O Sol vinha aquecer os seus corpos. Dentro em pouco a cidade
estaria acordada e todos os pobres se descobririam novamente órfãos. Um vento
suavizara em brisa e a brisa parecia abençoá-los. Já ganhavam o cenário das
pradarias, das plantações. O monge assobiava e mais adiante murmurava um
cântico. Roubard caminhava taciturno como nos primeiros tempos. Estranhamente
repudiava a decisão. Não entendia que caminho seria esse, embora o caminhasse. Inquiria-se
sobre esta perseguida felicidade. Vira dramas, dores e misérias. Lutara com
denodo para amenizá-los. Aplicara-se; tornara-se discípulo de um monge, ao
mesmo tempo seu confidente. Tudo fizera ao seu alcance, mas o caminho nada
ainda acrescentara-lhe. Ao contrário, trouxera-lhe de recompensa outra profunda
dor; para esta não havia agora remédios ou lenitivos!
Como num filme lento a
cores os cenários iam passando. Aqui e ali flores silvestres se ofereciam em
buquês naturais. Irradiavam vida, coloriam-se pelo Sol! Adiante, eram os altos
e imponentes bambuzais. Tocavam-se lá em cima, produziam curiosas formações de
arcos. E as nódoas solares e os borrões das sombras escorregavam sobre os
corpos dos caminhantes.
Irmão Antônio não mais
solfejava. Ia altivamente. Os passos largos e o corpo forte traziam
maior vigor aos cenários. O vento quando vinha tocar-lhe a testa e aos ruivos
cabelos encaracolados, parecia querer refrescar-lhe a têmpera, abrandar uma
ardência, amansar uma vontade férrea. A natureza provocava-o; ele se impunha;
ela o respeitava; ele a transformava!
Ao contrário do monge
Roubard era presa fácil. Seu próprio mundo o encerrava. Não percebia o clangor
inaudível ou a sussurrante voz inimaginável. Não desafiava, não detinha a
presença do intuitivo: vivia o óbvio, o tangível, o factual. Era de alma ainda
atordoada. A dor e o sofrimento o polarizavam. Mas por obra do
destino ali estava. Trazia nas mãos um tesouro e no ventre uma fogueira!
Adiante viram um
pontilhão sobre um riacho. Atravessaram-no indo procurar um local aprazível.
Sentaram-se, molharam os pés, a cabeça, e comeram. Roubard contou ao monge que
enterrara um dobrão no lado de fora do galpão. O monge sorriu e agradeceu-lhe.
Um ônibus velho parou e
o motorista os convidou. Prosseguiram viagem até certo trecho e por mais dois
dias viajaram a pé. Descansavam, pediam pousada e partiam cedo. No terceiro dia
aproximaram-se de outra cidade. Vinham notando que a região era produtiva. A
terra generosamente frutificava. Os cereais destacavam-se em maior escala.
Uma onda de vozes,
gritos e estampidos os fez de repente atentar. Súbito, um jipe carregado de
lavradores quase os atropela. Empunham foices, enxadas e armas de fogo. Surge
um caminhão com outros homens do campo. Eles gritam, cerram os punhos, clamam
por vingança. Um trem apita, vem chegando. Irmão Antônio e Roubard, curiosos,
aceleram os passos alcançando à cidade. A anarquia é geral. De um lado posicionam-se
os lavradores, de outro o exército. Lojas estão saqueadas, as vitrines em pedaços. Há carros
tombados, incendiados. Há sangue, gente morta, bombas explodindo, fumaça, uma
verdadeira guerra!
Chegam reforços do lado
dos lavradores; mas muito mais do lado do exército que o trem os traz. A luta
prossegue encarniçada. Levantam barricadas, novas mortes acontecem, os
lavradores debandam; muitos são seguros pelos homens do exército, espancados e
jogados nos vagões. A maioria consegue
fugir com tiros às costas; alguns ainda caem atingidos. O monge e Roubard
escondem-se à distância, temendo ser confundidos.
Quando os ânimos
serenam, o monge corre para socorrer os feridos. Roubard o segue. Atendem
lavradores e soldados. Um oficial os vê, inquiri-os; eles explicam que estavam
de passagem e ele os permite ajudar. Os feridos gravemente são removidos para o
hospital municipal; os mortos levados para serem enterrados. O trem parte
carregando os presos, a gente ferida e os soldados mortos. O exército passa a patrulhar
ruas e estradas, vem instalar-se pelas praças, montar tendas! O monge e Roubard
ali permanecem e tomam conhecimento de uma versão da história.
Os dias se passam e a
situação se tranquiliza. O monge e Roubard conseguem pousada no fundo de um entreposto.
Pilhas de batatas mal cheirosas fazem-lhes companhia. As mulheres trazem
comida, viram-nos ajudar aos feridos e contam-lhes a outra versão da história.
Ao final, ambos concluem que os homens do campo lutavam contra a exploração de
poderosos latifundiários e comerciantes atravessadores. Já havia tido lutas
anteriores entre ambos os lados. Como nada se resolvesse, e para não verem a
cidade completamente saqueada e incendiada, as autoridades policiais pediram ajuda
ao exército. O exército demorou a chegar e não conseguiu simplesmente conter os
assaltos e invasões. O movimento revoltoso organizara-se com reforços de outros
núcleos de trabalhadores, tocaiara-se na própria cidade e uma grande luta então
fora deflagrada.
O monge e Roubard, de
comum acordo, iniciam um trabalho junto aos camponeses. Existe ainda revolta em
muitos corações, e pobreza. Logo conseguem angariar a confiança daquela gente.
O monge pratica a vocação sacerdotal, reza doentes, realiza curas, mas sem o
mesmo labor diário de antes. Não desejando prender-se unicamente a isso resolve
distribuir melhor suas atividades na semana. Roubard procura fazer o melhor. O
tempo vai passando, porém a situação entre as classes não melhora. Roubard e o
monge não se envolvem: unicamente trabalham. Tornam-se conhecidos por toda a
região. Moram num casebre à margem de um sítio e gente de todos os lugares vem
visitá-los. Ali eles estão bem e uma paz temporária os abençoa.
Porém, entre os homens
do lugar essa paz não existe. Novos conflitos vêm à tona. Os líderes dos
lavradores revoltam-se, fazem comícios, ameaçam. Juntam-se a eles novamente
homens de outros cantos, dispostos a lutar, cansados de reivindicar. São
lavradores de pequenas cidades e vilas vizinhas que também apoiam, reivindicam,
se rebelam. Torna-se iminente o perigo de invasões, de quebra-quebra, de queimas
de plantações. Há inicios de negociações, desacordos, desafios. Fazendeiros
reúnem-se, armam-se, contratam jagunços. Chegam notícias de mortes; a situação
torna-se cada dia mais tensa!
- Irmão Antônio –
começou Roubard – passam-se sete anos desde que aqui chegamos. Esta noite tive
um sonho. Vi-me retomando o caminho, deixando para trás este lugar turbulento.
