A VIDA
NA OBRA
Em muitos poucos homens correspondeu a vida
tão bem ao pensamento como esse. Dir-se-ia que Spinoza tivesse sido criado e
posto no mundo para produzir o spinozismo, pois todo ele está na sua
especulação.
Era um judeu de Amsterdam, onde nasceu em
1632, e sua família era de origem portuguesa. Recebeu o prenome de Baruch. Seu
pai achava-se à testa da pequena comunidade judaica e desde cedo o colocaram
nos estudos, onde ultrapassou toda expectativa e não tardou a dar motivos de
inquietação. Aprendeu a ler no texto original a Bíblia e os outros escritos
hebraicos clássicos, especialmente a Mishná. Elucidava tudo com os
historiadores, os filósofos e os comentadores, e bem depressa a interpretação
tradicional se lhe tornou insuficiente. Por sua vez, também fez tábula rasa à
sua maneira – maneira, quiçá, ainda mais radical do que a preconizada por
Descartes. Recusou-se a receber o próprio Deus de outra fonte que não fosse a
sua meditação.
Seguindo por esse caminho, expunha-se à
perseguição tão logo se manifestasse ou fosse descoberto, e a perseguição não
faltou. Aceitou-as Spinoza com coragem. Em 1656 foi excomungado formalmente
pelo conselho dos anciãos, indo então estabelecer-se no campo, em Ouderkerk,
onde viveu solitário durante três anos. Transfere-se em seguida para as
proximidades de Haia, e depois para Haia mesmo. A fim de garantir a sua
existência material aprendera o ofício de polidor de lentes para instrumentos
de ótica. Mas a sua doutrina começava a difundir-se e não faltaram protetores
poderosos para ampará-lo. Pouco a pouco foi se tornando célebre. João de Witt
defendeu-o contra possíveis perseguições. Leibnitz veio procura-lo, o grande
Condé testemunhou por ele especial consideração. Atingido pela tuberculose,
morreu muito antes da velhice, aos quarenta e cinco anos, em 1677.
Foi a personificação de sua obra, dissemos
acima, levando uma vida inteiramente consagrada à meditação, observando
costumes e hábitos de absoluta regularidade. Fugia ao ruído e o que se fazia em
torno dele não deixava de perturbá-lo. A mediocridade parecia a única condição possível
para um filósofo. Conta-se que, Simão de Vries tendo lhe oferecido dinheiro,
recusou para não ser distraído em seu trabalho por preocupações financeiras,
Muito simples e de trato ameno, era inflexível no que dizia respeito à Justiça;
conta-se também que recusou a sucessão desse mesmo Simão de Vries a fim de não
prejudicar o herdeiro legal.
Compôs em Ouderkerk o Breve Tratado, cuja matéria passaria depois para a Reforma do Entendimento e para a Ética. Em 1663 publicou os Princípios da Filosofia de René Descartes,
um manual para uso de seu aluno Casuarius, onde emprega a forma geométrica.
Desde 1670 se tornara conhecido o Tratado
Teológico-Político. O principal da obra de Spinoza foi editado pelos seus
amigos em 1677, ano de sua morte. Compreendia a Ética, O Tratado Teológico-Político, O Tratado da Reforma do
Entendimento, A Correspondência e um Compêndio
de Gramática Hebraica. Foram trazidos à luz mais tarde O Breve Tratado de Deus, Do Homem e da Saúde de Sua Alma, Notas Sobre o
Tratado Teológico-Político, O Tratado do Arco-Íris e um opúsculo sobre o
Cálculo das Probabilidades. A vida de Spinoza foi descrita com respeitosa
afeição em todos os pormenores por um de seus contemporâneos e admiradores,
Colerus.
