A negra cortina se fazia estranha ao Portal; ocupava o vão inteiro entre as
colunas, fechando abaixo do arco. Flutuava, movia-se a quase imperceptível
ritmo - mas era imprescindível que ela ali estivesse. Que é a luz? Que são as trevas?
Serão, ambas, irrefutáveis provas da perfeição do Criador? Haveria luz sem as
trevas?
Ainda em cumprimento ao ritual, Bruno elevou
a mão direita pouco acima do rosto, apontando com os dedos indicador e médios
unidos, pronunciando:
- Abra-se o Portal! Permaneça no umbral o que
Eu não Sou! Meu coração e pensamento sejam dignos de ser ouvidos!
Ditas as palavras, baixou a mão em gesto
único cortando o ar, e a cortina abriu-se ao meio. Através do rasgo, já era
possível entrever o outro lado e ele deu dois passos colocando-se no entremeio.
A cortina se cerrou e o envolveu, mas não encontrando egocentrismo em seu
propósito, caiu desfeita ao umbral. Aliviado, Bruno reiniciou os passos.
A luz, após o Portal, era exatamente a mesma
de antes e ele se afastou tomando o reto caminho diante de si. Em espaços
regulares, naquele caminho, pequenas vias se desenhavam como asas. Dobravam-se em curvas
terminando em pontas. O
chão, constituído por blocos triangulares de cristais justapostos, emitia farto
e iridescente brilho, mesclando matizes luminosos – principalmente azul e
dourado – destacando às margens a cor ígnea. Idênticos blocos, matizes e
margens orladas, também existiam nos desenhos das asas, no chão, tanto à direita como à
esquerda. Bruno seguia o trajeto. Um transparente manto já o envolvia; ele procurava ignorá-lo mantendo
os olhos presos à claridade mais acima. E à medida que avançava, vinha-lhe à
mente a sensação de estar ascensionando, subindo gradual e verticalmente, e um
gostoso torpor o invadia.
As chamas se acenderam. O caminho era agora
um facho retilíneo, luminoso e brilhante, e uma luz brilhou em toda a sua
longitude. Aos flancos labaredas crepitavam lançando ao ar pequenas faíscas.
Era algo singular: a luz vibrava em transparente lâmina e as pequenas asas,
tornadas ígneas, queriam soltar-se levando tudo em ardente voo. Entrementes, outro
processo começou a se fazer sentir, semelhante a uma réplica ou transferência.
Aquilo, sob cuja forma externa ele vinha vivenciando ao longo desse palmilhar,
de certa maneira passava-se também em seu intimo. Uma lâmina idêntica àquela
por onde ele pisava houvera se acendido no interior de seu próprio corpo.
Estendia-se desde a base da coluna vertebral até ao alto da cabeça. Pequenas
asas em chamas, a exemplo daquelas existentes no caminho, principiaram a arder
em seus braços e pernas, aos flancos. Em poucos instantes, a transparente e
luminosa lâmina alargava-se, moldando-se num tubo de igual teor. No interior
desse tubo, em toda a sua extensão, surgia um vibrante fio azul.
Ao cabo de segundos novas e rápidas variações
aconteciam e o tubo desapareceu, mas o fio azul, agora mais espesso, vibrava
intensamente. As pequenas asas ígneas de seus braços e pernas juntaram-se
todas, formando duas grandes asas. A cabeça ficou envolta de um excedente
brilho que lhe configurava uma grande auréola. Essas transformações rapidamente
transmutaram-se, tornando-o numa estrela flamígera!
Luz e chamas cambiavam em seu tronco. A luz
oscilava do branco luminoso ao azul irradiante e as chamas, ao tomarem seus
membros, iam do ígneo ao dourado. Ele sentiu-se mergulhar no mais profundo de
si mesmo, perdendo o pouco domínio que ainda detinha sobre sua vontade e um
irresistível impulso de voar veio tomá-lo, sendo imediatamente lançado para
cima. Após alguns segundos, ou seriam minutos – impossível mensurar – atingiu
um ápice, onde pousou. Tão logo se apoiou em base firme, o fenômeno
transmutativo apagou-se magicamente e ele voltou à sua forma natural, como se
nada tivesse acontecido.
Encontrava-se no interior de um lugar cujas
dimensões de valores e qualidades eram sobremodo superiores. Permeava-o outra
vida: era algo elétrico, dinâmico, magnético, disseminando-se e se transmitindo
pelo ar. O lugar era verdadeiramente um jardim no formato de uma coroa. Variedades de flores e arbustos compactos com folhas coloridas delineavam os seus
limites: subiam em formosos bicos e abaixo vinham se constituir em segmentos
retos que se interligavam. No exato centro dessa coroa, brilhava um lago
absolutamente circular, de uma água perfeitamente límpida e azul. O anel que
configurava sua volta era largo e dourado. O fundo era branco, claramente
percebido, onde havia um disco de ouro externando doze raios, ultrapassando por
baixo a margem circular, terminando fora da água. Os raios, também de ouro,
transmitiam reflexos tanto debaixo da água como fora dela.
Algo extremamente
interessante vinha contemplar a visão de quem ali permanecesse: uma agradável
combinação de matizes produzia um fenômeno de refração no lago. A pouca
distância, já era possível notar com inteira nitidez o fundo do lago a pairar
sobre a superfície, sobrelevando-se em excêntrica miragem. Isso se tornava
possível, em parte, pelo resplandecente banho da claridade que provinha de
fora.
Havia em redor do lago
quatro bancos de pedra lisa e polida, voltados, cada um, para uma respectiva
orientação astronômica. Diante dos bancos, a via circular, coberta por milhares
de pétalas de flores, detinha ao alto uma trepadeira perfeitamente aparada,
apoiada em finos mourões inclinados e encurvados para baixo. A trepadeira lançava-se
alpendrada para o centro da coroa, debruçando-se à margem do lago em todo o
seu desenho, largando pétalas das flores sobre a via.
Não ventava nesse instante. Os galhos, ramos
ou flores na figura da coroa, jaziam totalmente imóveis. Nem sempre era
possível ver dali o azul do céu. A visão somente acontecia em determinados
instantes sobre o lago, quando as nuvens, engolfando a montanha, se abrissem
parcialmente, e as chamas não estivessem em propagação e ardência. As chamas
irrompendo dentre as nuvens ou fora delas, produziam ruído de rasgar maciamente
um tecido. Seguia-se o deslize e expansão das próprias chamas para as várias
direções. Esse último movimento assemelhava-se a um toque de carícia na seda.
Enquanto as chamas não ressurgissem, a claridade era mais ou menos estável,
acentuando-se aos poucos do branco-róseo ao dourado suave. Às vezes abraçava
por fora translúcido manto azul de finíssima tessitura.
Mas tudo era fogo, mesmo nos entremeios da
ação mais forte e vibrante das chamas, quando após impulsarem-se elas decaíam
querendo desaparecer. O ar, a atmosfera, o espaço etéreo, conservavam nas
entranhas a resultante ação ígnea, a exemplo de invisível cortina em perene
ardência. A claridade não era um reflexo, mas a própria ardência e crepitação.
O Jardim – a coroa propriamente – na
verdade, não era alcançado pelo furor das chamas; era-o, isto sim, pelo
espírito da presença que se comunicava através de tudo sob a ação inicial do
fogo.
Havia um apêndice à coroa. Num ponto mais
abaixo da montanha, constituía-se um patamar de pedra negra em formato
hexagonal. Esse tipo de laje antecedia a uma cripta situada mais acima, a cujo
acesso era necessário subir três degraus. A cripta possuía a figura de um
pentagrama encravado no chão, vindo após uma urna funerária ladeada
respectivamente à direita e à esquerda, na cabeceira e aos pés, por um total de
quatro tochas ardentes. Na rocha, ao fundo, aparecia um sol em tom dourado.
Bruno aqui estivera algumas vezes em meditação. Após vividas experiências no âmbito
da Fraternidade Irmãos Atlantes – tendo merecido ouvir nesse lugar certas
revelações – fora-lhe concedida a permissão de ascender à coroa.
Nesse momento Bruno
encontrava-se em pé, olhando fixamente para o lago. Desde o instante da
transmutação de seu corpo para uma estrela flamígera, ele perdera o senso de
proporção de todas as coisas. Veio dar-se conta do que realmente era algum
tempo depois de aqui ter chegado. Em rápido olhar em derredor, vieram-lhe à
memória as gratas recordações de sua última visita a este Jardim. Lembrou-se
com satisfação, dos momentos em que recebera todas as diretrizes para
transcrever um encadeamento sucessório nas centúrias. Era o fechamento
premonitório da história da célula no atual momento vibratório de manifestação
física no planeta, revelado em quadros mentais. O encadeamento profético e
cognitivo precisaria traduzir os ideais da célula para o atual ciclo, a partir
de encerrada a sua última e pregressa manifestação física no planeta. E ficou tudo muito
claro e perfeito ao final de tudo.
Enquanto Bruno divagava, as chamas
reacenderam envolvendo o espaço externo ao Jardim. A coroa transformou-se.
Todas as cores ficaram muito mais fortes adquirindo colorações diferentes de
sua originalidade. Bruno passou a sentir-se penetrado de uma nova vitalidade;
um calor que não ardia perpassava-lhe todo o corpo, deixando-o com a sensação de
maior leveza. Algum tempo depois as chamas decaíram e uma névoa permaneceu. Aos
poucos a névoa foi clareando, mostrando-se principalmente em tons róseo,
dourado e branco. Finalmente, o Jardim clareou-se por completo.
Bruno sentou-se naquele banco voltado para o
sul e fechou os olhos concentrando-se na própria alma. Com isso, desligou-se do
ambiente externo, viajando mentalmente, repetindo sempre as palavras como a um
mantra auto elaborado: “nuvem escura, como enfrentá-la?” Mais tarde voltou à
consciência. Pareceu-lhe não ter ocorrido qualquer mudança externa. Tudo
transpirava harmonia e paz, muito embora o teor magnético do Jardim impregnasse
poderosamente aos átomos de seu corpo e esses respondessem com vibrações mais
dinâmicas. O extraordinário lugar vivia em todas as coisas como uma só alma.
Uma realidade abarcante movia-se no íntimo de tudo, fazendo-se sentir a cada
segundo. Mas nada era igual ao que se passara segundos antes: o presente era
especialmente escorregadio. A subjetiva percepção da envolvente atmosfera
arremetia o pensamento de quem ali estivesse a um transcendente parâmetro de
tempo e espaço, apesar de todos os limites existentes.
Não haveria nada a mudar: ali estava tudo
perfeitamente inserido. A única ação adicional àquele irretocável cenário seria a progressão de
uma pessoal consciência, quando essa pudesse se desprender daquelas aparências e atingisse a um espaço futuro, adquirindo novas sensações. Bruno,
em reflexões, enquanto aqui estivera noutras oportunidades, ousara sondar a esse fenômeno, perguntando-se se essa percepção que se abria em sua consciência e sentir
seriam, tão somente, devido a uma ação periódica das chamas. E concluíra que as chamas são a própria vida dimanada do Criador. Ele as houvera
criado sob Sua ação incessantemente manifestada. A face ou aparência de todas as coisas pode eventualmente mudar por que está submetida a uma lei
temporal, tendo um limite ou tempo de sobrevivência nas miríades de formas do mundo. Mas
o essencial, não. E as chamas tendo vida distinta e independente das ações duais da natureza terrena bastam-se a
si próprias, sendo eternas e imutáveis existências, não precisando renovar-se, mas simplesmente
viver as suas próprias imanências. Elas transcendem o tempo e o espaço do mundo terreno, não estando
contidas nem encerradas nas formas. As chamas, ao final de tudo, são uma
só vida, várias vezes desdobradas: e todas são a um só tempo a Chama Única do Saber.
Eis por que - concluiu - as chamas ardentes no Jardim falavam-lhe como se nele todas existissem a um só tempo.
O tempo ali parecia decorrer ausente de qualquer outro fator ou parâmetro conhecido nos anais terrenos. Bruno nesse instante
caminhava descalço sobre as pétalas de flores. À medida que as ia sentindo sob
a sola dos pés, seus perfumes recendiam, exalando algo indefinível. Ele trazia
os braços largados atrás, sobre a parte posterior dos quadris, com mãos abertas: uma com o dorso colado contra a palma da outra. Seus olhos buscavam ora o chão ora o alto, mas não se fixavam em
nada por que nada o distraía. Repetia obsessivamente a mesma questão aguardando
por uma resposta.
Anoitecera sem que
percebesse. Uma projeção das sombras noturnas procurava o Jardim, porém, de dentro da coroa não era possível
notar os seus avanços. Pois mesmo que rapidamente se infiltrasse pelas
brechas das claras nuvens, seria obstada pela densa folhagem do alpendre; e, de todas as formas, a luz circundante, inerente às chamas, não
lhes permitiriam grassar livremente, perdendo logo a consistência. Mas
tal como em horas de céu azul, a visão noturna ficava somente por conta dos reflexos pelo
lago - em porções - uma vez que vinham, justo,
refletir-se em rápidos acolhimentos.
Voltando a Bruno, não importava fosse dia
ou noite – seria de somenos importância – porquanto ele permanecia fechado
sobre a significativa e pertinente questão que lancetava seu ego. Cansado de
andar em círculos ao longo da via, voltou ao mesmo banco, buscando emergir de
todas as coisas, sobrelevando-se à consciência mais alta. Esse estado mental, ele
alcançara uma única vez neste último tempo de meditação. A ausência de uma
significativa resposta começava a alimentar novas e crescentes preocupações.
Outra incômoda e significativa questão infiltrava-se em seus mais torturantes
pensamentos, batendo incessantemente: e se retornasse sem uma solução prática à
tentativa de bloqueio da nuvem escura? Isso trazia-lhe outro tipo de inquietação a despeito do emprego de todas as técnicas de meditação que conhecia e acabou por desistir.
Virou-se então opostamente, girando sobre
o assento do banco, e mirou o lago. Havia rebrilhos na superfície da água azul. Pequenas luzes ali se espelhavam. Instintivamente ele volveu os olhos para o
céu, vendo através da translúcida névoa pontos oscilantes de luz nas claras nuvens. Tratavam-se de diminutos e iridescentes focos que permaneciam
sempre nas mesmas posições. Ao olhar maquinalmente de volta para o lago, viu
formar-se dentre as pequenas e deslizantes marolas, uma imagem contornada por rápidos
reflexos daqueles focos. Era um rosto! Surpreso, procurou fixar-se sobre aquela formação; logo o rosto delineou-se melhor, tomando perfeitos contornos, e
materializou-se.
O rosto era masculino e belo. Os dourados
cabelos, a meio tamanho, com franja sobre a testa, reluziam como o mais
precioso ouro. Possuía uma tiara, também de ouro, contornando a testa e a
cabeça, assentando melhor os cabelos. O rosto não tinha idade; os olhos eram
verdes; o delicado queixo terminava com extremidade quadrada. Ele tomou-se de
vida, piscou, e diante do olhar estupefato de Bruno, falou-lhe com austeridade:
“Julgastes vossa preocupação única? Saibai vós que
durante todo esse tempo mentes superiores também trabalham com possibilidades
diante da nova inclusão, denominada por vós humanos de a nuvem escura. Acalmai
vosso coração; como podeis esquecer-vos de que os Mestres Superiores não
saberiam da inaudita presença? Tentastes uma só vez fazer contato com os
mensageiros dos Mestres? Julgastes que a imagem mostrada ao Ministro
Extraordinário, escaparia à consciência dos Superiores? Como podeis imaginar
tamanha amplitude de um possível acontecimento como esse a tragar somente as
energias e preocupações de uns poucos obreiros como vós? Ouvi com atenção por
que falo com clareza e discernimento a uma mente sábia e a um coração puro:
fazei a vossa parte da melhor maneira possível, não negligenciai vossas
obrigações, saiais a lutar com denodo e sabedoria. Ninguém fará humanamente
melhor o que é dos humanos, mas lembrai-vos: o futuro se definirá na Terra por
tudo quanto os homens fizerem de bem ou de mal. Dar-vos-ei uma pequena indicação
de como agir na ocasião, mas todos os passos serão de vossa exclusiva competência.
Memorizai!”
Os olhos daquele magno rosto fecharam-se; a
fisionomia tornou-se como de uma esfinge reinante no tempo e sobre todas as
coisas. A imagem pétrea assim permaneceu por alguns segundos, perfeita,
intacta, bela, irretocável! Depois começou a oscilar, acompanhando o suave
movimento da água. Foi-se tornando mais fraca, translúcida e desapareceu. No
lugar ficaram os vacilantes pontos luminosos. Bruno olhou para o céu vendo as
luzes lá em cima também recuar, até serem totalmente encobertas pelas nuvens. Voltou a fitar o lago, mas nem teve tempo
para reflexões por que ouviu um estridente guincho provindo de uma das
gigantescas águias a sobrevoar a coroa do Jardim. Ela abriu as enormes asas e
pairou sobre o lago, acima dos limites do alpendre, lançando em direção a Bruno
um pergaminho que trazia preso às patas. O pergaminho caiu diante de seus pés e
a águia afastou-se.
Ele arcou-se e o tomou,
abrindo-o de imediato, vendo tratar-se de um plano para um posicionamento
estratégico de combate à malignidade da nuvem escura. Estudou-o com atenção nos
mínimos detalhes, percebendo no desenho um entrelaçamento de forças entre os
planos terreno e espiritual, sobre cuja fase não tocante à irmandade, que de
todas as formas não estando ali significativamente representada, não deveria
mesmo dela conjeturar ou discutir.
Tendo memorizado o plano, enrolou novamente o
pergaminho, porém assustado, largou-o no ar, porque subitamente ele se
aquecera, começando a incendiar-se. Ao cabo de poucos segundos o pergaminho
incinerou-se num fogo vivo e dourado, consumindo-se completamente sem deixar
qualquer vestígio. Nem tendo ainda se recuperado dessa nova surpresa,
seguiram-se as seguintes palavras: “Nenhum
registro deste plano irá transferir-se para o vosso cérebro terreno. Os
malignos não poderão sondá-lo de forma alguma. No momento certo a intuição
revelará o posicionamento adequado a adotar-se para o início da luta!”
No retorno ao castelinho, as imagens
quase todas se apagaram, permanecendo unicamente umas poucas cenas acontecidas
no Jardim Ardente. Permeava-o, não obstante, a certeza de que no momento da
ação contra a nuvem escura, saberiam como agir.
Chegou aos círculos. O trabalho
transcorria com normalidade. A noite caíra; a luz artificial produzia sombras
que se moviam ao balanço das lâmpadas. Sombras também insistiam em se mover
sobre o planeta. Por quanto tempo ainda as correntes resistiriam nessa
oposição? O cansaço estampado nos rostos dos irmãos era preocupante. Havia um campo fortemente magnético que
atuava intensamente para o interior dos círculos. Esse campo determinava a
atração centrípeta da energia. Outro campo, de atração centrífuga, empurrava da
periferia para fora toda a qualquer tentativa de invasão de forças contrárias.
Nada estranho poderia ali penetrar ou ingerir no trabalho desenvolvido pela
irmandade – isto de muitas maneiras os deixava tranquilos.
A ideia inicial de Mendez houvera sido
modificada. Os Mensageiros dos Superiores trouxeram-lhes novas e diferentes
instruções sobre a repolarização da energia primária. Não era desejável, hábil
ou coerente a irmandade arcar com essa imensa responsabilidade que
compreenderia a macro vida do planeta. Desta feita não se tratava de exercer
ajustes no plano de vida e evolução da célula, nem de estabelecer eventual
plano solidário com outras células numa mobilização intercontinental. Situações
especiais, embora de grande amplitude, mas pequenas num contexto de escala
mundial, estariam adstritas a decisões e esforços da própria hierarquia no
âmbito de sua irmandade. Ações coordenadas nesse teor seriam, antes de tudo,
precedidas de um planejamento real e concreto a fim de prever manobras de
qualidade e quantidade relativas tão somente a capacidade de gerir da célula. A
estrutura de qualquer célula não pode produzir soma de esforços que vão além de
sua própria economia. E o atual problema era demasiadamente grande.
A repolarização – conforme denominara o
Superior em suas primeiras explanações sobre o plano – sem dúvida, modificaria
o sentido da energia primária. Se por um lado a mudança de atitude perante a
presença da energia – conforme disseram os Mensageiros dos Superiores – os
isentaria de uma responsabilidade infinitamente maior, aliviando a ele, Bruno,
de enorme carga de preocupação e incomensurável trabalho – afora o que já
tivera – por outro lado, o fato vinha
trazer-lhe um aguçamento mental que o impulsionava a tentar saber como isso
seria feito nas dimensões superiores. Essa curiosidade, mais tarde, foi-lhe em
parte satisfeita pelos relatos de Sorman sobre sua viagem às dimensões. As
naves, as máquinas e as cabeças, passaram a realizar essa vital ação. Esse
trabalho, se realizado somente aqui embaixo, logicamente em proporções menores,
sem o emprego daquela avançada tecnologia, os levaria em poucos minutos à
extrema exaustão. Necessitariam, para tanto, de se utilizar de outras técnicas
envolvendo diferentes posturas físicas, mentais e até artes evocatórias.
Tinham razão os Mensageiros. Os recursos de
que dispunham não seriam suficientes para realizar grandes avanços contra a
energia primária ou nuvem escura. Essa flagrante desvantagem revelara-se a si
desde o princípio, ao ser informado por Sorman do tamanho e profundidade do
vórtice e da proporção da energia viajando pelo espaço. Sabia, sim: não
conseguiriam contê-la ou sufocá-la concretamente, mesmo se todas as células espalhadas
pelo planeta pudessem unir-se a um só comando, trabalhando com eficiente
disciplina e perfeita coordenação. Essa realidade praticamente o apavorou,
entretanto guardou-se em não demonstrar um nível excessivamente alto de
apreensão ou possível medo. Assim mesmo omitira-se de julgar, mas não de lançar
reptos, incentivar ou exortar à luta.
Os Mensageiros, por outro lado, embora o
instruíssem sobre alguns aspectos da repolarização, nada lhe revelaram de
substancial aos planos deles. Quanto a isso, limitaram-se a passar-lhe palavras
com certo teor enigmático que, de toda a sorte, serviram muito mais para
deixá-lo entre a desconfiança e a incerteza do que propriamente seguro. O
duelo, por sinal, voltara-lhe à mente ao rever os irmãos trabalhando nesse momento,
confiantemente, sem o conhecimento de grande parte da realidade oculta.
Unicamente trabalhavam obedientes às ordens. Essa constatação, velha e
casuísta, veio de novo mexer com sua consciência, fazendo imediatamente emergir
ao pensamento a mesma indagação: pecava por omissão ou mentia-lhes? Entretanto,
os subterfúgios de seu experiente ego procuravam inocentá-lo como a um ser
humano normal, comum, impotente perante as leis universais ou acontecimentos
dessa magnitude cósmica, perguntando-se: quantas vezes fatos cósmicos como esse
já não teriam ocorrido na vida milenar do planeta sem que nada soubesse?
Uma nova questão veio abortar de seus
pensamentos: o conhecimento da provável realidade, talvez caótica, que se
estabeleceria com os efeitos danosos dessa invasão a Terra, não lhes seria um
tributo à elevação pretendida pela célula nesse interlúdio planetário? Quanto
mais consciência maior o sofrimento!
- Parem as correntes, descanso geral! – ele
gritou-lhes. Os círculos, um a um, foram interrompendo os fluxos. – Desfaçam os
círculos até segunda ordem, retirem-se e refaçam-se!
Logo a área onde estavam ficou deserta.
Sombras e luz artificial dominaram todo o cenário. O céu de nuvens escuras
sistematicamente riscado por relâmpagos ou tomado de súbitos clarões
pareceu-lhe mais sombrio e ameaçador que antes. O vento e a chuva jamais
cessavam; havia horas estavam expostos a essas intempéries.
A Casa Rosa superlotava. O salão principal e
a varanda eram palcos de verdadeira multidão. Eles retiravam gorros, capuzes,
casacos, sapatos e meias. Enxugavam os rostos, tomavam café ou chá, comiam pão
e biscoitos sentavam-se nas cadeiras, no chão, ou se apoiavam nos corrimões. Ora um
burburinho mais alto se espalhava como envolvente onda ora se transformava num
grande falatório. Suas emoções antes represadas durante os trabalhos das correntes - agora soltas - alternavam-se em suas falas. Com alegria constatavam nada de mal lhes ter acontecido, apesar da
explosão que os assustara e do raio que felizmente a ninguém atingira.
Bruno cruzou o salão percorrendo todo o
corredor interior, chegando à biblioteca. Adentrou no ambiente buscando logo a chave na escrivaninha, dando duas voltas na fechadura. Sentou-se à mesa, apoiando os cotovelos sobre o grosso e
claro vidro, trazendo às mãos sob o queixo apoiando-o nos dedos entrelaçados, como se rezasse. Fechou os olhos,
concentrando-se no rosto de Mendez. O contato foi feito, mas o Superior
pediu-lhe um pequeno tempo até retirar-se da corrente. Com efeito, poucos
minutos depois restabelecia o contato.
“Como está a situação?”- perguntou Bruno.
“Normal, sem incidentes!”
“O estado geral dos irmãos é bom?”