Não estou certo sobre a profecia do sonho, pois há tempos venho pensando em novamente
partir. Seria verdadeira a mensagem ou simplesmente uma precipitação de meus
imperfeitos desejos?
- Não posso
responder-lhe de maneira objetiva, caro Roubard. Não tive visões a respeito.
Mas sinto-me igualmente inquieto como você. Se assim é partamos, não acha?
Roubard acordou no meio da noite. O monge
dormia e ele assim o deixou. Ao abrir a porta o jorro argênteo esparramou-se em
facho pelo chão. Não sabia por que aquela insônia, aquela vontade de andar e
percorreu os arredores notando que pela claridade do luar conseguiria até
encontrar uma moeda no chão. Sim, era isso! Correu em busca de uma escavadeira
jogando-a sobre um ombro e saiu por um caminho. Andou quase um quilometro sem
rumo definido. Uma vontade repentina tomou-o e lançou-se temerariamente mato
adentro. Pensava pisar numa cobra venenosa, ver-se diante de uma jaguatirica,
um lobo do mato. Estava desarmado, tinha somente a escavadeira. Todavia,
continuou. Adiante cortou a estrada principal em diagonal e prosseguiu por
outro caminho.
O ar estava leve.
Somente com muita suavidade a brisa vinha jogar com a copa de uma árvore, com a
folhagem de um arbusto ou com os compridos caules dos trigais. Tão leve como o
ar e a brisa macia, um calor se espalhava em seu peito e uma sensação nervosa
percorria-lhe todo o corpo. Tudo suave, estimulante, quase irreal. A luz do
astro celeste infundia-se em si; sentia penetrá-lo como num conto de magia.
Isto vinha criar-lhe um novo ânimo, impor uma coragem ante o desconhecido. Ele
caminhava resoluto, aspirava o cheiro do mato, ouvia o ruflar de asas de uma
coruja, percebia o quebrado e rasante voo de um morcego. Mas nada realmente o
assustava e ele simplesmente prosseguia.
Adiante, formas escuras
das árvores assomavam figuras fantasmagóricas, mas Roubard não se permitia
imaginá-las assim. Olhava-as com naturalidade; eram somente formas. De repente
parou. Chegara a um lugar descampado rodeado unicamente por touceiras e
pequenos arbustos. Sentiu vontade de cavar e cavou exatamente ali. Após um
tempo descansou. Levantou a camisa e desatou o nó da algibeira, retirando um
dobrão!
A moeda ofuscava-se sob
os raios lunares, mas não totalmente. Um místico conúbio ali se realizava.
Roubard, oficiante deste cerimonial, apertou a moeda na palma da mão direita,
repetindo o gesto da primeira vez, transferindo-lhe calor e emoção. Seu
pensamento foi encontrar o rosto redondo e plácido de irmão Antônio, como se,
invisivelmente, ele ali acompanhasse a todos os seus movimentos. Decidido,
arremessou a moeda para dentro do buraco murmurando palavras de bons augúrios.
Este supremo ato, para o qual todos os anteriores contribuíram em incidental sequência,
precedeu ainda a um desfecho significativo, e um frêmito tomou Roubard
aliviando-o de nova emoção mal contida. Ele tapou o buraco, disfarçou-o com
touceiras de capim arrancadas nas imediações e preparou-se para voltar.
Súbito, uma luz
penetrante varou a noite. Um poderoso farol surgiu ao longe jorrando fachos em
suaves e medidos ziguezagues. Ele aguardou e logo ouviu o distante ruído da
máquina. Viajor noturno, o trem vinha chegando. Minutos depois, em reduzida
marcha, passava a poucos metros de Roubard apitando e se anunciando.
De novo se punham a
caminho. Roubard, desta feita, não carregava o ingente peso da dor: ia com
naturalidade. Cabelos e barba tinham quase encanecido e o rosto vincara-se
mais. Entretanto, algo começava a crescer em si. Invisível atmosfera
permeava-o; um ar de simpatia e atração configurava-lhe certa e natural altivez,
embora nada disso ele soubesse perceber.
Irmão Antônio, mais
avançado em idade, curvava-se ligeiramente. Seus passos, embora ainda largos e
cadenciados como a marcar o compasso de um ritmo quase sempre constante, não
obstante arrastavam-se algumas vezes, mostrando diferença de outrora. Segurava
um cajado, rustica e ligeiramente torneado por suas próprias mãos, no qual se
apoiava com algo de coreografia de um velho e experiente ator. O semblante não
envelhecera tanto. Os ruivos cabelos sim, e como em Roubard, vinham tomar
conhecimento dos anos. Eram ainda visivelmente crespos, porém já mesclados de
branco.
- Sabe irmão Antônio –
começou Roubard – nestes últimos sete anos muito me aconteceu. Nos primeiros
meses, preso ainda àquela paixão que me corroía, não conseguia atinar com o verdadeiro
valor das coisas. Tudo me era inútil, soando-me como se tocasse a vida sem
verdadeiramente senti-la. O amargor trazido em meu coração provocava rudeza em
meus gestos e tudo eu fazia desejando unicamente gastar-me. Tomava as
obrigações como quem toma uma anestesia a fim de poder suportar uma incisão que
lhe rasga a carne ou para a extração de um dente que o tortura. Não sei bem a
que altura de nossas obrigações com o povo desse lugar o torpor foi passando
sem que notasse esse efeito. Mas conseguia observar que, de pouco em pouco,
minhas atitudes mudavam. Por uma graça ou por um trabalho realizado, uma
estranha sensação viria mais tarde tomar-me, parecendo anunciar-me uma nova
época, novos tempos. Ficava a imaginar o que seria: um mensageiro do céu a revelar-me
anos de felicidade? Um despertar de poderes como os têm você?
Entrementes, algo mais se modificou em mim e
certa trégua veio acontecer em minhas inconstâncias. Entretanto, quando a paz
emocional queria instalar-se em definitivo, um grito proposital vinha feri-la e
espantá-la. Ora uma criança doente chorava diante de mim; uma mulher
desesperada agarrava-se a meus braços, ou um lavrador confessava-me seus dramas
íntimos. Isto me comovia, fazendo-me por vezes derramar lágrimas. Um sofrimento
que não era meu sacudia-me não permitindo ao meu próprio eu ausentar-se. Em
outras palavras: o processo de autoconhecimento que em mim se instalara parecia
querer se resguardar, manifestar-se num futuro mais propício. O momento era de
atrelar-me ao mundo, de adotar atitudes solidárias. Não obstante, o pensamento
voltava a me pertencer e não evocava mais a triste recordação. Os ecos da
paixão, antes poderosos e retumbantes, se enfraqueciam e somente por uma
associação de ideias, em momentos de divagação, voltavam à tona. Contudo, não
possuíam mais aquela antiga força insufladora de emoções; apagavam-se à dura
realidade sem nada conseguir me provocar.