O ESPÍRITO DE ESPINOZA E O “TRATAMENTO
TEOLÓGICO-POLÍTICO”
Já no prefácio do Tratado Teológico-Cristão
declara Spinoza abertamente o que pretende fazer, e compreendemos que ele tenha
sido inquietado. “...Adquiri plena convicção de que a Escritura deixa a razão
inteiramente livre e nada tem de comum com a filosofia, mas ambas se mantêm por
uma força peculiar a cada uma”. Ataca a seguir com bastante violência, se bem
que em termos velados, a superstição da letra: “Mostro que a palavra revelada
de Deus não consiste num certo número de livros, mas numa ideia simples do
pensamento divino, tal como foi dada a conhecer aos Profetas por revelação, a
saber: que é preciso obedecer a Deus de toda a alma, praticando a justiça e a
caridade”. No que toca propriamente à política, afirma, em face dos direitos do
Estado, um direito do homem que a ninguém, nem sequer a esse próprio homem é
dado alienar: “Como, entretanto, ninguém se pode privar do direito de defender-se,
a tal ponto que deixe de ser um homem, concluo que não é lícito privar ninguém
de seu direito natural e que os súditos conservam, como por um direito da
natureza, certas franquias que não lhes podem ser arrebatadas sem grande perigo
para o Estado...”.
Importava isto, por um lado, em formular o
problema da razão e da fé e resolve-lo garantindo a fé sem prejudicar a razão;
e, por outro lado, em traçar com grande coragem os limites dos poderes
terrestres. Era, sobretudo, afirmar a mais completa independência e liberdade
do espírito. Nenhuma autoridade, senão a dos textos, não mais interpretados num
sentido literal, mas recebidos de acordo com a inspiração divina ou o seu valor
geral e primitivo e de acordo com a judicatura da razão; nenhuma decisão a não
ser a de um pensamento que não requer nenhum poder estranho e que age sem ser
constrangido no seu exercício. Afirmava-se nele, com sadio otimismo, que o
doutor da lei deve saber ceder ao filósofo e que o direito do príncipe deve
deter-se em face do direito do cidadão. Spinoza achava ou fingia achar tudo
isso muito natural, fácil e apto a receber o assentimento de todos. Mas não
eram do mesmo parecer os guardiões demasiado interessados da Lei religiosa ou
civil, e o demonstraram de sobejo.
Era ainda a mesma posição de Descartes,
embora devesse desenvolver-se em outro plano e por outros meios. Spinoza partiu
com efeito de Descartes e foi seu expositor ou comentador. Contradisse-o
também; censurou-lhe a localização da alma e não podia aceitar a teoria das
duas substâncias, visto que ele mesmo só reconhecia uma. Mas prende-se a ele
quanto ao fundo e aos princípios. Vê também a verdade na evidência e num
pensamento livre de toda sujeição ou de toda ilusão vinda de fora ou de dentro,
tanto da autoridade legal, social ou escriturária como das falaciosas imagens
engendradas pelas paixões e pelos sentidos. “O que Spinoza aproveitou
resolutamente do cartesianismo”, disse Delbos – e seria impossível dize-lo
melhor – “foi a concepção de uma verdade objetiva pura, desenvolvida pelo
entendimento e excluindo radicalmente todos os elementos de subjetividade
introduzidos pelos sentidos ou pela imaginação; foi o direito de impor-se a
tudo mais, que incumbe à ideia clara e distinta na medida em que é uma
apropriação dessa verdade, o direito de reduzir as pretensões do sentimento e
da vontade a valerem por si e de reprimir todas as representações que não façam
assistir a inteligência ao encadeamento das coisas”.
É possível que Spinoza tenha sido levado a
procurar Deus pelo desejo de Deus; que haja em sua ideia de Deus o sentimento
de Deus e que a mística não tenha sido banida da sua especulação ou que pelo
menos não seja impedida por ela. Mas o fato é que temos aqui um cérebro de
metafísico puro. É-lhe necessária uma ordem rigorosa e universal das coisas,
uma mecânica intelectual perfeita, essencialmente diversa da mecânica material
e que encadeie ou desencadeie as ideias como os retentores e as molas travam ou
desencadeiam os mecanismos, e uma dedução geométrica tanto para o mundo das
figuras como para o mundo espiritual e moral, tanto para o sensível como para o
inteligível. Em vista disso e em face de tais exigências, somente um sistema
era possível para ele: o seu próprio.
O
PANTEÍSMO DE SPINOZA – A “ÉTICA”
Este sistema é um sistema da substância, o
puro sistema da substância. Já vimos o que era a substância: o que resta após
termos dissipado as aparências, separado as partes, afastado a qualidade ou o
acidente. Para uma filosofia materialista, este resto da operação não é nada, é
o nada; para uma filosofia idealista,
ao contrário, é tudo, é o todo, a
razão e o princípio do ser. O ser é, pois, a substância, e a substância das
substâncias, o ser dos seres não pode ser senão uma substância primeira ou um
ser primeiro, isto é Deus.
