Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo,
concluindo, afinal, que se a maldição havia recaído sobre mim de nada adiantaria
ir agora tomar posse das terras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e
ao ouro. Sendo senhor, como evitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo
administrar e viajar a negócios? Além do mais, por supina infelicidade, não
poderia dispor de uma única moeda daquele tesouro enquanto a maldição
existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscar uma solução para anular a
maldição do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim, enfiei-me cada vez mais
no interior deste bosque até chegar a esse lugar, achando esta casa abandonada,
escondendo o ouro e aqui permanecendo.
Todavia, os dias
iam se sucedendo, os meses, os anos e nada acontecia. Por vezes chegava a
pensar que tal maldição em verdade não existiria ou se existisse já teria
perdido a sua força. Porém, ante este pensamento, logo ouvia no ar a gargalhada
do bruxo, sentindo meu braço a doer horrivelmente no exato lugar onde eu fora
picado pela serpente. Assustado, corria para o esconderijo onde deixara o baú e
abria-o, certificando-me com alívio que o ouro ali estava, intacto e todo meu!
Mais anos se
passaram, dezenas. O tédio veio possuir-me, fazendo-me sofrer
indescritivelmente, crendo-me um morto vivo, semi sepultado, o que de fato sou.
Em várias oportunidades pensei em dar cabo de mim, pôr um final ao que me
parecia inexistência, mas ao lembrar-me que minha alma seria aprisionada pelos
malignos, recuava temeroso. Ademais, a idéia de apartar-me do ouro
violentava-me, não desejando isso de forma alguma. Somente viajantes extraviados
em suas rotas costumam ainda passar por aqui, encontrando-me em casa ou pelas
redondezas. Aproveitando esses momentos, converso um pouco tentando saber
notícias do mundo, qual época estamos atravessando, qual rei nos dirige, se há
guerras e outras coisas mais. Para afastá-los de mim conto-lhes que sou um
amaldiçoado, confirmando a lenda que inventei de um mal contagioso. Dessa
maneira, aqui escondido, venho mantendo o ouro a salvo de especuladores, não
obstante ter-me tornado conhecido no reino inteiro.
Mas os incríveis
acontecimentos de minha vida não terminam por aqui, caro trovador. Há outro
fato somado à maldição que passo a relatar-te: certa noite, deprimido pela
solidão, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem sons,
senti-me sufocado, verdadeiramente desesperado, não aguentando mais essa
existência. Tentei chorar, mas não pude. Aliás, em toda a minha secular vida,
jamais consegui derramar uma única lágrima. Dizem que o choro faz extravasar
dores, por vezes acalmar e até consolar, mas nunca pude provar dessa forma de
desabafo. Impossibilitado desse recurso, cada vez mais estrangulado pelas
sensações que me tomavam, atingia ao auge de um desespero nunca antes
experimentado. Uma onda de raiva veio em seguida possuir-me e comecei a quebrar
coisas, a golpear a mesa e socar paredes, somente parando ao sentir-me esgotado
e com o corpo dolorido. Então, caído ao chão, opresso e imóvel, comecei
novamente a relembrar as palavras do bruxo, tentando encontrar nelas uma pista
que me possibilitasse fazer uma tentativa de libertação, mas nada encontrei.
Como estava, permaneci, e dormi profundamente, tendo um sonho estranho e
marcante. No sonho, vi outra serpente em chamas com olhos a arderem de maneira
indescritível. Tremi e temi-a, pois já havia provado a malignidade da outra.
Produzindo movimentos inconstantes, em pé, dançando em círculos, ela começou a
falar-me:
“Infeliz mortal. O peso da maldição que
contraíste torna-te desesperado, não? Queres a liberdade, mas não a podes ter.
Temes a morte porque tua alma é prisioneira das trevas. Apesar de tudo, não te
arrependeste ainda de teus atos passados; teu coração permanece endurecido e
congelado. És duplamente infeliz: prisioneiro de tua imensa ambição e presa
fácil e indefesa dos poderes das trevas. Não obstante, ainda que sejas uma
ovelha negra e desgarrada, resta para ti uma esperança. Somente uma chama
ardente poderá aquecer teu gélido coração, fazendo timbrar uma nota que
desconheces e se anela a uma virtude humana que não a possuís. Porém, tu não
tens como atear no coração tal chama benigna. És vazio e inútil e, por
consequência, jazes inerte como a própria morte. Por isso vou auxiliar-te,
cumprindo ordens dos poderes superiores que a tudo velam. Deixar-te-ei algo,
que um dia, não sei quando, te será valioso e útil, saiba guardá-lo!”
