrina de vestes orientais segundo um uso praticado desde sempre. A ciência moderna inverteu o problema procurando as motivações principais do gnosticismo nas religiões orientais. O padre Barbier, especialista em estudos das sociedades secretas e da sua influência no seio da Igreja, demonstra ter compreendido bem o fenômeno gnóstico, quando escreve: “O papel da Igreja Gnóstica é o de pregar uma doutrina que é a da raça humana superior. Que não foi corrompida pelas ideias das raças semitas, e que concorda fielmente com o ensinamento do Cristo salvador”. (E. Barbier, Les Influences maçoniques dans l’Eglise, p.99).

  Esta opinião sobre o neognosticismo enquadra-se perfeitamente nas linhas temáticas do nosso assunto: aparecida no século II da nossa era, a gnose cristã foi proibida, como as escolas neoplatônicas, mas reencontra nos séculos XII e XIII a sua mais bela expressão no catarismo. De novo destruído, o neognosticismo devia “emergir” no fim do século XIX sob o rótulo de ciência mas em oposição com “o progresso científico”. O laço entre esta ressurreição e o nazismo é absolutamente certo.

  Mas não é esse o nosso propósito no presente capítulo. Se a gnose conseguiu desenvolver-se e perpetuar-se como um rio subterrâneo, era porque existiam e existem ainda (que se não duvide) “centrais”, templos onde o saber é conservado e donde as ordens são lançadas. É a essa pesquisa histórica que pretendemos conduzir o leitor.

Fonte: Hitler e as Religiões da Suástica – Jean-Michel Angebert
Bertrand Editora 
 
                                                                              Rayom Ra
 
 
 

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