domingo, 1 de fevereiro de 2015

Aristóteles de Estagira

 
   Na Calcídia, foi, pelo menos durante a vida, um personagem absolutamente histórico. Nascido no ano 384 antes de Cristo era filho de Féstias ou Féstis e de Nicômano, um médico ou homem versado em assuntos de medicina, o que o tornava acreditado junto de Felipe, o rei da Macedônia. Após uma juventude bastante obscura e talvez agitada, ingressou por volta dos dezoito anos na Academia, onde permaneceu até a morte de Platão, isto é, durante vinte anos.

  Ignoramos como se portou ali e se já se podia vislumbrar nele um opositor; o que é lícito supor é que aprendeu naquela escola tudo quanto era possível aprender. Ao cabo desse tempo foi para a Mísia, onde se demorou junto ao tirano de Atarnéia, Hérmias, passando depois para Mitilene, na ilha de Lesbos. Em 343 tornou-se preceptor daquele que seria mais tarde o grande Alexandre, e que tinha então treze anos de idade. Retornou a Atenas em 335 e ali fundou a sua escola. A morte do conquistador, seu discípulo, colocou-o em dificuldades com a Grécia subelevada – pois não estivera ele mancomunado com o inimigo? – e teve de refugiar-se em Cálcis, na ilha de Eubéia, onde morreu em 322.

  É uma figura completamente diversa de Platão, outro gênero de espírito, não já um poeta, mas um homem de ciência e um dos cérebros mais prodigiosos que a humanidade tem produzido.

  Possuímos alguns pormenores sobre a sua pessoa física. Era ligeiramente gago, conta Diógenes Laércio; tinha olhos pequenos, pernas finas e trazia a face raspada ao invés de usar a barba socrática. Tivera um filho, Nicômano, da cortesã Herpelís, a quem em realidade a teria desposado em segundas núpcias, pois fora anteriormente casado com Pítias, sobrinha ou filha adotiva de Hípias. Mostrava certo pendor pelo luxo e gostava de se trajar bem. Seus rendimentos eram relativamente bons, alimentados, sobretudo, pela generosidade dos reis macedônios.

  O local escolhido para a sua escola era um ginásio de Atenas, o Liceu, assim chamado por causa de um templo vizinho dedicado a Apolo Lício [matador de lobos]. Habituara-se a ensinar enquanto caminhava, donde o nome de “peripatéticos” adotado pelos seus discípulos, do verbo grego que significa passear – literalmente “andar em redor”.

  O próprio modo de ensinar é mais significativo e consoante com a natureza da doutrina. “O diálogo”, diz Hamlin, “supõe a maiêutica” ou o seu equivalente platônico, a reminiscência; trata-se apenas de nos reportarmos a uma espécie de evidência íntima. Para Aristóteles, ao contrário, ensinar é demonstrar; ter idéia do termo médio e da prova, não há necessidade, portanto, de um retorno do ouvinte sobre si mesmo, nem de que se lhe peça o assentimento: é forçado a dá-lo.

  Deixamos para trás, com efeito, a época dos discursos, do desprezo pela palavra escrita, e faz-se mister o recurso aos livros. Os do próprio Aristóteles formam uma biblioteca inteira. O catálogo organizado por Diógenes Laércio compreende duas páginas densas de títulos. O que sobrou dessa vasta nomenclatura foi classificado, de acordo com a própria classificação das ciências estabelecida pelo autor, em:

  1. “Obras Teóricas”; A Física, O Tratado do Céu, Os Meteoros, O Tratado das Plantas, A História dos Animais, O Tratado da Alma, A Filosofia Primeira ou Metafísica – e não citamos senão os títulos principais.
  2. “Obras Poéticas”, que além da poética propriamente dita, tratam da retórica e da lógica [Organon], compreendendo As Categorias, As Primeiras Analíticas, As Segundas Analíticas, Os Tópicos.
  3. “Obras Morais”: A Política, A Moral à Nicômano, a Constituição de Atenas e outras obras de colocação por vezes duvidosas como a Moral à Eudemo e a Grande Moral.

