Os argumentos do livro Enigma Eu buscam inicialmente trazer uma visão deste mundo quando tratamos de observar os seus pares de opostos. Essas duas perenes variantes estão em nós o tempo inteiro, nem um segundo a mais nem um a menos. E a narrativa do livro traz aqueles valores em inescapáveis escalas relativas, mas agudamente crescentes em Sorman, o personagem principal. Nebulosamente em sua fase do pré-despertar, ele se encontra na correnteza do rio da vida, cujas águas rolam o tempo inteiro, sem que ele consiga sobrepor-se a elas. Em suas conjeturas adolescentes essas águas não são portadoras de qualquer sentido ou razão.
Sorman não consegue enxergar a outra margem desse rio, o que lhe causa a sensação de vagar interminavelmente sem um real propósito ou claro objetivo. Esse sentimento é muito presente no íntimo de quem como Sorman, desde muito cedo busca razões para sua própria existência em meio a tantas coisas que não lhe fazem sentido. E cada vez mais ele observa o profundo mergulho de pessoas nesse tipo de águas onde ele não consegue adentrar como elas. Por sua jovem ótica ele – ferido – vê o mundo ruidoso como um eterno giro de um eterno presente, sempre com os mesmos obscuros e repetitivos matizes. Então ele passa a conviver com um triste sentimento de exclusão que lhe vem minar a espontânea natureza de sua adolescência.
As águas, naturalmente – na simbologia esotérica – são neste caso o quantum emocional com que cada um convive em intimidade. E sem uma visão pelo menos concisa da vida, calcada por necessárias experiências materiais – positivas e negativas – é ainda impossível entender-se o sentido real e espiritual de qualquer coisa sobre a qual uma lógica se sobreponha, senão unicamente ater-se à ilusão das formas e a seus efeitos. Pois as águas interiores em seus livres e incontidos fluxos ou em perenes correntes quando elas vêm - para quem não consegue acalmá-las ou manobra-las - nublam ou afogam os significados maiores neste mundo de causas duais não discerníveis.
Em Sorman o grande obstáculo de momento é seu curto tempo na Terra onde não pôde ainda recordar ponderáveis experiências de vidas pregressas, tangenciá-las ou aquilatá-las mesmo em valores duais. Uma projeção da consciência, contudo, pressiona o lado inexperiente de sua jovem personalidade, através de atrelamentos às formas e convenções mundanas para um necessário sofrimento nesta sua fase de obscurecimento interior. Ele resiste a isso, mas não consegue escapar dessa ação.
Sua namorada consegue convencê-lo a buscar por uma realização interior num ashram que ela ouvira falar, visto ele sentir-se completamente perdido em seus valores pessoais. Assim acontece:
“- Sorman, por que lamenta tanto sua vida, ame-a! - ela recordava olhando pela janela do ônibus no trajeto de volta a casa.
- Não posso, Anita, há alguém dentro de mim conspirando – ele encostava as pontas dos dedos na fronte – não me deixa em paz, volta sempre com novas propostas.
- Por que lhe dá ouvidos, deixe-o falar, não lhe preste atenção!
- Louco, já não serei um? - pareceu não escutar uma só palavra do que por último dissera Anita.
- Não diga isso, Sorman, você não é louco!
- Quem sou então? Olho e não vejo, falo e nada digo. Quem sou, diga-me, senão um demente? De que vale uma vida assim, para que sirvo?
- Tem um coração, uma alma, isto é vida!
- Não basta um coração, as pessoas o têm; nem alma, todos possuímos uma. Isto é criação da natureza. - tê-los para sofrer não é sensato. E Deus, segundo suponho, é, sobretudo, inteligência!
- Sorman, ouça. Uma amiga visitou numa região serrana um ashram. Ele é aberto a quem deseja aprender. Há um guru que ensina - é um indiano - vive em nosso país desde jovem. Ele ensina, Sorman, vamos visitá-lo, quem sabe não será este seu esperado mestre?
Surpreendentemente - refletia Anita - apesar de seus imaturos dezoito anos, pudera convencê-lo sem esforço, logo a ele de opiniões tão concretas e inteligentemente organizadas. E partiram ao encontro de Rama.”
Vejamos agora um trecho de novo embaraçamento de valores na visão do jovem personagem, que lhe geram continuadas incompreensões e seguidos embates com sua própria consciência. Esses momentos acabam por motivar-lhe a decisão de voltar à casa paterna, após três anos no ashram. Tinha ele em seu retorno vinte e um anos.
Veja [Enigma Eu: https://arcadeouro.blogspot.com/2015/07/enigma-eu.html“Sorman andava de um lado a outro como fera enjaulada. O dia se arrastara brincando com seu sofrimento. Que fazia de sua vida? Largara ao ashram por que julgara que outro momento importante se impunha. A vida tranquila não o atraia mais. Ao lá chegar, imaginara escapar daqueles lancinantes sofrimentos, da sensação de vazio e dor. A dualidade de valores, o que se revolvia dentro de si, que indagava; este, verdadeiramente, o conduzira ao ashram em busca de adequado alimento. Mas a despeito da disciplina e do aprendizado nunca o satisfizera completamente. Lá mesmo ele tomava novas formas, aterrorizava-o; descerrava quadros ante sua sensível percepção, exigia! Vencera-o tantas vezes, outras tantas fora derrotado! Pequena trégua lhe dera desde o último dia no ashram – agora voltava com força e vigor!