Posto isto, é possível que essa realidade
inicial, que esta realidade única seja de outra ordem que não a do pensamento.
Nenhuma espécie de corpo, nenhum conglomerado de matéria, nenhuma matéria
poderia convir a semelhante definição. Foi o que concluiu com acerto um
historiador e um teórico da substância, Louis Prat; “Só do pensamento se pode
dizer que é concebido em si e por si. Nele se identificam pensamento e
atributo, sem o que a ideia da substância se confundiria com a ideia abstrata
da coisa ou do ser e não exprimiria mais nada”.
Portanto, só a substância pode existir
essencialmente. Mas será ela que confere a si mesma esse ser, ou pelo contrário
recebê-lo-á de fora? Confundir-se-á com ele ou não será senão um aspecto ou
consequência dele? A resposta de Spinoza, dada logo nas primeiras linhas da Ética é decisiva e arrasta consigo todo
o resto: “Por causa de si entendo aquilo
cuja existência envolve a existência, em outras palavras, aquilo cuja natureza
não pode ser concebida senão como existente".
Essa questão da existência e da essência era
clássica e Santo Tomás já a debatera no seu opúsculo De ente et essência. Limitava-se, porém, a diferenciações formais e
o seu trabalho era antes um tratado de lógica. Com Spinoza mergulhamos no fundo
e no vivo da questão, com todas as suas consequências.
A substância, conforme a terceira definição
do primeiro livro da “Ética” é “o que existe em si e é concebido por si, isto
é, aquilo cujo conceito não necessita, para a sua formação, do conceito de
outra coisa”. A substância é o ser; mas donde possui ela esse ser, de si mesma
ou de fora? Se não o possui de si mesma temos de remontar a uma outra, a uma
primeira substância cuja essência se identificará com a existência, e essa
primeira substância será Deus.
Observemo-lo desde logo: deste princípio
deriva fatalmente toda a doutrina metafísica de Spinoza, que é um panteísmo
integral. Se a substância é tal o mundo não poderá ser senão substância e o que
dele se manifestar sob a forma corporal nada mais será do que manifestação ou
derivação – aparência, em suma. E, se existe uma substância primeira, todas as
outras só poderão ser variações ou “modificações” dela. E assim é com efeito.
Como poderia uma coisa infinitamente una e simples produzir algo que não
estivesse nela, algo que não fosse ela própria?
Filosofia da substância, filosofia do ser,
ontologia pura. Isto se vê ainda pela ideia de Deus que nela se encontra e por
esta prova de Deus, que não passa de um desenvolvimento e de um aprofundamento
da de Santo Anselmo..., e de Descartes: Se Deus não existe, diz o teorema XI, “a sua essência não envolve a existência”
– o que é absurdo. Acrescenta o escólio: ”Pois dado que poder existir é uma
força, segue-se que quanto mais realidade comportar a natureza de uma coisa,
tanto mais força terá essa coisa por si mesma para existir; portanto, o ser
absolutamente infinito, ou Deus, tem absolutamente de si mesmo o poder infinito
de existir, e, por conseguinte, existe absolutamente”. Seja qual for o valor da
demonstração, retenhamos o princípio: Deus como foco de toda realidade, Deus
como única realidade. Nada pode existir que não venha de Deus e que, de algum
modo, não seja Deus. Spinoza repete-o formalmente no teorema XXVIII: “Afora a substância e os modos não existe
nada, e os modos nada mais são do que as afecções dos atributos de Deus”.
A mesma fatalidade panteística é estendida à
natureza, com igual precisão nas fórmulas; “todas as coisas são determinadas
pela necessidade da natureza de Deus a existir e a agir de certo modo” (teorema
XXIX); há uma natureza naturante, que
é “o que existe em si e é concebido por si” – ou por outra, a substância; e há
uma natureza naturada, que é “tudo o
que resulta da própria natureza de Deus”.
O mundo, pois, nada é senão Deus, uma vasta
modificação de Deus. Vamos descobrir o mesmo quando passarmos aos corpos e às
almas. Antes de lá chegar, notemos o caráter desse sistema que se edifica com
uma espécie de fatalismo ou de necessidade implacável.