Não encontrei a
felicidade, caro monge, você sabe. Talvez a sensação descrita seja uma mensagem
profética, um aviso de que a felicidade estaria a caminho, somente a caminho. O
momento, quando e onde, me é totalmente desconhecido. Não me valeram até o
instante as longas meditações, as tentativas de inserir-me no todo pela
contemplação, conforme você ensinou-me e pratica, para ao menos estender a mão
em direção dessa irreal fatalidade, essa coroação de esforços místicos, o
summus stratus de toda a peregrinação humana. Se a mensagem é corretamente
interpretada, o caminho é único nessa mesma trilha, mas os sentidos são opostos:
ela estará realmente vindo e eu estarei indo. Sou infeliz ainda, irmão Antônio,
mas não tanto!
Irmão Antônio pôs a mão
no ombro daquele homem ao mesmo tempo amigo e discípulo, e falou:
- Alegra-me ouvir isto,
Roubard. Os anos para alguns se arrastam, para outros voam como uma máquina
cruzando o céu. Em você o peso começa a aliviar-se, não em termos de corpo
evidentemente, mas de alma terrena. Você não o sente mais como um homem
angustiado e martirizado – não agora. A balança alteia-se e abaixa-se, e o
fiel, você próprio, a controla e a ajusta. Existe ainda amargura em sua alma,
sabemos disto, porém suportável; há também ilusões que ao devido tempo estarão
descartadas. Tem razão, Roubard, a felicidade é uma questão de tempo e ele
preside à solução de nossos mais intrincados enigmas. Ela vem vindo, chegará um
dia, haverá de chegar!
Aproximaram-se de um rio
largo e navegável. Havia ali um barco a motor e um barqueiro. Roubard olhou
para o monge e ambos concordaram com a inequívoca sugestão. Ao conversarem com
o homem souberam existir rio abaixo uma vila, o ponto mais próximo de
atracação. Tomar-lhes-ia o dia inteiro se não acontecesse forte chuva ou
qualquer outro imprevisto. Como ambos possuíssem algum dinheiro, economizado de
uma ou de outra maneira, conseguiram pagar as passagens. O barco tinha uma
pequena cabine e um toldo encerado; ali, com certa proteção, poderiam descansar
ou dormir.
Ao cabo do tempo
finalmente desembarcaram. Seus corpos doíam pelo desconforto, mostrando marcas
de mordidas de mosquitos. Pisaram a relva macia um tanto úmida
espreguiçando-se. Havia em meio ao cansaço e monotonia da viagem a quase
alegria de estarem novamente em terra firme sem a necessidade de retornar ao
barco, como nas paradas realizadas durante o percurso. O barqueiro amarrou o
barco e veio acompanhá-los até a vila em busca de passageiros.
Era um lugar pobre sem
ser miserável. O povo olhava-os com curiosidade. Ao barqueiro eles já
conheciam. Um rápido comentário percorreu todos os pontos de conversa. Logo
alguém suspeitou que fossem dois missionários. Estariam chegando para edificar
uma igreja. Algumas mulheres se apresentaram, beijando-lhes as mãos. Roubard
não resistia, já se acostumara. O monge explicava-lhes que embora fosse um
sacerdote não construiriam igreja alguma. Pretendiam ficar ali, talvez para
auxiliá-los noutras coisas. O povo não se convencia.
Pararam diante de uma
casa velha e abandonada. O barqueiro prosseguiu. O monge perguntou àqueles que
os vinham seguindo o que acontecera com as pessoas que ali tinham morado. Eles
explicaram-lhe que havia muitos anos esse lugar fora uma escola, mas a
professora morrera de pneumonia e ninguém mais ensinara. Somente meia dúzia de
pessoas por aqui sabia ler e escrever.
- Então podemos nos
instalar aqui até decidirmos o que fazer?
- Sim, senhor, padre,
mas vocês podem dormir em nossas casas. Onde dormem cinco, dormem sete! -
falou-lhes um dos homens reunidos em torno dos visitantes. O monge e Roubard,
apesar dos convites, insistiram em ali permanecer.
Havia um funcionário da arrecadação municipal
sendo ao mesmo tempo conselheiro do povo. Tudo no lugar era pelo mínimo quer se
tratassem das obras públicas ou de impostos, e ele veio encontrá-los na
abandonada escola, oferecendo-lhes melhores acomodações. Tanto insistiu que o
monge e Roubard acabaram por aceitar, indo para sua casa, ficando no quarto de
hóspedes.
Pela manhã, convidou-os
a conhecer a vila e ao povo em geral. Sendo homens da cidade seriam motivo de
honra para o lugar e os levou numa charrete puxada por dois cavalos. Viram,
então, de perto, como vivia aquela gente e as condições rudimentares de sua
agricultura – completamente obsoleta e quase caótica. Mas o pequeno comércio
resistia às necessidades, apesar do desinteresse por sua sorte.
O povo, apesar de todas
as limitações, era uma gente jovial, amável e de boa natureza. A rudeza nos
gestos e no falar devia-se quase inteiramente a uma carência de educação: a seu
modo eram pessoas hospitaleiras. No entanto, o monge pressentia que novos
métodos, adequadas técnicas de agricultura, e uma educação escolar, lhes fariam
muito bem. Não seria tarefa fácil por que o espírito humano não larga com
facilidade seu atavismo, a idiossincrasia. Isso, longe de desalentá-lo,
estimulava-o. Além do mais, tinha Roubard, homem bafejado por aquilo a que
chamavam de sorte. Quem sabe – continuava a imaginar – com jeito conseguisse
desviar Roubard da pregação, deixando-a mais para o futuro, recolocando-o
justamente nesta sua vocação de atrair os bons eflúvios do progresso material?
Com sorte, acentuava ainda, coadunariam três trabalhos com maior vigor: a
educação, a agricultura e o comércio, anexando ao povo novas energias. Assim
imaginava.
Conversou com Roubard
propondo-lhe trabalharem desde logo em dois campos diferentes. Roubard
reconstruiria a escola, ensinando objetivamente tudo que pudesse e o que de
fato eles necessitassem. Ele, o monge, buscaria convencê-los a colocar em
prática os melhores métodos da plantação, cultivo e colheita que aprendera na
vivência com os homens do campo. Havendo bons resultados, forçariam o progresso
em todas as áreas e direções, o quanto possível.
Não houve qualquer
resistência do funcionário da arrecadação diante das ideias, pelo contrário,
aplaudiu-as como se fossem suas! Uma campanha foi feita junto ao povo, para
cujo interesse o nome do funcionário aparecia sempre em primeiro lugar, logo se
iniciando a reconstrução da escola. O funcionário orientava adultos e crianças
a fim de que fossem aprender com o professor Roubard. Seria bom para a
comunidade, para a vila. Aproveitava
para informar ao povo, que o monge se reuniria com lavradores e donos de sítios
a fim de expor-lhes suas ideias e planos para uma nova época na agricultura.
Era pensamento seu – dizia ainda o funcionário referindo-se a si próprio – que
houvesse maior progresso da vila, pois ela ocupava os últimos lugares na
arrecadação do município. Precisavam mudar aquela situação, serem notados no
cenário político, evoluírem, seria bom para todos, para as futuras gerações.