Dizendo isso, a
serpente lançou-se sobre o meu braço e picou-me no exato local onde eu trazia a
marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dor horrível que me
queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisa vi com
incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa só forma,
uma mecha de cabelos vermelhos, que de tão viva quase reluzia sob a fraca luz
da vela ao chão, salva por milagre de minha fúria destrutiva. Repugnado,
puxei-a e a atirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado,
aproximei-me pegando-a e a lançando fora através da janela. Dia seguinte, via-a
ali. Essa visão causou-me a tempestuosa lembrança da aparição. Na verdade, eu
não a esquecera completamente, porque mal dormira de tanto me doerem os
ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo, peguei-a novamente, saindo para
dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante, disposto a não dar ouvidos a
mais nada, julgando que estivera fora da razão.
Aquele dia se
passou sem outras surpresas. Porém, na manhã seguinte, ao abrir a janela, quase
caí para trás, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre o peitoril.
Inconformado, segurei-a e parti imediatamente para o lugar onde a enterrara,
encontrando o buraco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para
outra de minhas surpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei
outro buraco mais profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela
novamente voltou, dessa feita no bico de um pássaro vermelho que a jogou sobre
mim, à mesa. Acreditando, então, que teria algo de mágico, aliado ao fato de
que surgira de meu próprio sangue, resolvi guardá-la.
Daquele dia para
cá, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presença aqui, senhor Sertório,
dentro dessa casa, à minha mesa, coisa jamais acontecida com outra pessoa em
mais de um século. Aliás, ultimamente tenho encontrado pessoas com maior
constância. Não obstante temerem-me quase todas e algumas sair a correr tresloucadamente,
isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo não mais se
encontra tão afastado assim das trilhas e estradas que levam às vilas e
cidades; segunda, minha fama de amaldiçoado já é grande demais para que eu
permaneça perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum
aventureiro mais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. É
natural te perguntares como consigo ter roupas, panos e cobertores, utensílios,
ou mesmo boas ferramentas após tantos anos de reclusão. Acontece que a despeito
de minha fama e do terror que a maldição desperta, existe ainda pessoas
apiedadas de minha condição. Assim, um ou outro viajante, a quem exijo o mais
absoluto sigilo sobre a localização exata de meu esconderijo, deixando ao acaso
sua descoberta pelos passantes, trazem-me essas coisas em troca de
agradecimento, julgando-me miserável. É uma ironia, não, senhor Sertório, eu,
possuidor de uma fortuna em ouro, não poder pagar por uma camisa, uma calça ou
qualquer outro objeto, ficando a receber doações?
Outra questão deve
também ter perambulado em teus pensamentos no decorrer de minha narrativa: como
consigo viver nesse fim de mundo? Instinto de sobrevivência, talvez;
adaptabilidade às regras da vida natural; sorte ou sortilégio, não sei bem. Ao
aqui chegar e apossar-me dessa casa, quase nada em verdade nela existia. Mas ao
correr em redor encontrei algumas coisas que me serviriam. Além de frutas,
constatei existir abundância de pássaros e coelhos para caçar. Por quase um mês
alimentei-me disso, trazendo água de um regato correndo ao largo, pouco
distante daqui, mas me enjoando de tudo, sonhando com pão, bolinhos e outras
variedades. Ademais, a casa necessitava de reparos e eu não possuía uma única
ferramenta.
Decidido, resolvi
um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajar muito, não me
importando com esse sacrifício, visto ter de permanecer por muitos anos nesse
lugar. Carregando o baú com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por que
precisava primeiro descarregá-lo para torná-lo leve levando-o até a carroça,
para de novo enchê-lo, parti à noite, fazendo marcas e sinais aonde ia passando
a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho sem dificuldade. Na terceira
noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendo escondido o baú fora
da trilha cobrindo-o com plantas, trabalho este que me fez novamente despender
grande dose de energia, visto precisar outra vez descarrega-lo e transportá-lo
como antes, parti para a vila. Lá chegando, pude comprar tudo o que precisava
na oportunidade, trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho,
galinhas, reprodutores, toucinho, pão, fermento, vinho, ferramentas,
cobertores, lençóis, pratos, canecas, talheres, etc. Como o ouro que possuísse
não bastasse e temeroso de usar do outro, negociei com o medalhão e o cordão
tirados do rei, evidentemente não contando a verdade sobre a sua origem,
obtendo ainda troco.