“Sim, porém o cansaço já é grande, creio não
podermos suportar além da meia-noite”.
“Devem
todos parar nessa hora, voltando para suas casas. Novas equipes permanecerão
até às oito da manhã, com descansos regulares, como planejado.”
“Certo, cumpram-se as ordens!”
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A vida no planeta nessas últimas horas
estivera tumultuada. Em muitos países os elementos em revolta haviam provocado
diversos estragos. Diante de uma sucessão de acontecimentos, os governos
viam-se em inesperadas dificuldades. Onde as populações não tinham ainda se
defrontado com a violência das tempestades, outras consequências transtornavam
a normalidade. Religiosos fanáticos, extremados, organizações terroristas,
usurpadores de toda espécie, agitadores de massas, facções criminosas,
fomentadores de guerras – enfim, toda a sorte de mentes voltadas para a
destruição, que fazem do ódio o principal móvel da vida, estiveram em intensa
movimentação, reunindo-se, planejando ou já buscando por tortuosas
atividades. Havia evidentemente uma insuflação geral incitando a esses egos.
Intensa movimentação também acontecia nos
mundos internos da FIA e aliados. Aqueles trabalhadores não atuantes em
consonância direta com o plano de contenção da energia primária e nuvem escura
vinham, por outro lado, formar fileiras no enfrentamento das forças demoníacas.
Eram exércitos de soldados, legiões de especializados combatentes, falanges de
lutadores marciais, conhecedores de artes mágicas e imensa gama de discípulos
da sabedoria iniciática. A luta tomava várias direções ou vertentes. Não se
tratava unicamente de cercear o inimigo ou combatê-lo corpo a corpo. Tratava-se, isto sim, de também defender globalmente a Terra contra uma invasão cósmica do mal em várias escalas e amplitudes - o que podia levá-la a uma completa extinção.
A necessidade das forças negras é sempre
inverter valores; elas gozam e se locupletam; enchem-se de vazios arroubos;
cantam hosanas à vitória do anarquismo sobre a ordem, do atraso sobre o
progresso, do mal sobre o bem. Não há valores contributivos que mais respeitem.
Repudiam a luz e a verdade intrínseca à luz;
não conseguem vê-las e não as vendo não as sentem; assim jamais as entenderão. O
seu negro mundo é amplo, tão amplo quanto é na Terra o de seu oposto, mas ainda
assim somente incursionam em seu próprio caminho quando realizam hercúleos
esforços de oposição a quem simplesmente constrói.
Dessa maneira, a convocação foi geral à
célula, não somente aos departamentos atuantes da FIA. A irmandade, como um só
corpo, tomou para si essas difíceis tarefas no tocante à capacidade de
realizar. A cada um segundo as suas obras, e a célula dos Irmãos Atlantes
penetrou como pôde no momento da humanidade.
Os três dias que se seguiram foram
notadamente decepcionantes. A FIA e aliados não conseguiram manter o mesmo
ritmo de cooperação ao plano, como de início. Irmãos adoeceram, ficando até impedidos
de sair de casa. Outros, em grande número, esgotados pelo alto nível da energia
deles subtraída, ou pelo excessivo esforço mental realizado, foram excluídos em
definitivo. Devido a esses problemas e aos que de diversas origens vieram
participar das relações de vida dos irmãos, a produtividade dos círculos decaiu
consideravelmente em todos os setores de operações. Os persistentes nessa
cruzada, pretendendo não se dobrar às incidentais adversidades, chegavam da
mesma maneira ao limite de suas forças, tornando-se imperioso reconhecer-se a
impossibilidade de continuar com aquele trabalho.
A nuvem escura já cobria a quase totalidade
do planeta. A situação nesse tempo – quanto ao revolvimento da atmosfera e
revolta dos elementos – não se modificara. Em muitos países, temores
recrudesciam a todo instante diante da perspectiva de maremotos, terremotos ou
mesmo de erupções vulcânicas. E dos temores ao pânico, rompeu-se a linha de
menor resistência. Inúmeras famílias abandonaram suas casas buscando locais mais
seguros. Via-se com frequência a diáspora de próximo ao mar, em derredor de
vulcões – mesmo os extintos há séculos – ou de áreas notoriamente fragilizadas
por falhas geológicas. Como consequência, aldeias, vilas e cidades se
esvaziaram.
Diante disso vandalismos aconteceram:
desordeiros, desocupados e ladrões, aproveitando-se dessas evasões, realizavam
pilhagens. Polícia e forças especiais patrulhavam ruas em busca de proteger os
bens das populações. Mas de todos os lados as coisas caminhavam para a dissolução
da ordem e estabelecimento de confusão. Pessoas não tendo para onde correr ou não querendo deixar
os seus domicílios, concentravam-se nas proximidades de templos religiosos ou
em locais públicos, acendendo velas ou rezando. Entretanto, a expectativa às
hecatombes produzia um tipo de reação em cadeia nas mentes de milhões. O pavor
ao imaginar as piores possibilidade mostrava-se nas fisionomias alteradas.
O resultado dessa comoção trazia à tona explosões emocionais. Crises de choros
misturavam-se a convulsivo histerismo coletivo. Um sem número de desesperados
rolava ao chão, ajoelhava-se ou gritava em total descontrole; outros, mais
ainda impressionados, proporcionavam cenas de incríveis desatinos. E imploravam
por clemência ao Todo-Poderoso. O rumor de que o fim do mundo estava próximo,
ganhava corpo e espaço!
Três vulcões haviam dado sinais de que a
qualquer instante poderiam entrar em erupção. Curiosamente,
distavam muitos quilômetros uns dos outros, ficando em continentes diferentes.
Populações das aldeias, vilas e cidades vizinhas, antes resistindo à ideia de
deixar as suas casas, agora se movimentavam em tentativas de fuga. Eram
milhares em pânico; as tempestades tornavam as escapadas praticamente
impossíveis.
Vinte e sete dias já tinham decorrido desde que
a Terra começara a sofrer o duro castigo das forças em revolvimento. Em muitos
pontos do planeta a nuvem escura abrira-se; a atmosfera aquecera
demasiadamente. Uma das consequências desse fenômeno, fora a subida de muitas
espécies de insetos e bichos para a superfície da terra, e uma migração às tontas, como
se tivessem perdido o sentido de orientação grupal e instintiva. Estradas,
ruas, lares, cidades, viram-se subitamente invadidos por um exército desses
migradores – muitos venenosos e perigosos – tais como cobras, lagartos,
escorpiões, aranhas e muitos outros. Os voadores infestavam a todos os
ambientes.
Os animais ficaram nervosos e viviam às
turras; os carnívoros ferozes começavam a sair de seus habitat e por onde
passavam atacavam rebanhos, criações e seres humanos. Outra consequência dessa
virada da natureza, relacionada diretamente com as atitudes da fauna, era a
falta d’água. Rios, lagos e reservatórios rapidamente secavam; as plantações
não resistiam, os alimentos escasseavam. Doenças advieram em decorrência de
todas essas calamidades.
Noutros quadrantes da Terra situações
simultaneamente inversas se repetiam; tormentas, vendavais e enchentes,
causadores de mortes e destruição, cessavam os seus furores de um momento para
outro. Os homens então saíam dos seus abrigos tentando retomar o controle de
suas vidas, buscando por desaparecidos, resgatando sobreviventes ou corpos sem
vida, e visando reconstruir o que sofrera danos. Mas em determinados lugares o
Sol vinha logo escaldar e o calor insuportável atrapalhava-lhes os serviços. A
rápida elevação de altíssimas temperaturas alterava-lhes os humores; eles se
irritavam, se desentendiam, brigavam. As falanges negras, atuando sub-repticiamente
nos planos invisíveis, sustentavam esta gama de energia inferior – exsudada dos
maus humores dos homens – provocando novos
conflitos. Inúteis as tentativas dos homens de mover-se com agilidade para
rescaldar valores ou salvar vidas, pois os malignos se incumbiam de a tudo
obstruir e quase sempre conseguiam os seus intentos.
Não se passavam dois ou três dias, a situação
novamente mudava. As organizações governamentais de defesa civil, engrossadas
por voluntários do povo, viam-se abruptamente diante da necessidade de parar
com os trabalhos a fim de se preparar para se defender a si próprias de novas
investidas da nuvem escura. Ela retornava com força, às vezes redobrando-a,
trazendo consigo, novamente, os violentos açoites dos elementos açulados à
fúria.
A alternância de presenças era, sobretudo,
singular. As estações, nos seus respectivos ciclos anuais dos hemisférios,
ficavam completamente descontroladas e descaracterizadas. Até a ação da neve
cedia lugar a um assolamento diferente, passando a alternar-se com tempestades
de vento e chuvas torrenciais. Esses fatos intempestivos geravam também um
rolamento de águas a níveis catastróficos. O degelo prematuro não só ocorria
pela insólita torrente pluvial, mas, principalmente, por súbita elevação da
temperatura em função do aquecimento descomunal da Terra. E de alguma forma, o
excessivo e anormal calor subterrâneo, ao aproximar-se das regiões geladas,
proporcionava condições propícias ao degelo.
Embora essas anomalias não permanecessem por
muito tempo, era difícil resistir aos extremos contrastes, tornando-se assim
impossível apagar um rastro de destruição recente sem que, em poucas horas, os
fenômenos viessem repetir-se ou novos acontecessem, causando mais uma vez ondas
de destruições e mortes.
Inúmeras cidades apresentavam quadros
gravíssimos quanto às necessidades mínimas. Os serviços essenciais de muitas
maneiras descontinuavam. Registravam-se absoluta falência de recursos humanos e
o rompimento das malhas funcionais. Em diversos casos, o pessoal responsável
pela manutenção das malhas abandonara os seus postos. A sobrevivência
impunha-se como a principal preocupação e corriam para junto de seus
familiares. Saques a mercados, lojas e depósitos de víveres já não tinham a
participação única de ladrões ou desordeiros: a população, ansiosa, acorria
àqueles locais de suprimentos proporcionando cenas de tumulto, desespero e
violento instinto tribal. As forças organizadas oficiais haviam desaparecido
das ruas.
0 0 0
- Levantai-vos e vinde! A imperativa voz fez Sorman
estremecer. Ele não esboçou a menor reação por que se sentiu dominado. A última
imagem a permanecer-lhe na memória fora de uma vela acesa sobre o camiseiro,
aos pés da cama. Sem saber quem o conduzia, mergulhou por
cavernas, despenhadeiros, rios e lagos – todos subterrâneos. Após um tempo
nessa incrível viagem, estancou diante de um mar ardente. Olhou para cima e viu
que se encontrava no interior de um vulcão, a cujo ápice extraordinariamente
alto não conseguia enxergar.
A massa líquida e avermelhada borbulhava. O
cheiro de gases misturado a enxofre impregnava a atmosfera; havia uma fumaça
negra se desprendendo. Sorman sentiu súbito e insuportável calor. Temeroso,
quis recuar.
- Não
temais, estais protegido, concentrai-vos! – determinou-lhe a mesma e
autoritária voz. Ele fechou os olhos, concentrando-se em seu íntimo; o calor
passou e o cheiro esvaiu-se.
“Por que me trouxe aqui?” Sorman pensou e a voz respondeu-lhe:
“Para que testemunheis o trabalho que
realizamos em oposição às energias invasoras. Concentrai-vos agora no interior do magma!”
Sorman
obedeceu e sentiu uma vertigem. Sua mente girava como num redemoinho à medida
que ia penetrando o interior da substância fervente, derretida a milhares de
graus centígrados. Então presenciou cenas extraordinárias. A energia primária
se precipitava para o interior do vulcão, mergulhando no caldeirão. Ele a
percebia numa cor excessivamente vermelha, e, embora descesse continuamente num
facho, vinha aos borbotões. Ao tocar as profundezas, produzia erupções também
de modo contínuo. Em decorrência disto o magma, na sua totalidade, se revolvia.
Seres ígneos, fantasmagóricos, grandes e longos, também se revolviam em meio à
massa líquida, agitando-a. Lançavam-se para cima, sem sustentação, ou subiam
pelas paredes, levando nesses saltos, ondas do magma que alcançavam muitos
metros de altura.
De repente ocorriam explosões; o magma se
abria deixando passar de seu interior blocos de rochas incandescentes partindo
como pequenos meteoros, atingindo grandes alturas. Ao entrarem em contato com o
ar atmosférico do interior do vulcão incineravam-se parcialmente, muitos se
fragmentavam soltando uma fumaça negra que desaparecia mais acima. Os pedaços
dessas rochas, ao caírem de volta no caldeirão, eram absorvidos pela altíssima
temperatura, derretendo no próprio magma, desprendendo outro tanto da fumaça
negra.
Sorman assustou-se ao verificar a quantidade do magma que crescia, vendo
que todo o seu volume provinha de um rio fervente. Este rio navegava desde um
redemoinho mais afastado e mais subterrâneo, formado da mesma substância.
Outros rios iguais percorriam novos leitos, indo depositar-se em diferentes
vulcões a muitos quilômetros dali. Súbito ele viu-se de volta ao interior do
vulcão. A fumaça negra, o enxofre e os gases tinham aumentado
consideravelmente. A energia invasora dividia-se nesse momento entre o vulcão e
o redemoinho, distribuindo o magma.
“Como
a energia primária, especificamente, invade locais estratégicos debaixo das
camadas e placas tectônicas do planeta?” – inquiriu-se de novo Sorman. Então um
quadro descerrou-se diante de seus olhos, materializando-se. A Grande Face
Negra, sorrindo diabolicamente, produzia a invasão. No meio de sua testa
formava-se um enorme orifício; dentro dele reproduziam-se cenas de locais no
interior do orbe terrestre. Sorrindo sempre, ela exercitava o seu maligno poder
interferindo nas funções vitais da natureza, provocando reações como aqui, já
delineando uma culminância catastrófica.
“Realizemos agora a nossa parte!” – disse a voz interrompendo aquela visão.
Nova visão veio ocupar-lhe a atenção. Sorman percebeu a aproximação de pequena
nave oblonga, tendo à volta do bojo um anel completo, como estreita plataforma.
Possuía a cor prateada, parecendo toda de aço. A nave pairou no interior do
vulcão, a poucos metros do caldeirão, passando a emitir fortíssimo e
indescritível som. O som possuía incrível penetração, alcançando grande
distância, atingindo com exata intensidade a todos os canais ou rios que
partiam do redemoinho do magma.
O
efeito foi imediato. Todos os rios e canais ferventes e o caldeirão do vulcão diminuíram
aquela agitação; o nível do magma parou de subir, estabilizando-se. De modo oposto,
a energia invasora passou a exercer maior intensidade na sua ação, querendo
retomar o crescimento da massa líquida, mas à medida que ela se intensificava,
a nave, em contrapartida, emitia variações do som, ampliando sempre a
frequência. O duelo continuou por certo tempo até que a energia intrusa cedeu e
se retirou.
“A Grande Face Negra tentará outras manobras
no interior do orbe terrestre, mas aqui estaremos para lutar em favor da
Terra.”
CAPÍTULO XVIII
A VIDA
CONTINUA
Tendo
feito a varredura dos assuntos que chegavam todas as manhãs, a secretária
depositou-lhe à mesa a correspondência. Um envelope branco
permanecera intacto. Havia nele a recomendação de pessoal e confidencial em
letras grandes e destacadas e Sorman tomou-o em primeiro lugar, verificando que
o remetente era Javan. Curioso, apressou-se em abri-lo, vendo tratar-se de uma
carta feita em computador, com o seguinte conteúdo:
“Caríssimo
Sorman:
Sei que se surpreenderá com essa carta posto
que, ao restabelecermos contato, temos falado muitas vezes pessoalmente ou por
telefone. Entretanto, em todas as nossas conversas, conduzi-me com extremo
egoísmo por desejar sempre sua ajuda aos meus pessoais problemas, em detrimento
de qualquer outro assunto. Pouco o inquiri a respeito de suas dificuldades, mas
você, com habitual elegância, jamais deixou escapar em todos os momentos,
qualquer lamento, desânimo ou sequer transpareceu a necessidade de fazer um
desabafo. Ao contrário, absteve-se de si, permanecendo durante todo o tempo
perfeitamente atento às minhas palavras, mas de forma alguma adestradamente,
como na maioria das vezes fazem as pessoas superficiais e pueris, naturalmente
falsas, em nome de uma ética artificial e sem consistência.
Fui cansativo no meu egocentrismo, na
exposição de minhas fraquezas ou na inabilidade de atrair uma solução para meus
próprios dilemas. Abri-lhe o meu íntimo até a última de minhas fímbrias, como
jamais antes houvera feito a alguém, nem mesmo à Vera, minha querida esposa, a
quem amei com sinceridade e em quem irrestritamente confiava. Mas não houve
qualquer demonstração de aborrecimento ou irritação de sua parte mesmo quando,
repetidamente, pretendi não tê-lo entendido naquilo que me externou como visão,
alento ou até mesmo admoestação às minhas atitudes.
Queira perdoar-me inestimável amigo, por
ter abusado de sua sincera amizade e paciência. Tive pena de mim, estive sem autoestima,
sem a mínima confiança; permaneci, por escolha, num mundo onde só infelizes e
derrotados habitam. Nesse ponto conheci a sua severidade e dirigida energia.
Você buscou sacudir-me, tirar-me daquele estado letárgico, tentou despertar-me
novamente a esperança e a vida. E tudo isso realizou não como os arrogantes e
pretensiosos que julgam conhecer a todos os meandros ou enredados caminhos
encravados na alma humana. Eles usam a sedução de nossa pobre psicologia, cuja
vida acadêmica vai há pouco mais de cem anos sem realmente curar alguém. Nem
demonstrou, caro irmão, (permita-me assim chamá-lo), aquela pieguice de tantos
que, embora muitas vezes sincera, é de cunho e empirismo popular,
evidenciando-se pela falta de imaginação criativa, não vinculada a uma energia
renovadora, moderna ou atual. Essa forma de transferência, somente os santos
foram capazes de realizar, pois haviam incorporado da alma algo maior e
desconhecido às suas próprias personalidades. Porém, hoje não há mais santos
como outrora e a “pieguice milagreira” não realiza como antes, ao contrário,
por sua forma populista afasta cada vez mais os buscadores necessitados.
Não você, Sorman, isso sempre repetirei como
a um lema; suas atitudes e palavras são e foram autênticas, veiculadas ao seu
precioso dom de ter conquistado o alinhamento quase perfeito de sua inteligente
e brilhante personalidade com a sabedoria da alma. Vejo-o assim, amigo, pelo
menos nessa instância em que você existe e se manifesta, e que para mim é
extraordinária.
É claro que em você não se revela a santidade
dos castos que o mundo de hoje ardentemente desejaria conhecer em alguém, para
depois, a esse, muito provavelmente sacrificar e de novo crucificar. E nem
precisa acontecer semelhante identidade com a alma, quer parcial ou
completamente, em mesmo padrão ou linha de evolução dos santos, a fim de que,
somente tocando-o com as mãos, possam os homens acreditar estar diante de um
espécime raro da raça humana, alguém de talento desmedido que consegue falar
com Deus. Isso creio, para os homens de visão, ficou e morreu com o passado.
A alma é santa e casta justamente por ser a
alma, mas o santo não se tornou santo somente por abjurar ao mundo para depois
vir servi-lo com adoração. Aquela crença já passou, quer tivessem acontecido
milagres verdadeiros através de homens de grande estatura espiritual, quer
fossem eles lendários. O que hoje sinto é que o vendo, amigo Sorman, estou
diante do homem do futuro, quem por sua inteligência tornou-se sensível à sua
elevada alma e não o oposto, e isso vem reforçar a meus olhos que a
inteligência iluminada é totalmente abrangente, quer racional ou sensorial, não
se prendendo somente a alguns atributos expoentes da cultura humana.
Essa
incondicionada inteligência é prática e transparente quando, através da própria
alma, revela possíveis atributos acima da concepção vulgar. Todavia, para nela
poder realizar-se plenamente, em sua perfeição e legitimidade, é necessário
sacrificar a personalidade. Isso não é novidade, os religiosos também assim
tentaram e a julgar pelos milhares de devotos que por todo o mundo inicialmente
se lançaram nessa empresa, cheios de esperança e fé, poucos, senão raros,
puderam em todo o passado usufruir dessa superior condição. Eis, aqui, senão o
engano, o sentido de contramão. Não é se negando ao mundo que a personalidade
se sacrificará para a alma, mas sim é se doando a ele que seu sacrifício será
válido. Pois é forçoso sofrer para melhor aprender, tanto quanto sejamos
conscientes desse irrefutável processo. É aprendendo que o homem se
transformará num religioso (por favor, desejo destacar a exata noção do termo
“religião” como “religar”.), mas não é se tornando religioso que
impreterivelmente aprenderá.
Contudo, não posso ainda percorrer os
idênticos e magníficos passos corajosamente percorridos por você por que sou
refém de mim mesmo. Meditei das palavras da velha mulher naquele nosso primeiro
encontro no restaurante. Tremi ao lançar-me no universo de minha própria
imaginação; acovardei-me mediante a possibilidade de sofrer uma punição caso
tergiversasse do alerta do maior a querer guiar o menor. Passei noites mal
dormidas, outras em claro. Ponderei sobre a minha incapacidade de suportar
novos sofrimentos, talvez pungentes como esses atualmente suportados. Meditei
também de suas palavras e pensamentos, caro amigo, e finalmente concluí.
Concluí que realmente não estou pronto nem preparado para seguir essa viagem
sob um determinismo imposto, ou solicitado por um maior, supostamente a alma.
Trago em mim profundas e vivas cicatrizes de
minhas frustradas realizações e desejo de felicidade humana. Não aprendi o
suficiente do mundo para dizer-me saciado de suas tentaculares ilusões. E esse
pensamento vem somente trazer-me inquietações, fazendo desdobrarem-se ante
minhas reflexões mil outras conjeturas. A memória aviva-se e relembro de muitos
princípios apregoados pelos mestres orientais, principalmente de uma velha
afirmação budista dizendo mais ou menos assim: o desejo renasce sempre no ser
não perfeitamente remido, por isso é necessário matar o desejo na raiz.
Houve um tempo, pouco além de nossa
adolescência – você certamente relembrará, até evocará dele as imagens – quando
recentemente nos conhecíamos, que eu ainda procurava no espírito as respostas
de que necessitava. Porém não as encontrando – talvez não as tivesse mesmo
buscado com suficiente vontade e determinação – permaneci à margem. Ou talvez,
permita-me julgá-lo pelo que depreendia de suas palavras, eu não fosse
suficientemente infeliz ou inadaptado ao mundo quanto era você. Provavelmente
tivesse eu insistido e encontrado o mesmo caminho encontrado por você, ainda
assim diante dele permanecesse vacilante pela dúvida ou relutante pelo medo;
pois não conseguiria de qualquer maneira desapegar-me de meu desejo de vida
emocional. A morte que transmuta e regenera, trazendo outra vida, causava-me
uma espécie de aversão, apesar de eu proclamar o contrário. Como e por que
morrer se é assim que eu sei viver e amar a vida? Perguntava-me. Ao mesmo tempo
o admirava por sua decisão, embora temesse profundamente por sua sorte.
Várias
vezes você me falou sobre a loucura e a morte. Isso não me era completamente
estranho; sempre li compêndios, ouvi palestras de orientadores, mas você era um
exemplo vivo e latente diante de meus olhos, alguém realmente inadaptado ao
qual somente restaria um caminho, o seu caminho, quer fosse vencedor ou
vencido. E venceu, até agora tem sido sempre um vencedor; a morte e as agonias
de seus estertores, julgo, jamais o desanimaram nem o acovardaram. É preciso
morrer cada dia um pouco, dizia-nos São Francisco de Assis, mas nem todos têm a
capacidade disso realizar e ainda doar-se à crucificação, o Gólgota de todos os
loucos de Deus!
Cabe-me ainda outra autoanálise. Parece-me a
mim desejar ser um menino mimado que, sabendo de seu mundo íntimo, ainda assim
reluta decididamente em aceitá-lo, teimando em ser conduzido. Um menino que não
deseja perder a condição da ingenuidade, apesar de não ser mais ingênuo, mas que
também não deseja ser adulto.
Surpreende-me a ousadia de a tudo isso relatar-lhe.
Escrevo-lhe por que não conseguiria de todas as formas dizer-lhe pessoalmente;
minha voz embargaria, e não teria a necessária coragem para enfrentá-lo,
olhando-o nos olhos. Isso pode mostrar-se com um subterfúgio; sempre que estive
diante de você pude constatar-lhe a vocação de compreender com profundidade os
problemas da alma; você atuou durante todo este tempo como meu mestre! A
energia dimanada de seu íntimo não foi uma exceção à minha pessoa – no fundo
desejaria que fosse – ela é sempre a mesma, magnânima para a vida, para todos,
disto jamais duvidei. Acredito que, principalmente por isso, pude retirar do
fundo de meu ser meus próprios pensamentos, pois mesmo à distância sinto-me,
como agora, atingido por sua aura amiga. E ela abriga-me, compreende-me, e me
fortalece!