É um sistema acima de tudo lógico em que, conforme
já verificamos, tudo se deduz de definições primeiras e dessa dupla concepção
de que é “por si” e do que não é “por si”, sendo, portanto, derivado ou
produzido. O mundo se edifica na pura abstração, pois só no domínio do abstrato
é que são possíveis tais construções.
Objetarão, talvez, que o ponto de partida é a
onipotência e a bondade de Deus, que estas ideias são qualitativas e que
Spinoza possuía a sua dose de piedade. Não o negamos. Mas também é verdade que
a operação pertence à ordem da inteligência, que a inteligência se exerce aí
com a sua máxima sutileza, de forma impecável, e que se trata em última análise
de um jogo, um jogo que no panteísmo, e mormente no panteísmo spinozista,
atinge o ápice do refinamento mas nem assim consegue satisfazer sozinho a alma,
que necessita, para ser tocada, de outra espécie de valor. Sem falar em
argumentações dessa mesma ordem, lógicas próprias para contradizer esta, pois a
inteligência ainda se presta a todas as causas e nada deixa subsistir do que
ela própria edifica sem procurar uma base em outra parte.
COSMOLOGIA,
ANTROPOLOGIA E MORAL DE SPINOZA
O universo estabelecido por Spinoza é um
universo puramente ideal. É verdade que a matéria desempenha nele a sua parte
sob as espécies da substância extensa, mas atente-se no que é e donde vem esta
substância extensa: vem, como tudo mais de Deus e é o próprio Deus. “O
pensamento é um atributo de Deus ou, por outras palavras, Deus é uma coisa
pensante”. E por outro lado “O espaço é um atributo de Deus ou, por outras
palavras, Deus é uma coisa extensa”. Note-se que ele não deriva o espaço da
extensão sensível que nós ai vemos ou
podemos colocar, como fazem os nossos materialistas modernos; é, pelo
contrário, a extensão que ele deriva do espaço. Por fim; “Entendo por corpo um
modo que exprime de maneira certa e determinada a essência de Deus enquanto
considerada como coisa extensa” Destarte, no próprio coração do sensível não
saímos do inteligível.
Que será então a alma? O filósofo responde
sem hesitar: a alma é “uma parte da inteligência infinita de Deus”. E qual é o
“objeto da alma”? O corpo. E que é o homem? Um composto, se assim quiserem, de
alma e corpo, mas evidentemente é a alma que constitui o princípio formador
desse composto. E tomemos cuidado: a alma não tem o poder de mover diretamente o corpo, como também não é
capaz de conhecê-lo diretamente, mas
apenas pelas ideias que concebe sobre a maneira por que o corpo é afetado; não
tem disso uma ideia adequada, isto é, plena e integral como não tem uma ideia
adequada de si própria. É ainda em Deus que tudo será reposto; dele dependerá o
movimento da extensão e todo ser, toda forma de ser não passará de uma
modificação da sua essência. Movimentos da alma, movimentos do pensamento,
interdependência desses movimentos, tudo tem Deus por causa.
Quanto à nossa vida própria, à nossa vida
moral, flutuará das nossas “afecções”, entenda-se da maneira porque formos
afetados. Agiremos na medida em que formos inteiramente senhores dessas
afecções, em que formos causa adequada
delas; sofreremos assim que elas nos escapem de algum modo e que nelas se
introduza um elemento que não dependa mais de nós, pois então seremos apenas a
causa parcial, e causa inadequada.
Desejo, Amor-Alegria, Ódio-Tristeza, eis os
três termos em que se resume o drama. O desejo, diz Spinoza, “é a própria
essência do homem na medida em que o concebemos como determinado (isto é por
alguma afecção) a realizar um ato qualquer”. O desejo começa, pois, com a vida.
“A alegria é a passagem de uma perfeição menor para outra maior, e a tristeza é
o contrário”. Destas paixões iniciais o moralista vai derivar todas as outras.
