Ignoramos como se portou ali e se já se podia
vislumbrar nele um opositor; o que é lícito supor é que aprendeu naquela escola
tudo quanto era possível aprender. Ao cabo desse tempo foi para a Mísia, onde
se demorou junto ao tirano de Atarnéia, Hérmias, passando depois para Mitilene,
na ilha de Lesbos. Em 343 tornou-se preceptor daquele que seria mais tarde o
grande Alexandre, e que tinha então treze anos de idade. Retornou a Atenas em
335 e ali fundou a sua escola. A morte do conquistador, seu discípulo,
colocou-o em dificuldades com a Grécia subelevada – pois não estivera ele
mancomunado com o inimigo? – e teve de refugiar-se em Cálcis, na ilha de
Eubéia, onde morreu em 322.
É uma figura completamente diversa de Platão,
outro gênero de espírito, não já um poeta, mas um homem de ciência e um dos
cérebros mais prodigiosos que a humanidade tem produzido.
Possuímos alguns pormenores sobre a sua
pessoa física. Era ligeiramente gago, conta Diógenes Laércio; tinha olhos
pequenos, pernas finas e trazia a face raspada ao invés de usar a barba
socrática. Tivera um filho, Nicômano, da cortesã Herpelís, a quem em realidade
a teria desposado em segundas núpcias, pois fora anteriormente casado com
Pítias, sobrinha ou filha adotiva de Hípias. Mostrava certo pendor pelo luxo e
gostava de se trajar bem. Seus rendimentos eram relativamente bons, alimentados,
sobretudo, pela generosidade dos reis macedônios.
O local escolhido para a sua escola era um
ginásio de Atenas, o Liceu, assim chamado por causa de um templo vizinho
dedicado a Apolo Lício [matador de lobos]. Habituara-se a ensinar enquanto
caminhava, donde o nome de “peripatéticos”
adotado pelos seus discípulos, do verbo grego que significa passear –
literalmente “andar em redor”.
O próprio modo de ensinar é mais
significativo e consoante com a natureza da doutrina. “O diálogo”, diz Hamlin,
“supõe a maiêutica” ou o seu equivalente platônico, a reminiscência; trata-se
apenas de nos reportarmos a uma espécie de evidência íntima. Para Aristóteles,
ao contrário, ensinar é demonstrar; ter idéia do termo médio e da prova, não há
necessidade, portanto, de um retorno do ouvinte sobre si mesmo, nem de que se
lhe peça o assentimento: é forçado a dá-lo.
Deixamos para trás, com efeito, a época dos
discursos, do desprezo pela palavra escrita, e faz-se mister o recurso aos
livros. Os do próprio Aristóteles formam uma biblioteca inteira. O catálogo
organizado por Diógenes Laércio compreende duas páginas densas de títulos. O
que sobrou dessa vasta nomenclatura foi classificado, de acordo com a própria
classificação das ciências estabelecida pelo autor, em:
1. “Obras Teóricas”; A Física, O Tratado do
Céu, Os Meteoros, O Tratado das Plantas, A História dos Animais, O Tratado da
Alma, A Filosofia Primeira ou Metafísica – e não citamos senão os títulos
principais.
2. “Obras Poéticas”, que além da poética propriamente
dita, tratam da retórica e da lógica [Organon], compreendendo As Categorias, As
Primeiras Analíticas, As Segundas Analíticas, Os Tópicos.
3. “Obras Morais”: A Política, A Moral à
Nicômano, a Constituição de Atenas e outras obras de colocação por vezes
duvidosas como a Moral à Eudemo e a Grande Moral.
Denominam-se acroamáticas as obras de
Aristóteles que chegaram até nós, o que as distingue ao mesmo tempo das obras
exotéricas, perdidas, destinadas a um público mais vasto e sem dúvida elaboradas
de modo diferente. As acroamáticas, com efeito, parecem ter sido instrumentos
de trabalho, “cursos” destinados a alunos já adiantados e onde não se evitam nem
a linguagem técnica, nem a dificuldade. E não deve causar admiração ver a Metafísica os as Analíticas incluídas entre os livros “poéticos”, uma vez que poética deve ser entendida aqui no seu
sentido original de “criação” ou “construção”.