Poderá negar tal fato, Sorman, não pelo real
não visto, não obstante perfeitamente plausível, porém por sua humildade
verdadeira inclinada a admitir sempre que um maior e significativo valor habita
outra pessoa. E nesse caso, alenta-me o possível fato de não ser tão timorato
quanto imagino porquanto resolvi tomar fundamental decisão em minha vida,
contrariando, talvez, o alerta superior. Ou teria sua alma clareado minha
decisão, segundo o que o maior, ainda assim, estaria me guiando para aquilo que
ademais necessito aprender do mundo, para mais tarde conseguir palmilhar o caminho
da síntese, como você agora o palmilha? Não sei realmente como se esboça
o meu futuro, ou se há em mim um determinismo tão rígido e oculto, unicamente
desvendável no tempo, e nisso deva acreditar.
Estou de partida. Viajo para a América do
Norte onde permanecerei definitivamente. Desejaria vê-lo uma vez mais e
abraçá-lo fortemente, porém temo nesse momento que esse último encontro muito
me abalaria. No futuro desejaria que nos víssemos novamente. De qualquer
maneira informarei meu endereço tão logo fixe residência no país. Perdoe-me uma
vez mais por essa outra manifestação egocêntrica de minha personalidade algo
conturbada.
Nada mais posso desejar-lhe senão que todas
as glórias e conquistas sejam derramadas sobre sua cabeça, pois certamente você
saberá compreender melhor do que ninguém a relatividade ou profundidade destas
coisas.
Adeus eterno amigo,
Javan. “
Terminada a leitura, Sorman largou a carta sobre a mesa, soltando-se de
encontro à poltrona. As palavras e ideias de Javan não lhe provocavam qualquer
reação. A poltrona, ao dobrar-se suavemente para trás, afastou-o da mesa,
advindo-lhe a sensação de que a carta estaria fisicamente tão afastada de suas
mãos quanto mentalmente estaria ele, Sorman, das convicções do seu autor.
Rápido e fugidio tremor permeou-lhe o íntimo, mas nada tão ponderável a
ponto de provocar qualquer tipo de tensão emocional, por menor que fosse. E nem
daria tempo por que aquilo partiu tão depressa quanto chegou, deixando
unicamente um fino rastro, configurado no pensamento de que teria falhado na
tentativa de ajuda ao amigo. Mas a este pensamento negativo, ele contrapôs de
si mesmo com as seguintes palavras, como a desejar confortar-se:
- Seus tormentos e dilemas, a partir de agora,
estarão bem mais próximos de uma solução.
0 0 0
Durante sessenta e sete dias a nuvem escura e energia primária
provocaram abalos no mundo, levando os elementos da natureza às raias do
inimaginável. Mas a vida continuava; a atmosfera ao redor do globo voltara à
normalidade: todas as ameaças de irremediáveis catástrofes tinham desaparecido.
Não havia mais sintomas fisiográficos de possíveis hecatombes por decorrências
de abalos sísmicos ou explosões vulcânicas. Da mesma forma, tinham se acalmado
as mentes terrificadas pelo medo de um fim do mundo ter chegado. Não obstante, a
alma planetária ficara ferida. E os ferimentos abertos demonstravam que um
grande perigo ainda rondava o mundo se os acordos internacionais de paz fossem
violados.
Os
países afetados pelas borrascas buscavam reconstruir o que lhes fora parcial ou
totalmente destruído. A mútua ajuda dos povos mostrava-se em primeiro plano,
naquilo em que cada um podia dispor como recursos em favor do outro. No
entanto, alguns países fragilizados pelas ocorrências vinham sendo alvos de
observações externas de outra ordem. Etnias semelhantes, portadoras em suas
almas do ódio guardado por ultrajes do passado, viam nesses desastres a
oportunidade de tirar a desforra e aniquilar com seus antigos inimigos.
Por
estranha coincidência, esses povos arrogados ao ódio, fortemente militarizados,
pouco ou nada tinham sofrido com os acontecimentos assoladores de quase todo o
planeta. Assim, desde logo iniciaram mobilizações, visando realizar exercícios
de guerra e treinar consistentes táticas de abordagem ou invasão. Seus líderes
passaram a estimular no povo um fanatizado patriotismo e absurdo orgulho
racial, relembrando-lhes seguidamente de antigas e humilhantes infâmias já
suportadas.
Dois países lideravam estes pensamentos de desforra e guerra, já
despertando simpatias de outros povos e possíveis promessas de apoio militar.
Os povos registram em suas memórias raciais muitos engajamentos de lutas com
vitórias ou derrotas, vexames, ódio e desprezo pelos inimigos, mas se apoiam
mutuamente quando lhes interessam.
O
fato gerou reação mundial. Todos os organismos internacionais operantes pela
paz começaram a procurar os caminhos da não agressão, trazendo a atenção dos
líderes para o indesejável rompimento dos acordos. Aliados a esse desejo dos
pacifistas – mas nem tanto – os países considerados de primeira linha e
potências planetárias, sob tantas alegações, trataram também de armar-se e
discutir sobre as consequências da guerra e seus impactos sobre a economia
mundial. Com o passar dos dias, essa grande ameaça veio trazer à atmosfera
invisível da Terra, outra nuvem escura a pairar sobre todos.
0 0 0
-
As trevas trabalham sistematicamente para que isso aconteça - dizia o Superior
Mestre Terra sem disfarçar o sotaque espanhol - a Grande Face Negra fortaleceu
suas alianças nos submundos da Terra.
-
Eles de fato estão mais fortes, isso os leva a imaginarem-se livres para
realizar os seus planos de destruição da maneira como desejarem. A Grande Face
Negra veio também com o escopo de proporcionar às inteligências cósmicas do
mal, condições mais favoráveis de se lançar no éter terrestre, e, assim, poder
melhor se infiltrar no pensamento humano. E acho mesmo que foi bem sucedida –
aduziu Sorman, logo prosseguindo – e se esta luta nos trás desgaste, é para
eles sem tréguas, pois não lhes está sendo tão fácil como pensavam
inicialmente.
O
Irmão Supremo sorriu mediante as últimas e ardentes palavras do Ministro
Extraordinário. Sorman pareceu-lhe nesse momento entusiasta adolescente. Mas
sob certo ângulo ele tinha razão. As lutas desses três últimos meses seriam, de
certa forma, proporcionalmente tão angustiantes quanto foram os embates dos
quatro dias em que haviam se posicionado diretamente contra as incursões da
energia primária e nuvem escura.
Nesse momento, milhares de criaturas
horrendas, seres subumanos e almas atribuladas pelo pensamento envolto em trevas,
pululavam nos submundos invisíveis, estimulando torpeza nas mentes dos homens.
Essa tenebrosa prática gerava nos países de todos os continentes clima de
violência e agressões, a par de ainda subsistir tensões e desespero pelas
recentes perdas. Tudo isso minava-lhes constantemente suas energias,
produzindo-se permanente e pesada atmosfera
por todo o globo.
A
ação calculada dos mentores das trevas – principalmente de seus mestres
cósmicos fora do planeta Terra – era de estimular insistentemente a simples
tática de acercamento aos líderes de todas as categorias de classe, sugerindo-lhes
o inconformismo. Com isso, propiciavam a implantação do vírus do anarquismo.
Essa tática vinha ser complementada pela propaganda pessoal e ideológica de
alguns líderes, a maioria anacrônica, de puro oportunismo ou de contextura
megalômana, que eles procuravam a todo instante espalhar pelos ambientes onde
se infiltravam. Invariável e consecutivamente, se manifestavam pela derrubada
dos regimes governamentais em vigência, e mudanças de suas políticas internas e
externas.
Embora eles mesmos estivessem fartamente comprometidos com
inescrupulosos interesses em vários segmentos da economia, indústria ou
comércio, apoiavam-se, esses impiedosos adversários dos governos, na atual
exploração política da fome e da miséria, no enriquecimento infinito de poderosos
homens de empresas monopolistas, cujos negócios eram respaldados por leis
privilegiadas e injustas – elaboradas para seus favorecimentos – e na corrupção
desmedida e comprovada de pessoas de todas as classes. Melhor para eles se
essas aberrações demonstrassem alarmantes índices de crescimento.
Além disso, instalava-se uma sucessão de acontecimentos perniciosos à
sociedade em todo o planeta – insuflada pelas falanges negras – fazendo campear
cada vez mais os assaltos, roubos, crimes de morte, tráfico de entorpecentes,
prostituição, perseguições, racismo e tantos outros atos a promover a
dissolução dos costumes e direitos. O controle psicológico dos elementos
germinais da complexa rede mente-emoções, mantido sob vigilância consciente do
ego, vinha assim sofrer processo de detonação pelas inteligências operosas ao
mal – invisíveis ou personificadas – afetando seguida e negativamente as
reações condicionadas ou inconscientes das massas.
Essa geração mundial de conturbadas e envolventes sugestões, pelas sucessivas
pressões da energia negativa sobre a psique coletiva, justamente reforçava os
parasitários interesses das trevas em exercer domínio da vontade humana a fim
de materializar os seus ideais, com objetivos cada vez mais hediondos.
0 0 0
O
grupo completava-se neste momento com a chegada de Michel ao Salão de
Conferências. Em verdade, ele aqui estivera desde o alvorecer, pois sua
residência era justamente a casa no plano superior do terreno. Michel com
Verônica haviam como sempre providenciado todo o material necessário à reunião,
realizado a limpeza, verificado as instalações elétricas e dos equipamentos eletrônicos,
bem como tinham tomado todas as demais e atinentes providências. Os treze
membros da hierarquia estavam, portanto, reunidos e o Supremo a todos se
dirigiu:
-
Irmãos, organizemo-nos para adentrar o Templo do Sol Nascente.
Os rituais no Templo do Sol Nascente
invariavelmente incorporavam energias para serem trabalhadas em eletivas
situações. Havia quatro datas no ano em que estes rituais eram ordinariamente
realizados. Poderia acontecer mais de uma convocação urgente no ano, porém a
média mais frequente era de dois rituais extras - quando muito necessários - perfazendo assim, especialmente, seis rituais
anuais. O Supremo convocara extraordinariamente o corpo hierárquico para este
ritual em virtude dos últimos acontecimentos. Tanto neste ritual extraordinário
como nos agendados segundo o calendário, todos os membros hierárquicos
precisariam estar presentes sem qualquer exceção. Unicamente por motivos
imperiosos, impossíveis de serem contornados naquelas datas, se admitiria a
ausência de qualquer um dos hierárquicos.
Os resultados dos rituais no Templo do Sol
Nascente produziam rápidas mudanças na vida da célula; daí a exigir a
presença de todos os Mestres Terra e Ministros, até com sacrifícios físicos.
Aos dois Ministros Assessores, o motivo real de suas presenças e responsabilidades,
prendia-se mais à concepção cabalística numeral das Ordens Superiores, que
necessitavam ancoragem diante das forças análogas inferiores, do que propriamente a uma real e necessária posterior
atuação de ambos os Ministros Assessores - direta e automática - quer fossem os assuntos ali tratados, em caráter ordinário, quer fossem eles em caráter de urgência. Há pássaros que mergulham vertiginosamente
enquanto outros, inversamente, se lançam para cima. Mas há os que planam e
somente fazem isto, e justamente por isto, são também úteis às suas espécies.
Após o ritual, eles voltaram ao Salão de Conferências. Fantástica
energia ainda os tomava. Verônica somente aqui participava desta egrégia reunião
secretariando aos hierárquicos. Nesse momento, tinha um gravador em punho e
registrava os assuntos para depois firmá-los no computador, sob o formato de
atas. Bruno retomou a palavra:
-
Irmãos, a energia hoje a nós concedida pelo Pai, virá suplementar-se às forças
já constituídas para que melhor atuemos contra os ferozes inimigos da luz. Não
lutamos por lutar, nem nos lançamos sobre eles por prazer de combater. Mas é vital para a
dignidade do homem e objetivos da própria civilização, que continuemos a lutar. A energia aqui recebida precisará ser repassada em quantidades e
proporções específicas aos nossos subordinados.
Esta novíssima presença em
nossas mentes e corpos virá restaurar-nos dos dispêndios acontecidos nas pugnas
em que nos envolvemos, bem como vira restaurar aos dispêndios de nossos exércitos. É algo fantástico do Pai
Solar, a nos proporcionar novas condições. A energia é pura inteligência
direcionada para a matéria. É, sobretudo, uma grande glória alcançada por nossa
célula.
A
utilização dessa nova energia começou a produzir rápidos resultados. Os Mestres
Terra ficavam próximos de seus principais ordenanças nos locais onde as lutas
aconteciam, ou, nos setores em que as forças contrárias se infiltravam. No
primeiro caso, os Mestres Terra endereçavam a energia diretamente aos seus
generais com a determinação de que essa fosse retransmitida a todos os
escalões. Bastava um toque com os dedos indicador e médio unidos sobre a testa
do receptor e na altura de seu plexo solar, para ele sentir imediato
torvelinho. Suas forças mentais e astrais, então, aumentavam sobremaneira,
multiplicando-lhe o número de movimentos e rápidos reflexos, tornando-o
extraordinariamente mais ativo e consciente. Como resultado, uma percepção mais
aguda vinha estimulá-lo; inúmeras vezes ele se antecipava aos movimentos dos
inimigos, por mais velozes que fossem.
A
nova energia compartilhada pelos homens da FIA, era recebida momentos antes dos
combates ou mesmo já na decorrência deles. Tudo dependeria das circunstâncias e
decisão do Mestre Terra. Esse, por sinal, ao passá-la aos seus imediatos, não
mais deveria se expor. Normalmente, ficava à parte, em concentração, afastado da arena das lutas, embora pelas cercanias. Cercava-se de soldados que o
escudavam. Essa era uma providência determinada por Bruno, talvez
desnecessária, mas indicada por cautela, porquanto em torno do Mestre Terra,
tão logo ele invocasse a poderosa energia e a transmitisse, vinha cercá-lo um
anel magnético branco.
- Vá lá que eles
percebam nossos homens incorporados da nova energia e busquem o motivo disto,
encontrando o Mestre Terra desguarnecido de proteção. Não sabemos que
artifícios poderão utilizar para distraí-lo, fazendo decair a sua concentração.
Não esqueçam de que eles são extremamente hábeis e já nos mostraram do que são
capazes. As palavras de Bruno soaram-lhes como uma sentença.
A
concentração do Mestre Terra era de fundamental importância ao que pretendiam,
pois a nova energia somente permaneceria fluindo enquanto ele a mantivesse ativada.
Terminada a concentração, a corrente por ele estabelecida se quebraria e os
homens se haveriam com suas próprias reservas de forças, embora bastante
implementadas.
Noutras
operações, o processo de transmissão da nova energia não se prendia tão somente
às batalhas campais ou aos enfrentamentos acontecidos em quaisquer ambientes.
Poderia ser utilizada, por exemplo, nos encontros ou reuniões em que emanassem
médias ou grandes decisões de autoridades legalmente constituídas, que viessem
afetar diretamente a vida dos povos. Os Mestres Terra, e seus principais
comandados, percorriam esses ambientes, procurando antes cercar as autoridades
com suas naturais energias.
Entretanto, mediante propositais e dirigidas ações
das trevas, quer por ondas mentais, por presenças obsessoras ou mesmo devido a
algum participante das reuniões já estar dominado pela energia negativa, os
irmãos da FIA tomariam então novas posições. Nesses casos, o Mestre Terra
transmitiria a nova energia a sua equipe – homens e mulheres – mantendo-se à
parte no trabalho de sustentação. Os irmãos, a partir daí, atuariam diretamente
sobre os participantes, usando especialmente a nova energia em proporções
administradas.
Cada situação requeria uma especial forma de ação. Algumas vezes, eles
simplesmente isolavam o veículo da força negativa, não lhe permitindo contagiar
os outros. Noutras, construíam uma redoma com a nova energia, ou mesmo atuavam
sobre cada um individualmente, reforçando os seus campos áuricos a fim de que
permanecessem incólumes às correntes, sugestões ou formas pensamentos
arremetidas pelos malignos. Porém, se as forças negativas revoltadas com a
intervenção dos trabalhadores da FIA se insurgissem contra eles, outra batalha
poderia ter início e lutariam corpo a corpo.
Mesmo nas ruas, praças públicas, ou diversos outros logradouros, onde
grupos ou multidões se concentrassem, e os trabalhadores da FIA verificassem
haver uma ameaça pela presença dos trevosos, ou nuvens negras se aproximando
sobre as pessoas, o alerta era dado, logo surgindo um Mestre Terra ou Mestre
Menor, incorporado da nova energia a fim de que se posicionassem contra aquelas
investidas.
Em linha com esse fato, e como as lutas se
sucedessem de muitas maneiras e crescesse o número dos confrontos, o Irmão
Supremo decidiu enviar novas instruções por seus Ministros Assessores no
sentido de que os Mestres Terra delegassem especialmente poderes aos Mestres
Menores ou ordenanças. Com essas providências, ele estabelecia a estratégia
segundo a qual os Mestres Terra não precisariam mais sair para pessoalmente
transmitir a nova energia. Sendo muitos os confrontos, não poderiam de todas as
maneiras atendê-los simultaneamente, permanecendo assim abrigados em seus
núcleos e concentrados.
Da mesma forma, em emergências, os Mestres Menores ou
ordenanças, que respectivamente tivessem recebido a energia, segundo a nova
orientação, permaneceriam afastados dos locais dos embates, porém atentos ao
trabalho de sustentação mental da corrente, enquanto seus homens eram
comandados em campo de batalha por um líder adrede escolhido
A tal ponto as lutas se sucederam que todos os departamentos e setores
da Hierarquia viram-se, em pouco tempo, envoltos por esta suplementar
energia. Algumas células, antes tendo feito parte da aliança mundial
contra a Grande Face Negra, foram contatadas pelo Irmão Supremo para
saber se desejavam participar das lutas, incorporadas da nova energia,
segundo as estratégias elaboradas. Duas células somente aceitaram a
ideia, as demais não acreditaram na nova energia e na eficácia de sua utilização, preferindo assim suas próprias estratégias.
Sorman, nesse tempo, resolveu atuar ao lado de
Michel, misturando-se com seus homens, saindo a combater em todos os setores
onde fosse necessário. Verônica recebia constantemente a energia por Michel e
agia principalmente em ambientes fechados. O Superior Mestre Terra foi
inicialmente para os Andes onde organizou os irmãos para atuarem segundo a
recente estratégia do Supremo; depois viajou para o Oriente Médio a fim de se
entrevistar com Magashi. Em seguida, foi para a Ásia onde a irmandade possuía
poucos núcleos; mas assim mesmo buscou expandir a nova energia de que era
portador.
Mais difícil era a
posição do Irmão Supremo. Sendo ele o grande pilar da hierarquia, teria de
permanecer em constante concentração e meditação para suster a nova energia
provinda do Pai. Apesar dos corpos mentais e astrais dos Mestres Terra em todo
o mundo, estarem permanentemente incorporados da nova energia, eles precisariam
de suplementação aos gastos. Em termos e dimensão da célula, esse trabalho era
grandioso e imprescindível para o sucesso da empresa em que se envolviam, e
poucos eram os momentos de descanso do Supremo, ocasiões em que estabelecia
artifícios a fim de que os fluxos da nova energia não sofressem interrupções.
Representava algo diferente em relação aos ciclos e subciclos. Aqui, nesse
momento, não havia a necessidade de modificar fluxos “in natura”, passando-os
ao Superior Mestre Terra.
Neste caso, a nova energia já descia praticamente
pronta; a tarefa do Supremo, no entanto, era domá-la, suste-la em padrões
vibratórios compatíveis à ação a desenvolver, e após enviá-la aos Mestres
Terra. Isso o deixava em permanente e incrível tensão. Difícil explicar a forma
como seu mecanismo cerebral tratava dos ajustes vibratórios e como ele percebia
os momentos solicitados para os envios na quantidade e qualidade requeridos.
A par de suas lutas,
chegavam-lhes constantes notícias de que os Mestres Maiores, mercê de seus
grandes recursos e avançada tecnologia, realizavam o aprisionamento de falanges
negras, levando-as em naves para lugares secretos e seguros no astral, de onde
não poderiam fugir nem ser libertadas. De pouco em pouco resultados favoráveis
à Terra começaram a aparecer. O fato levava os núcleos da Loja Negra a realizar
constantes reuniões e rituais escabrosos na tentativa de recuperar energias e
forças perdidas. Houve apelos e invocações à Grande Face Negra para que, de
alguma forma, ela interviesse nas lutas. A Grande Face Negra enviou-lhes,
então, fortes emanações de energia, sugestões de como extrair e obter novas
forças na Terra, além de ter destacado um grande representante de sua
hierarquia cósmica para vir aqui chefiá-los.
As energias e sugestões
chegaram-lhes com certa facilidade pelo éter e luz astral, todavia seu
representante não conseguiu aportar no planeta. Houve intensa luta na atmosfera
terrestre com a participação direta dos Mestres Maiores, sendo o representante
da Grande Face Negra arrojado para longe, desistindo de tentar outra vez.
Seguidamente, hordas de seres subumanos eram derrotadas pelos defensores
da Terra, aprisionadas em campos de isolamento e detidas por anéis de força
magnética que os impediam de sair. Grande número de repelentes elementais propositadamente
criados com forma humana, em rituais sangrentos de magia negra e fortalecidos
pelas emanações que absorviam pelo mundo – principalmente de situações
provocadas em que o plasma sanguíneo e o terror estivessem presentes – eram da
mesma forma dominados e levados a lugares especiais, próprios, onde os
trabalhadores afeitos ao conhecimento prático da magia os destruíam.
Os
combates pendiam ao equilíbrio, porém a energia cósmica negativa continuava
seguidamente a fluir e atuar pelo lado negro da natureza. Seu direcionado fluxo
sempre encontrava os pontos de atração das lojas malignas onde mestres e
discípulos da via da mão esquerda realizavam rituais. Daí, com o auxílio de
grandes formas elementais, que sabiam muito bem manipular, fortaleciam asseclas
e dirigiam a energia ao mundo, às mentes voltadas ao mal.
O
momento do planeta era sem dúvida atípico. Quando normalmente os contrários se
digladiavam, os motivos eram quase sempre os mesmos, ou seja, pelas intenções
das forças negativas escamotear as bases da inteligência iluminada. Se
possível, jogariam por terra os nobres princípios esposados pela alma e
infiltrariam sua incompreensível sanha, a fim de que a degradação substituísse
a razão pela loucura. E quando coordenavam ataques para essas finalidades,
tornava-se imprescindível os defensores da luz tomar das armas e sair a lutar.
A filosofia de consagrar-se ao consistente bem, não tolhia a célula em acusar a
ação do mal, prestando-lhe assim a devida atenção. Agir de maneira contrária
seria afrouxar a vigilância ao próprio bem. Portanto, era um dever o permanente
alerta.
As
recentes manobras das trevas os tinham levado a enormes tensões e lutas
intestinas, mas, no plano externo da vida humana, o barril não explodira ainda,
muito embora o palito estivesse aceso junto ao rastilho da pólvora. Não havia
mesmo a menor esperança de que essas oposições estivessem próximas de acabar no
atual estágio evolutivo das raças, pois as trevas continuariam a habitar a
matéria enquanto o homem se sentisse atraído pela massa do barro do qual era
feito. A vida continuava.
0 0 0
Sorman voltara a empreender os melhores esforços no sentido de recuperar
o tempo perdido nos negócios da empresa. Por sinal, a empresa houvera feito
desdobramentos, criando duas subsidiarias com capital próprio a fim de gerir os
diversos assuntos e atender com maior eficiência tanto ao mercado nacional
quanto ao internacional. A guinada administrativa aliviava a empresa mater e
seus departamentos de uma carga excessiva de responsabilidade, determinando o
fim de algumas incômodas limitações. A recente ampliação envolveria uma
metodologia administrativa – mais específica e direcionada – trazendo novos
implementos tecnológicos e vigorosos lançamentos de marketing, que se esperava,
fossem fruto de hábeis estratégias. A ideia veio a ser formulada tão logo a
vida planetária se livrara das tempestades provocadas pela energia primária e
nuvem escura. Entretanto, somente agora, quatro meses depois, o fato se
materializava.
Em
virtude dos acontecimentos mundiais e de certas medidas defensivas tomadas
pelos países afetados diante de ameaças de guerra global e/ou terrorismo internacional, alguns
compromissos de entrega não tinham sido honrados. Com os seguidos colapsos no
fornecimento da energia elétrica, houve muitos dias de total abandono das
tarefas diárias com drástica redução nos horários dos turnos de trabalho. Tudo
era realizado precariamente. Os geradores das empresas eram acionados para a
produção mais imediata, preferencialmente para clientes domésticos de endereços
mais próximos. Seria temerário embarcar lotes de mercadorias para destinatários
longínquos, pela possibilidade de não chegarem.
Muito menos foram feitas
entregas ao exterior naquele intenso período turbulento de sessenta e sete dias - pelos fatos já
conhecidos - nem a produção conseguiria aprontá-las pelos consequentes
problemas. Além de tudo, para a maioria dos contratos de frete, já majorados,
as companhias seguradoras vinham cobrando altíssimos e estarrecedores valores
nas apólices, ou simplesmente recusavam-se a dar cobertura. Todos esses
envolvimentos e muitos outros decorrentes de tantas causas principais
inviabilizaram as entregas, produzindo interrupções na produção e provocando a quase
estagnação do fluxograma dos departamentos.
