domingo, 10 de junho de 2018

Spinoza

Resultado de imagem para pinturas a oleo de spinoza

A VIDA NA OBRA

  Em muitos poucos homens correspondeu a vida tão bem ao pensamento como esse. Dir-se-ia que Spinoza tivesse sido criado e posto no mundo para produzir o spinozismo, pois todo ele está na sua especulação.

  Era um judeu de Amsterdam, onde nasceu em 1632, e sua família era de origem portuguesa. Recebeu o prenome de Baruch. Seu pai achava-se à testa da pequena comunidade judaica e desde cedo o colocaram nos estudos, onde ultrapassou toda expectativa e não tardou a dar motivos de inquietação. Aprendeu a ler no texto original a Bíblia e os outros escritos hebraicos clássicos, especialmente a Mishná. Elucidava tudo com os historiadores, os filósofos e os comentadores, e bem depressa a interpretação tradicional se lhe tornou insuficiente. Por sua vez, também fez tábula rasa à sua maneira – maneira, quiçá, ainda mais radical do que a preconizada por Descartes. Recusou-se a receber o próprio Deus de outra fonte que não fosse a sua meditação.

  Seguindo por esse caminho, expunha-se à perseguição tão logo se manifestasse ou fosse descoberto, e a perseguição não faltou. Aceitou-as Spinoza com coragem. Em 1656 foi excomungado formalmente pelo conselho dos anciãos, indo então estabelecer-se no campo, em Ouderkerk, onde viveu solitário durante três anos. Transfere-se em seguida para as proximidades de Haia, e depois para Haia mesmo. A fim de garantir a sua existência material aprendera o ofício de polidor de lentes para instrumentos de ótica. Mas a sua doutrina começava a difundir-se e não faltaram protetores poderosos para ampará-lo. Pouco a pouco foi se tornando célebre. João de Witt defendeu-o contra possíveis perseguições. Leibnitz veio procura-lo, o grande Condé testemunhou por ele especial consideração. Atingido pela tuberculose, morreu muito antes da velhice, aos quarenta e cinco anos, em 1677.

  Foi a personificação de sua obra, dissemos acima, levando uma vida inteiramente consagrada à meditação, observando costumes e hábitos de absoluta regularidade. Fugia ao ruído e o que se fazia em torno dele não deixava de perturbá-lo. A mediocridade parecia a única condição possível para um filósofo. Conta-se que, Simão de Vries tendo lhe oferecido dinheiro, recusou para não ser distraído em seu trabalho por preocupações financeiras, Muito simples e de trato ameno, era inflexível no que dizia respeito à Justiça; conta-se também que recusou a sucessão desse mesmo Simão de Vries a fim de não prejudicar o herdeiro legal.

  Compôs em Ouderkerk o Breve Tratado, cuja matéria passaria depois para a Reforma do Entendimento e para a Ética. Em 1663 publicou os Princípios da Filosofia de René Descartes, um manual para uso de seu aluno Casuarius, onde emprega a forma geométrica. Desde 1670 se tornara conhecido o Tratado Teológico-Político. O principal da obra de Spinoza foi editado pelos seus amigos em 1677, ano de sua morte. Compreendia a Ética, O Tratado Teológico-Político, O Tratado da Reforma do Entendimento, A Correspondência e um Compêndio de Gramática Hebraica. Foram trazidos à luz mais tarde O Breve Tratado de Deus, Do Homem e da Saúde de Sua Alma, Notas Sobre o Tratado Teológico-Político, O Tratado do Arco-Íris e um opúsculo sobre o Cálculo das Probabilidades. A vida de Spinoza foi descrita com respeitosa afeição em todos os pormenores por um de seus contemporâneos e admiradores, Colerus.