Passado um tempo a
escola reabriu começando a ser frequentada por algumas crianças e pouquíssimos
adultos. Era somente uma turma. Em relação às ideias do monge, não houvera
qualquer interesse, nem reuniões. Para não ficar totalmente alheio ele foi
visitar os produtores e conversar com cada um deles.
- Os meios para
trabalhar a terra continuarão os mesmos por enquanto, explicava-lhes.
Entretanto, plantaremos maiores quantidades, negociaremos. – Eles argumentavam
que as vilas vizinhas, ou cidades, eram distantes e de todas as formas
produziam para seus próprios sustentos. – Haverá coisas que não plantam ou a
produção seja insuficiente necessitando importar; ademais, há a estrada de
ferro. Vocês venderão para outras cidades, ganharão dinheiro, comprarão
equipamentos modernos!
Tudo inútil havia
realmente forte resistência a novos métodos e depois de repetidas tentativas o
monge finalmente desistiu. Não se saíra bem naquele papel. Isso talvez coubesse
melhor a Roubard!
Como alternativa, uniu-se
a ele na escola, passando a assisti-lo. Mais tarde, viriam os jovens. Estes se
interessavam de fato e aprendiam tudo mais rápido. Uma vez por ano os dois
professores partiam para outras cidades em busca de material didático. Traziam
livros, cadernos e acessórios para o ensino procurando sempre modernizar o que
faziam.
Alguns anos consumiram
nesse labor, mas não muitos. O cansaço ou alguma coisa já conhecida de outrora
viria novamente encontrá-los. Decididos a não se deterem por mais tempo,
partiriam pela madrugada sem nada avisar. Haviam ganho dois burros para se
locomoverem pelos lugares distantes e agrestes da região, nas visitas que
faziam para ensinar ou auxiliar as pessoas, e resolveram levá-los. Desta feita,
foi Roubard quem julgou tomar a decisão e sem excitação ou especial motivação
mística cavou no fundo da escola, com ajuda de Irmão Antônio. Antes de jogar o
último dobrão dentro do buraco, realizou o pequeno ritual de aquecimento da
moeda na palma da mão, pronunciando as palavras de bons augúrios.
Ao romper do dia já
estavam longe. Iam pelo mato, rio abaixo. Paravam muitas vezes para descansar.
Não aguentavam mais as agruras de uma jornada como aquela com a mesma
disposição de outrora. Estavam quase velhos, precisavam cuidar-se. Por dois
dias viajaram no lombo dos animais, dormindo sob árvores, armando barracas e
fazendo fogueiras. Conseguiam pescar e comer peixe frito. Ao final do terceiro
dia cruzaram uma ponte; adiante tomaram uma trilha desconhecida embrenhando-se
mais ainda mato adentro, deixando o rio para trás. Pouco andaram logo
acampando. Dormiram mais uma noite sob cricridos de grilos, coaxares de sapos,
ou piares de corujas. Ao crepúsculo de um novo dia levantaram-se, mas não foram
muito longe. A poucos metros dali viram um casebre de pau-a-pique com telhas de
barro cozido. Curiosos, aproximaram-se e chamaram. Ninguém veio atendê-los,
eles abriram a porta: estava abandonado!
Percorreram o quintal
notando a existência de um galinheiro vazio; mais ao longe viram um pequeno
curral de porcos, também vazio. Um córrego vinha cortar a terra por entre
capins e matos. Ao fundo, bem mais distante, dois pequenos morros impunham-se
como duas colinas gêmeas. Em derredor, se mostrava um extenso campo de
agricultura semi trabalhado. Havia por ali uma horta com hortaliças e verduras;
havia aipim, abóbora, pés de milho e frutas, todos carentes de cuidados pelo
abandono. Um cacarejar chamou-lhes a atenção e viram uma galinha vermelha sair
do mato, acompanhada de meia dúzia de pintos. Eles riram e sentaram-se.
Ficariam por ali o quanto desse, até que o dono voltasse. O dono não voltou,
eles foram ficando. Pretenderam modificar o panorama do lugar, dar melhor
produtividade à terra semeando-a, mas não tinham ferramentas nem sementes.
Um viajante passou
fortuitamente pelo lugar: era um mestiço forte. Ao vê-los aproximou-se.
Perguntado acerca do dono do lugar não soube responder, era a primeira vez que
tomava esse caminho. Os dois não se identificaram, dizendo somente terem
chegado para morar e Roubard teve uma idéia. Disse estarem a enfrentar imensas
e inesperadas dificuldades e procurou barganhar. O homem lhes traria uma lista
de coisas e em troca receberia seu burro de cargas. Os olhos do mestiço
brilharam e entrou para discutir a barganha.
Com as ferramentas que
conseguiram e demais coisas que as acompanharam, principalmente sementes, uma
nova fase iniciou-se naquele solitário lugar. Aos poucos iam modificando o
antigo cenário. A horta crescia, o verde se esparramava. O campo de agricultura
também limpo em grande área, brotava belas e saudáveis espigas. O galinheiro
fora reconstruído, possuíam agora galinhas e ovos.
O mestiço voltou e o
monge ofereceu-lhe o seu burro. De novo barganharam. Equipavam-se uma vez mais
de necessários utensílios, conseguindo estabelecer-se com certo conforto. Por
três vezes mais, ao longo de dois anos, o mestiço retornou trazendo-lhes
coisas, recebendo o dinheiro que possuíam. Vinha sempre remando e atracava mais
abaixo na grande volta do rio, há meia hora dali. Quando o dinheiro acabou o
mestiço não voltou mais.
Suas vidas decorriam
agora com poucas nuanças. Quando não estavam a cuidar das plantações, ou a
fazer reparos na casa, meditavam ou descansavam. Pouco conversavam, somente o
essencial; tinham se tornado autênticos eremitas!
A ação do tempo fixara-lhes
definitivas e indeléveis marcas. Roubard não possuía mais um único fio negro em
sua barba e cabeleira. A testa e todo o rosto sulcava-se profundamente. O monge
perdera os cabelos e também ganhara rugas. Seus corpos dobravam-se ante o peso
dos anos. Com dificuldade se locomoviam. Muitas vezes adoeciam e procuravam
tratar-se com ervas e plantas. Por grande sorte, ou pela vida natural que
levavam, não tinham contraído nenhuma doença grave ou incurável. No entanto, já
não podiam dizer-se completamente esquecidos do mundo, pois outras pessoas que
por ali passavam os chamavam a fim de pedir água, algum alimento ou mesmo
entravam para descansar. O mestiço tinha espalhado que no casebre moravam dois
homens bons que não desejavam sair de lá para nada.
Certa ocasião, um homem
resolveu procurá-los. Tinha uma dor de cabeça incurável. Soubera anos atrás na
cidade por onde passara que um padre milagroso tinha morado ali perto num sitio
de um lavrador. Fizera muitas curas e desaparecera de repente com seu auxiliar
sem deixar vestígios. Por instinto ou intuição suspeitava de que seriam as
mesmas pessoas de quem falara o mestiço.