Não se julgue, porém, que essa moral seja
apenas uma metafísica ou a simples construção de um espírito lógico. É uma
psicologia, e psicologia de incomparável penetração. Senão vejamos com que
profundeza sutil são definidas estas paixões primitivas, a Alegria e a
Tristeza. Não se trata de estados mas de movimentos
que se caracterizam não pelo ser, mas pela sua passagem. E é de caso pensado
que dizemos “passagem”, pois “... a alegria não á a própria perfeição: com
efeito, se o homem nascesse com a perfeição a que deve alcançar, possui-la-ia
sem afecção de alegria. Texto deveras curioso e que nos leva a perguntar que
espécie de alegria poderá haver no êxtase, na posse de Deus, na beatitude, onde
todo bem é adquirido de golpe e onde cessa o movimento.
Todavia, Spinoza colocará esse mesmo Deus no
limite ideal e o movimento da afecção consistirá em nos aproximarmos ou em nos
afastarmos dele. Depois de mostrar que “a inteligência e a vontade são uma e a
mesma coisa”, Spinoza acrescenta a respeito desta “teoria”:
“Ensina ela que nós agimos exclusivamente
pela decisão de Deus, que participamos da natureza divina, e isto na medida em
que realizamos atos mais perfeitos e compreendemos melhor a Deus...”
Merece meditada cada palavra deste texto
importante em que mais uma vez se resume a doutrina. Deus está no centro da
ação, como estava no princípio da meditação. É nele, segundo as palavras do
hino antigo citado por São Paulo, que vivemos, que nos movemos e que somos, e
assim retornamos ao princípio platônico da participação. Mas aqui o uno
substitui as Ideias, e esse Uno que é um Todo
– mudança capital – torna-se muito mais dominador e absorvente, sendo a radical
diferença muito bem indicada por esta palavra do próprio Spinoza:
“modificação”, em lugar de “participação”. Já não imitamos a Deus como se imita
um modelo; procuramos integrar-nos, ou antes, reintegrar-nos nele, e não
somente sermos absorvidos; buscamo-lo em nós mesmos com mais audácia, sabendo
que ele está em nós e que somos um de seus “modos”.
Diz ainda Spinoza: “O esforço pelo qual cada
coisa se empenha em perseverar no seu ser nada
mais é do que a essência atual dessa coisa...” E também: “Sofremos enquanto
somos uma parte da Natureza que não se
pode conceber por si sem as outras partes”.
Comentando noutra ocasião estas linhas
escrevíamos: “Todo Spinoza está contido aí... Este “esforço” é o esforço da
substância para se manter em si mesma, ou melhor, é a Substância conhecendo-se
e concentrando-se na sua unidade; esta “paixão” é a paixão que intervém quando
o seu não consegue encontrar essa unidade. A substância o Uno, o Ser, eis o
fundo da moral como do conhecimento e da beatitude...”
Mas Spinoza é impelido a uma atitude final
muito característica, pela qual parece colocar em Deus uma espécie de
necessidade ou mesmo de fatalidade. Com efeito, interpretamos Deus a nosso
modo, de acordo conosco, e lhe atribuímos valores que não são propriamente os
seus. Já é por pura analogia que lhe emprestamos as nossas concepções ou os
nossos sentimentos comuns, bondade, justiça, previdência, e se ele possui tudo
isso é certamente de maneira muito diversa da nossa. Há um abuso mais grave no
fato de o submetermos às categorias de nosso entendimento. Para ele não existe
tempo. Pois que subsiste na eternidade; aí não atuam causalidade nem
finalidade, como no mundo dos fenômenos. Eis aqui, a esse respeito, algumas
curiosas fórmulas spinozistas: “Mostramos... que a Natureza não age com vista
numa finalidade... Este ser eterno e infinito que chamamos Deus – ou, por
outra, a Natureza – age em virtude da mesma necessidade que faz com que ele
exista... Portanto, a razão ou a causa pela qual age e pela qual existe Deus –
ou a Natureza – não é senão uma e a mesma coisa. E, do mesmo modo que a sua
existência não tem objetivo algum, também não age ele em vista de qualquer
finalidade...”.
Estas palavras são decisivas no tocante ao
panteísmo de Spinoza. Elas o definem e marcam as consequências últimas da sua
doutrina, como outrossim a espécie de excesso a que ele pôde chegar. A
identificação de Deus e da Natureza é bastante significativa e temos, pelo
menos no mecanismo da mais grandiosa das construções dedutivas, uma operação de
ordem metafísica e lógica. Notamos, ao acabar de discorrer sobre Leibnitz e a
propósito do livro de Friedmann, o caráter humano dessa especulação ou, se
quiserem, a ausência quase completa de preocupação com o destino humano. O
mesmo autor acrescenta; “O outro – referindo-se ao sistema Spinoza – é o mais
poderoso esforço que já se envidou no sentido de descentralizar a reflexão
filosófica em relação ao homem e pensa-lo a partir do Todo de que faz parte...”