  O ESPÍRITO DE ESPINOZA E O “TRATAMENTO TEOLÓGICO-POLÍTICO”

  Já no prefácio do Tratado Teológico-Cristão declara Spinoza abertamente o que pretende fazer, e compreendemos que ele tenha sido inquietado. “...Adquiri plena convicção de que a Escritura deixa a razão inteiramente livre e nada tem de comum com a filosofia, mas ambas se mantêm por uma força peculiar a cada uma”. Ataca a seguir com bastante violência, se bem que em termos velados, a superstição da letra: “Mostro que a palavra revelada de Deus não consiste num certo número de livros, mas numa ideia simples do pensamento divino, tal como foi dada a conhecer aos Profetas por revelação, a saber: que é preciso obedecer a Deus de toda a alma, praticando a justiça e a caridade”. No que toca propriamente à política, afirma, em face dos direitos do Estado, um direito do homem que a ninguém, nem sequer a esse próprio homem é dado alienar: “Como, entretanto, ninguém se pode privar do direito de defender-se, a tal ponto que deixe de ser um homem, concluo que não é lícito privar ninguém de seu direito natural e que os súditos conservam, como por um direito da natureza, certas franquias que não lhes podem ser arrebatadas sem grande perigo para o Estado...”.

  Importava isto, por um lado, em formular o problema da razão e da fé e resolve-lo garantindo a fé sem prejudicar a razão; e, por outro lado, em traçar com grande coragem os limites dos poderes terrestres. Era, sobretudo, afirmar a mais completa independência e liberdade do espírito. Nenhuma autoridade, senão a dos textos, não mais interpretados num sentido literal, mas recebidos de acordo com a inspiração divina ou o seu valor geral e primitivo e de acordo com a judicatura da razão; nenhuma decisão a não ser a de um pensamento que não requer nenhum poder estranho e que age sem ser constrangido no seu exercício. Afirmava-se nele, com sadio otimismo, que o doutor da lei deve saber ceder ao filósofo e que o direito do príncipe deve deter-se em face do direito do cidadão. Spinoza achava ou fingia achar tudo isso muito natural, fácil e apto a receber o assentimento de todos. Mas não eram do mesmo parecer os guardiões demasiado interessados da Lei religiosa ou civil, e o demonstraram de sobejo.

  Era ainda a mesma posição de Descartes, embora devesse desenvolver-se em outro plano e por outros meios. Spinoza partiu com efeito de Descartes e foi seu expositor ou comentador. Contradisse-o também; censurou-lhe a localização da alma e não podia aceitar a teoria das duas substâncias, visto que ele mesmo só reconhecia uma. Mas prende-se a ele quanto ao fundo e aos princípios. Vê também a verdade na evidência e num pensamento livre de toda sujeição ou de toda ilusão vinda de fora ou de dentro, tanto da autoridade legal, social ou escriturária como das falaciosas imagens engendradas pelas paixões e pelos sentidos. “O que Spinoza aproveitou resolutamente do cartesianismo”, disse Delbos – e seria impossível dize-lo melhor – “foi a concepção de uma verdade objetiva pura, desenvolvida pelo entendimento e excluindo radicalmente todos os elementos de subjetividade introduzidos pelos sentidos ou pela imaginação; foi o direito de impor-se a tudo mais, que incumbe à ideia clara e distinta na medida em que é uma apropriação dessa verdade, o direito de reduzir as pretensões do sentimento e da vontade a valerem por si e de reprimir todas as representações que não façam assistir a inteligência ao encadeamento das coisas”.

  É possível que Spinoza tenha sido levado a procurar Deus pelo desejo de Deus; que haja em sua ideia de Deus o sentimento de Deus e que a mística não tenha sido banida da sua especulação ou que pelo menos não seja impedida por ela. Mas o fato é que temos aqui um cérebro de metafísico puro. É-lhe necessária uma ordem rigorosa e universal das coisas, uma mecânica intelectual perfeita, essencialmente diversa da mecânica material e que encadeie ou desencadeie as ideias como os retentores e as molas travam ou desencadeiam os mecanismos, e uma dedução geométrica tanto para o mundo das figuras como para o mundo espiritual e moral, tanto para o sensível como para o inteligível. Em vista disso e em face de tais exigências, somente um sistema era possível para ele: o seu próprio.

O PANTEÍSMO DE SPINOZA – A “ÉTICA”

  Este sistema é um sistema da substância, o puro sistema da substância. Já vimos o que era a substância: o que resta após termos dissipado as aparências, separado as partes, afastado a qualidade ou o acidente. Para uma filosofia materialista, este resto da operação não é nada, é o nada; para uma filosofia idealista, ao contrário, é tudo, é o todo, a razão e o princípio do ser. O ser é, pois, a substância, e a substância das substâncias, o ser dos seres não pode ser senão uma substância primeira ou um ser primeiro, isto é Deus.