Ao saber de ambos saiu a
procurá-los, explicando ao monge o motivo de sua vinda, implorando que o
curasse. Irmão Antônio avaliou o seu problema dizendo-lhe que um espírito
doente o perseguia, estando colado a ele. O homem pediu-lhe para afastá-lo de
si. Irmão Antônio mandou-o aguardar saindo pelas redondezas, voltando ao cabo
de meia hora com ramos de plantas e uma braçada de diversos galhos verdes.
Ordenou-lhe que se despisse completamente e o homem sequer relutou.
Estando completamente
nu, irmão Antônio sapecou-lhe as plantas por todo o corpo. Conforme ia batendo
grunhia, resmungava ou dava ordens ao espírito. Depois, impôs as mãos à cabeça
do perseguido, rezou e fez o sinal da cruz diversas vezes. Finalmente, com
dedos unidos bateu-lhe três vezes no coração e três na testa, afirmando ter
arrancado o espírito obsessor que não mais o perturbaria. Mandou-lhe – ao
chegar a casa – que ateasse fogo nessa roupa que vestia e nas demais que
possuísse, jogando as cinzas no rio ou num cemitério e comprasse novas. O homem
vestiu-se, beijou-lhe as mãos e foi embora.
Duas vezes ao ano, por
alguns anos, esse homem agradecido voltou, trazendo-lhes roupas, cobertores,
calçados, apetrechos, algum mantimento, sementes, às vezes até garrafas de
vinho ou licores. Irmão Antônio e Roubard aceitavam. Em ocasiões, ele dormia na
casa partindo ao amanhecer, não sem antes pedir ao monge uma reza ou uma
benção.
Certa tarde chuvosa e
fria, enquanto sentavam próximo ao fogo a fim de aquecer-se, o monge começou a
recitar qualquer coisa. A voz saía-lhe rouca e pausada. Fechara os olhos
deixando as mãos pousadas sobre os joelhos. Falava com grande dificuldade, não
somente pela idade, mas por uma razão até então não entendida por Roubard.
Passado instante, a voz foi se tornando vibrante. O ar do rosto se transformava
do inexpressivo ao jovial; a recitação, ainda vibrante, era agora acompanhada
de gestos.
Roubard, a princípio assustado, seguia com
atenção a sucessão de movimentos do companheiro. Os sons pronunciados pelo
monge enchiam aquele pequeno espaço, estremeciam o corpo de Roubard deixando-o
algo atordoado. Iam do grave ao agudo, cresciam ou decresciam, tornavam-se
fortes ou mansos, verdadeiramente mântricos!
Aos sons seguiu-se uma
invocação em linguagem desconhecida. A cabeça erguia-se, os braços abriam-se
para cima. Depois uma sussurrante prece – suave como um bálsamo ou inusitada
poesia. A prece atraiu ao ambiente uma paz que a tudo permeava. A cabeça do
monge então pendeu para adiante. Roubard levantou-se indo ampará-lo.
Manhã seguinte, gemendo
e com imensa dificuldade, Roubard arrastava o corpo inerte de irmão Antônio.
Envolveu-o num lençol branco e o depositou na cova aberta no fundo do quintal.
Fincou ali uma grande cruz de paus, desejando que significasse quão grande
tinha sido aquele homem. Depois chorou muito e soluçou.
O inverno passou e
também a primavera. Roubard, mais só do que nunca, pensava. Não tinha mais
disposição para se mexer ou trabalhar. Lembrou-se do monge. Haviam se decidido
ao mesmo tempo por viver um motivo mais forte. Encontraram-se na mesma
encruzilhada diante de um único destino. O caminho trilhado prometia levá-los
ao encontro da felicidade, daquilo que se elegia em seus pensamentos como o
cume, a coisa mais importante, a única motivação que julgavam existir para
continuar respirando. Ao invés disto que haviam encontrado? Miséria, dor,
trevas, sangue e mortes. Em verdade, a felicidade jamais houvera se
apresentado. Existiria de fato ou seria quimérica ilusão construída pelo
demônio, justamente para enganar homens sem esperanças?
Julgara-se a certa
altura da jornada menos infeliz. Adiante, viveria de emoções insulsas, jamais
da realidade. Ao experimentar certa trégua em suas íntimas lutas, atribuíra-a,
neste instante, ao próprio trabalho que o mantinha ocupado, às experiências
acumuladas. Nunca a uma possível aproximação desta mística forma de um sonho
louco! Ainda era a mesma pessoa solitária e infeliz. Afastara-se
definitivamente dos homens; tornara-se, por fim, um morto-vivo. As visões que
costumavam povoar seu mundo íntimo enquanto meditava, provaram-se também
ilusórias; eram amorfas, escorregadias, intangíveis, nada mais que isto.
Pareciam rir de sua dor, de sua tolice em tentar. Louco e
demente eis o que sempre fora. Louco e demente fora também seu companheiro de
infortúnios, um monge curioso conhecedor de fórmulas ditas mágicas, de cânticos
estranhos e técnicas de fazer coisas, tudo construído pela imaginação. As
visões quixotescas, as intuições, os sonhos de atingir o inexistente, os três
dobrões! Quantos sonhos irmão!
Cansa-me este lugar
agora que meu companheiro partiu. Vou-me embora. Adeus, irmão Antônio, adeus,
monge! Deixo-o só. Perdoe-me se não suporto mais olhar para estas coisas. A
todo instante vêm lembrar-me de minha vida, de nossas vidas. Sei que não
adianta fugir por que a natureza não deixará de enviar sua executora impiedosa
a fim de retomar aquilo que me deu emprestado para se divertir. Porém, assim
mesmo vou andando, talvez para apressar este encontro último!
E Roubard se foi. Vestia-se
como um pobre que realmente era. Levava ao ombro a bolsa de couro velha e
encoscorada, a única coisa que lhe lembrava do amigo. Ao chegar ao rio
sentou-se à margem para novamente descansar. Queria também molhar os pés,
refrescar-se. As pernas doíam-lhe, respirava com dificuldade; o calor era
forte, consumia-lhe energia.
Súbito, o ruído ritmado
e acelerado de um motor penetrou-lhe os ouvidos e viu um barco subindo. O barco
aproximava-se rapidamente, Roubard assustou-se. Quis correr, teve medo, entretanto
tropeçou, caiu e ficou estirado. O condutor do barco, moço alto e forte,
percebendo os movimentos e queda daquela pessoa, desviou seu curso para a
margem aproximando-se. Ao notar que se tratava de um pobre velho que o olhava
assustado, pulou do barco, rindo e debochando, ajudando-o a se levantar.
Roubard, mediante essa disposição, acalmou-se um pouco concatenando as palavras
com dificuldade, dizendo-lhe que pretendia ir rio acima. Depois de tanto tempo
era-lhe tão difícil falar, dialogar! O rapaz, penalizado, apoiou-o e o colocou
sobre o barco o levando.