Em
compensação, sobrara mais tempo para que Sorman e Anita tivessem encontros,
aliado ao fato de que poucas reuniões da FIA eram marcadas no plano terra. A
maioria das decisões coordenava-se na Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da
Hierarquia, no plano interno e superior. Com isso, pôde Sorman conduzir Anita à
casa de Bruno.
Anita levou um susto ao ver aquele homem
negro, alto e forte, muito conservado apesar de seus cinquenta e tantos anos. Tratava-se da mesma pessoa que lhe aparecera em sonho, antes dos violentos
acontecimentos se precipitarem na atmosfera do planeta. Ele sorriu-lhe
mostrando os alvíssimos dentes e para que entendesse o porquê de sua reação,
ele tomou-lhe a mão beijando-a, ato raro em se tratando do Irmão Supremo.
- Como vai, Iana? –
perguntou-lhe olhando-a nos verdes olhos. Anita sentiu-se rodopiar. Iana! Iana!
Aquele nome repetiu-se em eco; ela viu-se transportada a um passado longínquo,
à entrada de majestoso templo, cujo corredor principal detinha às margens
altíssimas e grossas colunas. No outro extremo desse corredor, sete degraus se
dispunham ante um patamar em circulo. A negra parede do fundo era antecedida por
gigantesca estátua de um deus da natureza, a julgar pelas representações que o
cercavam. Enorme pira prateada, emergindo do solo, ardia no centro do círculo,
rodeada por sacerdotes simplesmente vestidos e sacerdotisas envoltas por
coloridos véus e guirlandas de flores nas cabeças.
Adiante de todos, ladeado
por dois outros sacerdotes, estava esse homem com uma longa veste negra,
mostrando no peito a figura de uma serpente naja dourada, ligeiramente sinuosa, que lhe subia
desde abaixo da cintura, até acima do coração. Iana caminhou solitariamente sob
a vocalização de um tipo de mantra emitido pelos sacerdotes, ao som de
instrumentos metálicos e chocalhos. Enquanto Iana caminhava, Anita via as imagens
irem se enfraquecendo até desaparecerem completamente.
-
Fui Iana, disse um tanto hesitante, você...
-
Seu iniciador - completou Bruno. Silêncio. Após segundos ele reiniciou –
foi-lhe necessária esta vidência da Atlântida a fim de que a alma terrena
novamente começasse a despertar para a realidade espiritual. Outras mais ainda
virão desde que retorne à irmandade. Ela olhou para Sorman que nada disse.
-
Pode explicar-me a respeito da existência da irmandade, suas exigências e
objetivos?
-
Sim, claro, em certa medida, por enquanto. Mas entremos! – convidou-os,
afastando-se da porta, permitindo-lhes adentrar.
Lucéa veio conhecê-la, seguida de Lucen. Por instantes Sorman ficou
embaraçado, mas Lucéa a beijou deixando-a a vontade:
-
Então você é a escolhida de Sorman. Por isto a escondeu por tanto tempo.
Pudera, é tão bonita!
-
Obrigada, você também é. Sorman não exagerou ao descrevê-la. Lucéa olhou-o,
endereçando-lhe o maravilhoso sorriso. Lucen fez coro com a irmã nos elogios,
dizendo ao final:
- Vou preparar um chá. E retirou-se em
companhia de Lucéa. Após o chá Bruno convidou-a:
-
Gostaria que conhecesse um local e lá pudéssemos continuar nossa conversa.
-
Para mim está bem – aceitou Anita.
Saíram. Chegando à casa de Manoel tomaram o jipe. Anita saboreou a
pequena viagem, lembrando-se do sítio onde passava férias na infância. A Casa
Rosa pareceu-lhe extremamente familiar.
- O
que existe detrás desta parede? – perguntou Anita olhando-a com extrema
atenção, trazendo o indicador aos lábios como se pensasse.
-
Que lhe parece? – redarguiu Bruno, enquanto abria uma janela, devolvendo-lhe a
inquirição. Anita fechou os olhos, concentrando-se por segundos.
-
Não sei, exatamente..., uma escada, talvez um corredor, qualquer coisa nesse
sentido. – disse hesitante
- E
depois? – insistiu Bruno.
-
Uma porta! – respondeu com segurança.
- E
após a porta?
-
Uma cortina de sombras!
-
Excelente vidência, irmã, mas finalmente obstada por nossas energias.
- Desculpe, não pretendia...
- Não se preocupe, foi ótimo. Venham! –
convidou-os, logo adentrando pelo corredor, chegando à biblioteca. Anita olhava
tudo com espanto, como se já ali tivesse estado. Tendo os três se instalado à
longa mesa, Bruno explicou:
-
As exigências iniciais da irmandade em relação à mulher são diferentes. A
mulher, até certo ponto, deixa fluir mais facilmente qualidades espirituais.
Com o homem a situação se revela de outra maneira, mas, para ambos, sob o labor
individual a que submetem suas personalidades no caminho esotérico,
evidentemente há um determinado momento em que precisam unir suas forças. Os
iniciados bem sabem da curva ascendente da espiral evolutiva onde em certo
ponto há que existir a comunhão de corpos e almas a fim de que um casal se
realize mais amplamente.
Nada disto assemelha-se a uma união religiosa em
matrimônio ou mesmo à vida natural a dois. A especial união a que me refiro,
necessita possuir outros ingredientes, somente hoje experimentados por
praticantes dos ensinamentos ocultos. Entretanto, antes de acontecer a união as
experiências individuais tendem a enriquecer o ego. Neste particular, desejaria
saber, agora, se você pretende realmente solicitar admissão à irmandade?
-
Penso nesta possibilidade, mas não tenho ainda suficientes informações para
afirmar convictamente.
-
Claro, e voltamos ao mesmo impedimento de nossa conversa anterior – ele
inspirou profundamente – desejo passar-lhe um livro que certamente virá
trazer-lhe suficientes esclarecimentos. Antes de qualquer coisa, você precisará
assinar um documento, se assim desejar, naturalmente.
Bruno levantou-se em direção à dependência contígua, afastando as
cortinas. Voltou pouco depois trazendo uma pasta de arquivo que abriu sobre o
tampo vítreo da mesa. Retirando um documento, estendeu-o à moça que o leu
rapidamente. O documento, na realidade, era um juramento sob o qual, no
primeiro parágrafo, o abaixo assinado colocava-se ante a exigência de jamais
revelar a alguém qualquer informação sobre a irmandade, recebida de viva voz, visualmente ou em textos,
durante seu período de pré-ingresso à irmandade. O segundo parágrafo exigia
também seu compromisso de, mesmo não sendo aceito na irmandade, respeitar o
silêncio. O terceiro e último parágrafo, vinha estabelecer ao candidato a total
liberdade em abandonar o estágio e a irmandade a qualquer momento, se assim
desejasse ou necessitasse, quer temporária ou definitivamente, mas atendo-se ao
irrestrito compromisso de honrar o silêncio por toda a vida.
Anita pediu a caneta a Sorman, assinando o documento. Bruno se levantou,
alcançando um livro num dos escaninhos da estante, relativamente grosso, de
encadernação azul marinho, estendendo-o à moça com elegante gesto.
-
Leve-o em caráter de exceção, sob minha total responsabilidade -
disse após sentar-se - leia-o com a máxima atenção. Terá trinta dias
para devolvê-lo.
Anita leu avidamente o livro em quinze dias. A cada página seu interesse
aumentava, vindo a saber da origem da Fraternidade Irmãos Atlantes e alguns de
seus atuais propósitos – respondendo em parte ao que a si mesma arguira – bem
como, de uma forma geral, do trabalho objetivo desenvolvido no mundo. Apêndices
inseridos entre as narrativas, contavam momentos da história universal em que a
participação da irmandade fora efetiva. Nesses fragmentos, inúmeras correções
eram feitas e alguns fatos importantes realinhados em relação ao que a história
oficial e acadêmica falsamente contava, restabeleciam as verdades.
Concomitante ao livro, certos envolvimentos pessoais com ela
acontecidos, vieram trazer-lhe elementos para profundas reflexões. Numa dessas
ocasiões, ao dormir, sentiu-se transportada a um edifício grande, de
arquitetura antiga, esplendidamente conservado, por cujo interior foi conduzida
a uma espécie de anfiteatro moderno, onde ocorria uma reunião. Tratava-se da
Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da Hierarquia. Num lugar semicircular,
muitas outras pessoas ocupavam poltronas nas arquibancadas, aguardando o início
dos encontros. Viu então frequentadores de diferentes países e raças. Mas
logo que os diretores entraram, ocupando os seus lugares, todas as imagens
repentinamente desapareceram.
E quando desperta, no exercício da vida
profissional, via-se, vez por outra, envolta por um campo de forças que lhe
alterava o estado vibratório, deixando-a com a mente mais perceptiva. Ela
comentou estas situações com Sorman, que nada pôde esclarecê-la.
Anita decidiu-se: solicitaria admissão à irmandade. Sorman, ao ser
comunicado, unicamente esboçou um sorriso, pois jamais duvidara de que ela tomaria
esta decisão. De volta à casa de Bruno, recebeu todas as informações adicionais
ao que pretendia; mais tarde foi-lhe apresentada uma irmã fraternal que por
algum tempo viria ser sua mestra instrutora. Acertaram todos os detalhes
relacionados a esses contatos. A mestra a instruiria e a treinaria
pessoalmente, em aulas ministradas num pequeno apartamento pertencente a FIA,
no centro da cidade.
Meses se passaram. Os relatórios da mestra foram altamente
recomendáveis; com isso Anita estaria definitivamente habilitada a ingressar na
irmandade. Foi marcada uma data para a cerimônia de consagração; na mesma
ocasião, três outros aspirantes estariam também passando a membros-neófitos,
podendo a partir daí participar de reuniões e rituais na Casa Rosa.
CAPÍTULO XIX
NOVAS DECISÕES
O
desarme ao inimigo continuava. No entanto, as lutas tinham se tornado muito
menos frequentes, não havendo mais aquela atenção e concentração como de
início, quando da passagem pela Terra da Grande Face Negra. Muitas falanges
malignas pegas de surpresa em ofensivas dos defensores da Terra foram
dissolvidas. Devido a estratégia, a resistência deles diminuia cada vez mais, parecendo às
células empenhadas nos combates, que os inimigos teriam realizado um recuo
intencional a fim de tentar recuperar suas perdas. De todas as formas, pareceu-lhes
também, àquela altura, que não teriam mesmo condições de produzir ataques
maciços e simultâneos a diversos pontos do planeta como os ataques até então
realizados.
Sorman e Anita resolveram casar-se. A notícia não veio causar
significativa comoção à Olga porque Sorman já vinha trazendo Anita a casa.
Assim, ele preparou terreno, dando tempo para Olga aceitar a situação. Ela se
lembrava perfeitamente da moça. No passado, julgara Anita somente
mais uma das namoradas do filho, mas a odiara profundamente quando ambos foram
viver juntos por três longos anos naquele ashram. Esquecera-a com a volta de
Sorman ao lar, posto que desde então ele não mais fizesse qualquer menção à
moça. Com imenso sacrifício esforçou-se por tratá-la bem; o sacrifício
prolongou-se em muitas ocasiões e visitas dela. Eduardo adorou a decisão de
ambos. Sempre simpatizara com Anita; jamais lhe atribuindo, ao contrário de
Olga, qualquer peso ou culpa na decisão de Sorman em trocar o lar pelo ashram.
Pelo lado de Anita, houve pequeno rebuliço. Sua mãe, avessa à Sorman, de
início posicionara-se contrária à reaproximação, chegando a ficar amuada por
vários dias. Fazia pequenas birras para a filha e emudecia. Mais tarde, ao
saber que tinham a intenção de casar-se, mudou o comportamento, voltando a agir
com normalidade, até a cantar. Afinal, Sorman era rico; um casamento assim não
se despreza por bobagens.
O casamento em cartório teve poucas
testemunhas. Essa simplicidade foi contrastada naquele mesmo dia pela grande
festa em casa, organizada por Olga, com a presença de parentes e amigos. O
casal foi morar num apartamento não longe dali; Olga chorou inconsolavelmente
com a partida do filho.
Outra solenidade viria acontecer na irmandade. O Supremo oficiou o
casamento em ritual no templo da Casa Rosa, em presença de muitos membros
irmãos. A comemoração veio após a cerimônia com tradicional almoço ao ar livre.
0 0 0
Conforme houvera prometido a Garcia, no estúdio do Supremo, Sorman tomou
para si a tarefa de um estudo mais acurado acerca, principalmente, das etnias
das Américas, em cujos ramos existissem egos pertencentes à FIA.
Mandou chamar Garcia, com a devida permissão do Superior, com ele se reunindo
algumas vezes no Salão de Conferências, em companhia de Verônica e Michel.
Garcia, além de parte interessada nesse estudo, seria valioso companheiro,
pensou Sorman, pois detinha enorme experiência no trato com problemas étnicos
dos milhares de irmãos a quem missionariamente se dedicava. O ramo racial que
de certa forma era responsável, tinha em suas famílias o maior número de egos
da irmandade, a par de viver em áreas muito amplas e diversificadas.
Vários
mapas e relatórios da história dos povos americanos foram estudados,
objetivando um aprofundamento mais amplo do processo evolutivo dos egos nesses
povos. Alguns livros reescritos por irmãos da Fraternidade no atual ciclo
planetário, retratando fatos antropológicos das diversas etnias ou comentários
pessoais, foram encontrados por Verônica no acervo da irmandade, e pesquisados.
Em certa ocasião, Sorman pediu permissão a Bruno para também pesquisar na
biblioteca da Casa Rosa, trazendo de lá dois excelentes volumes, que os abriu
sobre a mesa de mogno do Salão de Conferências, diante da pequena equipe. Do
computador puderam também obter interessantes dados.
Entretanto, na Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da Hierarquia puderam
ir mais longe. Reunidos ora no estúdio de Sorman ou, principalmente, numa das
câmaras especiais – uma das mais importantes e significativas da FIA – entraram
propriamente na história dos milhares de egos da célula encarnados nas
Américas. A manobra foi fundamental para montar um quadro abarcante em setores
e respectivos segmentos, em relação às etnias com percentuais de egos entre a quarta e a quinta dimensões, definindo seus atuais momentos evolutivos.
Garcia jamais estivera em qualquer das câmaras. Foi necessário o Supremo
autorizar sua participação, após mandar submetê-lo a um ritual de purificação
com vapores aromáticos, tendo prescrito alimentação especial de quarenta e oito horas,
orientando que, por certo tempo, se ocupasse somente de um só painel na visualização de
ícones esotéricos de quarta dimensão, que atraiam determinadas e
específicas energias de quinta dimensão.
Ele
aceitou com entusiasmo a todas as disciplinas, bem como a ter de submeter-se,
ao final deste intrincado trabalho, a uma seção de letargia com o Supremo.
Durante a seção, as experiências vivenciadas por Garcia, seriam trazidas para
uma das áreas de seu mental, permanecendo inativas, sem o risco de serem
absorvidas pelo cérebro físico. Desse modo, estaria assegurado ao ego não
entrar em conflito com aquilo que não saberia definir, por não dispor
claramente daqueles elementos em seus mecanismos de raciocínio objetivo.
Passado o período de preparação de Garcia, os quatro adentraram a Câmara
Branca, denominada também de Berçário. Era imensa, não propriamente pela sala,
de dimensões relativas e confortáveis, porém pelo anexo. A Câmara era de fato
branca, possuindo paredes e teto acolchoados. A porta de entrada detinha um
dispositivo eletrônico de segurança; uma caixa pequena, transparente, embutida
sem qualquer ressalto, a qual seria preciso palmear a fim de identificar-se e
em seguida soletrar próximo a ela uma palavra em três sílabas. Então ela
abriria. No interior da Câmara, existia outra porta com idêntico dispositivo.
Qualquer dos dispositivos ao ser acionado enviaria sinais a uma central,
instalada numa outra câmara devidamente equipada, que rapidamente os captaria,
gravando instantaneamente as imagens de quem acionasse a porta. Caso
acontecesse algum erro na emissão da senha à viva voz, aquele dispositivo
emitiria um sinal de alerta, que era uma luz azul a piscar rápida e
intermitentemente. Pessoas não classificadas com impressões de energia
corpórea, não conseguiriam sequer provocar qualquer contato com o sistema;
portanto, a porta permaneceria selada e a Câmara hermeticamente fechada.
Entrando no Berçário, foram tomados de suave
energia. Sorman encaminhou-se para a segunda porta, abrindo-a da mesma maneira
que à primeira, convidando-os a adentrar. A intenção principal era mostrar a
Garcia o que mais além existiria. Após a porta, vinha um curto corredor,
terminando numa pequena divisão, como antessala. As paredes do corredor e
divisão eram também brancas, mas comuns, sem acolchoamentos. Na parede frontal
ao corredor havia um vão em arco e, após, nova e pequeníssima divisão –
minúsculo átrio – encerrando unicamente um patamar branco semelhante ao
mármore, de onde partiam degraus de uma escada em descenso.
Do patamar
era somente possível ver alguns degraus e a parede, sob cujo corte a escada
fora construída; entretanto, à medida que iam descendo, viam cada vez mais, enorme caverna com
luzes, onde dezenas de urnas transparentes se dispunham em carreiras
iguais. Ao atingirem o solo, Garcia admirou-se quase extasiando. Cada urna
continha uma réplica humana de um modelo racial, masculino ou feminino, de
habitantes do planeta, de diversos troncos, raízes e ramos étnicos. Eram
perfeitos, parecendo vivos, ou somente imóveis por algum transe hipnótico.
-
São modelos das diversas raças que povoaram e ainda povoam nossa Terra desde
tempos imemoriais – explicou Sorman.
-
Todos? – inquiriu Garcia, visivelmente excitado.
-
Todos e suas importantes variações – reconfirmou Sorman.
- Este é um contemporâneo primitivo da
Austrália – apontou Garcia para a urna ocupante da primeira posição, falando em
seu peculiar espanhol.
-
Nova Zelândia, é um maori! – corrigiu-o Verônica. Garcia olhou-a desconfiado;
ela o convidou a aproximar-se da urna. Passou então a mão sobre um pequeno
retângulo desenhado sobre um canto desta, sem tocá-lo, cujas linhas douradas
eram quase invisíveis, e várias luzes se acenderam dentro da urna,
projetando-se sobre o modelo.
As luzes deram-lhe uma coloração apropriada a um
habitante da Terra, emanando de camadas do material transparente dentro da
urna, cuja contextura não era vidro conforme parecera de início, mas de partes
superpostas em estreitíssimos encaixes impossíveis de serem distinguidos de fora. As urnas
eram arredondadas em cima, abrindo-se e alargando-se para baixo, terminando em
base convexa hexagonal. As luzes se projetavam sobre o replicado sem fachos ou
dispersões, dando-lhe exata coloração à pele, olhos, cabelos e unhas. Só
faltava começar a falar e andar pensou Garcia.
Verônica passou novamente a mão como antes sobre o quase invisível
retângulo e uma voz vibrou suavemente, através de um pequeno e finíssimo
instrumento, na forma de um arame dourado, justaposto numa das arestas frontais
da urna, começando a contar da genealogia da raça ali representada pelo modelo. O
instrumento coloria-se de lilás e rosa à medida que as palavras eram
reproduzidas. Vibrava em rápidas oscilações, parecendo medir o comprimento de
onda de cada palavra.
Ao
término do histórico, Verônica repetiu os gestos anteriores, mas desta feita
sobre um diminuto círculo azul na base da urna, acendendo-se uma luz alaranjada
em projeção de faixa horizontal, em cujo interior passaram a percorrer palavras
em tom esverdeado, reproduzindo a mesma genealogia contada há pouco pela voz.
-
Podemos ler este mesmo texto em diversos idiomas, bastando passar a mão mais
vezes sobre este círculo – explicou a moça.
-
Fantástico! - admirou-se uma vez mais o visitante.
Caminharam pelo corredor. Garcia desejou parar diversas vezes a fim de
inteirar-se de outros históricos, mas Sorman não lhe consentiu, pois tinham
muito ainda a fazer. A visita era rápida para Garcia, sendo unicamente para que
conhecesse esse inimaginável acervo da FIA. Terminado aquele corredor, novas
carreiras de urnas continuavam noutro lado, em novo corredor perpendicular,
depois noutro e noutros. As urnas possuíam diversos tamanhos, de acordo com as
alturas dos modelos; ao chegarem aos setores das réplicas lemurianas e atlantes,
se mostraram perto de quatro metros.
De
volta à sala da Câmara, os quatros se assentaram em confortáveis poltronas,
excelentes para relaxar.
-
Irmãos - começou Sorman - o trabalho mental a realizarmos agora, requer total concentração.
Foi-nos permitido pelo Supremo, como sabem, fazermos abordagens às fichas
cármicas de nossos irmãos encarnados nas etnias que estamos estudando. Tenho em
meu poder as senhas que abrirão as portas permitindo-me acionar as fichas.
Iniciemos as tarefas.
Eles se concentraram. A energia ambiente tornou-se mais sutil,
permeando-os. Paredes e teto ficaram transparentes. Uma luz branca produzia um
efeito de translucidez e se sentiram numa nave. Sorman concentrou-se no teto,
pronunciando mentalmente uma das senhas, sendo sugado para o interior do tubo,
embora seu corpo etérico-astral permanecesse na sala da Câmara. Sua projeção atravessou o
tubo, parando diante de uma cortina branca com frisos verticais, detendo no
centro um terceiro símbolo da FIA, secretíssimo, jamais revelado fora da hierarquia
dos treze.
Ele
se concentrou no símbolo, pronunciando mentalmente uma nova senha. A cortina e
o símbolo abriram-se ao meio. Sorman deparou-se com um arquivo incrível, que já
conhecia, mas que nunca acionara. Eram realmente fichas em compartimentos,
agrupadas às centenas e aos milhares, flutuantes, brancas, reverberantes,
contidas à superfície por símbolos em luz, cujas cores se espalhavam sobre os
respectivos grupos, emprestando-lhes um pouco de suas tonalidades. Tudo
era energia concentrada – as fichas e os símbolos – e Sorman aproximou-se de outro
daqueles grupos.
Ante a proximidade, o símbolo de uma figura hexagonal
irregular, com lados maiores longos e paralelos e tamanhos desiguais,
fechou-se, condensando as fichas ainda mais, apertando-as. As cores do símbolo eram carmesim nas pontas até o meio, e mistura de grená com amarelo, para o interior.
Sorman então revelou a própria senha: seu número de iniciado e a nota
sonora pessoal, e projetou a mente sobre o símbolo, que se abriu, soltando as
fichas. Rapidamente as leu de uma só vez, atraindo-as em blocos de vibrações para a memória.
Tendo terminado, lançou mentalmente os registros capturados, para baixo, em
direção da corrente estabelecida pelos irmãos na sala da Câmara - e eles, também mentalmente, absorveram os registros enviados.
Em
seguida, aproximou-se de outro grupo de fichas, contido por um heptágono
pontiagudo – a exemplo de uma estrela – de cores azul escuro sem brilho nas
pontas dos raios, e de um vermelho alaranjado com algo de amarelo esmaecido no seu interior, ao longo daqueles mesmos raios - e
tendo penetrado o heptágono absorveu os seus registros de uma só vez, conforme fizera anteriormente. A mesma ação ele
realizou com dois outros grupos. Um deles era contido por um eneágono em
segmentos desiguais verde musgo, com faixas estriadas irregulares marrom e
cinza na parte central; o outro era contido por um quadrado totalmente
alaranjado. Nesta Super Câmara, outras repartições encerravam novos arquivos,
cujas fichas, também contidas por símbolos poligonais, revelavam da mesma forma
a vida cármica de egos da FIA noutras raças ou etnias, em todos os continentes.
Havia, além de tudo – somente
agora ele pudera perceber, embora sem muita clareza – uma esfera bem ao alto
dos compartimentos das fichas, parecendo pairar, como tudo ali, sem qualquer
sustentação. Essa imagem introduzida em sua mente recuava seguidamente e
desaparecia; era grande, a julgar pelo aparente volume, e desprendia um tipo de magnetismo em
direção aos símbolos. Estaria além da Super Câmara, sob outro padrão
vibratório, pois não tinha conteúdo dentro da Câmara. Possuía, em sua total figura, centenas de pequenos hexágonos em colorações diversas, distribuídos em áreas específicas que eram países e continentes. Seriam muitas as tonalidades destacadas de cada hexágono e Sorman deduziu
que essa esfera - através dos hexágonos - mantinha-se ligada às várias figuras poligonais relacionadas diretamente com os respectivos
grupos de fichas, que há pouco explorara.
As figuras poligonais, portanto, num tipo de sinergismo mecânico e magnético, através daquele processo, enviavam seguidas amostras da energia provinda dos diversos grupamentos de egos da Fraternidade Irmãos Atlantes para os hexágonos, sem o que se tornaria muito
difícil tabulá-los a todos e manter as leituras atualizadas em situações globais de sínteses.