  Posto isto, é possível que essa realidade inicial, que esta realidade única seja de outra ordem que não a do pensamento. Nenhuma espécie de corpo, nenhum conglomerado de matéria, nenhuma matéria poderia convir a semelhante definição. Foi o que concluiu com acerto um historiador e um teórico da substância, Louis Prat; “Só do pensamento se pode dizer que é concebido em si e por si. Nele se identificam pensamento e atributo, sem o que a ideia da substância se confundiria com a ideia abstrata da coisa ou do ser e não exprimiria mais nada”.

  Portanto, só a substância pode existir essencialmente. Mas será ela que confere a si mesma esse ser, ou pelo contrário recebê-lo-á de fora? Confundir-se-á com ele ou não será senão um aspecto ou consequência dele? A resposta de Spinoza, dada logo nas primeiras linhas da Ética é decisiva e arrasta consigo todo o resto: “Por causa de si entendo aquilo cuja existência envolve a existência, em outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente".

  Essa questão da existência e da essência era clássica e Santo Tomás já a debatera no seu opúsculo De ente et essência. Limitava-se, porém, a diferenciações formais e o seu trabalho era antes um tratado de lógica. Com Spinoza mergulhamos no fundo e no vivo da questão, com todas as suas consequências.

  A substância, conforme a terceira definição do primeiro livro da “Ética” é “o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não necessita, para a sua formação, do conceito de outra coisa”. A substância é o ser; mas donde possui ela esse ser, de si mesma ou de fora? Se não o possui de si mesma temos de remontar a uma outra, a uma primeira substância cuja essência se identificará com a existência, e essa primeira substância será Deus.

  Observemo-lo desde logo: deste princípio deriva fatalmente toda a doutrina metafísica de Spinoza, que é um panteísmo integral. Se a substância é tal o mundo não poderá ser senão substância e o que dele se manifestar sob a forma corporal nada mais será do que manifestação ou derivação – aparência, em suma. E, se existe uma substância primeira, todas as outras só poderão ser variações ou “modificações” dela. E assim é com efeito. Como poderia uma coisa infinitamente una e simples produzir algo que não estivesse nela, algo que não fosse ela própria?

  Filosofia da substância, filosofia do ser, ontologia pura. Isto se vê ainda pela ideia de Deus que nela se encontra e por esta prova de Deus, que não passa de um desenvolvimento e de um aprofundamento da de Santo Anselmo..., e de Descartes: Se Deus não existe, diz o teorema XI, “a sua essência não envolve a existência” – o que é absurdo. Acrescenta o escólio: ”Pois dado que poder existir é uma força, segue-se que quanto mais realidade comportar a natureza de uma coisa, tanto mais força terá essa coisa por si mesma para existir; portanto, o ser absolutamente infinito, ou Deus, tem absolutamente de si mesmo o poder infinito de existir, e, por conseguinte, existe absolutamente”. Seja qual for o valor da demonstração, retenhamos o princípio: Deus como foco de toda realidade, Deus como única realidade. Nada pode existir que não venha de Deus e que, de algum modo, não seja Deus. Spinoza repete-o formalmente no teorema XXVIII: “Afora a substância e os modos não existe nada, e os modos nada mais são do que as afecções dos atributos de Deus”.

  A mesma fatalidade panteística é estendida à natureza, com igual precisão nas fórmulas; “todas as coisas são determinadas pela necessidade da natureza de Deus a existir e a agir de certo modo” (teorema XXIX); há uma natureza naturante, que é “o que existe em si e é concebido por si” – ou por outra, a substância; e há uma natureza naturada, que é “tudo o que resulta da própria natureza de Deus”.

  O mundo, pois, nada é senão Deus, uma vasta modificação de Deus. Vamos descobrir o mesmo quando passarmos aos corpos e às almas. Antes de lá chegar, notemos o caráter desse sistema que se edifica com uma espécie de fatalismo ou de necessidade implacável.