A
Metafísica inicia-se por uma página muito ampla, muito bela e perfeitamente
explícita: “Conhecer por conhecer e saber por saber, tal é o caráter principal
da ciência do supremo cognoscível por excelência. Ora o cognoscível por
excelência são os princípios e as causas: é por eles e a partir deles que as
outras coisas são conhecidas. A ciência mais elevada, e que é superior a toda
ciência subordinada é aquela que conhece em vista de que fim se deve fazer cada
coisa. E esse fim é o fim de cada ser e, de modo geral, é o soberano Bem no
conjunto da natureza”.
Assim, pois, tanto para Aristóteles como para
Platão é o soberano Bem que constitui o objeto final da atividade espiritual
como da vida moral. A diferença aparecerá na maneira como defini-lo ou de
chegar até ele, mas será capital e marcará uma reviravolta completa na
concepção e no próprio funcionamento da inteligência.
Platão deriva o conhecimento do sensível do
conhecimento do inteligível; é partindo do sensível que Aristóteles chegará ao
inteligível. E seu primeiro passo será uma contradição e uma crítica radical da
teoria das Ideias.
Essa crítica, ele a apresenta em pormenor e
com uma argumentação por vezes difícil. Recrimina as ideias e sua
multiplicidade infinita e mesmo o seu caráter absurdo, pois dever haver Ideias
para cada coisa, inclusive para a negação, a privação, a relação, o factício, o
falso ou o imaginário; nega-lhes toda possibilidade de ação e, para ele,
participação não passa de uma palavra vazia de sentido. O mais importante,
porém, é que as consideras como meros produtos da especulação do espírito, como
conceitos que exprimem generalidades, mas não podem ter existência real;
assume, deste modo, uma posição nitidamente nominalista, como se dirá mais
tarde, quando a disputa for revivida. O que ele vê nas entidades do seu mestre
são apenas fórmulas, definições se se quiser, mas no fundo simples palavras, flatus vocis sem verdadeira realidade.
Neste ponto é injusto para com Platão e o
desvirtua, o que, aliás, acontece facilmente a todos aqueles que expõem as
razões do adversário para combatê-las. Não opera essa redução da Idéia ao
conceito senão despojando-o do caráter dinâmico que constitui, no pensamento do
fundador, uma parte não desprezível da sua originalidade. E é com demasiada
facilidade que se justifica.
Se Aristóteles censura às Ideias o não serem
bastante dinâmicas é porque situa alhures o centro de ação; se as acusa de
insuficiência causal é porque lhe parece insignificante a sua participação na
complexidade da causa tal como ele a compreende. E assim chegamos ao sistema
próprio do mestre do Liceu.
Vê a origem da filosofia no assombro dos
homens ante o espetáculo do mundo e nos esforços que envidaram para explica-lo.
Antes da ciência, diz ele, nos surpreendemos de que as coisas sejam o que são;
depois surpreender-nos-íamos se elas fossem diferentes. Para adquirir essa
ciência, afirma que é mister partir não do inteligível – que constitui, pelo
contrário, o ponto de chegada – mas do sensível e, mais precisamente, da
sensação. De mais a mais, reconhece que não pode haver conhecimento senão do
geral; é de opinião que não existe realidade fora do particular, e daí procede
para deduzir as suas máximas.
Estabelece a dupla e célebre dualidade
correlativa da matéria e da forma, da potência e do ato. Mas não imaginemos que
seja demasiado simples ou fáceis essas distinções; não confundamos a matéria
com o puro material, e nem julguemos que exista em alguma parte uma espécie de
vasto reservatório donde a matéria seria extraída para modelar os tipos
individuais. Ela não existe fora destes tipos individuais e tudo o que faz é
passar de um a outro, de uma forma a outra. A matéria seria antes o “indeterminado”
e é bem assim que entende Aristóteles. “Chamo matéria”, escreve ele na Metafísica, “o que não sendo um ser
determinado em ato, o é em potência somente”. Destarte, tudo se reduz à
distinção de uma possibilidade de ser, que o ato transforma numa realidade de
ser, e veremos que o princípio desse ato é da ordem do movimento. E neste
sentido se poderá dizer que a alma é o ato do corpo ou, se assim se prefere, o
corpo em ato.