De repente, estancou os passos e olhou para a janela. Estava calor, a testa suava. Na introspecção em que mergulhava, na febril ânsia de esquadrinhar o íntimo, esquecera-se de abrir a vidraça. Por momentos a ação externa do mundo não o afetara diretamente; os sentidos recolhiam-se parcialmente; o automatismo o movia. Estava acostumado a isto; durante três anos vinha praticando diariamente a concentração – dharana – um dia atingiria o samadhi, a plenitude da meditação!
Mas não era esta, exatamente, sua postura mental no momento, longe disto! Não se sentava utilizando-se dos asanas; nem se preparara convenientemente exercitando o pranayama; tão pouco procurava desligar-se do mundo externo, abstraindo-se com o prathyahara. Ao contrário, digladiava-se consigo próprio, entregava-se ao sanskâra e provocava torvelinhos na mente!
Encaminhando-se para a janela abriu a vidraça, travando-a em cima com movimentos lentos. Imediatamente a fresca aragem invadiu o quarto. Provocou oscilações na cortina e o estalar das folhas do calendário recentemente colocado na parede. Isto causou-lhe certa reação; os sentidos despertaram do entorpecimento parcial para receber a nova energia. A consciência externa estremeceu para as formas concretas e pretendeu largar as imagens mentais em que se prendia.
O ar renovado beneficiara-o, era fato, Sorman agora respirava profundamente e se refrescava. Lançou olhar ao jardim, entrevendo-o sob obscura iluminação dos holofotes sobre o belo gramado. Ficou como estava por vários minutos, olhava e observava; ao mesmo tempo sentia-se esvaziar de alguma sobrecarga emocional, sem se importar com nada subjacente. Acalmava-se naturalmente, sem outras técnicas ou artifícios.
Logo, porém, o pensamento voltava a trabalhar e recomeçava a inquirir-se: por que alterava o rumo de sua vida de maneira tão marcante que a si mesmo surpreendia? Seria algo maior, acima ainda deste exigente ser que o induzia a tomar novas decisões e mantê-las? Mas sendo, por que este algo maior não tomava conhecimento de sua luta, não interferia nas terríveis batalhas em que se engalfinhava, nas baixas que sofria e em tudo mais que passava? Nada disto parecia sensibilizá-lo. Não deixava marcas nem sensações, não se identificava. Estaria ele, Sorman, qual Arjuna, quedado e abatido? Seria exatamente assim? Mas no Kurukchetra, o campo da terrível batalha, onde Arjuna antevia sua morte e de seus queridos entes, não lhe surge Krishna, pródigo e firme, ensinando-lhe o que fazer?
Sim, lá estava ele sem qualquer ilusão, abrindo-lhe o coração, fazendo penetrar a mensagem! A Arjuna caberia aceitar e agir. Demandaria jogar por terra a todos os temores, apegos e autoestima; lançar-se à inteira sorte da batalha sem interessar-se pelo resultado final, - enfrentar a morte cara a cara! Porém, no seu caso, tomadas as devidas proporções do canto épico, das alusões e alegorias, seria também de se entender que o outro seria Krishna, que, à distância, lançava-lhe as insinuações, modelando-lhe na mente as decisões, que, depois, tomaria? Fosse ou não fosse uma coisa era certa: o legado do sangue retomava-lhe o destino, o reconduzia ao fluxo atávico, e o obrigava a seguir em frente!
Mas, estranhamente, apercebia-se do outro somente agora, justamente quando o primeiro acicatava-lhe como tantas vezes já o fizera. Por que antes nunca houvera notado esta sutil presença, este algo maior? Julgara sempre que o ameaçador ser a rugir e a corroer-lhe as entranhas fosse o único responsável a conduzi-lo às decisões tomadas. Entretanto, via agora que possivelmente não, pois se decisões tomara admitindo ser o dono único de seu destino, talvez se enganasse. O outro teria se antecipado e naquele turbilhão de emoções e pensamentos não conseguira discerni-lo, ou não pudera. Porém, hoje sim, e seria algo de satisfação, se satisfação tivesse em conhecê-lo!
Quem sabe ainda – continuava teimosamente agora andando – não seriam os dois, exatamente, os responsáveis por suas decisões. O ego é múltiplo – lembrava-se de Rama – até que se consiga atrair-lhe as partes e unificá-lo. Mas aquele que o torturava era forte, demasiadamente bem estruturado. Não adiantava tentar convencê-lo; ele jogava com tudo; incursionava a todos os meandros e labirintos da mente; dominava sobre a vontade - manipulava com os seus desejos! Então por que o levava a buscar conhecer-se? Ou tudo não seria uma imensa encenação onde este e o outro representassem dois papéis distintos e combinados estivessem? Mas existiria mesmo este outro? Ah, imaginação desvairada, deixe estar como é; por que embrenhar-se nos mistérios da mente quando dela somos serviçais? Cansado e irritado mergulhou sobre a cama, buscando apagar da memória as ambíguas propostas de enigmas tão difíceis de deslindar.”
Nesse paradigma o drama nele continuava; algumas vezes envolto por véus de enganosa sutileza.
Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com
Veja a Parte II: https://arcadeouro.blogspot.com/2022/08/o-eterno-giro-do-presente-ii.html:
Ver a Parte IV:https://arcadeouro.blogspot.com/2022/08/o-eterno-giro-do-presente-iv.html
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