  É um sistema acima de tudo lógico em que, conforme já verificamos, tudo se deduz de definições primeiras e dessa dupla concepção de que é “por si” e do que não é “por si”, sendo, portanto, derivado ou produzido. O mundo se edifica na pura abstração, pois só no domínio do abstrato é que são possíveis tais construções.

  Objetarão, talvez, que o ponto de partida é a onipotência e a bondade de Deus, que estas ideias são qualitativas e que Spinoza possuía a sua dose de piedade. Não o negamos. Mas também é verdade que a operação pertence à ordem da inteligência, que a inteligência se exerce aí com a sua máxima sutileza, de forma impecável, e que se trata em última análise de um jogo, um jogo que no panteísmo, e mormente no panteísmo spinozista, atinge o ápice do refinamento mas nem assim consegue satisfazer sozinho a alma, que necessita, para ser tocada, de outra espécie de valor. Sem falar em argumentações dessa mesma ordem, lógicas próprias para contradizer esta, pois a inteligência ainda se presta a todas as causas e nada deixa subsistir do que ela própria edifica sem procurar uma base em outra parte.

COSMOLOGIA, ANTROPOLOGIA E MORAL DE SPINOZA

  O universo estabelecido por Spinoza é um universo puramente ideal. É verdade que a matéria desempenha nele a sua parte sob as espécies da substância extensa, mas atente-se no que é e donde vem esta substância extensa: vem, como tudo mais de Deus e é o próprio Deus. “O pensamento é um atributo de Deus ou, por outras palavras, Deus é uma coisa pensante”. E por outro lado “O espaço é um atributo de Deus ou, por outras palavras, Deus é uma coisa extensa”. Note-se que ele não deriva o espaço da extensão sensível que nós ai vemos ou podemos colocar, como fazem os nossos materialistas modernos; é, pelo contrário, a extensão que ele deriva do espaço. Por fim; “Entendo por corpo um modo que exprime de maneira certa e determinada a essência de Deus enquanto considerada como coisa extensa” Destarte, no próprio coração do sensível não saímos do inteligível.

  Que será então a alma? O filósofo responde sem hesitar: a alma é “uma parte da inteligência infinita de Deus”. E qual é o “objeto da alma”? O corpo. E que é o homem? Um composto, se assim quiserem, de alma e corpo, mas evidentemente é a alma que constitui o princípio formador desse composto. E tomemos cuidado: a alma não tem o poder de mover diretamente o corpo, como também não é capaz de conhecê-lo diretamente, mas apenas pelas ideias que concebe sobre a maneira por que o corpo é afetado; não tem disso uma ideia adequada, isto é, plena e integral como não tem uma ideia adequada de si própria. É ainda em Deus que tudo será reposto; dele dependerá o movimento da extensão e todo ser, toda forma de ser não passará de uma modificação da sua essência. Movimentos da alma, movimentos do pensamento, interdependência desses movimentos, tudo tem Deus por causa.

  Quanto à nossa vida própria, à nossa vida moral, flutuará das nossas “afecções”, entenda-se da maneira porque formos afetados. Agiremos na medida em que formos inteiramente senhores dessas afecções, em que formos causa adequada delas; sofreremos assim que elas nos escapem de algum modo e que nelas se introduza um elemento que não dependa mais de nós, pois então seremos apenas a causa parcial, e causa inadequada.

  Desejo, Amor-Alegria, Ódio-Tristeza, eis os três termos em que se resume o drama. O desejo, diz Spinoza, “é a própria essência do homem na medida em que o concebemos como determinado (isto é por alguma afecção) a realizar um ato qualquer”. O desejo começa, pois, com a vida. “A alegria é a passagem de uma perfeição menor para outra maior, e a tristeza é o contrário”. Destas paixões iniciais o moralista vai derivar todas as outras.