  Denominam-se acroamáticas as obras de Aristóteles que chegaram até nós, o que as distingue ao mesmo tempo das obras exotéricas, perdidas, destinadas a um público mais vasto e sem dúvida elaboradas de modo diferente. As acroamáticas, com efeito, parecem ter sido instrumentos de trabalho, “cursos” destinados a alunos já adiantados e onde não se evitam nem a linguagem técnica, nem a dificuldade. E não deve causar admiração ver a Metafísica os as Analíticas incluídas entre os livros “poéticos”, uma vez que poética deve ser entendida aqui no seu sentido original de “criação” ou “construção”.

  A Metafísica inicia-se por uma página muito ampla, muito bela e perfeitamente explícita: “Conhecer por conhecer e saber por saber, tal é o caráter principal da ciência do supremo cognoscível por excelência. Ora o cognoscível por excelência são os princípios e as causas: é por eles e a partir deles que as outras coisas são conhecidas. A ciência mais elevada, e que é superior a toda ciência subordinada é aquela que conhece em vista de que fim se deve fazer cada coisa. E esse fim é o fim de cada ser e, de modo geral, é o soberano Bem no conjunto da natureza”.

  Assim, pois, tanto para Aristóteles como para Platão é o soberano Bem que constitui o objeto final da atividade espiritual como da vida moral. A diferença aparecerá na maneira como defini-lo ou de chegar até ele, mas será capital e marcará uma reviravolta completa na concepção e no próprio funcionamento da inteligência.

  Platão deriva o conhecimento do sensível do conhecimento do inteligível; é partindo do sensível que Aristóteles chegará ao inteligível. E seu primeiro passo será uma contradição e uma crítica radical da teoria das Ideias.

  Essa crítica, ele a apresenta em pormenor e com uma argumentação por vezes difícil. Recrimina as ideias e sua multiplicidade infinita e mesmo o seu caráter absurdo, pois dever haver Ideias para cada coisa, inclusive para a negação, a privação, a relação, o factício, o falso ou o imaginário; nega-lhes toda possibilidade de ação e, para ele, participação não passa de uma palavra vazia de sentido. O mais importante, porém, é que as consideras como meros produtos da especulação do espírito, como conceitos que exprimem generalidades, mas não podem ter existência real; assume, deste modo, uma posição nitidamente nominalista, como se dirá mais tarde, quando a disputa for revivida. O que ele vê nas entidades do seu mestre são apenas fórmulas, definições se se quiser, mas no fundo simples palavras, flatus vocis sem verdadeira realidade.

  Neste ponto é injusto para com Platão e o desvirtua, o que, aliás, acontece facilmente a todos aqueles que expõem as razões do adversário para combatê-las. Não opera essa redução da Idéia ao conceito senão despojando-o do caráter dinâmico que constitui, no pensamento do fundador, uma parte não desprezível da sua originalidade. E é com demasiada facilidade que se justifica.

  Se Aristóteles censura às Ideias o não serem bastante dinâmicas é porque situa alhures o centro de ação; se as acusa de insuficiência causal é porque lhe parece insignificante a sua participação na complexidade da causa tal como ele a compreende. E assim chegamos ao sistema próprio do mestre do Liceu.

  Vê a origem da filosofia no assombro dos homens ante o espetáculo do mundo e nos esforços que envidaram para explica-lo. Antes da ciência, diz ele, nos surpreendemos de que as coisas sejam o que são; depois surpreender-nos-íamos se elas fossem diferentes. Para adquirir essa ciência, afirma que é mister partir não do inteligível – que constitui, pelo contrário, o ponto de chegada – mas do sensível e, mais precisamente, da sensação. De mais a mais, reconhece que não pode haver conhecimento senão do geral; é de opinião que não existe realidade fora do particular, e daí procede para deduzir as suas máximas.