Sorman nada tentou ler dos hexágonos na esfera, pois já tinha se apropriado dos conteúdos das fichas. Ao
retornar em plena consciência à sala da Câmara, ele novamente ligou-se ao
círculo, percebendo que haviam absorvido as informações por ele enviadas dos
quatro grupos pesquisados. Terminado o trabalho, saíram do Berçário em
direção da ala dos estúdios, através de um dos corredores. Ao passarem diante
de outra câmara, algo despertou a curiosidade de Garcia, que parando perguntou:
-
Que existe aqui?
- A Câmara Azul! – respondeu Michel.
- O
que ela guarda? Michel olhou para Sorman, que lhe assentiu quase imperceptivelmente
com a cabeça.
- O
replicário dos iniciados! – Garcia franziu a testa sem entender; Michel sorriu,
logo explicando – a Super Câmara de onde Sorman retirou as informações que
agora possuímos mentalmente, contém as fichas cármicas de todos os egos da FIA,
encarnados pelo mundo. Os iniciados, porém, além das fichas, possuem cada um,
uma réplica ou cópia fiel de seus corpos físicos, envoltos por uma aura de
energia, configurando sua situação vibratória no momento.
-
Então, todos vocês têm aqui uma réplica? – voltou a perguntar Garcia, em total
espanhol, com exagerada surpresa.
-
Nós e você também, amigo! – reafirmou Sorman. Garcia arregalou os olhos,
engolindo em seco e nada mais desejou perguntar.
0 0 0
O
material na Câmara Branca facilitara o trabalho da pequena equipe. Eles sabiam
que tinham visitado o Berçário, pois atuavam agora, preponderantemente, com a intuição
desperta. Refizeram alguns mapas, corrigiram posicionamentos e conceitos,
estabeleceram novas comparações e realizaram projeções sobre um trabalho ideal
a ser ainda começado.
Este tipo de pesquisa, na Câmara Branca, não era usual. Nem mesmo Michel,
o Terceiro Mestre Terra para a América do Sul, obtivera jamais autorização ou o
convite do Supremo para a pesquisa “in loco” das fichas cármicas. Isso era por
demais reservado; envolvia um teor de percepção e análise incomuns aos padrões
mentais dos Mestres Terra. Até então unicamente o Supremo e o Superior tinham
podido, em poucas ocasiões, realizar essa inserção mental sobre a aura dos
arquivos, deles obtendo sínteses dos grupos. Em ocasiões, também, sempre
em relação direta com as etnias de sua jurisdição, Michel participara na
subalterna posição de coletar aquilo que os dois hierárquicos maiores tinham
conseguido auscultar.
Sorman temeu que seu pedido de investigação viesse trazer algum
desconforto a Michel, talvez uma reação de indignação ou o sentimento de
desprestígio diante da Hierarquia a qual representava desde alguns anos, antes
do Ministro aqui aparecer. Surpreendera-se por ter ousado pensar na possibilidade de
investigação; mais ainda, em poder realizá-la a contento. Naquela ocasião, relutou muito em ir
conversar com Bruno e muito mais em submeter-se a uma avaliação que tal pedido
exigiria, e que resultaria em deferimento ou não do Supremo. Correria o risco
de ser julgado um arrogante ou pretensioso.
Mas
como ele
resolvesse finalmente externar o pensamento, foi procurar Michel. A seleção,
proposital e inevitável - porquanto a intenção dependeria, talvez, total e
completamente da reação do Terceiro Mestre Terra - não poderia ter sido outra em
primeiro lugar. Bruno estivera excessivamente ocupado nas últimas semanas;
depois viajara ao sul, lá permanecendo. Ele mesmo autorizara Sorman, a pedido
do próprio Ministro Extraordinário, a realizar as pesquisas com Michel e
Verônica no Salão de Conferências, bem como, por conta própria, o Supremo
solicitara do Superior, mandar vir Garcia. Essa última providência coroava seu
desejo de ter Garcia por perto e o Supremo, sem dúvida, lera-lhe o pensamento
ao adiantar-se na solicitação.
Michel
teve reação entusiástica, não colocando a menor dúvida sobre planejamento. Vibrara positivamente com a possibilidade de vivenciar uma nova experiência na
Câmara Branca com alguém como Sorman, que admirava. A espontânea alegria de Michel aliviara
sobremaneira o íntimo do Ministro, que mais confiante foi conversar com Bruno no dia de
sua partida. O Supremo transmitiu-lhe o seguinte:
-
Irmão Sorman, alegra-me profundamente a iniciativa. Não é necessário avaliá-lo,
pois sua coragem é o retrato de uma serena autoconfiança: algo difícil
definir numa mente privilegiada. Sem dúvida, uma intenção superior, segundo
entendo, dirige-o a isto realizar. Autorizo-o, sim, sem o menor receio e quero
de imediato instruí-lo em como realizar o trabalho, posto que comigo já
estivesse na Super Câmara, em visita excepcional. Verônica, Michel e o próprio
Garcia poderão participar como coletores. A propósito de Garcia, deixarei
instruções em como se preparar para poder adentrar a Câmara, bem como usarei de
todos os meus recursos, à distância, para realizar nele um trabalho inicial de
letargia, tão logo esta equipe retorne da Super Câmara. Noutra oportunidade completarei este trabalho.
Sorman
não se lembrava, exatamente, dos detalhes de sua única visita ao Berçário, na
Grande Casa, lugar das câmaras. Porém soubera ter gozado do privilégio de ser a
terceira pessoa em toda a hierarquia a conhecer aqueles arquivos cármicos,
muito embora somente os visse a certa distância. Bruno prosseguiu:
-
Dar-lhe-ei as chaves que acionarão em seu mental as senhas que precisará
utilizar para entrar na Câmara Branca, Super Câmara e grupos de fichas.
Somente lá as senhas virão à sua memória para depois, novamente, se apagarem.
Feche os olhos e relaxe. Sorman assim fez e Bruno induziu-o a subir à Grande
Casa dos Estúdios e Câmaras da Hierarquia, revelando-lhe as chaves ao que
pretendia.
0 0 0
- A que conclusão chegaram quanto a
situação dos irmãos nas Américas? – perguntou Bruno em certo instante.
A
neblina descia rapidamente naquela manhã de domingo. O frescor agradável e o
intenso odor da vegetação pervagavam como mais ainda a robustecer a vida. Sorman houvera
levado Anita a Casa Rosa a fim de que participasse do ritual quinzenal. Os
ofícios, nesse estágio, eram conduzidos por sacerdotes de iniciações menores;
assim ele subira a casa de Bruno para fazer-lhe uma visita.
Sorman
desviara o olhar em gesto automático, tentando encontrar o panorama lá embaixo,
mas a cortina de névoa já cobria o verde anel em torno do sítio e dentro em
pouco os alcançaria à varanda. A pergunta era esperada desde que Bruno havia recentemente retornado da viagem e ele mirou ao negro
rosto respondendo:
- A
mesma conhecida. Nosso trabalho só veio confirmar a antiga preocupação da
hierarquia. Penso nisto diariamente.
-
As informações levantadas tiveram o respaldo esperado quando da leitura de seus
campos áuricos? – referiu-se ainda aos grupos de fichas.
-
Sim, definitivamente. A fase final de nossa pesquisa, como você já soube,
estribou-se sobre este fundamental recurso. Tanto eu, como Michel e Verônica,
ao cruzarmos os dados subjetivos, colhemos semelhantes conclusões. Dos
grupamentos pesquisados, pudemos observar que os de números dois e três estão
em situação pior. O de número um está confuso e o quatro se mostra somente
razoável. As ramificações encontradas em nosso país, para as quais carrearam
grandes quantidades de egos da FIA, caldearam rapidamente com outros ramos e
raízes europeias ou africanas. Isso forçou-nos a estabelecer diferentes
parâmetros para tentar reagrupá-los por conjuntos mais ou menos afins. Acho que
conseguimos algo neste esforço. Entretanto, a situação deles não difere muito daquela dos
irmãos em outros países.
-
De fato – concordou simplesmente Bruno.
CAPÍTULO XX
DUELOS
Um ano se passou. Anita abraçava as tarefas,
estudos e disciplinas da irmandade com entusiasmo e dedicação. Avançava sempre.
Esquecera-se do passado atlante, mas tivera vidências onde se via ao lado de
Sorman noutras civilizações já extintas. As cenas trouxeram-lhe angústias – não
sabia exatamente por quê – e viveu dias de tristeza e enfado. De repente tudo
se clareou, advindo-lhe um tipo de solidez interior e o retorno da alegria. Com
isso, as lições e energia dos rituais voltaram a trazer-lhe substanciais
resultados. A par de tudo, Sorman vinha ensinando-lhe determinadas posturas
físicas e mentais bem como algumas invocações que, segundo ele, muito a
ajudariam em situações de dificuldade.
Com
Sorman, no entanto, as coisas tomaram outro rumo. O estudo das etnias, levado a
efeito com a pequena equipe, de nada lhes valeu em sentido prático. Tudo ficara
para um posicionamento futuro. No momento, não dispunham de instrumentos
adequados para uma tentativa de retomada das metas traçadas pela irmandade para
aqueles grupamentos em
atraso. Isto o aborreceu, e de todas as formas a Garcia em
sua área de trabalhos.
Outro
estranho e paralelo processo íntimo viera invadir-lhe a alma. Durante o período
em que Anita atravessara momentos de lutas pessoais, Sorman mantivera-se à
parte com perfeito controle de pensamentos e emoções. Entretanto, bastou Anita
emergir de seus revolvimentos, o estranho processo veio nele se instalar.
Momentos de depressão começaram a alternar-se com imagens mentais confusas. Vez
por outra uma dor atravessava-lhe o coração, anelada à sensação de impotência
diante do desafio da vida. Mal isto passava, novas dúvidas e incertezas tomavam
lugar em seus pensamentos. Todo este envolvimento o deixava cada vez mais
taciturno. Em casa, sentava-se na poltrona do quarto, à meia luz, permanecendo
em silêncio e reflexão.
Anita,
percebendo a luta, procurou ouvi-lo. Temeu que as situações da juventude de
alguma forma estivessem voltando e ele de novo mergulhasse em crises quase
intermináveis.
-
Não se preocupe, Anita, acredito que estes momentos serão breves; são, talvez,
ajustes vibratórios – procurou tranquilizá-la. Entretanto continuaram. E quando
uma normalidade voltava ele buscava retomar as atividades com a energia habitual.
Uma
cruz branca apareceu diante das imagens captadas por seu cérebro. Era alva,
nítida, muito bem delineada. Acompanhou-o por vários dias, de repente
desapareceu. Uma semana depois, apareceu-lhe uma cruz negra. Mais tarde a
cruz negra mostrou-se imensamente grande.
Novos
duelos íntimos vieram ocupar-lhe a atenção e consumir-lhe por mais tempo. A alternância entre
momentos aflitivos e de tranquilidade repetiu-se; depois tudo cessou por completo. As atividades profissionais
foram definitivamente retomadas com afinco e logo precisou viajar ao exterior
com seu gerente de produção. Anita o acompanhou. Por sinal, tão logo se
casaram, Anita conseguira de Eduardo o contrato de prestação de serviços
jurídicos de suas empresas para a firma onde advogava. Os serviços foram
satisfatórios e como os processos há algum tempo viessem avolumando, Eduardo
viu a necessidade de suas empresas terem o seu próprio setor jurídico. Era
preciso administrar a burocracia, coordenar toda a complexidade dos processos,
bem como resolver alguns entraves sem precisar recorrer sempre à prestadora de
serviços. Seria, principalmente, mais econômico. Consultada a respeito ela
aceitou, entrando para as empresas da família e organizando o setor conforme Eduardo idealizara.
O
trabalho na Europa durou exatos sete dias. Resolvidas as pendências e
realizados todos os contatos, cruzaram novamente o oceano, indo agora para a
América do Norte. Lá mantiveram conversações cumprindo uma agenda de quatro
dias. O gerente de produção viajou de volta, trazendo não só relatórios, como
também pedidos para embarques de mercadorias. Sorman e Anita permaneceram na
América do Norte, agendando com Mendez e Garcia um encontro na América Central,
para onde viajariam na manhã seguinte.
Na
noite antecedente à viagem, enquanto dormia, Sorman foi visitado por um
mensageiro de Mendez que o conduziu por uma dimensão superior até um templo.
- Que lugar é este? – perguntou-lhe, Sorman, vendo a
antiga arquitetura do prédio. A fachada era um imenso bloco de pedra,
semelhante a mármore branco, no qual duas largas colunas paralelas e
retangulares, em perfeita simetria e apurada antiga arte, tinham sido modeladas. Uma
porta de madeira escura sob o arco gótico e côncavo, trabalhada com belos entalhes
de uma grande flor ao meio, com ramos se derramando ao derredor, se encaixava
entre as colunas. Essas, sobressaiam à compridíssima laje ao alto e ao
telhado. O arquitetado bloco de pedra, constituindo a fachada do prédio, era
inclinado para trás a um provável ângulo de cinco graus. Não se registrava
qualquer signo ou escrita nas colunas ou no portal de madeira, estando, neste momento, um largo facho da luz argêntea da lua cheia sobre a pedra polida.
- É o nosso templo e sede principal -
respondeu-lhe o mensageiro e guia em espanhol, levando a mão à aldrava, batendo-a a um determinado
ritmo e proposital número de pancadas. Ao responderem do lado de dentro, o
mensageiro bateu novamente com diferentes pancadas. A porta então se abriu. Um
homem de hábito branco, encapuzado, recebeu-os de cabeça baixa, fazendo-lhes o
sinal. O mensageiro respondeu conforme o procedimento formal, mas Sorman
insistiu, inquirindo-o mais vezes através de dois outros sinais. Ao final, o homem
arcou-se ligeiramente, com medida vênia, e o reverenciando apresentou-se:
-
Pedro! – informou-lhe com a breve elocução totalmente rouca, retomando o prumo da postura.
-
Sorman! – declarou-lhe o visitante.
-
Sim, senhor, já o esperava – confirmou em espanhol.
Ao se
afastarem do átrio de entrada banhado pela claridade lunar, e já à luz comum do ambiente onde adentraram, Sorman notou-lhe no peito, sobre a veste, um disco solar dourado
superposto por uma cruz branca, limitada ao próprio disco. O
salão era de uma igreja feericamente iluminada por luzes artificialmente douradas. Mais ao fundo, debaixo de um tipo de nave extremamente grande e ampla, destacava-se, ao alto, a face de enorme cruz
negra, em cujo madeiro vertical, enrodilhada nele, havia a representação de uma serpente dourada. Da base até o
ápice daquela grande cruz, a serpente constituía sete voltas, apontando a cabeça mais acima do madeiro por
onde parecia estar subindo. Atrás, outra face dessa mesma cruz era totalmente branca, e após a cruz,
mais ainda ao alto, residia solitário e largo disco solar também dourado. Um jogo
de suaves luzes em cores, no teto, movimentava-se sobre o disco, que lançava revérberos para todos
os lados.
Para atingir a cruz, era preciso antes galgar
dois lances de uma escada. O primeiro lance detinha inicialmente seis degraus, conduzindo a um
largo patamar representando o sétimo degrau, justaposto a outra pedra mármore que se estendia paralelamente à direita, constituindo um piso. Naquele piso existiam um púlpito e uma
longa pedra branca polida. A pedra colocada atrás do púlpito, sendo
propriamente o altar, ficava um metro e meio acima do patamar, de uma ponta a
outra, alongando-se e sendo sustentada a distâncias
regulares por três bases finas e retangulares. Tanto a pedra como as três
bases, eram da mesma qualidade do bloco original da fachada. Sobre este altar,
encontravam-se devidamente ordenados vários implementos de ofícios esotéricos.
O segundo lance da escada, também de seis degraus terminava, como o anterior, num adicional patamar.
Este, sendo um quadrilátero bem menor que o anterior, também representava um sétimo
degrau, daquele lance de escadaria, e detinha a cruz ali fincada. Para chegar ao disco solar, havia ainda um
terceiro lance da escadaria com sete outros degraus e um último patamar, menor que o patamar imediatamente
anterior, porém não se constituindo somente num degrau. Detinha este, o formato triangular e se apoiava a um ressalto em figura trapezoidal de um metro de altura, sobre o qual estava finalmente assentado o largo e liso disco dourado.
Tinham-se, portanto, ao final de tudo, dezenove degraus e três patamares,
indicando vinte e duas posições até o disco. Toda a extensão da escada era revestida de único tapete púrpura, exceção do terceiro patamar - onde permanecia o disco, em pé, com sua face lisa pintada em tinta ouro, voltada para adiante.
Apesar da iluminação, os bancos do salão encontravam-se agora vazios, não havendo
assim o menor sinal de que aconteceria qualquer tipo de solenidade naquela noite.
- Por que tanta iluminação? – perguntou
Sorman em certo instante. Pedro respondeu com a mesma rouquidão, no seu idioma:
-
Pela entrada da lua cheia. Durante os sete dias dessa lua, na primeira parte do
seu percurso, acendemos todas as luzes. Depois as apagamos, ficando acesas somente as luzes do teto, que incidem no disco solar e reverberam. É a contraparte no jogo das energias, sendo ao mesmo tempo o
simbolismo de um conúbio místico, entende?
-
Sim, sim – reafirmou Sorman - a supremacia é sempre solar, o Deus Maior!
-
Vejo que compreende perfeitamente, senhor - Pedro sorriu satisfeito. Ele tinha baixa estatura, era robusto e moreno.
Sorman lançou olhar mais detido sobre a cruz e súbitas imagens
fizeram-no submergir em lembranças. A cruz negra assemelhava-se àquela de suas
visões, excetuando a serpente que não houvera visto antes. Essas reminiscências
causaram-lhe certo desconforto e sentiu-se penetrado de um sentimento de
angústia, que procurou afasta-lo, desprendendo o olhar da cruz.
Ultrapassado o altar, Pedro abriu uma porta para um corredor mostrando portas laterais e mais outra e uma última na parede do
fundo. Tendo os três lá chegado Pedro também abriu-a e desceram por degraus bem iluminados terminados
numa laje. Uma vez ali, Pedro olhou para o alto e chamou:
- Larime!
A
laje girou suavemente para a esquerda, sob seus pés, descortinando pequeno fosso, vazio, retangular, com dois metros e meio de profundidade, semelhante a uma caixa aberta, e eles alcançaram o fundo, após descer por novo, mas breve lance de degraus. Pedro abriu, então, uma última porta e adentraram num
auditório com muitas poltronas. Num tablado em plano superior, existiam uma
mesa e duas cadeiras. Mendez e Garcia aguardavam no auditório, sentados em poltronas e se
levantaram ante aproximação dos três.
-
Como está, meu filho? – falou Mendez, adiantando-se e fazendo o sinal, e após a
resposta estreitando-o num fraternal abraço.
- Bem, obrigado – respondeu Sorman com amplo
sorriso. Depois foi a vez de Garcia saudá-lo e abraçá-lo com igual fraternidade.
Mendez olhou então para os acompanhantes de Sorman, meneando suavemente
a cabeça e eles se inclinaram em pequena reverência, retirando-se. A seguir,
Mendez apontou para uma das poltronas onde Sorman se assentou, vindo
acomodar-se a direita dele, ficando Garcia à esquerda.
- Que templo diferente. Não o houvera visto em
minhas duas anteriores viagens – disse-lhe Sorman.
- É
remanescente de um culto solar asteca, com influência da igreja – começou a
explicar Mendez – os astecas, apesar da destruição de sua civilização pelos
espanhóis, mantiveram na memória racial o culto solar, mais tarde o realizando às
escondidas por uns poucos sacerdotes. Eles sabiam que se os missionários
católicos os descobrissem estariam perdidos. Assim, construíram capelas, que
eram somente oratórios, mas realizavam os seus principais cultos nos porões ou
subterrâneos. Aqui neste plano puderam melhorar o templo, unindo
inteligentemente as duas tradições sob denominação esotérica.
- O templo é todo de nossa organização?
-
Não de modo absoluto; é da tradição que abriga, instrui e prepara através dos
séculos muitas almas de etnias incas. A FIA, a cada ciclo de manifestação de
nossa célula, o retoma, readaptando-o segundo o interesse e a necessidade dos
irmãos, em suas respectivas faixas vibratórias. No momento, o templo serve-nos
para prestarmos exclusivos serviços e ofícios a nossa irmandade.
Sorman volveu o rosto para Garcia:
-
Você está longe dos Andes. É agora um iniciado sem que eu tivesse sabido?
Garcia respondeu sorrindo:
-
Sou sacerdote neste templo há algumas gerações, embora viva em corpo físico num
país andino. Lá embaixo não tenho este vínculo e não desejo no momento
iniciações devido ao meu trabalho com os irmãos. Acho que é melhor assim.
Mendez inferiu com enigmática previsão:
- Logo a posição deverá mudar. Garcia
precisará galgar conscientemente os graus das iniciações menores da
irmandade. - ambos olharam-no surpresos. - Prevejo isto tão somente! – completou
sorrindo. A conversa continuou.
Decorridos poucos minutos Mendez determinou:
-
Vamos agora sair!
Eles
se levantaram permanecendo a um passo das poltronas; Mendez trouxe as mãos
diante dos olhos de Sorman e Garcia, fazendo suaves movimentos circulares e
sugerindo:
-
Partamos mentalmente para um dos grupamentos!
Logo se viram à entrada de uma cidade, nela penetrando. Havia nuvens
escuras e sombria atmosfera nas ruas. A voz de Mendez fez-se novamente ouvir,
desta feita dentro de suas mentes:
-
Vejam as auras de nossos irmãos!
Imediatamente perceberam um desfile de muitas pessoas – a maioria de tez
morena –
em cujo redor viam auras opacas ou enegrecidas. Ocupavam-se no afã de
assuntos diversos; alguns ingeriam bebidas alcoólicas, fumavam avidamente
provocando espirais de fumaça pelas proximidades. Outros se entregavam aos
jogos, divertiam-se com mulheres, metiam-se em acaloradas discussões e brigas,
ou consumiam perigosas e destrutivas drogas. Rápidas cenas vieram mostrar-lhes
homens e mulheres entregando-se a fanáticos cultos religiosos, ou a rituais de
magia inferior.
Sorman sentiu profundo pesar. Sem que pudesse evitar, seus olhos
marejaram. Aquelas cenas não lhe eram novidade: existiam em todas as partes do
mundo e os do mundo também eram seus irmãos: por que então reagia assim? A voz
de Mendez fê-lo estremecer, tirando-o daquela reflexão:
-
Haverá esperança para esses irmãos de célula, se assim continuarem a agir? O
processo evolutivo de suas almas estancou. Mas vejamos cenas de seu passado.
Mendez passou novamente a mão diante do rosto de ambos, descrevendo um
semicírculo, e novas imagens vieram-lhes à percepção. As imagens ganharam vida
e movimento; formaram fileiras de guerreiros em posição de defesa de sua
cidade. A alguns Sorman pareceu reconhecer, mais adiante viram pequenas
multidões entrando silenciosamente em templos públicos para participar de
cerimônias religiosas ou esotéricas. Mulheres e homens ostentavam vestes
brancas especiais para os ofícios, notando-se irradiante alegria em suas faces.
O transe passou; eles retornaram às consciências físicas. Sorman respirou profundamente,
e depois perguntou:
-
Como puderam mudar tanto?
- A
evolução nos traz também intrincados problemas. A atual etapa planetária, em
que novas e poderosas energias cósmicas mergulham no mundo, produz sensíveis
estremecimentos nos egos provocando confusões mentais. O processo ocorre na
estrutura dos egos, justamente pelo revolvimento da entrada das novas energias,
em que valores recalcados são lançados de volta à superfície da psique
coletiva. Então voltam a sintonizar-se com forças externas, muitas de qualidade
inferior. É um processo mundial, repito, que não atinge somente essa etnia no
país da América, onde alguns milhares de irmãos da célula acham-se encarnados.
Os nossos não são diferentes dos bilhões de irmãos da Terra que passam pelo mesmo
momento.
Há os que se salvam no roldão de acontecimentos, mediante pessoais
esforços e atitudes corretamente alinhadas. Infelizmente representam pequeno
percentual em relação às faixas que se deixaram seduzir.
-
Tem razão, Superior, minha lucidez apagou-se pelo impacto dessas cenas, não me
permitindo sequer refletir ou analisar segundo o conhecimento. Não sei como e
nem por que o sentimento vem se aprofundando dessa maneira em mim, anelando-se
cada dia mais aos meus pensamentos.
O
Superior olhou para adiante, porém seus olhos denotaram rápido transe; a mente
foi invadida de outras imagens e uma grande cruz negra mostrou-se. Ele gemeu ao
reconhecê-la, estremeceu e voltou aos sentidos. Fechou os olhos com a
fisionomia contrita, permanecendo assim por vários segundos. Quando novamente
os abriu, inspirou e lançou olhar para o chão, pronunciando estranhamente as
palavras do Mestre da Galileia, como a desejar lembrar-se de um possível e
doloroso sacrifício:
-
Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão!
0 0 0
Sorman e Anita foram recebidos no aeroporto por Garcia, que os levou
diretamente ao hotel, onde se instalaram. No mesmo hotel hospedavam-se Mendez e
o próprio Garcia. Mendez se ausentara, mandando pedir desculpas ao casal por
não tê-lo podido receber. Avisara, no entanto, pretender voltar a tempo de
juntos almoçarem.