  Não se julgue, porém, que essa moral seja apenas uma metafísica ou a simples construção de um espírito lógico. É uma psicologia, e psicologia de incomparável penetração. Senão vejamos com que profundeza sutil são definidas estas paixões primitivas, a Alegria e a Tristeza. Não se trata de estados mas de movimentos que se caracterizam não pelo ser, mas pela sua passagem. E é de caso pensado que dizemos “passagem”, pois “... a alegria não á a própria perfeição: com efeito, se o homem nascesse com a perfeição a que deve alcançar, possui-la-ia sem afecção de alegria. Texto deveras curioso e que nos leva a perguntar que espécie de alegria poderá haver no êxtase, na posse de Deus, na beatitude, onde todo bem é adquirido de golpe e onde cessa o movimento.

  Todavia, Spinoza colocará esse mesmo Deus no limite ideal e o movimento da afecção consistirá em nos aproximarmos ou em nos afastarmos dele. Depois de mostrar que “a inteligência e a vontade são uma e a mesma coisa”, Spinoza acrescenta a respeito desta “teoria”:

  “Ensina ela que nós agimos exclusivamente pela decisão de Deus, que participamos da natureza divina, e isto na medida em que realizamos atos mais perfeitos e compreendemos melhor a Deus...”

  Merece meditada cada palavra deste texto importante em que mais uma vez se resume a doutrina. Deus está no centro da ação, como estava no princípio da meditação. É nele, segundo as palavras do hino antigo citado por São Paulo, que vivemos, que nos movemos e que somos, e assim retornamos ao princípio platônico da participação. Mas aqui o uno substitui as Ideias, e esse Uno que é um Todo – mudança capital – torna-se muito mais dominador e absorvente, sendo a radical diferença muito bem indicada por esta palavra do próprio Spinoza: “modificação”, em lugar de “participação”. Já não imitamos a Deus como se imita um modelo; procuramos integrar-nos, ou antes, reintegrar-nos nele, e não somente sermos absorvidos; buscamo-lo em nós mesmos com mais audácia, sabendo que ele está em nós e que somos um de seus “modos”.

  Diz ainda Spinoza: “O esforço pelo qual cada coisa se empenha em perseverar no seu ser nada mais é do que a essência atual dessa coisa...” E também: “Sofremos enquanto somos uma parte da Natureza que não se pode conceber por si sem as outras partes”.

  Comentando noutra ocasião estas linhas escrevíamos: “Todo Spinoza está contido aí... Este “esforço” é o esforço da substância para se manter em si mesma, ou melhor, é a Substância conhecendo-se e concentrando-se na sua unidade; esta “paixão” é a paixão que intervém quando o seu não consegue encontrar essa unidade. A substância o Uno, o Ser, eis o fundo da moral como do conhecimento e da beatitude...”

  Mas Spinoza é impelido a uma atitude final muito característica, pela qual parece colocar em Deus uma espécie de necessidade ou mesmo de fatalidade. Com efeito, interpretamos Deus a nosso modo, de acordo conosco, e lhe atribuímos valores que não são propriamente os seus. Já é por pura analogia que lhe emprestamos as nossas concepções ou os nossos sentimentos comuns, bondade, justiça, previdência, e se ele possui tudo isso é certamente de maneira muito diversa da nossa. Há um abuso mais grave no fato de o submetermos às categorias de nosso entendimento. Para ele não existe tempo. Pois que subsiste na eternidade; aí não atuam causalidade nem finalidade, como no mundo dos fenômenos. Eis aqui, a esse respeito, algumas curiosas fórmulas spinozistas: “Mostramos... que a Natureza não age com vista numa finalidade... Este ser eterno e infinito que chamamos Deus – ou, por outra, a Natureza – age em virtude da mesma necessidade que faz com que ele exista... Portanto, a razão ou a causa pela qual age e pela qual existe Deus – ou a Natureza – não é senão uma e a mesma coisa. E, do mesmo modo que a sua existência não tem objetivo algum, também não age ele em vista de qualquer finalidade...”.