Ao encher a carroça
com essas mercadorias, fiz-me alvo da curiosidade geral e temi ser pilhado por
ladrões, anunciando então que prosseguiria viagem para a vila vizinha, dormindo
a poucas milhas dali, debaixo de árvores. Mal saí, tomei caminho oposto, e já
na floresta procurando o máximo possível disfarçar a trilha deixada pelas rodas
da carroça, corri para o baú, recolocando-o na carroça, imediatamente partindo
na noite. Consegui retornar sem dificuldade por que as marcas por mim deixadas
eram visíveis e auxiliaram-me. Com o que trouxera, pude criar, plantar, colher
e cozinhar, nunca deixando que se esgotassem. Afinal, tempo para tratar dessas
coisas jamais me faltaria. Da casa, cuidei-a da melhor maneira possível,
arranjando troncos, fabricando tábuas, amarrando cipós, inventando colas de
resinas. Entretanto, como viesse a necessitar de mais coisas, fiz com o tempo
mais duas dessas viagens, visitando outras vilas, por que temia ser reconhecido
onde estivera antes. Gastei o que me restara do ouro recebido de troco do
primeiro comerciante e negociei com as joias que tirara do rei e com o cordão e
medalhão tomados também do tesoureiro. Nas duas últimas viagens procedi como da
primeira vez, levando comigo o baú, escondendo-o e depois o trazendo de volta.
Mais tarde, como o animal que possuísse viesse a morrer, não pude realizar mais
viagens e aqui me encerrei definitivamente. Essa é a minha história, senhor
Sertório, incrível, porém verdadeira, e prisioneiro estou da maldição, a espera
que um dia, como me prometeu a serpente, possa encontrar a virtude que me
libertará.
Antes que Sertório dissesse qualquer
coisa, o bufão enfiou dois dedos entre o cinto e a cintura puxando a mecha de
cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertório olhou-a com curiosidade,
sem tocá-la, voltando a encará-lo, induzindo e perguntando:
- Supondo que tua
história seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos se tenham
materializado de teu próprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, que
esperas de mim para auxiliar-te?
O bufão apoiou um
braço na mesa e arregaçou a manga da camisa.
- Vês, aqui estão
as marcas de que te falei. Num lugar qualquer está o baú com o ouro. Estou
cansado, senhor Sertório, realmente muito cansado. Tendo ouvido falar de ti e
de teus feitos, julgo que sejas o único homem de quem tenho notícias capaz de
ajudar-me. Não saberia como procurar sozinho uma virtude, ou algo fazer para me
libertar da maldição.
Sertório, levando a
mão ao queixo ficou pensativo por instantes. Aldegundes olhava-o
silenciosamente, piscando com apreensão. Então o visitante falou:
- Há entre nós,
criaturas do mesmo Pai, obrigações e dívidas. Isto se estende para além das
fronteiras humanas, atingindo, pois, o reino das almas. Não vejo como
auxiliar-te a sair desta longuíssima enrascada em que te meteste, senhor
Aldegundes, sem ficares a dever-me pelo serviço, endividando-te também comigo.
O bufão enrijeceu o
tronco e apoiou as mãos nervosamente na beirada da mesa, piscando assustado e
desconcertado.
- Então... não há
virtudes em ti e recebes pelo que fazes? – perguntou ainda agitado.
- Fosse eu um santo
a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a mínima paga de meus
serviços? Há diversas formas de pagamentos ou compensações, como há serviços e
ajudas. Ademais, o virtuosismo não se desmerece por um punhado de moedas de
ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por ser distinto
e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufão,
proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de
teu ouro maldito!
- Meu ouro? –
levantou-se o homenzinho - jamais, nunca!
- Que tens então a
oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um sorriso de malícia.
Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.
- Vês, nada tens de valor para cambiar a não
ser o ouro, que dizes?
Aldegundes voltou a
sentar-se, carregando no cenho expressão de profunda contrariedade. De repente,
seus olhos cintilaram e o rosto encheu-se com ar de satisfação:
- Lembras-te das
palavras do bruxo? Disse-me ele que eu não gastaria uma só moeda que não me
viesse trazer prejuízo ou desgosto. Como, pois, dar-te o ouro?
- Entendas tu,
senhor Aldegundes, de que não o estarás negociando. Pagarás por uma virtude que
te libertará dessa mesma maldição. Que tens assim a perder se desperdiçaste uma
vida inteira por causa desse mesmo ouro? O bufão carregou de novo o cenho,
levantando-se e andando de um lado para outro a murmurar:
- Meu ouro, meu
ouro!
Como o homenzinho
não se decidisse, Sertório pediu-lhe que lhe mostrasse onde dormiria.
Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o até um quarto vazio e apontou para o
chão de terra.