Tudo, com efeito, deriva do Todo para ser depois reconduzido ao Todo, e temos
aí o arranjo panteístico mais perfeito e mais absoluto que já foi concebido.
PANORAMA
DO SPINOZISMO – SUA NATUREZA E SUAS CONSEQUÊNCIAS
O spinozismo é talvez o maior esforço de
honestidade intelectual registrado pela história das ideias. Queremos dizer que
a inteligência aí aparece libertada e em estado puro e que mesmo para ter
acesso a Deus não necessita de recorrer a uma fé ou a uma revelação,
bastando-lhe lançar mão de suas próprias forças.
E por que teria tal necessidade, uma vez que,
se ela não é Deus no seu todo, é pelo menos uma parte e um “modo” de Deus e,
para encontra-lo precisa apenas voltar-se sobre si mesma?
Esse Deus é todo inteligência, é a
Inteligência; é ele que dá valor a todos os valores da inteligência, como dá o
ser a todos os seres, e a todos os valores humanos, embora não lhe constitua a
substância. Ele é a verdade, ele a faz, e essa verdade é a própria substância,
a sua substância. Não poderia ser obrigado nem tampouco obrigar-se a si mesmo;
não poderia submeter-se a um decreto, fosse embora tal decreto promulgado por
ele. Se assim lhe aprouvesse, as coisas não seriam absolutamente o que são, nem
as ideias, nem mesmo o mecanismo das ideias, e a soma dos ângulos de um
triângulo não seria igual a dois ângulos retos: tornamos, assim, a encontrar
Duns Escoto.
É nesse sentido que falamos da honestidade
intelectual de Spinoza. Nada lhe perturba a dedução, e o sentimento não
consegue altera-la no mínimo ponto. Não é por necessitarmos de Deus que Deus
existe, como não por necessitarmos da justiça que a justiça existe; não é por
sermos infelizes e precisarmos do consolo que existe uma misericórdia e uma
consolação celeste. Deus existe em função de si mesmo, não em função de nós, e
basta que ele exista para existir da maneira que se mostrou, isto é, difuso no
universo que ele modela à proporção que se modifica. Não é de modo algum, como
no cristianismo, um Pai amante e compassivo, e aí se vê que Spinoza não era
cristão. Deus é a unidade primeira, fundamental e total, apreendida pela
inteligência que dela deriva a construção do mundo através de um raciocínio
rigoroso que não comporta nenhuma ação fora da sua ação própria... Não é essa
inteligência, aliás, o próprio Deus, uma vez que Deus está em tudo e é
tudo? A piedade, o amor, na medida em
que nos toca, não aparece nesse sistema construído por uma dialética inumana e
perfeita senão como uma espécie de acidente pessoal.
O pensamento não atinge esta perfeição a não
ser quando se limita e tudo limita a si mesmo, quando já não é – repitamo-lo
ainda uma vez – mais que inteligência pura. Posto o Uno inteligível dele se faz
derivar e a ele se relaciona tudo o que se quiser de acordo com a época, as
circunstâncias, as crenças e o gênio próprio. Tudo se resolve ou se dissolve em
Brama desde que Brama existe; na ideia do soberano Bem está incluído o mundo
das Ideias; a processão e a conversão neoplatônica, com todas as suas
variedades, derivam do Uno primordial. Spinoza dispensa essas concepções
religiosas, semi-religiosas ou mesmo sentimentais. Basta-lhe partir do Ser causa
de si mesmo, do Ser cuja essência envolve a existência, postulado lógico donde
não pode deixar de derivar tudo e donde tudo efetivamente deriva, por via
lógica. A operação tem de ser bem sucedida por força, uma vez que o pensador se
coloca no ponto de vista do idealismo absoluto, isto é, dum sistema em que a
realidade, transferida exclusivamente às ideias lhes faculta um jogo infalível.