Com
efeito, aconteceu e vieram encontrar-se no restaurante. O Superior tinha
chegado cinco minutos atrasado, mas tentava justificar-se com a jovialidade de
sempre:
-
Hoje o relógio tem largado sempre na minha frente, não consigo alcançá-lo!
- Ora, Sr. Mendez, foi só um pequeno atraso! -
desculpou-o Anita.
-
Felizmente, irmã, porque me atrasei em mais de quinze minutos em todos os meus
compromissos da manhã. Eles riram. Garcia aproveitou-se para perguntar:
-
Posso ordenar os serviços? Ante a concordância de todos, ele sinalizou ao
maître.
No
decorrer do almoço conversaram amenidades. Ao término, Mendez dirigiu-se à
Anita:
-
Estou muito feliz com sua presença entre nós; gostaria que a visita se tornasse
ainda mais agradável. Nós, homens, pretendemos tratar de problemas da
irmandade, mas reservei-lhe uma tarde hospitaleira.
-
De que se trata? – perguntou curiosa.
-
De um passeio pela cidade. Convidei minha sobrinha para acompanhá-la. Ela
nasceu aqui, conhece lugares interessantes e ótimas lojas para fazer compras.
Anita olhou surpresa para Sorman que somente sorriu. Mal isto se deu, Mendez
acenou para a porta onde uma jovem morena acabava de chegar. Ele se levantou à
sua aproximação, beijando-a na testa.
-
Soledad, estes são Anita e Sorman, de quem lhe falei!
Os
três partiram para um bairro afastado do centro. O táxi os deixou diante de um
prédio antigo com fachada em mármore branco. Uma imensa porta escurecida com
verniz, enfiada sob um arco ovalado, gótico, encontrava-se fechada. Ostentava
uma grande flor entalhada no centro, e ramos que se derramavam. Sorman não
conhecia o prédio, era a primeira vez que vinha a esta cidade, mas ao vê-lo
qualquer coisa retrocedeu em sua mente, despertando-lhe indefinidas e
subconscientes lembranças. Garcia adiantou-se, acionando o interfone. Segundos
depois, uma voz inquiria de dentro do aparelho.
-
Garcia! - respondeu o solicitante; a porta moveu-se abrindo um vão. O Superior
a empurrou com suavidade e ela cedeu facilmente. Adentraram numa antessala.
Adiante, uma porta de ferro, branca, detinha ao alto um disco com vitral
dourado. Sete segmentos de ferro, todos também brancos, formavam raios que
partiam do centro para a periferia do disco. O vitral foi puxado, logo surgindo
no arco inferior do disco uma testa morena e um par de olhos. Seguiram-se
estalidos da fechadura e a porta a abrir-se.
- Señor Mendez, Garcia! Señor Sorman, supongo?
Um homem de baixa estatura,
robusto, vestindo calças e camisa brancas, assim os saudou com voz rouca.
Sorman o reconheceu de imediato, mesmo sem saber quem era.. Ele fez o sinal,
que todos responderam.
-
Sim, sou Sorman, muito prazer – respondeu o visitante.
-
Sou Pedro – estendeu-lhe a mão.
Adentraram um salão branco, não muito longo nem muito largo. O chão
começava plano, mas à medida que se prolongava, inclinava-se para cima,
terminando num platô que tinha uma longa mesa e sete cadeiras em linha de cada lado. No fundo, ao
alto, a parede era um grande painel, onde imenso sol dourado surgia dentre
névoa. Longas lâmpadas azuis e douradas, encaixadas nas bordas internas do
painel lançavam luz, produzindo certo efeito e melhor claridade às pinturas. À
esquerda, na extensão da parede, enormes basculantes semiabertos com vidros em
diversos matizes, permitiam a entrada de ar e relativa claridade. À direita,
três amplos e ovalados arcos comunicavam com um corredor.
Pedro conduziu-os através daquele corredor, passando diante de salas
onde funcionavam setores de atendimento. Ao final, acharam-se frente a outro
corredor transverso, menor, e giraram à esquerda, chegando numa porta que Pedro
imediatamente abriu. Desceram por uma curta escada, alcançando um piso de
largas lajotas com motivos astecas. Um grande sol em dourado estava
representado ali no piso, no centro de um zodíaco pleno de símbolos e signos coloridos. No
extremo oposto, ampla porta de madeira pintada em mesmo tom dourado, achava-se fechada.
Sobre ela se assentavam três discos concêntricos em relevo, superpostos
sucessivamente. O mais interior era negro, o intermediário era dourado e o terceiro era
azul.
Pedro, falante até então, procurava explicar a Sorman o que
significativamente formava a história do lugar. Contou-lhe que o prédio fora
reconstruído duas vezes, depois de alvo de bombardeios em sangrentas
revoluções. Calou-se, porém, ao chegar a esse local e em silêncio fez
reverência, baixando a cabeça, trazendo as mãos espaldadas sobre o coração,
como a pedir permissão de aqui pôr os pés. No entanto, não conseguindo abrir a
porta, gritou:
- Larime!
Num
abre-te-sésamo, a porta se moveu, abrindo completamente, permitindo-lhes
adentrar. Dois metros adiante havia uma negra cortina que descia do teto ao
chão, alongando-se de uma parede a outra obstruindo completamente a visão. Uma
única lâmpada de um pequeno plafonier preso à parede às costas, derramava
tímida luz, somente suficiente para que pudessem orientar-se. Pedro deu três
passos afastando uma aba da cortina, mantendo-a segura, e apontou com a outra
mão indicando um vão de porta. Como estivesse completamente escuro após o vão,
Pedro imediatamente acionou um comutador a um canto, acendendo três lâmpadas
que revelaram uma sala circular com poltronas negras individuais em
arquibancadas, formando três círculos sobrepostos.
No
centro do ambiente, uma grande cruz instalada sobre um pedestal alto e quadrado, alcançava a
altura do terceiro círculo de poltronas. A cruz era negra na face
voltada para a entrada e branca na face posterior. Tanto o circular piso como o
pedestal da cruz eram igualmente negros. As paredes e o teto eram ao todo
brancos, inclusive as grades dos aparelhos de exaustão e refrigeração, segundo a época do ano – Pedro explicaria depois. Presa no centro do teto, em posição horizontal acima do madeiro vertical da cruz, achava-se instalada uma grande roda em aço, vazada, com hastes pintadas de dourado, detendo em seu âmago um grande
disco em igual tonalidade. A periferia da roda, amparava doze tipos de estojos abertos, voltados para baixo, cada um condicionando no seu interior uma lâmpada de diferente matiz, que quando acionadas direcionavam os seus focos para o piso.
Ao
deparar-se com a cruz, Sorman voltou a sentir comoção e tristeza. Curioso,
entretanto, procurou ignorar essas sensações, contornando o pedestal, a fim de melhor
observar a roda ao alto.
- A
roda zodiacal durante os rituais permanece acesa, em lento movimento –
informou Pedro, em espanhol, conforme falara até então, aproximando-se de
Sorman absorto na contemplação.
-
Interessante! – mencionou simplesmente o visitante sem despregar o olhar da
roda.
Pedro retirou-se; o Superior Mestre Terra dirigiu-se a Sorman:
-
Causa-lhe estranheza esta sala?
-
Sim, ainda não houvera visto algo semelhante. Os contrastes e oposições são
evidentes.
-
Sem dúvida, tudo aqui embaixo simboliza não só o início de tudo – a noite e o
caos – representados pela negra cortina
à entrada e outras coisas, como também de modo geral, ao Manvantara dos indus,
de um dia e uma noite cósmicas. O simbolismo pretende trazer uma
ideia implícita de dias e noites planetários em ciclos solares menores, médios
e maiores.
-
Negativo e positivo, as eternas oposições..., - murmurou Sorman, lançando vista
em derredor, voltando a encarar Mendez – tudo provindo do Grande Negativo, a Matriz
do Universo.
-
Com todas as implicações fenomenais de ciclos idos ou futuros – confusos ao pobre raciocínio humano –
completou Mendez com enigmático ar. Passados segundos, Mendez voltou a
falar-lhe: - Um dos principais motivos de eu tê-lo convidado a vir a este
lugar, Sorman, foi com o intuito de proporcionar ao seu cérebro indeléveis
impressões sobre a situação de nossos irmãos nos grupamentos em atraso. Essa
ideia e esse encontro já tinham sido projetados há poucos meses em nossa Grande Casa
dos Estúdios e Câmaras, no espaço superior – Sorman olhava-o surpreso sem ainda
atinar com o sentido de tudo. Mendez prosseguia. – Não houve coincidência desta
sua viagem, tão pouco em seu desejo de nos encontrarmos aqui para conversar
sobre as etnias. Há um trabalho maior previsto de acontecer no qual você começa
a se inserir, mas não sabemos ainda de que maneira se desenvolverá ou que rumo
tomará.
Sorman continuava a mirá-lo, imaginando em rápidas reflexões, que
conseguiriam finalmente reunirem-se em torno de um projeto no qual toda a
hierarquia estaria empenhada. As pesquisas realizadas com sua pequena equipe de
alguma forma teriam contribuído para este evento. Mendez prosseguiu:
- Pretendo trazer-lhe agora as impressões já
gravadas no seu campo mental, a fim de que sejam observadas e sentidas por seu
cérebro físico como fatos verdadeiros e irrefutáveis. Aproxime-se, meu filho.
Sorman deu três passos, parando diante do Superior. Mendez sinalizou a
Garcia que andou até a parede onde ficava o comutador, apagando as lâmpadas.
Por segundos, ficaram mergulhados na mais completa escuridão. Logo Garcia
acionou um dispositivo num pequeno painel elétrico e os focos da roda ao alto
se acenderam, projetando luz ao ambiente. A roda passou a girar lentamente,
conforme Pedro dissera e os diferentes matizes eram lançados pelos doze focos,
produzindo um efeito calculado. O Superior colocou as pontas dos dedos
indicador, polegar e médio na testa de Sorman, dizendo:
-
Noite passada, neste mesmo templo, em plano superior!
De
imediato Sorman reviveu conscientemente todas as imagens do que vira ou
participara, detendo a exata ideia de como estavam os seus irmãos de célula nas
etnias viventes nas Américas. O Superior retirou os dedos de suas testa, mas
ele continuou letárgico, sem o domínio da vontade, porém consciente de onde se encontrava.
Então foi projetado espiritualmente para a face negra da grande cruz nela
desaparecendo. Preocupado com o inusitado acontecimento, tentou abrir os olhos
para ver ou constatar algo tangível. Ao invés, viu sua projeção reaparecer
dentro da cruz, nela abrir os braços, e a cruz reduzir-se ao tamanho de seu
corpo, e nele se amalgamar.
Quando isso se deu, ele soltou um gemido
prolongado, grave e rouco, mas permaneceu imóvel na exata posição em que neste
tempo estivera. Aquela imagem ficou-lhe nítida por alguns segundos:
petrificada, inerte, em seguida moveu-se em sua direção, vindo parar diante
dele, face a face, mostrando sofrimento e dor naquele rosto – o seu próprio
rosto – entretanto, deixando entrever uma fugaz chama de esperança a brilhar
através dos olhos.
A
forma que estivera crucificada deu mais um passo e mergulhou em si, em seu corpo imóvel.
Mediante isto, ele deixou escapar outro gemido, mais forte, mais alto, perdendo
a estabilidade, caindo de joelhos. Ao soltar os braços lateralmente ao corpo encurvado,
tocou o chão com o dorso das mãos, com as palmas voltadas para cima
e os dedos apontados para trás; a cabeça então pendeu para frente e o tronco
arqueou-se mais, e assim ele permaneceu.
Diante do quadro com que absolutamente não contava, Mendez empalideceu.
Tomado de súbita emoção, ficou impossibilitado de realizar qualquer movimento
de ajuda a Sorman, conseguindo unicamente murmurar: “Meu Deus!” Garcia acorreu
a Sorman, segurando-o sob os braços, buscando levantá-lo. Somente então Mendez
despertou, dando-se conta de que precisaria também socorrê-lo, e arcou-se,
ajudando Garcia a ampará-lo, levando-o quase arrastado para uma das poltronas,
procurando deixá-lo o mais confortável possível
CAPÍTULO XXI
AURA DE DOR
Meses se passaram. A experiência suprafísica vivenciada por Sorman no
templo jamais se apagara de sua memória. Amiúde revia imagens; algumas
lembranças voltavam-lhe; sabia ter sido incorporado de outra consciência
plasmada na cruz - o que, afinal, lhe estaria reservado?
- Não há Cristo sem
cruz, você sabe. Todos somos potencialmente um Cristo. Esta realidade torna-se
cada vez mais tangível à medida que avançamos conscientemente em sua direção.
Em você, irmão Sorman, o desafio de sua vida confere-lhe a aceitação de uma
grande cruz.
Bruno caminhava ao longo
do jardim marginal à elevação onde, no topo, a casa fora construída. O gramado
que envolvia esta pequena colina – como Bruno às vezes a denominava –
encontrava-se muito bem aparado, mas os pés de roseiras e buganvílias, acima da
carreira das hortênsias, teriam imperfeições que Manoel não conseguira retirar.
Decidido a acertar os galhos e ramos que “faziam destoar de certa harmonia,”
ele tomara a tesoura no galpão e pusera-se a jardinar. Não tinha a menor
destreza que o ofício efetivamente recomendava: os movimentos eram lentos,
quase sempre os mesmos; tesourava sem muita eficiência, depois se agachava
mirando de um lado a outro; tirava medidas com lances de olhos, puxava os ramos
com os dedos fazendo-os pender, como se pudesse fixá-los onde desejasse;
finalmente se punha de pé ficando a admirar. Somente então voltava a conversar,
retomando os passos em direção de outra roseira ou buganvília. Sorman o seguia.
- Não se trata
unicamente de uma presença interior, mas algo que avança com determinismo. Como
admitir esta realidade para mim desconhecida?
- Ledo engano, jovem, ou
irrefletidas palavras! As razões que explicarão a escolha virão habitar seu
consciente no devido tempo. O cérebro então passará a trabalhar sob duas
vertentes: a principal, neste caso, trazida do coração!
Embora sem desejar
admitir, Sorman sabia que a presença da cruz prenunciava uma difícil missão.
Julgara por toda a vida que missões extremas, expiativas e salvadoras, teriam
cunho divino quando realizadas através de personalidades de grande estatura
espiritual. Não importava a religião, tão pouco a crença; os propósitos, estes
sim, precisariam ser claros e definidos: totalmente submissos ao amor. O
esquecer-se de si em favor do próximo – esta máxima de poucas e fáceis palavras
e difícil tradução – sempre que presente conduzira salvadores de homens à
consagração da verdade. Que dizer de si?
Não professava fé alguma, era desprovido da magia da palavra – o
magnetismo que arrebata plateias – sentindo-se, assim, em completo despreparo!
Bruno ateve-se novamente
a jardinar. Sorman começou a sentir certa impaciência. Ao retomar os passos, o
Supremo retornou ao tema, parecendo ter percebido a disposição íntima e
momentânea de seu Ministro:
- A alma tudo vê, tudo
ensina, tudo provê. Não obstante é necessário satisfazer-lhe as exigências para
que possa atuar com perfeição. A personalidade não pode bastar-se, nem obstar à
ação superior; ela precisa ser inclusiva, embora livre e fluente. A mensagem da
alma é pessoal, ela a mantém em código exclusivo. O código, de autoria da alma,
é o enigma que somente quedará a descoberto no momento da revelação. Ademais,
ninguém conseguiria mesmo descobrir qual será a revelação até que aconteça.
Portanto, caro irmão, haja o que houver, a realização dessa missão estará
unicamente em suas mãos. Não se precipite. Por outro lado, não se desmereça.
Suporte. Chegue ao limite da perseverança ou da fé; a obra é somente sua, os
valores com que virá trabalhar – caso a graça o abençoe – terão exclusivamente
a sua chancela, o inconfundível selo com que os grandes imprimem a pessoal
energia na corrente da vida, que é uma especial condição de para aquilo ter
existido. Adestrar anima mundi é viver para os homens! O sacrifício,
entretanto, é inerente. Aceite-o ou renuncie antes de qualquer coisa!
o o o
Sorman inquietava-se.
Mal dormira, remexera-se na cama, levantara-se. Da janela aberta via a
claridade lunar; sombras e formas indefinidas mostravam-se à distância. Desejou
ver o mar, ouvir o bramido da água, a rebentação nas rochas, observar as
pequenas ondas terminar em nada ou em espuma tragada pela areia.
Largou-se à argentina
noite; as sombras se apagaram ao angustioso olhar: viajou como um relâmpago sem
que nada o detivesse! Pousou na areia à beira-mar, umedeceu os pés; o vento
revolveu-lhe os cabelos esfriando-lhe o rosto: ele não se importava. Depois
alçou-se novamente para distante rochedo no meio do oceano. De lá a visão era
mais ampla; o luar sobrepunha-se, o mar se encapelava, fazia marolas, refletia!
Por momentos foi tomado
de paz: tudo lhe pareceu extremamente pequeno ao mesmo tempo significativo. O
sistemático esboroar da água de encontro aos arrecifes chegava-lhe como um
enérgico protesto – o mar lutava contra o obstáculo desejando transpô-lo ou
destruí-lo. Aos poucos o estereótipo ficava mais longe: ele afrouxava a
atenção. Os olhos procuravam o infinito, movia-os de um astro a outro, de uma
para outra constelação: imaginava galáxias, adivinhava nebulosas, prometia visitar
um dia desconhecidos sistemas solares!
Vozes
confusas vieram de
longe, envolveram-no; a inquietação novamente manifestou-se em seu
íntimo; a
imagem da cruz assomou do interior da alma; sentiu-se preso, atrelado,
fincado na pedra! Passados instantes a rocha fendeu libertando-o; ele
viajou, subiu e desceu. Foi tomado de sufocação; viu-se diante de uma
porta de
ferro encimada por um archote. Quis recuar, o calcanhar tocou numa pedra
que
rolou; ele voltou-se para trás, vendo-a desaparecer num abismo a dois
passos.
Olhou sobre o abismo não conseguindo divisar a outra borda mergulhada em
brumas.
Aproximou-se da porta;
havia um negro símbolo nela assente; ele lançou mão do archote para ver melhor,
memorizando-o. Empurrou a porta que rangeu, descobrindo pequena gruta aberta,
terminada adiante a poucos passos. Longa escadaria, com diversos patamares,
mostrava-se dentre a névoa. Pequenos postes lançavam luz mortiça por todo o
trajeto. Ele enfiou o archote numa base ao início da subida, principiando a
escalada. Na medida em que subia, observava enorme construção que aos poucos
vinha aparecendo. Ouvia vozes pelo ar, semelhante a gemidos; depois
gargalhadas, cantos – tudo grotesco, por vezes interrompido.
Estranhos pássaros
cruzavam o espaço sobre a escadaria; proferiam agudos guinchos, alguns
crocitavam. Ao chegar mais próximo viu-se diante de um edifício negro, enorme,
amplo, quase tão grande quanto um castelo medieval, que, no entanto, transmitia-lhe
algo familiar. Nuvens pairavam ao derredor; vez por outra as vozes recomeçavam
acompanhadas de urros, grunhidos ou gritos abafados. Esdrúxula ave pelada no
longo pescoço e nas longas pernas, semelhante à bizarra avestruz, sobrevoava de
um lado a outro. Morcegos misturavam-se às outras aves, parecidas com corvos, depois
se afastavam, voando rente ao casarão, desviando-se das varandas, desaparecendo
sobre o telhado. Repulsivo odor de uma erva ou resina queimada permeava o ar.
Considerou certa
semelhança – embora às avessas – com a Grande Casa dos Estúdios e Câmaras da
Hierarquia. Incontida vibração veio inesperadamente tocá-lo provocando-lhe
forte reação, estimulando-o a possuir para autossatisfação. Distantes
reminiscências lembraram-lhe sensações, ameaçando se manifestar. Um eco
longínquo arremetia-o a um passado ainda não identificado.
A vibração permanecia.
Uma irrefreável vontade de conhecer o prédio dominou-o; desejava saber o que
existiria no seu interior. Deu três passos em direção da porta empurrando-a,
mas ela não abriu. Tentou novamente, procurou algo como uma aldrava a fim
de anunciar-se, porém debalde. Lembrou-se então de que para adentrar a Grande
Casa da hierarquia, necessitava vocalizar uma palavra e mentalmente pronunciar
outra: eram “mantras de acesso.” Mas não poderia fazer o mesmo neste lugar.
Súbita angústia
invadiu-o; sombras cercaram-no: viu imagens; lutava contra um adversário
invisível – ele grunhia, exigia-lhe hercúleo esforço, o torturava! Todo este
embate, percebido nas imagens que desfilavam ante sua percepção, tinha
acontecido em passadas provas iniciáticas. Continuou a reviver a luta, o
opositor buscava apossar-se de seu corpo, das emoções, da mente! Faltou-lhe o
ar, as imagens apagaram-se; ele trouxe a mão ao peito, nada via, era como se
não estivesse em lugar algum. Impossibilitado de vislumbrar algo de concreto,
achou-se perdido, mergulhado num vazio! Tomou-lhe a mente a sensação do
desespero; uma figura negra então mergulhou se assenhoreando completamente de
seu corpo.
- Não!! Tentou gritar. A voz sequer vibrou. A figura
negra riu, grunhiu e falou-lhe: “Voltei,
irmão, estamos juntos novamente!”
Dominado pela surpresa e
rápida ação do invasor, Sorman não conseguiu esboçar a mínima reação. Viu-se em
seguida impelido a pronunciar desconhecidas palavras, sendo imediatamente transportado
para o interior do prédio.
Encontrou-se ante duas
largas portas fechadas sobre as quais, no exato meio, sobressaia um símbolo.
Embora desfigurado e invertido, instintivamente o reconheceu: era o símbolo
secreto da irmandade pintado em vermelho. Assustou-se mediante a possibilidade
dele estar a descoberto, mesmo ao oposto.
“A réplica como é, serve
perfeitamente aos nossos propósitos, eh, eh!” O ser falou; a voz e o riso soaram-lhe na
cabeça causando-lhe arrepios. Sorman tentou dizer algo, mas as palavras não
saíram.
Num outro impulso
empurrou uma das portas. O símbolo partiu-se em dois e ele adentrou imenso
salão todo negro. Seis altas colunas o sustentavam, havia somente uma mesa ao
centro em torno da qual doze pessoas encapuzadas – dentre elas duas mulheres –
vestidas com túnicas negras, reuniam-se. Traziam ao peito, em vermelho, o mesmo
símbolo encontrado nas portas de entrada do salão. Sorman sentia-se impotente;
o ser em si aprofundava-se cada vez mais, ao mesmo tempo o envolvia externamente.
O repulsivo odor ali era
mais intenso; aos cantos, duas pequenas piras expeliam filetes de fumaça negra
formando espirais. A luz, insuficiente ao ambiente, lançava-se de duas fracas
lâmpadas de distantes lanternas, dependuradas ao altíssimo teto.
- Aproxime-se, irmão Ronsam, está como sempre
atrasado! O ser principal falou-lhe da cabeceira, levantando ligeiramente o
rosto. Era negro, de fisionomia a causar temor. Sua voz ribombou como trovão no
enorme salão. Os demais permaneciam de cabeças baixas e mãos pousadas sobre a
mesa.
Novamente Sorman foi
impelido a se lançar, indo sentar-se nas proximidades da cabeceira em lugar
reservado, dando-se conta de estar vestido exatamente como todos. Mal se
sentou, o principal iniciou a vocalização de um prolongado som e todos o
acompanharam. Aquilo, em tempestade se espalhou pelo salão. A vocalização, em
determinados instantes, alternava-se com espécie de uivos, depois sibilos e
imitações guturais de certos animais; a seguir voltava à primeira sonorização.
Sorman não se continha, vocalizava também, o ser em seu corpo comandava,
causando-lhe torturante sensação. Ele pensou que morreria; a lucidez se
apagava; o ser retomava o som mais intensamente, vibrava, recuperava o fôlego;
imprimia nuances à vocalização!
Terminado aquilo, o principal falou-lhes:
- Irmãos, uma nova
ameaça vem rondar-nos. Os inimigos desta feita preparam uma ação para libertar
nossas “pessoas” na superfície. Os oficiais nos dizem que um tipo de salvador
virá interferir nos domínios da irmandade. – indignados eles protestaram. O
negro dirigente retomou. - Após a vinda à Terra do Mestre, obtivemos outras
forças. A Grande Face Negra deu-nos novas condições. Apesar de sua partida, o
poder permaneceu em nós, não importando as perdas que tivemos. O sacrifício dos
que se foram não foi inútil: eles serviram à causa maior! O Mestre ensinou-nos
a superar estas dificuldades. As naves vão e retornam; mensagens nos chegam;
situações novas são criadas, não estamos sós! – todos assentiram emitindo
grunhidos; alguns ainda menearam afirmativamente com a cabeça.
Ele prosseguiu:
- Os oficiais nos mandam agora descobrir quem é o salvador; tão logo o façamos,
a irmandade receberá instruções de como desfechar ataques para destruí-lo.
Morte ao salvador! A mesa urrou repetindo aquela sentença. Sorman tremeu,
achando-se perdido.
“Não tema, irmão, eles não
saberão que você está aqui!”
Falou-lhe intimamente quem dele se apossara.