Pouco conversavam por
que Roubard não sustentava os assuntos e mal respondia. O barqueiro assobiava e
cantava. Por todo este dia viajaram. Roubard trouxera frutas e as comia. O
rapaz ofereceu-lhe peixe frito e pão. Roubard pôde alimentar-se melhor.
Finalmente o barco veio encostando à margem. O rapaz atracou informando-lhe que
ficaria por ali. Adiante havia uma cidade; lá Roubard conseguiria outro tipo de
ajuda. Roubard, num impensado gesto, abraçou-o fortemente desejando-lhe sorte.
Era tudo estonteante! Os
carros correndo e buzinando pela estrada; casas, comércio, rádios, músicas
explosivas, restaurantes, lojas, aparelhos de todos os tipos! Roubard encolhia-se quando
ouvia o ronco mais forte do motor de um veículo; levava as mãos aos ouvidos. As
pessoas olhavam-no, caçoavam dele, de seu modo de se conduzir, das
esquisitices.
Entrara diretamente no
movimento da cidade. Via gente bem vestida, apressada. Via mais carros, mais
lojas, ouvia mais barulho por toda a parte! Meio atordoado atravessou a rua;
foi sentar-se num banco no meio da praça. Descansou e observou. Há quanto tempo
não via gente assim, cidade! Achava-se desconcertado, fora do ritmo da vida. Era
tudo tão diferente: as pessoas, as roupas, a maneira de falar, de ser! Não
entendia por que corriam tanto, da pressa! Passou as mãos nos cabelos brancos,
alisou a longa barba e virou-se para o lado a fim de acompanhar o voo solitário
de um pombo. Pelo menos esse não participava daquela confusão dos diabos, ou
não contribuía. O pombo insinuou-se entre árvores, ultrapassou-as e descreveu
um semicírculo. Roubard seguiu-o com olhos atentos: admirava seu
desprendimento, a independência do voo! Em lance calculado, o pombo imprimiu um
novo ritmo ao bater das asas, ganhou velocidade, subiu abruptamente e pousou no
telhado de um largo edifício, o maior daquela quadra.
O pombo
aquietara-se. Roubard trazia os olhos para o frontispício do prédio
deslizando-os com lentidão, lendo o que ali estava escrito. Ao término estava
tenso, mal podendo acreditar. As palavras em peças de aço brilhoso anunciavam:
“ACADEMIA ANTÔNIO-ROUBARD”.
Roubard atravessou a rua
sob buzinas, sendo quase atropelado. Estava boquiaberto. Diante do prédio releu
o título. Quantos anos teriam se passado, dez, quinze, mais ainda? Perdera a
conta, nem sabia em que ano estavam. A escola, a vila: tudo se transformara! O
incontido progresso chegara, alcançara-os. O dobrão fora o responsável, mudara
o rumo e a história do lugar. Irmão Antônio estava certo, mas o que fizera
seria bom?
Alguém o esbarrou, ele
se desequilibrou caindo sentado. Ouviu palavras de zanga, escárnio e
impropérios. Mandaram-no procurar o albergue no final da rua. Roubard estava
cansado. A emoção somava-se ao desgaste natural da viagem, da última caminhada
antinatural para ele, pela absorção da atmosfera super dinâmica e nervosa da
cidade. Foi quase se arrastando para o final da rua, encontrando o
albergue. Entrou e sentou-se no chão.
Uma mão sacudiu-o,
acordando-o. Dormira sem sentir, desfalecera de cansaço. Havia movimento, fila;
pisavam-lhe os pés, ele se levantou. Hora da comida! Entrou na fila, recebeu um prato, foi servido
indo sentar-se ante comprida mesa sobre um longo banco, ladeado por
companheiros de sorte! Tendo comido, um homem chamou-o fazendo-o entrar numa
sala. Despiram-no. Ele não esboçou a menor reação por que vira que lhe dariam
novas roupas: era tudo tão estranho, seria verdadeiro? Estenderam-lhe roupas
usadas, mas limpas: ele as vestiu. As que vestira estavam sujas, jogadas num
monte com outras. Procurou a velha bolsa. Estava a um canto para ser também
jogada fora. Ele a agarrou e saiu.
Retornou à praça; ficou
ali a contemplar a obra. Fizeram-lhe companhia, perturbaram-no; ele se levantou
saindo sem destino. Um objeto rebrilhou no chão. Era um porta-níqueis de metal
dourado. Ele o pegou e o abriu; havia notas e moedas. Recolheu-as colocando-as
no bolso, largando o porta-níqueis no chão. Adiante, tomou o primeiro ônibus
que viu parado. O ônibus saiu da cidade ingressando numa estrada. Roubard
desejava reconhecer um lugar, uma casa, a memória não ajudava. Final da viagem.
Roubard, sem saber para onde ir aguardou. Outro ônibus parou e ele o tomou. Foi
levado a lugares mais afastados do centro da cidade. Adiante, viu uma estrada
de ferro e em seguida a estação. Excitou-se, tomaria o trem, viajaria para mais
longe!
Roubard instalou-se no
banco, relaxou e dormiu. O trem sacudia; o banco era duro e desconfortável; ele
dormia e acordava. Antes do sol se levantar, Roubard estava atento à janela;
observava o panorama que aos poucos se tornava mais nítido. Viu campos de
plantios e lavouras bem tratadas. Surpreendia-se com as dimensões de cada
reserva, com a quantidade de máquinas, algumas estranhas e desconhecidas para
ele! Caminhões enfileiravam-se pelas estradas transportando homens àquela hora
da manhã, dirigindo-se para várias direções e sentidos ou circulando em torno
dos campos. A julgar pelo que via os homens estariam sendo transportados para
trabalharem na colheita.
Com efeito, adiante viu
campos e colheitas. Meia hora depois o agente anunciava a próxima cidade já
entrando em seus limites. Algo lhe despertou os sentidos, mas não identificava
exatamente o que seria. Na medida em que o trem se interiorizava, Roubard
procurava atentar para o tamanho da cidade. Seria grande, muito maior do que a
anterior de onde vinha!
Dizeres de boas vindas
indicavam o nome daquela cidade e ele finalmente lembrou-se. Excitado levantou
o vidro. Queria observar, ver o que suspeitava! À margem da estrada de ferro
viu muitos armazéns, silos e entrepostos. Ocupavam enorme área para a estocagem
dos produtos agrícolas e provavelmente dos manufaturados para embarques. Havia
movimento; entra e sai de caminhões; via homens com papéis e pranchetas à mão.
A parada foi rápida.
Logo o trem partiu. Um passageiro veio sentar-se no banco da frente. Roubard
sem conter-se o tocou ao ombro perguntando-lhe acerca da cidade, das relações
entre lavradores e comerciantes. Surpreso, o homem respondeu-lhe que há muitos
anos não tinham qualquer problema entre classes. Isto pertencera ao passado.