  Estas palavras são decisivas no tocante ao panteísmo de Spinoza. Elas o definem e marcam as consequências últimas da sua doutrina, como outrossim a espécie de excesso a que ele pôde chegar. A identificação de Deus e da Natureza é bastante significativa e temos, pelo menos no mecanismo da mais grandiosa das construções dedutivas, uma operação de ordem metafísica e lógica. Notamos, ao acabar de discorrer sobre Leibnitz e a propósito do livro de Friedmann, o caráter humano dessa especulação ou, se quiserem, a ausência quase completa de preocupação com o destino humano. O mesmo autor acrescenta; “O outro – referindo-se ao sistema Spinoza – é o mais poderoso esforço que já se envidou no sentido de descentralizar a reflexão filosófica em relação ao homem e pensa-lo a partir do Todo de que faz parte...” Tudo, com efeito, deriva do Todo para ser depois reconduzido ao Todo, e temos aí o arranjo panteístico mais perfeito e mais absoluto que já foi concebido.

PANORAMA DO SPINOZISMO – SUA NATUREZA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

  O spinozismo é talvez o maior esforço de honestidade intelectual registrado pela história das ideias. Queremos dizer que a inteligência aí aparece libertada e em estado puro e que mesmo para ter acesso a Deus não necessita de recorrer a uma fé ou a uma revelação, bastando-lhe lançar mão de suas próprias forças.

  E por que teria tal necessidade, uma vez que, se ela não é Deus no seu todo, é pelo menos uma parte e um “modo” de Deus e, para encontra-lo precisa apenas voltar-se sobre si mesma?

  Esse Deus é todo inteligência, é a Inteligência; é ele que dá valor a todos os valores da inteligência, como dá o ser a todos os seres, e a todos os valores humanos, embora não lhe constitua a substância. Ele é a verdade, ele a faz, e essa verdade é a própria substância, a sua substância. Não poderia ser obrigado nem tampouco obrigar-se a si mesmo; não poderia submeter-se a um decreto, fosse embora tal decreto promulgado por ele. Se assim lhe aprouvesse, as coisas não seriam absolutamente o que são, nem as ideias, nem mesmo o mecanismo das ideias, e a soma dos ângulos de um triângulo não seria igual a dois ângulos retos: tornamos, assim, a encontrar Duns Escoto.

  É nesse sentido que falamos da honestidade intelectual de Spinoza. Nada lhe perturba a dedução, e o sentimento não consegue altera-la no mínimo ponto. Não é por necessitarmos de Deus que Deus existe, como não por necessitarmos da justiça que a justiça existe; não é por sermos infelizes e precisarmos do consolo que existe uma misericórdia e uma consolação celeste. Deus existe em função de si mesmo, não em função de nós, e basta que ele exista para existir da maneira que se mostrou, isto é, difuso no universo que ele modela à proporção que se modifica. Não é de modo algum, como no cristianismo, um Pai amante e compassivo, e aí se vê que Spinoza não era cristão. Deus é a unidade primeira, fundamental e total, apreendida pela inteligência que dela deriva a construção do mundo através de um raciocínio rigoroso que não comporta nenhuma ação fora da sua ação própria... Não é essa inteligência, aliás, o próprio Deus, uma vez que Deus está em tudo e é tudo?  A piedade, o amor, na medida em que nos toca, não aparece nesse sistema construído por uma dialética inumana e perfeita senão como uma espécie de acidente pessoal.

  O pensamento não atinge esta perfeição a não ser quando se limita e tudo limita a si mesmo, quando já não é – repitamo-lo ainda uma vez – mais que inteligência pura. Posto o Uno inteligível dele se faz derivar e a ele se relaciona tudo o que se quiser de acordo com a época, as circunstâncias, as crenças e o gênio próprio. Tudo se resolve ou se dissolve em Brama desde que Brama existe; na ideia do soberano Bem está incluído o mundo das Ideias; a processão e a conversão neoplatônica, com todas as suas variedades, derivam do Uno primordial. Spinoza dispensa essas concepções religiosas, semi-religiosas ou mesmo sentimentais. Basta-lhe partir do Ser causa de si mesmo, do Ser cuja essência envolve a existência, postulado lógico donde não pode deixar de derivar tudo e donde tudo efetivamente deriva, por via lógica. A operação tem de ser bem sucedida por força, uma vez que o pensador se coloca no ponto de vista do idealismo absoluto, isto é, dum sistema em que a realidade, transferida exclusivamente às ideias lhes faculta um jogo infalível. O único inconveniente é que, na nossa condição humana, essa realidade já nada tem de comum com a realidade sensível, a única a que possamos ter acesso, sendo apenas uma transposição e uma figura desta última, e destarte os nossos mais sublimes filósofos correm o grande risco de nos divertir ou de nos iludir com simples jogos de palavras.