- Não tenho outra
acomodação a oferecer-te, trovador, mas arranjarei alguma palha seca para teu
melhor conforto! Sertório saiu e retornou trazendo ao ombro seu cobertor de lã,
falando ao bufão:
- Aguardo por tua
resposta pela manhã. Dono de meu destino, daqui parto pelos caminhos do mundo
sob o sol abençoado, e livre como o ar e o vento.
Aldegundes saiu
resmungando levando a vela, deixando Sertório mergulhado na escuridão. Pela
madrugada, Sertório foi acordado pelo bufão. Sob a oscilante chama seu rosto
mostrava intensa preocupação, denotando que ainda não dormira.
- Como pretendes encontrar a virtude que
me falta? – perguntou sem delongas.
Sertório sentou-se provocando ruído nas palhas e redarguiu com
seriedade:
- Já decidiste
pagar-me?
- Primeiro conte-me
como irás ajudar-me?
- Primeiro a
promessa do pagamento! O bufão levantou-se soltando imprecações.
Sertório riu e
deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andava de um lado a
outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de cócoras, com impaciência:
- Está bem, prometo
pagar-te do ouro!
- Quanto?
- Dez moedas!
- Nada feito.
- Vinte!
- Hum, hum! –
balançou negativamente a cabeça.
- Ofereço-te então cinquenta,
nem uma a mais!
- Quero um terço do
que existe no baú!
- Um terço? É
loucura, é roubo! Não farei negócio contigo! E saiu furioso, deixando o quarto
a escurecer como antes.
De madrugada,
Sertório levantou-se e andou pé ante pé. Ao chegar à cozinha nada havia visto
ou percebido. A escuridão era intensa e ele tateou pela parede, encontrando uma
porta. Cuidadosamente abriu-a. Ao sair, percebeu uma luz tremeluzente no fundo
do quintal, junto à base do barranco. Aproximou-se, guardando cautelosa
distância, e pode ver com certa nitidez que o bufão retirava do baú muitas
moedas, enchendo um caixote rude. Havia um buraco cavado no barranco e montes
de terra espalhados. Sertório sorriu e voltou ao quarto, deitando-se novamente
e dormindo.
Ao levantar, pouco
depois do dia raiar, foi recebido pelo bufão à mesa, com o desjejum pronto.
Eram frutas e um caldo quente e Sertório se alimentou. Houve proposital
silêncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada também dizia. Após o
repasto, Sertório encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e água a
Firmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o
bufão ali o aguardava, Sertório trouxe o chapéu ao peito, dobrou-se levemente e
disse:
- Muito te agradeço
pela hospitalidade, senhor Aldegundes. Não tenho ouro e momentos existem em que
moedas pouco valem diante do que nos proporcionam. Assim mesmo pagar-te-ia se o
tivesse. Impossibilitado, porém, ofereço-te o que de mais precioso possuo na
humilde intenção de recompensar-te.
E trazendo a viola
aos braços, cantou e recitou uma trova – admiráveis momentos de inspirada arte.
Mas, como antes, o bufão não se comoveu com a preciosa oferenda do artista,
permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertório conduziu Firmamento em direção
ao portão e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes já o alcançava colocando-se
ao seu lado, falando nervosamente:
- Setenta moedas!
Sertório meneou negativamente a cabeça, continuando a caminhar. Aldegundes o
alcançou fora da propriedade e ao seu lado novamente propôs-lhe:
- Cem! Sertório não parou e nem respondeu, ele fez
novo lance:
- Uma última
oferta: cento e vinte moedas! Sertório, silencioso, voltou-se para Firmamento e
fez menção de montar.
- Está bem,
fazes-me chantagem, um terço do que tenho no baú. Sertório estancou o movimento
e Aldegundes olhou-o interrogativamente.
- Um terço do teu
ouro, incluindo aquele que retiraste do baú esta madrugada.
- Raios, então me
surpreendeste? – reclamou furioso.
- Pela última vez,
senhor bufão, aceita minha proposta, ou parto imediatamente?
- Maldição, não
tenho alternativa. Dize-me, então, como irás encontrá-la?
- Primeiramente
indo e vindo por aí, sozinho, até que o momento eleito aconteça.
- Somente isso? –
interrogou-o com ar atarantado.
- Por enquanto,
somente. O bufão grunhiu e gesticulou, andando impacientemente.
- Diabos, demônios,
como posso confiar em ti homem? Julgava-te uma coisa, agora vejo-te totalmente
diferente! – súbito, com a mesma cara enfarruscada, voltou-se agitadamente para
Sertório – E que garantias me dás, trovador, de que irás retornar com a
virtude, ou com os meios de eu consegui-la?
- Retornarei. Basta
dar-te minha palavra. Se houver achado a virtude que te falta, ela virá comigo!