Pequenos e grandes proprietários agiam com normalidade: plantavam e colhiam; os
produtos eram trazidos para os armazéns das cooperativas. Havia também
fábricas, produtos para exportação. Se problemas existiam decorriam das oscilações
do próprio mercado, portanto de uma ordem natural. Os lavradores, além do mais,
tinham sindicato para representá-los, levavam suas exigências às esferas
legalmente constituídas. Negociavam, faziam suas reivindicações. Havia escolas,
hospitais, o livre culto das religiões. Nada os impedia nas relações entre
trabalho, capital e sociedade; dispunham de todos os instrumentos e instituições
necessárias, e os faziam funcionar da melhor maneira possível.
O dobrão, pensou
Roubard, o segundo deles. Havia-o enterrado próximo dali, não lhe restava a
menor dúvida, ele açoitara o mal, atraíra o progresso e o impulsionara!
O trem prosseguiu. Para
Roubard a viagem terminaria numa estação qualquer. Cansado de tanto viajar
sobre trilhos resolvera ficar. A fome incomodava, restava-lhe ainda algum
dinheiro e parou numa birosca de beira de estrada comendo pão, ovos, lingüiça
frita e tomando café com leite. Há quantos anos não tinha uma refeição dessas! Comprou
mais e acondicionou na bolsa; depois seguiu a pé. Uma chuva veio pegá-lo no
caminho, precisou andar depressa, mais do que normalmente fazia. Por sorte
encontrou uma ponte sobre pequeno rio, protegendo-se debaixo dela. Como a chuva
apertasse, ele ali permaneceu na companhia de uma velha mendiga, com quem
dividiu o alimento que trazia. A mulher soltava palavras sem nexo, de vez em
quando concatenava ideias e conversava com lógica. Mas depois de gastar seu pequeno
repertório coerente voltava a dizer tolices.
Num desses momentos de
breve lucidez, perguntou-lhe de onde ele vinha. De muito longe, de tal cidade,
respondeu Roubard. E para onde você vai? Para uma cidade onde estive há muitos
anos. E qual é o nome desta cidade? Apesar do tempo, esse registro não lhe
desaparecera da memória por que era ponto base de seu destino, de sua vida,
como lhe foram as cidades que há bem pouco deixara para trás. Assim,
informou-lhe o nome. A velha mulher, com riso, afirmou-lhe ser ali mesmo. Mas
esse não é o nome da cidade, falou Roubard desanimado, desconfiando que ela
começasse de novo a fugir da razão. Foi mudado há muitos anos, eu me lembro
sim. Foi pouco depois que meu noivo me deixou fugindo em companhia de um padre.
Nós íamos nos casar, mas ele fugiu, Roubard fugiu! Ela gargalhou e tossiu. Não
fuja, Roubard, volte! Gritou e gargalhou de novo!
Roubard levou um
tremendo choque, trazendo a mão ao coração. O sangue subiu-lhe ao rosto
asfixiando-o por segundos e nada mais enxergou. Quando isto foi passando, outra
dor mais profunda arrancou-lhe um novo pedaço da alma. O arrependimento fazia-o
pagar por aquilo que deixara em aberto no livro do destino. Ele se levantou e
ajoelhou-se diante da mendiga:
- Perdão, eu não sabia o
mal que lhe estava causando. Eu só pensava em mim!
Tomou-lhe as mãos e quis
beijá-las; ela arrancou-as com violência e gargalhou até cair de costas.
Lágrimas inundaram-lhe os olhos, descendo pela barba. A mulher
silenciara aquietando-se; unicamente os soluços de Roubard eram agora ouvidos.
Pela manhã a mendiga
ainda dormia; ele deixou-lhe todo o alimento que restara. Nada mais tinha para
dar-lhe e orou fervorosamente, pedindo que sua alma finalmente encontrasse a
paz. Saiu cautelosamente temendo despertá-la.
As pernas mal obedeciam,
o peito doía, ele arfava. Parava de trecho em trecho, respirava com dificuldade,
levava a mão ao peito e descansava. Súbita tonteira sobreveio-lhe; ele quis
agarrar-se, mas não tendo onde se apoiar caiu desfalecido.
Ao acordar estava sobre
uma cama; via soro, balão de oxigênio, enfermeiras. Quis levantar-se, não lhe
permitiram. Que aconteceu? O senhor foi encontrado desmaiado à beira da estrada
por nossa ambulância. O médico colocou-o na maca trazendo-o para o hospital. O
senhor teve um enfarto, precisa repousar. Não, eu tenho de prosseguir! Por
favor, fique quieto, senão vai piorar!
Seguraram-no,
obrigaram-no aquietar-se, deram-lhe anestésico e ele dormiu. Ao acordar
alimentou-se. Resignou-se por dois dias. Mas, à noite, enquanto na enfermaria
todos dormiam e pelo hospital a vigilância interna relaxava, ele arrancou os
tubos de soro e medicação, vestiu-se, pegou a bolsa e evadiu-se. Chegando à rua
saiu a andar pelo quarteirão. Mas se sentindo cansado buscou refúgio num horto,
encontrando uma gruta à beira de um lago nela permanecendo. Algo familiar veio
novamente mexer com sua memória, trazer-lhe recordações não definidas, agitar
com o subconsciente. Como o dia raiasse, ele voltou para as imediações do
hospital. No caminho encontrou um negro avançado em idade e perguntou-lhe
acerca daquele hospital.
O homem contou-lhe que
fora construído há muitos anos. Ele se lembrava de toda a sua história porque
era morador das redondezas. Dois missionários, um padre e um homem comum, haviam
chegado. O bairro era muito pobre, miserável mesmo, eles tinham vindo para
ajudar o povo. Construíram um galpão de madeira e à moda deles transformaram-no
em hospital e em muito mais coisas. Trabalharam com dedicação pelo povo. Mas um
dia se foram sem nada avisar abandonando o galpão. Coincidentemente, no mesmo
dia, veio um grupo de universitários, estagiários de medicina e assistentes
sociais que faziam um mapeamento das comunidades carentes, segundo um programa
de governo. De seus relatórios da miséria daquela gente, a atenção do governo
foi sendo despertada e como os jornais e a televisão passassem a se interessar,
uma comissão oficial de estudos foi enviada para definitivamente tratar do
assunto. Ao constatarem o abandono da população, fizeram planos para a
construção de um hospital, iniciando a obra no exato lugar do galpão. Demoliram
muitas casas transferindo moradores. Depois, foi a vez de outras casas na
periferia do hospital, até que finalmente quase todo o bairro veio a ser
demolido. O hospital ampliou-se, outros prédios vieram fazer parte do bairro,
segundo um projeto urbano muito bem elaborado. Com o correr dos anos o bairro
cresceu, o comércio expandiu-se, mas o hospital permaneceu atendendo
principalmente à população pobre.
O homem se foi, Roubard
sentado no meio fio sob uma árvore refletia acerca da história. Uma leve
tonteira veio cortar-lhe a reflexão; ele buscou inspirar com mais vigor, seu
corpo inteiro doía-lhe, os pés inchavam, as pernas tinham ficado endurecidas. A
tonteira foi passando, mas uma fraqueza veio instalar-se. Tinha fome, talvez a
fraqueza fosse devido a isto. Levantou a cabeça e viu dois pobres caminhando em
sua direção. Ao passarem adiante perguntou-lhes onde havia comida. No albergue
do hospital, estamos indo para lá.