  Spinoza, a princípio muito mal compreendido, não conquistou desde logo o lugar em que hoje o colocamos. Seria mais certado dizer que não se quis compreende-lo. Numa época em que o poder religioso vigiava ciosamente o pensamento, em que a própria opinião pública não discernia o pensamento das convicções religiosas, tudo que se viu nele foi um adversário e o negador de uma fé, de dogmas, de ritos que ele passava em silêncio. Esse Deus universal ou esse Deus-Universo, fruto exclusivo da concepção do espírito e que já não era o Deus do Velho nem do Novo Testamento, aparecia com o aniquilamento mesmo de Deus e foi a acusação de ateísmo a que mais pesou sobre o autor da Ética. E é o caso, realmente de perguntar se Deus ainda subsiste quando tudo se torna Deus.

  Eis aí porque Spinoza, após ter sido rejeitado pelos de sua raça foi perseguido pelos fiéis de uma outra crença. Não se examinava o valor intrínseco do sistema, a sua contextura lógica, a sua legitimidade intelectual; só se viam os seus resultados; menosprezavam-se-lhe a psicologia, os valores morais, e amaldiçoava-se o homem que subvertera uma antiga tradição... ao mesmo tempo que outros contemptores desta tradição não se serviam dele por puro espírito de partido e sem querer aprofundar-lhe o pensamento.

  Não causará surpresa que o descobrimento tardio de Spinoza tenha sido feito na Alemanha durante os séculos subsequentes, que ele tenha sido celebrado por Lessing, Jacobi e Goethe e que a sua filosofia tenha marcado fortemente a de Fichte ou de Hegel. A França e a Inglaterra seguiam outro caminho. Foi Renan, contudo, que disse acerca desse pensador em que tornava a encontrar o seu niilismo idealista: “Foi, no seu tempo, aquele que viu mais profundamente em Deus”.

  Não se pode negar que Spinoza tenha sido profundamente impregnado de divino. Mas o caráter amorfo de Deus do panteísmo se presta singularmente para diluí-lo, dissolvê-lo e despojá-lo de todo caráter formal ou transcendente. Daí ao ateísmo ou a um materialismo mais ou menos larvado não medeia grande distância.

  Remy Collins crê observar que o panteísmo de Spinoza anima ao mesmo tempo “o monismo de Haeckel e o coletivismo de Karl Marx, de Engels, de Feuerbach, de Stalin...” Bastou-lhe apenas aplicar os princípios do spinozismo, mas é provável que o próprio Spinoza não se reconheça neles.

  Esses princípios, esse fundo, são o homem tirando tudo de si e do exercício exclusivo de seu espírito, e a realidade única atribuída ao espírito e ao seu exercício. Donde a pura e simples divinização do espírito, que faz, apesar de tanta grandeza, a fraqueza irremediável do sistema. Veremos, com um Berkeley, até onde pode chegar o idealismo puro; é significativo que, numa Introdução à vida do espírito, Léon Brunschvicg não mencione sequer o nome de Deus e que Julien Benda erija em seu mestre o mais célebre de seus correligionários. Spinoza – e é neste ponto que se revela também um dos mestres do mundo moderno, e um dos que mais profundamente influíram nele – Spinoza reduz tudo ao homem e não sai do homem, na sua explicação deste; não recebe nada que não provenha do homem. Já não há aqui ocasião para discutir sobre as relações da fé e da inteligência: a inteligência é soberana absoluta. Donde o perigo da especulação metafísica mais vasta e ao mesmo tempo mais sutil que se tenha imaginado. Apresenta um encadeamento irrepreensível, onde não falta um só elo. Mas, apesar do ardor peculiar ao mecânico, este mecanismo permanece um mecanismo; falta o mecânico supremo; em suma, falta Deus ao Deus de Spinoza.

  Fonte: História da Filosofia, por Gonzague Truc – Editora Globo.

                                                         Rayom Ra                                                                                                     http://arcadeouro.blogspot.com.br 



Nenhum comentário:

Postar um comentário