Furioso, o bufão entrou, deixando Sertório a sorrir largamente.
Sertório partiu
levando um terço do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu dois sacos velhos que
o bufão possuía de ganhos dos passantes, reforçados por fora com fibras obtidas
nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, de cócoras,
cotovelos nos joelhos, braços encolhidos e mãos semi fechadas, mordia-as e
praguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas,
ouvindo-lhe o canto cada vez mais fraco.
O tempo passou,
três meses. Certo dia, Aldegundes corre à porta para atender a um chamado. Ao
ver que se tratava de Sertório quase teve um desmaio. Recuperando-se, no
entanto, mandou-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento, chegou-se
com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria. Aldegundes, ao
contrário, vestia-se de característica carranca. Sertório, parando a três
passos da porta, retirou o chapéu da cabeça e o cumprimentou com habitual
vênia, dobrando-se ligeiramente:
- Boa tarde, senhor
Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi.
- Trazendo-me o que
foste buscar, espero!
- Trazendo-te
notícias do mundo, em princípio.
- Que me interessam
as notícias do mundo neste momento. Quero somente aquilo que necessito e pelo
que te paguei! – respondeu em tom agressivo.
- É certo, senhor
Aldegundes, porém são as notícias que te trago que necessitas. Mas não me
convidas a entrar como outrora e não me ofereces alimento?
Aldegundes mirou-o desconfiado e grunhiu.
Como Sertório nada mais dissesse e aguardasse, ele deu um passo atrás, fazendo
aceno afirmativo de cabeça. Após a refeição, em que o silêncio novamente
imperou, Sertório resolveu falar, olhando o ansioso e feio rosto do bufão.
- Pois bem, senhor
Aldegundes, lamento dizer-te que nada encontrei que possa servir-te.
- Nada encontraste?
Que fizeste do meu ouro?
- Distribui-o aos
necessitados.
-Distribuíste-o aos
necessitados? – o truão enfureceu-se, levantando-se repentinamente, batendo com
os punhos na mesa – O meu ouro? Diabos,
que homem és tu, onde está tua honra, tua palavra?
- Diante de ti,
homenzinho esquisito! Não te prometi que algo traria, mas sim, que andaria até
o momento eleito acontecer. Porém, o quase indecifrável destino não quis ainda
mostrar-te o estreito caminho da salvação e eis-me aqui, cumprindo minha
promessa de voltar.
- Meu ouro, fui
enganado! – ele sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, cotovelos à mesa,
lamentando.
- Não lamentes o
destino de teu amaldiçoado ouro, ó avaro! Ao invés, deves lamentar tua
insipiência e cupidez. És ainda cego e tolo, após tantos anos já vividos.
- Sou um homem
amaldiçoado, já te disse! – resmungou com choraminga sem alterar a postura.
- És pior do que
isto: és uma alma trancafiada em tua própria criação. Apesar de todas as coisas
acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerraste voluntariamente,
assim permanecendo.
- Que faço agora,
como vou livrar-me da maldição? O bruxo estava certo, começo a ter prejuízos e
desgostos!
- Cala-te, boca
insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca a esperança que te
resta!
- Viverei
eternamente aqui, estou prisioneiro das forças satânicas, que fazer? O bufão não se acalmava, chorando a sua
sorte.
- Dá-me mais um
terço do teu ouro que continuarei na busca do que precisas – falou Sertório com
naturalidade.
- Meu ouro? Estás
louco? Fico pobre! – gritou, quase pulando tal o espanto, olhando-o com
fisionomia alterada.
- Então, creio nada
mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda!
- Ladrão eis o que
és! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. Não te darei nem mais uma
moeda, é meu o ouro!
- Serei eu de fato
o ladrão? De onde te veio o ouro e de que maneira?
- Arrisquei minha
vida para ganhá-lo!
- Para roubá-lo,
hipócrita! Ele não te pertence por direito, nem uma só moeda. Tu és o ladrão,
não eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se,
todavia, preferes viver encerrado e amaldiçoado em tua horrível teia, não te
lamentes. Tudo tem um preço. Se não queres pagar por tua liberdade, fazes a
pior escolha. Vou-me embora, adeus, senhor bufão!
- Espera! Já dei-te
um terço do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade. Tenho o direito de
exigi-la!
- A quem? O bufão
calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto, insistindo:
- Fizeste um preço,
assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora!
- O ouro que me
deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude está ainda escondida.
Dá-me mais ouro, outro terço, ou terás perdido uma coisa e outra.
- Ladino,
espertalhão! Não te darei!
- Então, adeus,
homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te!