  Estabelece a dupla e célebre dualidade correlativa da matéria e da forma, da potência e do ato. Mas não imaginemos que seja demasiado simples ou fáceis essas distinções; não confundamos a matéria com o puro material, e nem julguemos que exista em alguma parte uma espécie de vasto reservatório donde a matéria seria extraída para modelar os tipos individuais. Ela não existe fora destes tipos individuais e tudo o que faz é passar de um a outro, de uma forma a outra. A matéria seria antes o “indeterminado” e é bem assim que entende Aristóteles. “Chamo matéria”, escreve ele na Metafísica, “o que não sendo um ser determinado em ato, o é em potência somente”. Destarte, tudo se reduz à distinção de uma possibilidade de ser, que o ato transforma numa realidade de ser, e veremos que o princípio desse ato é da ordem do movimento. E neste sentido se poderá dizer que a alma é o ato do corpo ou, se assim se prefere, o corpo em ato.

  Daí decorre o sistema das causas. Há-as de quatro espécies, encadeadas entre si e por vezes confundindo-se: a causa material, a causa formal, a causa eficiente ou motriz, a causa final. A causa material é a própria matéria de que a coisa é feita, como o mármore na estátua; a causa forma, a concepção mesma da coisa: a ideia da estátua no espírito do escultor; a causa motriz é a ação do operário, do escultor; a causa final é a obra em si: a estátua como deve ser. (...)

  Tudo o que é provém de alguma coisa ou se torna em alguma coisa”, disse Aristóteles. Não suponhamos, por isso, que ele se mantenha apenas no domínio da mutação e da geração. Também ele tem o seu mundo inteligível, embora não seja o mesmo de Platão nem chegue a ele seguindo os caminhos trilhados pelo mestre. Admite substâncias incorpóreas e seres sem matéria, e mais tarde Santo Tomás, ao tratar dos Anjos considera-os como “substâncias separadas”, se lembrará de Aristóteles. Os próprios astros são para o Estagirita, seres puros que, embora compostos, escapam à corrupção; e a alma humana é um princípio espiritual. Nessa ascensão da matéria à forma, da potência ao ato, a perfeição vai-se acentuando à medida que escasseiam a matéria e a potência, à medida que o ato adquire maior liberdade e mais pureza em seu exercício, até chegarmos finalmente ao “Ato Puro”, que é o Deus aristotélico. (...)

  O método aristotélico, baseado na sensação, na observação e no jogo cerrado das operações lógicas, outro não era senão o próprio método da ciência que ele assim fundava ou desenvolvia o que explica assim a sua voga prodigiosa.

  O nosso mundo moderno é tributário seu e parece que com mais propriedade nos deveríamos chamar filhos do Estagirita que de Platão. Não exageremos, entretanto. Ambos sabiam que o conhecimento procede pelas causas, embora umas as aprenda melhor no mecanismo do espírito e o outro as aponte nessa causalidade última que é a realidade inteligível. Cumpre confessar que a teoria da reminiscência é menos satisfatória do que a doutrina do Organon.

  Onde Platão recupera vantagem é na vida que comunica às ideias por essa doutrina abusiva das Ideias. Repitamo-lo: os seus contraditores abusam por sua vez quando interpretam essas ideias como puros modelos, despojando-as do seu valor dinâmico. É certo que Platão se engana ou inventa quando as define, enumera ou multiplica com demasiada precisão ou profusão, pois o mundo inteligível não tem essa clareza de lineamentos, nem essa vivacidade de coloridos. Mas é verdade também que somente nele pode ocultar-se a força, a força viva e palpitante que ordena o mundo e que indubitavelmente o produz. Essa força, essa palpitação, são mais sensíveis em Platão e o seu Deus, esse soberano Bem que atrai a si o mundo pela dupla solicitação do Belo e do Bem, da estética e da ética, possui algo mais que o Motor Imóvel e o seu reclamo glacial.

  Aristóteles permaneceu sempre filósofo, mas foi também homem de ciência, tanto quanto era possível sê-lo no seu tempo, e fez entrar na economia de sua obra uma imensa enciclopédia. Somos especialmente sensíveis a esta faceta do seu gênio e não nos compenetramos bastante de que sua “física” é ainda uma ‘metafísica”, ou pelo menos está voltada para fins metafísicos.

Fonte: História da Filosofia - "Histoire de la Philosophie" por Gonzague Truc
            Editora Globo, Porto Alegre.

Rayom Ra
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