O principal elevou as
mãos abertas de palmas para adiante, à altura do rosto, e o silêncio novamente
se instalou. Ele agora olhava para o alto; em seguida apoiou a cabeça no
espaldar da cadeira, fechando os olhos, largando os braços sobre a mesa. Sua
face mostrou rápido brilho como de uma superfície escurecida com verniz.
Permaneceu nesta imobilidade por um punhado de segundos, voltando após a
mirá-los um a um. A expectativa era grande; ele novamente fechou os olhos,
recomeçando com voz grave e lenta, numa espécie de transe:
- Irmãos, necessitamos
de implementos para destruir o inimigo. As “pessoas” estão reunidas na Casa III
da superfície; o animal está preparado para o sacrifício, devemos haurir forças
de todo o ritual: é a ordem para esta noite. - Ele abriu os olhos, descolando a
cabeça do respaldo da cadeira, sorrindo sinistramente; ordenando sem delongas: -
Devemos ir logo!
Deixaram o salão
silenciosamente, ingressando por um corredor. Havia nas paredes cabeças de
animais em troféus. Fracas piras dentro de lâmpadas vermelhas e amarelas
alternavam-se ao longo do trajeto, proporcionando insuficiente claridade. Ao
final, desceram por uma escada fracamente iluminada por tochas, chegando a um
rio subterrâneo. Enorme barco negro os aguardava. Era todo fechado, movido a
remos; tinha, à proa, horrível carranca em formato de uma cabeça cinzenta com
olhos esbugalhados, boca aberta, cornos e orelhas pontudas.
Ingressaram no convés. O
barco zarpou. Eles se mantiveram em silêncio; unicamente ouviam-se ao fundo o
ritmo da marcação dos martelos para os remadores e o ruído da água ao subir e
descer dos remos. O principal recostou a cabeça no respaldo de escura madeira,
fechando os olhos em descanso. Os demais olhavam estaticamente para adiante.
Sob o bruxuleio da chama de um lampião, as acinzentadas fisionomias
mostravam-se macilentas e fechadas. Não eram evidentemente subumanos, nem
fantasmas de mortos que tivessem escapado pelo portal do Hades; tão pouco se
tratavam de almas terráqueas desencarnadas. Seriam, decididamente, misteriosas
duplicações negativas de egos que, em relação à vida, agiam como se esta lhes
fosse a grande inimiga, à qual precisariam sempre opor-se.
O ser afrouxara sua ação
aprisionante, permitindo a Sorman emergir livremente ao próprio pensamento.
Olhava a todos, temeroso de que o descobrissem. Mas nem um deles suspeitava de que
o inimigo estivesse exatamente ali.
“Com que propósito mantém-me preso em segredo?”
“Não posso denunciá-lo, irmão!”
“Por que não? Sou seu
grande inimigo”.
“Deles! Eu preciso de você como você de mim,
não se lembra mais de suas próprias palavras? Ademais, qualquer um destes não
mataria a si mesmo, mas a mim me matariam se o descobrissem!"
“Eu o estarei destruindo
se for o salvador, sou-lhe uma ameaça!”
“Absolutamente, irmão, você é minha vida. Quanto mais alto se levantar,
mais presente ao mundo estarei. Sou sua sombra, lembre-se sempre disto, não
deve destruir-me. Mas ao contrário, medir-se por meu tamanho.”
“Nunca!” Sorman gritou.
O principal abriu os olhos.
- Que disse, Ronsam?
- Nada, mestre, estive calado. Foi
possivelmente o estrídulo de alguma ave sobrevoando o rio.
Por algum tempo
navegaram; finalmente o barco atracou num cais de finos paus que se lançava ao
leito do rio sobre estacas. O grupo deixou o transporte, andando sobre o cais,
alcançando terra firme. A escuridão era intensa; havia nas proximidades uma
casa de madeira. Archotes ardiam pela trilha que terminava naquela habitação.
Um pequeno ser surgiu de dentro da casa, em correria, vindo encontrar o
séquito. Vestia um hábito marrom com capuz e botas pretas. Ao estancar diante
do principal, estendeu os braços à frente, dobrando-se em ligeira vênia,
dizendo:
- Mestre, que bom vê-lo novamente! O
principal, sem dar-lhe atenção, somente meneou afirmativamente com a cabeça,
prosseguindo em direção à casa. O desprezado anfitrião apressou-se a
acompanhá-lo, mais atrás vinham os doze.
Adentraram. O pequeno
correu para o final do corredor. Os treze estancaram ante uma porta sem
fechaduras nem ressaltos. O principal à frente de todos, investiu-se de ar
sacerdotal, abriu ligeiramente as pernas voltando as palmas das mãos para fora,
emitindo três curtos e esquisitos sons, semelhantes ao piar de uma coruja. A
seguir, deu dois passos empurrando a porta, abrindo-a amplamente. Um escuro
túnel apareceu. Ele tomou um archote preso a um orifício na rocha estendendo-o
ao pequeno. Este o tomou e retirando rapidamente a lanterna da parede acendeu-a,
entregando-a ao principal. O principal moveu a lanterna iluminando a entrada
adiante; em seguida, desapareceu dentro do túnel com toda a sua comitiva.
Durante a incursão,
encontravam muitas outras entradas, penetrando por novos túneis. O principal
conhecia perfeitamente o caminho; seguia-o resolutamente, sem erros, conduzindo
o séquito até o largo de uma gruta. No seu interior, abaixo da trilha,
acontecia uma reunião. Seres encapuzados, misturados a andrajosos, ouviam
silenciosamente a outro que agitava rústico bastão incitando-os. Já próximos da
saída ouviram gritos e urros provindos lá debaixo. Continuaram por locais
íngremes, alcançando finalmente uma elevação rochosa aberta, fora dos
subterrâneos, tendo ao alto o formato de enorme platô. Ao aproximarem-se mais,
viram-se impedidos de prosseguir por enorme e horrendo animal alado que desceu
rapidamente pousando adiante.
Tratava-se de algo realmente gigantesco: meio
ave, meio dragão. Da cabeça ao nariz tinha aspecto aquilino; a enorme boca era
dragontina; o tronco e as asas assemelhavam-se aos de monstruoso e descomunal
morcego. Não possuía penas. As patas eram gordas com unhas pontudas e encurvadas;
a cauda era encurtada e grossa, tendo a extremidade em lança. A cabeça, as
asas, a cauda e as patas eram verdes com estrias marrons, mas o tronco era
negro. Algo viscoso rebrilhava e escorria por todo seu corpo. Neste momento, o
animal-ave soltava uma fumaça escura pela boca e orifícios nasais.
O principal pôs a
lanterna no chão, ajoelhou-se e dobrando-se lançou as mãos adiante tocando o solo, e todos
o imitaram; depois se levantou e falou:
- Poderoso guardião
desta coroa, autorize nossa entrada. Servidores do Mestre das Trevas buscaremos
forças para nova missão.
A horripilante criatura
alçou-se desengonçadamente em redor do monte, ressurgindo às costas do grupo,
aterrissando de asas abertas. À exceção do principal que se voltara para trás,
os demais permaneciam agora genuflexos e de cabeças baixas. O monstro então lançou
uma língua de fogo para o alto, emitindo tremendo e gutural rugido, parecendo
querer demolir o mundo, e partiu. O principal virou-se para os seus, dizendo em
comemoração:
- Nossos propósitos são
dignos!
Muitos degraus separavam
a caravana do alto. Archotes excessivamente afastados produziam fraca claridade
sob uma névoa. Eles subiram lentamente com movimentos pesados, parecendo um
exército estropiado, atingindo finalmente a coroa, conforme dissera o principal.
A névoa aqui era mais intensa: o vento uivava em torno do rochedo. A coroa, na
realidade, era o inóspito platô, onde as chamas de três outros archotes
queimavam pela borda, dobrando-se aos açoites do vento. Uma grande cruz negra, de cabeça para baixo, achava-se encaixada num orifício no centro do platô. O principal
aproximou-se da borda com o grupo.
Apesar da névoa, era possível ver-se além de um promontório, uma cidade lá
embaixo, com pequenas e fracas luzes que pareciam pirilampos. Olhando-a
fixamente, ele, majestático, abriu os braços e invocou:
- Alma que habita as
profundezas, eu lhe conjuro a nos tomar sob a proteção de seus braços,
levando-nos alados ao nosso destino, nesta noite de sacrifício e sangue!
Imensa e negra forma – muitas vezes maior do que
a coroa daquele lugar – com inúmeros tentáculos semelhantes aos de um polvo, imediatamente
subiu e lançou-se sobre todos, rapidamente os envolvendo e os arrebatando. Em
ato contínuo, retraiu-se e os trouxe para o interior do corpo, mergulhando e
desaparecendo na escuridão.
Sorman acordara
repentinamente sem atinar com nada. Uma sucessão de formas e sons vieram-lhe à
percepção. Via um grande boi negro amarrado a mugir de dor. O sangue escorria-lhe
em borbotões na medida em que recebia novas estocadas por todo o corpo, através
de um longo estilete. Vozes, cantos, gargalhadas, frenesi: homens e mulheres
agarravam-se dançando seminus em redor do animal sacrificado. Forte cheiro de
aguardente impregnava o ar, juntando-se ao odor de plantas afrodisíacas
queimadas num grande braseiro, misturadas a perfumes exalados dos corpos
suados.
Via seres diabólicos descendo e se imiscuindo ao festim, envolvendo as
pessoas, levando-as a atos lascivos, a banharem-se com o sangue animal, ou a
bebê-lo! Ele sentiu-se agoniar, revolvia-se dentro de uma prisão. Gritava, não
desejava assistir àquilo, queria sair, fugir dali! Um riso irônico ecoou-lhe no
cérebro, estrondou por certo tempo. Sorman mais ainda se desesperou; uma dor
aguda e profunda partiu-lhe do peito, ele estremeceu, e o lúgubre cortejo de
imagens e sons finalmente terminou.
Tudo se calara. O
silêncio absoluto impunha-se. Um rápido tremor o tomou; os joelhos ameaçaram
dobrar-se. Ele se apoiou no parapeito da janela, inalou profundamente
procurando recuperar-se da pequena fraqueza e olhou para fora. A luz argêntea
continuava banhando. As sombras noturnas, os contornos e as aparências
permaneciam inalteráveis. Externamente nada mudara, nem o tempo parecera
avançar. Todas essas coisas nesse momento formavam um desfile irreal,
inverossímil; trazendo-lhe cenários distantes que não detinham um sentido plausível. Representavam-lhe um conto sinistro de sua própria autoria que
jamais escrevera. Vivera de fato ou sonhara?
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O violento arreliar de
um bando de periquitos rompeu subitamente com o silêncio do lugar. Os
pequeninos amontoavam-se furiosamente pelos galhos e ramos de um pessegueiro,
pulando aos punhados, amontoando-se, esbravejando todos ao mesmo tempo.
Talvez até comemorassem alguma coisa. A confusão aumentou com a chegada de um
novo bando; eles, os primeiros, voaram em seguida para um bambuzal mais ao longe, continuando
em grande gritaria. Sorman acompanhara a agitação das aves; fora tirado de um
estado mental contemplativo. Estava só na casa ao pé da serra.
Um ano depois não
decidira ainda o que fazer. Dúvidas, incertezas, pensamentos: toda uma corte de flutuantes elementos o cercavam indefinidamente,
martirizando-o. Algo real, no entanto, acontecera, parecendo querer estabelecer
uma ligação substancial. Recebera uma carta de um empresário da cidade onde
estivera com Anita, manifestando o pensamento da instalação de uma sucursal naquele
país. O desconhecido via excelentes condições de competitividade no mercado se
a produção fosse local. Os custos, ele garantia, cairiam em muito. Os produtos para
lá exportados, dizia ainda a missiva, eram de primeira linha e sem dúvida de
grande aceitação. Caso Sorman se inclinasse favoravelmente, ele solicitaria exclusividade
para a representação e venda a todo o território de seu país, estando disposto a
reunir-se e aconselhar sobre detalhes e procedimentos da implantação do projeto.
A ideia seria boa,
Sorman considerou ao final da leitura da carta. Ademais, outros países das
Américas, de excelentes mercados consumidores, estariam mais acessíveis para as
exportações a partir dali: a ampliação da rede exportadora traria novos
horizontes para crescentes expansões das empresas. Faltava fazer os cálculos.
Levou a germinal ideia para Eduardo que também a
considerou, aprovando um estudo mais criterioso e detalhado. E após relacionarem e discutirem
vários fatores importantes, como a situação sócio econômica do país, variações
climáticas, material, capacidade de absorção do mercado interno, administração,
mão de obra, custo-benefício, carga tributária, incentivos,
etc., que justificassem um investimento de tal monta, admitiram inicialmente a viabilidade de um projeto de instalação. A avaliação veio ser corroborada
por outra análise de uma fonte especializada no assunto, encomendada por
Eduardo através da associação empresarial de que era diretor. A conclusão, ao
final, foi satisfatória: valeria um esforço empreendedor para montar uma
sucursal naquele país da América Central.
Restava definir outro componente ao
projeto, importante e vital, a ser equacionado desde os primeiros passos do
trabalho, e que era os meios de se obter o financiamento. Esse passo veio
trazer a Anita enorme soma de trabalho extra, requerendo-a recorrer a contatos
com empresas especialistas sobre trâmites legais da burocracia e celebrações
contratuais. A ideia continuava a ser trabalhada. Afora isto, tudo mais parecia
instável na vida de Sorman e o solo em que pisava produzia-lhe inconsistência.
Certa tarde de domingo,
enquanto passeava com Anita pela orla de uma pequena cidade litorânea, Sorman
observou grande nuvem rolando no horizonte sobre a maré. Apontou-a para Anita,
mas ela nada viu. Entendeu então que somente ele a percebia. A nuvem se condensava
cada vez mais e deslizava rapidamente em direção de onde se encontravam. Ao
chegar, notou-a quase sólida. Uma fresta nela se abriu; o estrondar de muitas
vozes em clamor de socorro partiu de seu interior. Aquilo causou-lhe grande
angústia: ele soltou gemidos sentando-se no cais, preocupando Anita. Trouxe
inutilmente as mãos aos ouvidos, buscando ensurdecer-se. A nuvem o enlaçou; uma
aura obscura formou-se em redor de seu corpo transmitindo-lhe a dor daqueles
que clamavam.
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- Venha, Sorman!
Lucéa, linda, envolta
num branco véu a esvoaçar, sorria-lhe. Sorman se levantou da cama
estendendo-lhe a mão; ela o beijou nos lábios.
- Onde vamos?
- Siga-me e verá.
Suave névoa azulada
vinha encontrá-los em
intervalos. Eles caminhavam de mãos dadas sobre um pátio de
largas lajotas de pedra em tom róseo. Trepadeiras enlaçavam-se ao longo do
trajeto formando alpendres; depois tudo se abria, parecendo o infinito submerso
em clara luminosidade. Em pouco tempo chegaram a um largo e solitário portal de
rústica pedra. Sorman associou-o a um monumento druida. Lucéa largou-lhe a mão,
olhando-o no rosto.
- Vá! – disse com
suavidade.
- Por quê?
- Saberá – respondeu-lhe
com semblante tranquilo e inalterado, afastando-se sob a névoa.
Sorman cruzou o portal.
À medida que caminhava ouvia rumores; depois ouviu sons de metais tinindo,
vozes e espirros de animais. Viu-se dentre guerreiros com armaduras,
comandava-os. Ouviu cânticos religiosos, sons mântricos; oficiava uma cerimônia
mágica dentro de uma grande pirâmide. Em seguida, viu campos, cidades muito
antigas, celebrações aos deuses, ofertas, oferendas. Continuava a caminhada.
Logo se achou diante da grande estátua de Buda; chamas de lamparinas
crepitavam em quantidade; o aroma de ervas impregnava. Adorou o fogo, o sol; subiu muitos
degraus ao ar livre sobre alta pirâmide; cantou para os deuses; tocou
instrumentos. Testemunhou, horrorizado, de sobre uma alta montanha, a terra ao
longe fender, tragar tudo o que lá existia e o mar desaparecer.
O céu virou
sobre sua cabeça, ouviu fenomenal e ensurdecedor estrondo: as estrelas tombaram mudando de posições. Entrou numa cidade de ouro através de um magnífico e reverberante portal. Perdeu-se com seus homens numa selva de altíssimas árvores, sob
interminável emaranhado de galhos e folhas; lutou nesta selva contra ferozes e
sanguinários inimigos. Gigantes mostraram-se; andou com eles, era um deles!
Então tudo desapareceu e veio um silêncio.
Por um pequeno espaço de
tempo nada mais aconteceu,. Logo, porém, novas imagens ocuparam-lhe a atenção. Um recém-nascido
chorava; uma criança corria; um jovem preocupado aparecia; um homem chegava. Todos eram ele, Sorman. Em poucos segundos a inteira trajetória de
sua atual vida terrena saltou-lhe à memória. Viu uma pequena colina coberta de
verde grama; homens e mulheres subiam-na para ouvir um mestre de longos cabelos
que tocavam o chão; ele sentava-se na postura do lótus. Era Rama, reconhecia-o,
mas não conseguia aproximar-se; muitas pessoas fechavam-lhe o caminho. Rama começou a
falar-lhes diretamente; Sorman permanecia ali mesmo, à alguma distância. O mestre penetrou-lhe a mente.
“Discípulo, é chegado o momento, não deveis
mais protelá-lo. Até aqui vossa missão tem sido um preparatório; precisareis, a
partir de agora, doar-vos mais intensamente aos irmãos. A Fraternidade virá
amparar-vos.”
“Que fazer, mestre,
quais ferramentas utilizar?” - respondia-lhe murmurando.
“Mente e coração serão as vossas ferramentas. Com isso simplesmente
atraireis uma legião de auxiliares. A missão é longa e árdua, não terminará
definitivamente aqui. Os irmãos que partirem deste planeta irão reiniciar
etapas não vencidas. Lá estareis até que todos os derradeiros esforços tenham
sido envidados. Somente assim a lei se aplicará definitivamente sobre quem se
nega a cumprir a meta evolutiva, podendo até perder suas individualidades. Sois um
misericordioso, uma Chama Ardente em Sacrifício. Esta missão foi vossa própria
escolha.”
Sorman não conseguia
acreditar no que lhe dizia Rama. Então foi inserido em nova sequência de imagens, a um espaço onde o tempo não atuava. Estava num
templo de pura luz diante de três pessoas vestidas com túnicas brancas iguais,
superpostas por camadas de ouro em escamas. Diante delas, de seus corações, entre uma e outra escama, uma
chama absoluta fortemente se mostrava. Eram duas belíssimas mulheres e um
homem; tinham rostos jovens, resplandecentes. A eterna juventude ali vivia. O
homem, `a frente, tocava-o com as pontas dos dedos no peito, sobre o coração; as mulheres ladeando-o
apoiavam uma das mãos sobre seus ombros. Todos dimanavam auras de luz em suaves e
incessantes ondas: o dourado e o branco ponteavam! Estavam eletrificados.
Enquanto tocavam-no o homem dizia-lhe:
“Consagro-vos guardião da Ardente Chama.
Vossa existência é a alegria de doar-vos em sacrifício aos irmãos de criação.”
“Sabeis agora quem sois?”
Rama voltou-lhe à mente.
“Não tenho esse valor, mestre, é tudo ilusão
mental!”
Rama surgiu-lhe adiante
expressando irônico sorriso, estendendo uma das mãos e o tocando com as pontas
dos dedos sobre o coração em medido gesto. Quando isto se deu, Sorman sentiu uma
dor imensa rasgar-lhe o imo. Soltou um gemido, voltando-lhe à mente a figura da
cruz negra. Ele ajoelhou-se trazendo as mãos ao peito, uma sobre a outra. Lágrimas rolaram-lhe
pela face; ele chorava e gemia. Rama afastou-lhe as mãos tocando-o novamente sobre o coração em idêntico gesto de há pouco. Uma chama dourada com voracidade santa ali
irrompeu, envolvendo-o e à cruz que nele ainda permanecia, aliviando-o da dor. A
chama desapareceu, em seu lugar ficou-lhe uma profunda paz e um arder no peito
que anelava inefáveis sentimentos de devoção e amor.
“Esta mesma ação podereis realizar nos irmãos ao longo da missão. Oxalá
desejem receber, de pouco em pouco, os volteios desta chama que neles se
extinguiu.”
Sorman olhava agora para
o vazio; Rama houvera desaparecido. Ele continuava a caminhar, não houvera
mesmo parado desde que cruzara o portal. Todas aquelas situações vivera-as
mentalmente, em movimento. Viu-se num caminho eivado de espinhos; depois sobre
alva areia; em seguida num chão duro e irregular; os pés doíam-lhe sobre um
inóspito e ressecado caminho. Andou e andou até vislumbrar ao longe diminuta e
inconstante claridade. Ao aproximar-se ficou envolto por névoa; a claridade
escondia-se e reaparecia. Finalmente parou diante do mesmo portal de onde
iniciara a caminhada, e viu Lucéa do outro lado. Cruzou o portal e parou diante
dela, estendendo-lhe a mão.
- Encontrou o seu destino? – perguntou-lhe a
moça com tristeza no semblante.
- Sim, encontrei-o.
Revi cenas de meu passado. Sou uma Chama Ardente em Sacrifício; devo doar-me
para que outros corações possam reacender suas chamas.
CAPÍTULO XXII
A MISSÃO
SE INICIA
As coisas começaram a
correr muito depressa. O projeto de instalação da sucursal passou a ganhar
inesperado vulto nas empresas. Falava-se desta perspectiva a todo instante.
Eduardo, incorporado da ideia, tratava do assunto com renovado interesse e
entusiasmo. Lançou-se em busca de novas informações diretamente no consulado.
Obteve também atenção da câmara do comércio através do computador. Eles se
disseram muito honrados pela possibilidade das empresas expandirem os negócios
em seu país, da forma planejada. Aguardavam por um contato pessoal o mais breve
possível, oportunidade em que tratariam de todos os aspectos do projeto com
profundidade e interesse. Eduardo marcou viagem, embarcando poucos dias depois
em companhia de Sorman.
Entrevistaram-se com
pessoal especializado da câmara do comércio e com assessorias de ministérios. A
extensa pauta que os diretores e técnicos das empresas haviam necessariamente
preparado, foi longa e criteriosamente discutida nas várias reuniões. Ao final
do quinto dia, quando muitos dos propósitos já estavam colocados e negociações
entabuladas, receberam boa notícia. O governo dispunha de lotes de terra na
periferia da cidade, onde já funcionava um polo industrial. Ali, os
empreendedores teriam todas as facilidades e garantias para se instalar,
mediante contrato especial de locação por períodos renováveis, médios ou
longos. A cessão dos terrenos fazia parte de um programa de incentivo às
indústrias.
Dia seguinte foram
verificar o lugar em companhia de um funcionário do governo especialmente
designado, tendo gostado do que viram. Na tarde daquele mesmo dia embarcaram de
volta para casa. Durante os seis dias em que lá permaneceram Sorman não tratou
de qualquer assunto da irmandade
Finalmente o projeto
ficou pronto em todas as suas minúcias. Meses haviam se passado desde que pela
primeira vez a ideia fora aventada. A diretoria convocou reunião extraordinária
com seus principais acionistas, mostrando-lhes o que pretendia através de
filmes e tapes. Ao final, os acionistas manifestaram opiniões favoráveis, visto
as ações no mercado tenderem a valorizar.
As garantias foram
acertadas com avais de bancos credores e instituições seguradoras; faltava
somente dar a partida. Isso foi feito com Eduardo e um de seus técnicos, ao
viajarem ao país, a fim de firmar o contrato de uso do terreno e resolver assuntos adicionais. Mais tarde,
para lá viajariam engenheiros e técnicos em edificações, com vistas a contratar
serviços de construtoras através de licitações. Assim, iniciaram a execução da
primeira etapa do projeto quanto à sua forma física; a segunda etapa
consistiria propriamente no levantamento dos escritórios e galpões,
incluindo-se todas as instalações de rede. Ao curso final da segunda etapa,
viajaram para lá outro técnico e dois funcionários especializados com a
incumbência de estruturar os departamentos da empresa, iniciando-se os trâmites
de legalização e entrevistas com pessoal qualificado. Neste período, Sorman
voltou à sucursal duas vezes.
Sorman agora meditava
seguidamente. Nessa segunda viagem, caminhava pelas ruas constatando como houvera
mudado em relação a tudo. Familiarizava-se rapidamente com a vida da cidade;
admirava sua arquitetura antiga e locais públicos. Inspirava o ar citadino com certa
satisfação; reparava no que as pessoas faziam. Gostava do idioma, do vozerio,
da generosa hospitalidade a estrangeiros, da comida. Estas particularidades
faziam-no evocar uma indefinível nostalgia, pois se moldava a tudo com incrível
facilidade, encaixando-se perfeitamente ao “modus vivendi” da população. Nada o
surpreendia! Não imaginava que teria qualquer dificuldade em aqui permanecer,
sentia-se à vontade!
Buscou contato
telepático com o Superior Mestre Terra.
Ele estava em retiro numa pequena comunidade nos Andes, onde possuía
pequeno sítio. Naquele momento não recebia ninguém, nem assumia qualquer
compromisso – unicamente descansava e meditava! Procurou então Pedro, no
templo. Ao lá chegar temeu passar por nova e difícil experiência: indesejável
nesse momento de grandes responsabilidades com a instalação da sucursal.