E Sertório
levantou-se, saindo. Aldegundes apoiou de novo a cabeça com as mãos ficando a
resmungar e a dizer imprecações. Pouco depois, ao levantar o rosto dando-se
conta de que se encontrava novamente sozinho, desesperou-se, saindo porta
afora, gritando feito louco:
- Senhor Sertório,
senhor Sertório!
Sertório, andando
pelo quintal, puxava Firmamento. Aldegundes, transtornando, parou adiante,
implorando de mãos juntas:
- Não se vá, por
favor!
- Nada de querelas ou barganhas. Dá-me
imediatamente outro terço do ouro ou não te darei atenção!
- Dou-te, mas, por
favor, ajuda-me!
Sertório partiu e,
como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufão que nada trazia
e de novo distribuíra o ouro aos necessitados, ele sentou-se ali mesmo, urrando
feito animal ferido. Não conseguindo verter lágrimas, puxava os cabelos e
rolava pelo chão. Sertório assistia a tudo impassivelmente, ao término do
desespero houve um silêncio sepulcral. Finalmente, o bufão falou com voz
desanimada e arrastada:
- Voltaste não só
para dar-me conta de teus atos, mas também para levar-me o último terço do meu
ouro.
- Exatamente,
senhor Aldegundes! – confirmou simplesmente Sertório.
- E estás
absolutamente convicto de que te darei?
- Não, totalmente,
porém com muita resistência, creio ainda.
- Pois te enganas,
astuto trovador. Desta feita não mais resistirei. Porém, não irás só; iremos
ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu.
- Bravos, senhor
Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir duas
exigências: primeira, irás onde eu for; segunda, o ouro estará sob minha
custódia, fazendo eu próprio uso dele sempre que necessário.
- Então o ouro não
mais me pertencerá?
- Nenhuma só moeda,
se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufão estava realmente
desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeça concordando. Tal foram
essa facilidade e submissão que Sertório de novo surpreendeu-se. Pouco depois
se recolhiam.
A noite parecera
produzir somente maus eflúvios na alma de Aldegundes. Pela manhã acordara
irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia.
Partiram. Sertório
cavalgava tranquilamente, levando como antes o ouro sobre Firmamento em dois
sacos iguais. Em certo trecho do caminho já houvera convidado o companheiro de
viagem para que montasse, trocando posições, tendo recebido resposta negativa
acompanhada de um grunhido. Em dado instante, notando os fragmentos dos raios
solares a se intrometer dentre os espremidos espaços arbóreos e a espalhar
figuras múltiplas pelo chão, Sertório, tocado em sua sensibilidade, trouxe a
viola adiante, afogando-a de encontro ao peito e afagando-a com mãos carinhosas
de pai e de mestre. Então, fazendo escorregar os artísticos dedos sobre as
reluzentes cordas, despertou-a da inércia. Qual formidável alento, sua
audaciosa e limpa voz tonificou a alma da floresta como só os deuses dos homens
saberiam inspirar. Depois mais e mais.
Porém, se a alma de
todas as coisas ali regozijava, incluindo o dócil animal que sacudia a cabeça
em assentimento, Aldegundes, ao contrário, de alma ainda alheia à magia dos
sons, caminhava ensimesmado em seu egocêntrico e descolorido mundo, tão
descolorido como era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertório não se
incomodava, acostumara-se com almas assim em suas andanças e retornou a viola
às costas, passando a assobiar e a murmurar trechos e variações de seu grande
repertório.
Não muito haviam
caminhado o bufão pediu para descansar. Sertório, ainda assobiando, freou
Firmamento, sentando-se de lado na cela, olhando em derredor, logo apeando.
Aldegundes encostou-se num tronco de árvore e se esticou, gemendo. Como o tempo
passasse, Sertório chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer.
Aldegundes não quis obedecer e Sertório pulou para a cela tomando posição, e
tocou Firmamento. O bufão, vendo que ficava para trás, levantou-se de imediato
e os alcançou poucos passos adiante. Mal tinham vencido curta distância,
Aldegundes pediu novamente para descansar. Sertório mais uma vez aquiesceu,
pulando novamente de Firmamento, desta feita andando pelos arredores à cata de
frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois, insistia novamente para
prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, o bufão resolveu
pedir-lhe para montar, ao que Sertório concordando com malicioso sorriso apeou
estendendo-lhe as mãos, ajudando-o ao dorso do animal. Bem adiante, era
Aldegundes quem apeava e caminhava. Depois, era a vez de Sertório apear e
Aldegundes cavalgava. Faziam isto por que o animal levava alguns quilos em
moedas de ouro, dois grossos cobertores e um saco com objetos de seu dono.