Daí decorre o sistema das causas. Há-as de
quatro espécies, encadeadas entre si e por vezes confundindo-se: a causa material, a causa formal, a causa
eficiente ou motriz, a causa final. A causa material é a própria matéria de
que a coisa é feita, como o mármore na estátua; a causa forma, a concepção
mesma da coisa: a ideia da estátua no espírito do escultor; a causa motriz é a
ação do operário, do escultor; a causa final é a obra em si: a estátua como
deve ser. (...)
“Tudo o
que é provém de alguma coisa ou se torna em alguma coisa”, disse
Aristóteles. Não suponhamos, por isso, que ele se mantenha apenas no domínio da
mutação e da geração. Também ele tem o seu mundo inteligível, embora não seja o
mesmo de Platão nem chegue a ele seguindo os caminhos trilhados pelo mestre.
Admite substâncias incorpóreas e seres sem matéria, e mais tarde Santo Tomás,
ao tratar dos Anjos considera-os como “substâncias separadas”, se lembrará de
Aristóteles. Os próprios astros são para o Estagirita, seres puros que, embora
compostos, escapam à corrupção; e a alma humana é um princípio espiritual.
Nessa ascensão da matéria à forma, da potência ao ato, a perfeição vai-se acentuando
à medida que escasseiam a matéria e a potência, à medida que o ato adquire
maior liberdade e mais pureza em seu exercício, até chegarmos finalmente ao “Ato
Puro”, que é o Deus aristotélico. (...)
O
método aristotélico, baseado na sensação, na observação e no jogo cerrado das
operações lógicas, outro não era senão o próprio método da ciência que ele
assim fundava ou desenvolvia o que explica assim a sua voga prodigiosa.
O nosso mundo moderno é tributário seu e
parece que com mais propriedade nos deveríamos chamar filhos do Estagirita que
de Platão. Não exageremos, entretanto. Ambos sabiam que o conhecimento procede
pelas causas, embora umas as aprenda melhor no mecanismo do espírito e o outro
as aponte nessa causalidade última que é a realidade inteligível. Cumpre
confessar que a teoria da reminiscência é menos satisfatória do que a doutrina
do Organon.
Onde Platão recupera vantagem é na vida que
comunica às ideias por essa doutrina abusiva das Ideias. Repitamo-lo: os seus
contraditores abusam por sua vez quando interpretam essas ideias como puros
modelos, despojando-as do seu valor dinâmico. É certo que Platão se engana ou
inventa quando as define, enumera ou multiplica com demasiada precisão ou
profusão, pois o mundo inteligível não tem essa clareza de lineamentos, nem
essa vivacidade de coloridos. Mas é verdade também que somente nele pode
ocultar-se a força, a força viva e palpitante que ordena o mundo e que
indubitavelmente o produz. Essa força, essa palpitação, são mais sensíveis em
Platão e o seu Deus, esse soberano Bem que atrai a si o mundo pela dupla
solicitação do Belo e do Bem, da estética e da ética, possui algo mais que o
Motor Imóvel e o seu reclamo glacial.
Aristóteles permaneceu sempre filósofo, mas
foi também homem de ciência, tanto quanto era possível sê-lo no seu tempo, e
fez entrar na economia de sua obra uma imensa enciclopédia. Somos especialmente
sensíveis a esta faceta do seu gênio e não nos compenetramos bastante de que sua
“física” é ainda uma ‘metafísica”, ou pelo menos está voltada para fins metafísicos.
Fonte: História da Filosofia - "Histoire de la Philosophie" por Gonzague Truc
Editora Globo, Porto Alegre.
Rayom
Ra
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