Necessitava poupar energias. Para alívio, nada aconteceu.
Solicitou de Pedro que o
levasse a um local onde vivessem irmãos da célula em situações mais difíceis.
Pedro não entendeu a razão de tal solicitação, mas concordou em passar por
certo bairro, que, Mendez contara-lhe em certa ocasião, abrigava grande número
de almas pertencentes à célula.
Sorman pediu-lhe
estacionar numa rua qualquer. Pedro temeu, alertando-o do perigo de andarem a
sós por ali, mas Sorman não lhe deu ouvidos. O bairro era pobre; as pessoas
pareciam não os ver, ocupando-se com seus afazeres ou simplesmente ficando
ociosas em conversas. Sorman concentrou-se na energia-forma que os sustinha,
recebendo de imediato um impacto, gemendo e trazendo a mão ao peito. Pedro
acorreu a auxiliá-lo, pensando tratar-se de um infarto, mas Sorman logo o tranquilizou,
fazendo sinal de que não deveria preocupar-se. Pouco depois retornavam ao
templo.
Em sua terceira viagem,
não pôde novamente encontrar-se com o Superior, por que ele se encontrava no
Oriente Médio. Comunicou-se unicamente com Garcia, mandando-o vir hospedar-se
no mesmo hotel em que estaria. Garcia veio recebê-lo em seu quarto, troçando
dele.
- Caramba, irmão, pensei
que me tinha esquecido!
- Nada disto, homem,
estou seguindo exatamente o que havíamos programado – Sorman abraçou-o
fortemente. Após rápidos e formais assuntos, encaminharam-se à janela. Sorman
falou-lhe:
- Garcia, você é homem
bravo e de confiança. Sempre admirei sua dedicação à causa de nossa célula.
Daqui para diante necessitarei muito de sua ajuda.
- De que se trata, irmão?
- Dentro em pouco
estarei me transferindo definitivamente para esta cidade. Como você sabe estou
tratando da instalação de uma sucursal de nossas empresas nesta terra. Creio
que aqui viverei talvez até o final de meus dias. Mas desde logo me empenho em
buscar reacender em nossos irmãos suas chamas.
- Oh!! – exclamou Garcia
com profunda admiração.
- Você talvez não tenha
ainda despertado lembrança consciente daquela noite em que me visitou em meu
estúdio na Grande Casa. Já conversamos sobre isto, mas permita-me uma vez mais
repassar brevemente o episódio. Você procurou-me com o intuito de pedir auxilio
a esses irmãos. Na ocasião, nada pude fazer. Depois realizamos estudos, você
sabe também disto, pois participou de tudo. Porém, agora, será implantado um
trabalho prático e objetivo de âmbito ainda maior, muito mais abarcante, que
terá inicialmente duas fases principais. Uma terceira fase precisará ser mais
tarde iniciada e dependerá dos resultados das duas primeiras. Na primeira fase,
trataremos de fixar base aqui neste país. Após isto, implantaremos
convenientemente a segunda fase, que é um plano de ação para as Américas. O
plano, dando os resultados esperados nas Américas, será ampliado para os demais
continentes. Pretendemos, com isso, alcançar todos os irmãos da célula em
situação semelhante aos daqui.
Garcia, não se contendo,
ajoelhou-se diante de Sorman, tomando-lhe as mãos, tentando beijá-las. Mediante
o inesperado, Sorman afastou-se visivelmente assustado.
- Garcia, por favor, sou
tão igual a você ou a qualquer outro irmão do mundo. Necessito dos seus
serviços, bem como da colaboração de outros auxiliares para esta missão de
soerguimento.
- Você é grande, irmão, é uma Chama Ardente em
Sacrifício. Pensei que jamais conheceria alguém tão digno. Tinha mesmo de ser
você, como não percebi antes? – Garcia chorava enquanto falava.
- Garcia, pare com isto!
Garcia levantou-se puxando o lenço do bolso, enxugando as lágrimas.
- Você conseguirá,
Sorman, sei que conseguirá!
- Oxalá esteja certo,
farei tudo o que me for possível. Mas agora ouça-me: você é o primeiro a quem
revelo minha missão, que agora também é sua, mas por enquanto não diga nada a
ninguém. Durante muitos anos trabalharemos juntos. Desejo, desde logo,
providenciar o seguinte... Dias depois, Sorman contaria a Anita de seu futuro
na irmandade e da certeza em permanecer na América Central para sempre. Anita
abraçou-o e o beijou, prometendo estar ao seu lado enquanto vivesse.
Em seis meses a sucursal
estava praticamente instalada; alguns setores já entravam em funcionamento.
Eduardo, Sorman e dois diretores, tinham feito nova viagem durante este período
a fim de adequar os departamentos segundo o organograma principal, bem como
resolver diversos outros problemas concernentes ao empreendimento. Sorman se
preparava para oficialmente assumir a presidência. Diretores e conselheiros
haviam votado em maioria. Houvera somente uma abstenção e um voto contrário.
Ele fazia as malas; acertara todos os detalhes antes da partida. Anunciara a
venda do apartamento e de dois carros; pagara as dívidas, encerrara contas
bancárias, transferira valores para o exterior e passara procurações a Eduardo.
Olga chorava todos os dias; prometia ir
visitá-lo duas vezes ao ano. Eduardo, ao contrário, era só felicidade: poderia
telefonar-lhe diariamente, viajar à sucursal quando desejasse. Orgulhava-se de
Sorman: o filho saíra ao pai – tinha
incomum habilidade e infalível instinto para realizar bons negócios!
A bordo da aeronave
Sorman relembrava de parentes e amigos, do longo e apertado abraço que lhe dera
Bruno, dos beijos de Lucéa, das despedidas de Michel, Verônica e Lucen. Ele
sabia, todos pareciam saber, não voltaria definitivamente para a terra natal,
somente em poucas ou raras visitas. Devolvera a insígnia a Bruno – o cargo de
Ministro Extraordinário voltava a ficar vago – agora seria um hierárquico com
novas atribuições e autonomias: trabalharia somente para os decaídos!
Anita, cansada,
cochilava: a tensão das últimas semanas fora infinitamente desgastante. Sorman
pensava em como ela seria importante nesta nova caminhada. Fora consagrada
sacerdotisa. Voltava a ocupar posição de destaque na irmandade, como fizera no distante passado, noutras vidas. Auxiliaria Sorman
nos planos internos em tarefas sacerdotais. Desenvolvia, a cada período, poderes
psíquicos.
Súbitas e nítidas
imagens registraram-se e Sorman viu-se chegando ao Salão Branco para sua última
reunião com os hierárquicos. Estavam todos presentes; o Superior mandou-o
sentar-se à outra cabeceira da longa mesa.
- Irmãos, começou Bruno
visivelmente emocionado, a reunião desta noite, como sabem, vem tratar do
desligamento do Ministro Extraordinário em nossa hierarquia. É um momento ímpar
na história da irmandade. Jamais um irmão hierárquico foi investido de missão
sacrificial como Sorman. O momento transitório do planeta Terra é deveras
importante; a transição de nossa célula para outros superiores patamares também
o é, para nós, em
particular. Em assim sendo, este trabalho de resgate aos
irmãos decaídos precisaria ser realizado por alguém de grande qualidade
espiritual, disposto ao sacrifício. Trata-se das derradeiras oportunidades de
salvamento daqueles irmãos. Os que reagirem positivamente prosseguirão na
jornada – embora nos últimos escalões – os demais, infelizmente, perderão todos
os frutos de sua pregressa evolução, perdendo também a identidade com seus
egos.
Todos sabemos disto, somente não sabíamos que a grande alma destinada a conduzir o maravilhoso trabalho de soerguimento – trabalho longo e árduo, consumindo alguns séculos neste planeta e provavelmente outros séculos noutro planeta – esta grande alma, repito, não sabíamos, era Sorman. - Bruno fez uma pausa, chorava. Sorman baixara o olhar para a mesa; ouvia atentamente, não concordava com os elogios nem se emocionava. Intimamente desejava que Bruno encerrasse logo aquele discurso. Bruno prosseguiu – Sorman chegou-nos profeticamente. Sua participação na hierarquia viria já ressaltada em algumas de nossas centúrias. Chegaria para trazer novas soluções para a célula. Como Ministro Extraordinário agiu perfeitamente; como alma integrada abraçou grandes sacrifícios sem nunca lamentar-se.
Com inusitada capacidade lançou-se ao cosmos registrando para a irmandade e para o mundo a fantástica formação do vórtice gerador da energia primária, contra a qual lutaria o planeta. Esteve corajosamente frente a Grande Face Negra, por duas vezes, sob enorme risco de sua própria integridade mental. Foi ativo e importante nas lutas contra a ação malévola da própria Face Negra e de sua fraternidade de malignos. Incansável, inexaurível, Sorman heroicamente alcançou o objetivo final de sua vida na hierarquia com idade biológica ainda jovem, reacendendo a divina e perfeita Chama que o coloca diante da inestimável missão. Sorman é a própria encarnação da Chama Ardente em Sacrifício. É a cruz dual – negra e branca – que raros dentre os homens ousaram suportar.
Todos sabemos disto, somente não sabíamos que a grande alma destinada a conduzir o maravilhoso trabalho de soerguimento – trabalho longo e árduo, consumindo alguns séculos neste planeta e provavelmente outros séculos noutro planeta – esta grande alma, repito, não sabíamos, era Sorman. - Bruno fez uma pausa, chorava. Sorman baixara o olhar para a mesa; ouvia atentamente, não concordava com os elogios nem se emocionava. Intimamente desejava que Bruno encerrasse logo aquele discurso. Bruno prosseguiu – Sorman chegou-nos profeticamente. Sua participação na hierarquia viria já ressaltada em algumas de nossas centúrias. Chegaria para trazer novas soluções para a célula. Como Ministro Extraordinário agiu perfeitamente; como alma integrada abraçou grandes sacrifícios sem nunca lamentar-se.
Com inusitada capacidade lançou-se ao cosmos registrando para a irmandade e para o mundo a fantástica formação do vórtice gerador da energia primária, contra a qual lutaria o planeta. Esteve corajosamente frente a Grande Face Negra, por duas vezes, sob enorme risco de sua própria integridade mental. Foi ativo e importante nas lutas contra a ação malévola da própria Face Negra e de sua fraternidade de malignos. Incansável, inexaurível, Sorman heroicamente alcançou o objetivo final de sua vida na hierarquia com idade biológica ainda jovem, reacendendo a divina e perfeita Chama que o coloca diante da inestimável missão. Sorman é a própria encarnação da Chama Ardente em Sacrifício. É a cruz dual – negra e branca – que raros dentre os homens ousaram suportar.
Manifestará na
personalidade a luz crucificada; viverá entre o bem e o mal, entre a luz e as
trevas; precisará fazer isto a fim de poder mergulhar nos mundos obscuros das
dimensões inferiores, de onde libertará irmãos prisioneiros das forças
demoníacas. Sorman, como ficaremos devedores deste seu sacrifício, como somos
ainda pequenos para dar-lhe em retribuição um sublime amor de que você é
merecedor! Mas juntos ainda viveremos neste planeta de purificação até o dia da
grande viagem para o outro orbe. Irmão amado receba nossa profunda admiração e
todo amor que possamos dar-lhe!
Estrondosas palmas
ressoaram por todo o salão. Bruno se levantou dirigindo-se a Sorman,
emocionado, novamente em lágrimas, abraçando-o longamente. Os demais, um a um,
vieram em seguida. As palmas perduraram por vários segundos.
Sorman desligou-se das
imagens. O estrondoso aplauso o incomodara. Virou ligeiramente o rosto
observando o corredor. Lá adiante a aeromoça começava servir os passageiros.
Ele voltou para a posição anterior, fechando os olhos.
Novas imagens galgaram
do passado ressurgindo à sua percepção. Via-se com Bruno, Michel e Verônica no
Salão de Conferências, sentado à grande mesa de mogno.
- Fracassamos em nossa
proposta – comentara Bruno com ar desolado, admitindo o revés.
- Não totalmente. Conseguimos ainda assim
produzir algo de substancial – inferiu Verônica diante dele, ladeada por Michel.
- Mas não mantivemos
nossa coesão. Quebramos a estrutura cuidadosamente montada e sucumbimos.
A cadeia formada não suportou sequer quatro dias – insistiu Bruno.
- Nada é definitivo –
afirmou Sorman a seu lado.
- Sim, nada é definitivo
– admitiu Bruno enfaticamente, parando a pensar. Ele tinha o rosto emagrecido
como os irmãos ali presentes e não disfarçava o desânimo. Passados poucos
segundos, surpreendeu a todos ao vestir-se de outra expressão. Ele franzia a
testa e se concentrava em qualquer coisa invisível. Depois se voltou para
Verônica:
- Está tudo fechado e
seguro na casa?
- Sim – respondeu
curiosa.
- Então desative o
alarme, feche a porta e janelas e mantenha ligados os aparelhos de ar
condicionado. Michel levantou-se a fim de acompanhar a esposa nestas tarefas,
indo rapidamente ao painel eletrônico na parede, ao passo que Verônica trancava
a porta e janelas. Após as providências, Bruno novamente determinou: - Passemos
para as cadeiras da biblioteca! - Todos se dirigiram imediatamente para aquele
segundo patamar, lá se sentando nas exatas quatro cadeiras – concentremo-nos
irmãos, vamos nos trasladar ao Salão Branco da Grande Casa!
As grandes portas do Salão Branco
encontravam-se abertas. Os quatro detiveram-se surpresos, constatando serem os
últimos. A longa mesa estava tomada pelos Mestres Terra e os dois Ministros.
Tão logo adentraram, as portas foram fechadas por um irmão que permanecia no
átrio principal. Concentravam-se recostados nos altos espaldares das cadeiras,
conservando os olhos cerrados e mãos unidas sobre a mesa. Duas pequenas piras
de prata, em cantos opostos, no chão, queimavam uma substância deliciosamente
aromática, produzindo espirais de fumaça.
Elas vagavam ao sabor de
imperceptível brisa, se desmanchavam em pequenas nuvens, e subiam lentamente em
direção aos vitrais. Os quatro se aproximaram tomando seus respectivos lugares.
Verônica, por seu posto de especial assessoramento ao corpo hierárquico,
deslocou-se para onde estavam os computadores, ligando-os e ali permanecendo. O
Supremo, já à cabeceira, fez o sinal secreto; todos de pé responderam. Então,
como sempre, avocou:
- Luz e sabedoria jamais
de nós venham apartar-se!
- Assim seja! –
responderam em coro, assentando-se.
Bruno encarou-os sem
saber como começar: estava embaraçado. Não via a pauta da reunião. Como teriam
sido convocados? O silêncio persistia, Bruno hesitava. Ele inspirou
profundamente; a expectativa se acentuava naqueles rostos cansados.
Apesar do fracassado
movimento da FIA e aliados, da decepção em terem sido alijados da luta, e da
sensação de impotência que a todos permeava, um sentimento novo começava a se
infiltrar em suas almas. Era sutil e tênue como um fio de aranha, mas
perfeitamente perceptível. O sentimento os acompanhara desde o momento em que
para cá se dirigiam, se definindo melhor aqui à grande mesa. Na realidade,
o sentimento era de esperança. Mas a quê?
O Salão Branco possuía
altíssimas paredes que produziam a impressão de se projetar em grande escalada.
Seus muitos frisos aos pares, em pequenas e exatas distâncias, vinham terminar
nas bordas de uma abóbada feita em vitrais; seriam as linhas de fuga ao
infinito. As linhas pareciam querer invadir a abóbada e lançar-se noutras
alturas. Através dos vitrais, a luz diurna se mostrava ao Salão onde, no exato
meio, se dispunha a grande mesa. Seis colunas cilíndricas sustentavam a
majestosa construção. À exceção da mesa e cadeiras em verniz natural, dos
computadores e de alguns poucos objetos, tudo mais no ambiente resplandecia o
branco, inclusive o chão.
O Irmão Supremo desejou
pronunciar as palavras iniciais, mas se sentiu impedido. Uma força provinda de
algum ponto o dominou e diante da admiração geral ele assentou-se. Mas durou
pouco este espanto porque todos foram também forçados a fechar os olhos e
recostar a cabeça no espaldar de suas cadeiras. Então, registraram em suas mentes a mensagem:
“Valorosos irmãos terrenos. Falamos de uma dimensão além de vossas
percepções conscientes ou extrassensoriais. Fazemos uso de um artifício válido
a fim de podermos sintonizar as ondas de frequência de nossas vontades às
vossas mentes e cérebros. Inútil conjeturar acerca de nossa posição. Somos
vossos Mestres; constituímo-nos numa Hierarquia, para vós, ainda desconhecida,
que por todo o vasto período de vossas inúmeras vidas terrenas esteve a
trabalhar pela evolução e progresso deste planeta. Nada nos escapa à percepção;
nenhum fato nos advém sem que antes já não o houvéssemos entendido. Não há
futuro para nós como admite vosso cérebro terreno. Sabeis muito bem que o tempo
nas dimensões superiores não é controlado ou aprisionado por instrumentos. A
nada nos submetemos que não possamos dominar. Dominar e realizar segundo a
vontade, são nossos propósitos de vida inteligente de acordo com as leis da
criação. O tempo é nosso Mestre! Tudo realizamos segundo a coloração de cada
ciclo. Os ciclos não possuem passado; são permanentes projeções de sucessivos
fatores que se cruzam numa grande rede sempre presente e cujas malhas vão se comunicando
incessantemente. O tempo é a rede, portanto eternamente presente na nossa dimensão, como gostais de identificar esses fatores por vossos cérebros temporais; as malhas são os ciclos
que se apresentam oportunamente.
Irmãos, não falhastes diante do mal cósmico
que neste instante vos assola. Vossa participação demonstrou, principalmente, o
exercício destemido de vossa vontade em defender a vida do planeta, segundo vossa
própria natureza e valores humanos duramente conquistados. O mal cósmico
realmente existe, sabeis agora mais do que nunca, sempre existiu nas passadas
eras de vosso calendário terreno. Este mal já atuava antes mesmo de vosso atual
sistema solar ter vindo à existência, e de outros sistemas solares há muito desaparecidos nas
profundas gargantas de insondáveis dimensões que permeiam os mundos criados
pela Soberana e Máxima Inteligência. A Grande Face Negra, como a denominais – projetada
inversamente ao Grande Negativo numa escala cósmica – já a conhecíamos. Diante
dela estivéramos diversas vezes, como vós, hoje, conscientemente também estais.
Realmente avançais. Estais próximos de concluir uma etapa de vida de vossa
célula e a uma nova etapa iniciardes. Os raios rompem sob a aurora de um novo
dia! Agora já sois capazes de perceber o que antes vos foi misteriosamente
oculto. Por isto sofreis repressões, assédios e revezes em escalas e proporções
mais amplas do que antes. A bem dizer-vos, fostes agora apresentados às
inteligências destrutivas, estando diante de uma de suas grandes articuladoras.
O mal menor vos obrigou – e ainda vos obriga –
a repartir-vos em porções do bem. Estas porções, exercitadas ao cabo de vários
ciclos de vossa existência terrena, vos conduziram a edificardes um grande
arcabouço, sob cuja proteção permanecestes nem sempre em paz. Agora o arcabouço
veio fender em seu cimo, abrindo-se para valores mais absolutos e
transcendentais. Irmãos aprendereis lições maiores – sereis homens cósmicos!
O que realizastes a nível de captação da
energia negativa foi realmente pouco para a vastidão do planeta. E não
poderíeis ter realizado mais. Superastes ainda assim marcas de passadas e
vividas células. Vossa obediência aos Mestres Maiores vos conduziu a
organização de vosso trabalho; o denodo e a consciência do dever a cumprir
foram dignos de quem trabalha e busca sinceramente por uma realização. Mas esta
realização é coletiva, bem sabeis, por isto vos lançais ao mundo, atrelando o
corpo da célula ao vosso próprio corpo hierárquico, e trabalhais
incansavelmente para todos. Sois dignos, ninguém na Terra é maior que vós!
Não vos preocupeis com o final destes
acontecimentos, não temais. Dentro em pouco a guerra estará terminada. A
destruição não se dará na escala que a Grande Face Negra contava. Na verdade,
ela já está de partida da Terra, decepcionada, levando em sua bagagem o sentimento da
derrota. Ainda assim, deixará uma nova herança de seu mal, o qual necessitou
reimplantar no planeta para poder realizar futuras incursões. Trabalhareis
contra as personificações deste mal; ajuntareis os pedaços destruídos por ele
na expectativa de restaurardes o que foi rompido e de vós subtraído. Somente
assim, no trato da reconstrução, que verdadeiramente ajudareis ao planeta, a
vós próprios e a nossa Hierarquia que pela primeira vez convosco vem
comunicar-se diretamente no mundo físico. Cumpri com dignidade vosso ciclo
terreno nos séculos vindouros, assim colhereis maiores e mais significativos resultados
rumo a vossa libertação. Adeus!”
EPÍLOGO
Da janela do gabinete
Sorman observava o pátio. Os escritórios tinham sido edificados ao redor.
Estava calor, os termômetros acusavam quase quarenta graus. Ele via um de seus
principais técnicos indo na direção oposta. Acompanhou-o, vendo-o durante alguns
segundos, mas antes que desaparecesse sua atenção tornou-se volátil, deslizando
para pensamentos administrativos.
Dentro em pouco a
sucursal completaria um ano de funcionamento. Muitos problemas advieram: mais
do que verdadeiramente podiam esperar. Não tinham ainda conseguido colocar a
produção nos trilhos; dificuldades existiam, principalmente nas organizações
setoriais. O funcionamento da máquina era ainda limitado devido ao inadequado
treinamento do pessoal. Era certa a reformulação de alguns planejamentos.
Precisariam enviar funcionários e operários nativos a matriz a fim de realizarem
cursos, corrigindo suas deficiências. Isto demandaria novos investimentos com o
pessoal. Nenhuma das metas de produção e venda tinha sido alcançada.
Pelo
visto, não as alcançariam mesmo ao término dos doze meses. Precisavam saldar
compromissos sérios e inadiáveis com bancos credores, órgãos financiadores e
fornecedores. Havia impostos a recolher e uma série de outras despesas que não
podiam deixar acumular. Não desejava pedir socorro a Eduardo. Pretendia sair-se
bem da situação; afinal para cá viera justamente para isto. Deveria
proporcionar às empresas mais do que a experiência - principalmente, o
triunfo!
Neste ano de atividades
paralelas – profissionais e espirituais – já tinha esboçado objetivamente
planos de trabalho. Com Mendez e Garcia e mesmo Bruno, que aqui viera numa de
suas viagens, discutira soluções de atendimento imediato às comunidades e
bairros onde os irmãos viviam. Para esta concretização, necessitariam acionar
certas fontes governamentais, alavancar poderes! Via com nitidez a necessidade de formular um
grande plano, onde os recursos modernos da vida material fossem aplicados nas
áreas de moradia e atividades dos irmãos de célula, com sólidas realizações profissionais, socioeducativas e de saúde. Já pensara muitas vezes sobre isto.
Faria parte
deste extenso plano, ainda em germinal ideia, tornar inicialmente a sucursal
produtiva, economicamente independente, desatrelada em pouco tempo dos
empréstimos e onerosos financiamentos, livre das garantias patrimoniais adicionadas aos vultosos contratos. A partir daí, liberto destas responsabilidades, criaria
uma fundação assistencial, talvez uma empresa, administrada por ele, que com o tempo teria
autonomia e autossuficiência, extensiva a abrigar não
somente aos irmãos de célula, mas a tantos outros necessitados. Para isto, trabalharia
muito, duramente até. Inicialmente asseguraria aos irmãos condições de alcançar meios
condignos de vida; buscaria restaurar-lhes a perdida autoestima,
encaminhando-os para uma vida socialmente integrada e proveitosa tanto em alma como em vivência material..
Este pensamento ia além;
seria muito mais ambicioso, cruzaria fronteiras. Conforme idealizara, a
fundação ou empresa, ou ambas, possuiriam ancoradouros noutros países onde a célula se ramificava.
Teriam unidades assistenciais – postos avançados – chefiados por irmãos
iniciados, trabalhando sob instância superior única. Proveriam substancialmente
as famílias: as amparariam como aqui!
Desta maneira, o trabalho
nos planos internos – que já comandava –
complementaria as bases erigidas no plano físico, na dura lida material,
e vice-versa. Por alguns séculos ele e seus comandados se internariam nestes
verdadeiros labirintos. Aqueles que tivessem alcançado níveis melhores nos
últimos escalões e aqui permanecessem, não poderiam de forma alguma estancar a
fim de não acontecer retroação. O trabalho na Terra precisaria continuar.
Equipes mantenedoras do plano permaneceriam a fim de acompanhar os irmãos.
Ele e alguns abnegados
partiriam em companhia dos estagnados. Sabia intuitivamente das condições
extremamente difíceis e árduas, praticamente primitivas que em futuro talvez próximo, noutro orbe,
encontrariam. Mas não se abalava, iria até o final, jamais desistiria da
missão: séculos o aguardavam!
-
FIM -
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