Roubard os seguiu a certa distância,
estava fraco demais para acompanhá-los. No albergue comeu boa comida e saiu. Apesar
de tudo, aquela cidade não lhe causava nenhum bem, queria deixá-la o quanto
antes. Estava muito cansado, as dores não passavam, de vez em quando
sobrevinham-lhe novas tonteiras. Um gosto estranho subia-lhe pela garganta,
quase vomitava. Como não tivesse dinheiro para viajar resolveu esmolar. Sentado
na esquina com uma lata à mão recebia migalhas de dinheiro. Durante três dias
assim ficou, comia no albergue do hospital e por lá também dormia. Juntara
somente pequena e insuficiente quantia para adquirir uma passagem de ônibus. A
saúde abalava-se cada vez mais. No final deste mesmo dia, por engano ou por
desígnio, jogaram dentro da lata uma nota dobrada. Ele a retirou e alegrou-se.
Com ela poderia agora adquirir a passagem; sobraria troco para comprar comida!
No albergue deram-lhe roupas limpas, ele comeu
ali pela última vez. Problemas vieram mudar os seus planos e não pode comprar a
passagem por que não tinha documentos. Além de tudo, quem iria viajar ao lado
de um mendigo? Ele saiu da rodoviária desalentado e triste. Somente ali tinham
exigido tal coisa, desprezavam-no. Habituara-se às chacotas e ao escárnio, não
ao desprezo. Estava, porém, decidido e se pôs a caminho com todas as dores e
dificuldades. Ao deixar os limites urbanos da cidade e palmilhar a estrada,
passavam-se três dias. Ele tossia muito, descansava a todo o momento.
Roubard não aguentava
mais. Ao longe, dentre confusas imagens, viu um grande veículo imaginando que
seria outro ônibus. Quem sabe aqui lhe permitiriam viajar nele. Meteu a mão no
bolso retirando o dinheiro que possuía mostrando-o. Era um caminhão. O motorista ao vê-lo quase se lançando no
meio da estrada freiou o veículo. Roubard pediu-lhe ajuda, iria até onde seu
dinheiro pagasse. O motorista puxou-o para dentro da cabine. O caminhão
transportava carga coberta por um toldo; por várias horas viajaram. Roubard,
estafado, dormiu. O dinheiro que segurava esparramou-se sobre o banco. Ao
pararem num posto de gasolina, próximo a um restaurante, o motorista acordou-o.
Roubard, assustado, ajeitou-se. O motorista disse-lhe que ia deixá-lo ali
porque poderia comer e descansar. Roubard quis dar-lhe todo o dinheiro, mas ele
recusou e prosseguiu viagem.
Roubard piorava; as
dores por vezes aumentavam, ele seguidamente levava a mão ao peito. Comprou um
pão, tomou café e prosseguiu a caminhar. Ingressou numa estrada qualquer e
afastou-se do movimento pesado da rodovia. A estrada veio cruzar um caminho no
qual ingressou. Via casas, quintais, pequenas plantações, arvoredo. A tarde
estava agradável, a temperatura amena. Mas Roubard não tinha condições de
sentir profundamente todas essas coisas. De vez em quando via pedaços mais
distantes do céu, via nuvens brancas. Queria ver mais, desejava respirar o ar
campestre, rever pastagens, sentir o bucolismo da vida pacata. Dores profundas
e lancinantes vinham interromper esses desejos, tolher os seus passos,
trazer-lhe angústias. Ele cambaleava, levava a mão ao peito, gemia. O gosto
estranho na garganta lembrava-lhe sangue; o rosto queimava, a cabeça latejava:
assim mesmo ele prosseguia!
Uma imagem livre, sem
conexão alguma, assomou dos labirintos de sua mente: era irmão Antônio! Ele
sorria-lhe. Idiota, pensava Roubard.
Veja a que estou reduzido, ao que cheguei. De seus gloriosos e místicos sonhos
nada restaram. Os dobrões, aqueles traidores talismãs. Trouxeram esperanças
inúteis, coisas e mais coisas. Vejo agora, sinto tudo claramente. Por minhas
mãos eles escorregaram infiltrando-se na terra, no mundo dos homens, semeando o
progresso e a edificação de monumentos. Monumentos a quê? À cegueira humana, ao
orgulho das classes. Veja, Roubard, aqui há escolas, os homens aprenderão coisas,
serão doutores. Ali, Roubard, guardarão seus produtos, os alimentos; a fome e o
desconforto não os alcançarão. Aqui, Roubard, o hospital magnífico atende aos
esquecidos, aos que não têm onde cair mortos! Malditos dobrões, malditas moedas
de ouro. Enganaram-me o tempo todo, enganaram-nos seu monge cabeçudo! Parte de
minha vida carreguei-os julgando-os portadores de alguma profética verdade, da
anunciação de uma nova vida. Mas eles eram somente três moedas: a magia estava
em minhas mãos. Eu sou o culpado!
Uma dor mais forte fê-lo
cair de joelhos, gritando. Ele suportou aquilo por quase um minuto. A dor
atenuou e ele se levantou. Na mente aquele rosto ainda sorrindo. Estou indo monge, estou indo! Deu mais alguns
passos e chegou ao final daquele caminho, ali se deitando. Fechava os olhos,
via confusas imagens, deformações. Abria-os e essas coisas continuavam. Um peso
fez com que os cerrasse em definitivo: a dor agora o torturava mais e começou a
ouvir muitas vozes. Quis prestar atenção, não as entendia. Aos poucos vieram a
ser abafadas: uma só voz passou a ecoar claramente: era forte, enérgica, ele a
conhecia muito bem:
- Nós vamos encontrá-la,
Roubard, precisamos dela. Ela representa para nós a coisa mais importante; mais
do que o pão que comemos e a água que bebemos!
- Fala-me agora, monge,
recorda-me de nosso início!
Um som agudo como a vocalização de um cântico,
penetrou-lhe os ouvidos. Ouvia agora palavras estranhas entoadas como música,
como mágicos sons! Seu corpo estremeceu e convulsionou num derradeiro frêmito;
uma paz imensa e grandiosa que nunca conhecera o tomou, um sorriso de
felicidade veio rasgar seu rosto inerte e ele assim permaneceu!
Naquele lugar onde dois
caminhos vinham se juntar e prosseguir numa só estrada, acharam o seu corpo.
Removeram-no dali e o enterraram como indigente. Tiveram a idéia de fincar uma
cruz de paus entre os dois caminhos, no exato lugar onde ele terminara os seus
dias. A cruz suportou muitos anos. Os braços abertos estariam a espantar a quem
desejasse um dia iniciar semelhantes passos sem estar temperado no próprio
sofrimento. Pois para tal empreitada era requerido tacitamente o despojo de
todas as ilusões e da escravidão aos prazeres do mundo. Não fosse assim a
jornada seria vã, e os sacrifícios inúteis!
[Por Rayom Ra – Direitos Autorais 48020]
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