O único inconveniente é que, na nossa condição humana, essa realidade já nada
tem de comum com a realidade sensível, a única a que possamos ter acesso, sendo
apenas uma transposição e uma figura desta última, e destarte os nossos mais
sublimes filósofos correm o grande risco de nos divertir ou de nos iludir com
simples jogos de palavras.
Spinoza, a princípio muito mal compreendido,
não conquistou desde logo o lugar em que hoje o colocamos. Seria mais certado
dizer que não se quis compreende-lo. Numa época em que o poder religioso
vigiava ciosamente o pensamento, em que a própria opinião pública não discernia
o pensamento das convicções religiosas, tudo que se viu nele foi um adversário
e o negador de uma fé, de dogmas, de ritos que ele passava em silêncio. Esse
Deus universal ou esse Deus-Universo, fruto exclusivo da concepção do espírito
e que já não era o Deus do Velho nem do Novo Testamento, aparecia com o
aniquilamento mesmo de Deus e foi a acusação de ateísmo a que mais pesou sobre
o autor da Ética. E é o caso,
realmente de perguntar se Deus ainda subsiste quando tudo se torna Deus.
Eis aí porque Spinoza, após ter sido
rejeitado pelos de sua raça foi perseguido pelos fiéis de uma outra crença. Não
se examinava o valor intrínseco do sistema, a sua contextura lógica, a sua
legitimidade intelectual; só se viam os seus resultados; menosprezavam-se-lhe a
psicologia, os valores morais, e amaldiçoava-se o homem que subvertera uma
antiga tradição... ao mesmo tempo que outros contemptores desta tradição não se
serviam dele por puro espírito de partido e sem querer aprofundar-lhe o
pensamento.
Não causará surpresa que o descobrimento
tardio de Spinoza tenha sido feito na Alemanha durante os séculos subsequentes,
que ele tenha sido celebrado por Lessing, Jacobi e Goethe e que a sua filosofia
tenha marcado fortemente a de Fichte ou de Hegel. A França e a Inglaterra
seguiam outro caminho. Foi Renan, contudo, que disse acerca desse pensador em
que tornava a encontrar o seu niilismo idealista: “Foi, no seu tempo, aquele
que viu mais profundamente em Deus”.
Não se pode negar que Spinoza tenha sido
profundamente impregnado de divino. Mas o caráter amorfo de Deus do panteísmo
se presta singularmente para diluí-lo, dissolvê-lo e despojá-lo de todo caráter
formal ou transcendente. Daí ao ateísmo ou a um materialismo mais ou menos
larvado não medeia grande distância.
Remy Collins crê observar que o panteísmo de
Spinoza anima ao mesmo tempo “o monismo de Haeckel e o coletivismo de Karl
Marx, de Engels, de Feuerbach, de Stalin...” Bastou-lhe apenas aplicar os
princípios do spinozismo, mas é provável que o próprio Spinoza não se reconheça
neles.
Esses princípios, esse fundo, são o homem tirando
tudo de si e do exercício exclusivo de seu espírito, e a realidade única
atribuída ao espírito e ao seu exercício. Donde a pura e simples divinização do
espírito, que faz, apesar de tanta grandeza, a fraqueza irremediável do
sistema. Veremos, com um Berkeley, até onde pode chegar o idealismo puro; é
significativo que, numa Introdução à vida
do espírito, Léon Brunschvicg não mencione sequer o nome de Deus e que
Julien Benda erija em seu mestre o mais célebre de seus correligionários.
Spinoza – e é neste ponto que se revela também um dos mestres do mundo moderno,
e um dos que mais profundamente influíram nele – Spinoza reduz tudo ao homem e
não sai do homem, na sua explicação deste; não recebe nada que não provenha do
homem. Já não há aqui ocasião para discutir sobre as relações da fé e da
inteligência: a inteligência é soberana absoluta. Donde o perigo da especulação
metafísica mais vasta e ao mesmo tempo mais sutil que se tenha imaginado.
Apresenta um encadeamento irrepreensível, onde não falta um só elo. Mas, apesar
do ardor peculiar ao mecânico, este mecanismo permanece um mecanismo; falta o
mecânico supremo; em suma, falta Deus ao Deus de Spinoza.
Fonte:
História da Filosofia, por Gonzague Truc – Editora Globo.
Rayom Ra http://arcadeouro.blogspot.com.br
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