Neste rodízio de posições,
alcançaram um casebre de pessoas conhecidas de Sertório, num local retirado da
vegetação mais densa, rodeado por um riacho deslizante sobre muitas pedras. Era
o lar de um lenhador que ali vivia com a mulher e dois filhos. Sendo próximo do
meio dia, os homens retornavam do trabalho numa carroça rude, carregando
troncos, e se encontraram todos ao portão. Após saudações habituais e alegres,
aguardaram pela apresentação de Aldegundes, ao qual olhavam admirados. Sertório
apresentou-o como um amigo. Eles o saudaram e receberam em troca grunhidos do
truão.
Convidados a
entrar, encontraram a mulher alegre e jovial a recebê-los. Sentaram-se todos à
mesa e o esquisito Aldegundes nada falou, preocupado tão somente em comer. Ao final,
Sertório quis pagar pela refeição, mas o dono da casa negou-se a receber,
dizendo que o ouro ganho nas duas vezes em que ele aqui estivera fora
suficiente para propiciar-lhe adquirir uma parelha de animais novos. Os animais
desempenhavam a contento o trabalho, ajudando-os obter pequenos lucros. Pela
primeira vez Aldegundes pareceu escutar os assuntos, levantando a cabeça e
olhando inquisitivamente para Sertório. Mas a mulher quis ouvir Sertório
cantar. Ele, satisfeito, puxou a viola e a atendeu, inebriando os corações generosos
daquela gente humilde.
Prosseguiram viagem
por dez dias. Sertório tinha muitos amigos e os ia visitando. Nessas paradas,
aproveitavam para alimentar-se, às vezes dormir sob seus tetos. Ao final,
Sertório pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, não aceitavam o pagamento;
outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram também pobreza
ou miséria. Sertório, condoído, ofertava-lhes um pouco do ouro para
amenizar-lhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribuídas – guardado o devido
cuidado para não lhes mostrar de onde as retirava e quanto possuía – pois os
sacos passavam por bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes
contorcia-se e se sentia apunhalar. Por causa destas extravagâncias do
trovador, o bufão tornara-se mais ainda taciturno, quase assustador com sua
carranca a quantos o viam.
Ao cabo do décimo dia,
o ouro de um dos sacos houvera acabado. Aldegundes parecia ter envelhecido cem
anos. O relacionamento entre ambos tornava-se cada vez mais difícil, como de
dois estranhos, entendendo-se quase que exclusivamente através de gestos.
Durante as noites, enquanto dormiam em confortáveis quartos, em paióis ou sob
árvores, ajudados às vezes contra o frio por fogueiras, Sertório acordava
ouvindo os reclamos e gritos do companheiro em seguidos pesadelos. No décimo
quinto dia de jornada, esgotados, avistaram o mosteiro. Isso animou o trovador
por que afinal descansaria, mas Aldegundes não se alterou, olhando o prédio
simplesmente.
Em lá chegando,
Sertório foi recebido com calor e levado para um dos aposentos de hóspedes, o
mesmo sucedendo a Aldegundes. Após o banho e vestido com um hábito emprestado,
Sertório compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade, contou-lhes somente
parte da história, pois se detinha à promessa do silêncio feita ao bufão e
ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassem
melhor. Antes, porém, pediu-lhes licença, derramando o ouro no chão, ficando a
remexê-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma
moeda.
- Eis o terceiro
deles. A cada terço do ouro encontrei dentre as moedas um dobrão. Estranho
valor de um país longínquo, logo não pertencente ao nosso padrão, por isso
retirei-os. Fico com eles até saber ao certo o que fazer.
Ambos permaneceram por uma semana no
mosteiro. Sertório descansava e meditava. Aldegundes, calado, trancafiara-se no
seu quarto, abrindo somente a porta para receber alimentos. Findo este período,
Sertório veio-lhe ao encontro, propondo-lhe:
- Creio termos descansado o suficiente, uma vez que aqui estás
de passagem. É natural não nos determos em demasia, por isso partimos amanhã
bem cedo, caso não penses em tomar-te de maiores delongas. O bufão olhou-o e
piscou, não fazendo qualquer gesto ou comentário e Sertório saiu.
O sol se levantava.
Sertório pôs-se de pé procurando por Firmamento e o encilhando. Os monges
realizaram seus rituais do alvorecer e foram à mesa para o desjejum, vindo
Sertório acompanhar-lhes. Mal o tinham acabado, receberam a notícia por um dos
irmãos responsável em servir ao enclausurado hóspede, que ele não abrira a
porta de seu quarto para colher a bandeja com o alimento e nem respondera aos
seguidos chamados. Preocupados, foram até lá e o chamaram insistentemente, não
obtendo qualquer resposta, permanecendo a porta trancada. Mediante as
circunstâncias, não encontrando outra solução senão lançar mão de uma segunda
chave, eles abriram a porta. A surpresa foi total! Viram a cama vazia e ele
sentado a um canto, encolhido e sisudo, olhando-os sem nada dizer.
Passada a surpresa
e como Aldegundes permanecesse imóvel, Sertório solicitou a todos que se
retirassem a fim de conversar a sós com ele. Tão logo isto se deu, o trovador
fez-lhe perguntas, tentando saber o motivo daquela atitude, mas nada conseguiu.
Convencido de que nada obteria do bufão, informou-o estar pronto e preparado
para partir, aguardando-o no pátio. Decorrido algum tempo, o bufão surgiu no
local combinado, emburrado, ainda alheio a todas as coisas parando ao lado de
Firmamento. Sertório despediu-se dos monges e estendeu-lhe a mão convidando-o a
montar, mas ele recusou a oferta com um gesto rude. Sertório então pulou para a
cela e tocou Firmamento. Aldegundes o seguiu.
O sol parecia mais
radiante, o ar mais leve e o céu mais limpo. Eles retomaram a estrada e
desapareceram da vista dos religiosos acompanhando a sinuosidade de um pequeno
monte coberto de capim rasteiro. Sertório começou a assobiar, fingindo não se
importar com o estado de espírito do companheiro. De vez em quando o olhava
disfarçadamente, mas como ele em nada se modificasse, calou o solfejo e falou:
- Estranhas e
misteriosas são as coisas criadas por Deus. O homem, outra de Suas criações,
vive perdido no meio delas. Pode ele, realmente, atribuir valores sem
conveniências se tem o péssimo hábito de só olhar de fora, valorizando pelo
momento ou o desprezando? Quando possui vangloria-se e exalta-se. Quando não
possui luta absurdamente até a morte para possuir. Quão mísero e insignificante
é o preço de sua vida ao cambiar-se com os bens terrenos, passando a valer
menos do que tudo. Cruel, eis no que se transforma! Insano, eis o que é! A alma
do mundo grita e se agita e ele é agitado e impelido para ela num roldão
impressionante. Nada vê senão ao seu próprio ser: insignificante e perecível,
tão perecível como são todas as coisas da natureza visual. Como chamá-lo para
que refreie o seu ímpeto de ambicionar e destruir; de que maneira acordá-lo de
seu insensato sonho, para não dizer tenebroso pesadelo? O sofrimento, eis a
ponte abençoada que se levanta. Esta perene dor que nunca morre e ao devido
tempo vem devorar ilusões e destruir ao próprio homem! – ele mirou-o novamente
e o bufão lançou-lhe olhar assustado. Vendo que fazia algum progresso, continuou - Olha
tu, o teu próprio mundo. Que fizeste em cento e cinquenta anos? Se hoje
morresses e em seguida renascesses em idênticas circunstâncias, certamente
repetirias os mesmos erros, tornando-te, de novo, no mesmo infeliz homem. Vês
como os valores atribuídos ao mundo misturam-se de tal forma em tua consciência
que não os consegue isolar e a eles te subjugas? E o que representam tais
valores senão efêmeros conceitos mundanos, modelados pela alma do mundo,
voluptuosa e cega? Mas consegues de fato entender o que te digo?
O bufão não
respondeu, continuando em sua marcha. Logo, porém, sentou-se para descansar.
Sertório pulou da cela e também se sentou; trouxe a viola ao peito e
dedilhou-a. Findo o descanso, ele montou e esperou um breve instante.
Aldegundes, teimosamente, como outrora, saiu a caminhar, ignorando a tentativa
de auxílio do trovador. Tendo eles vencido um bom trecho, Aldegundes levantou o
rosto e surpreendentemente falou:
- Falas do homem e
de sua ambição. Dizes que ele luta com insanidade até a morte para possuir, mas
o que seria dele se não lutasse? Como viveria sem o ouro que a tudo compra?
- Eis o erro
fundamental, senhor Aldegundes. Ao crer-se que o ouro a tudo compra,
corrompe-se a alma. A luta na Terra é salutar e necessária. As dificuldades e
obstáculos são as lições a aprender. Porém, ao procurar-se por atalhos e neles
perder-se, desmerece-se.
- Balelas! Vê meu
exemplo: durante um tempo segui o curso natural da vida, e o que obtive? Fui um
miserável e insignificante bufão, mandado e pisoteado por um rei e uma princesa
cruéis. Depois, resolvi lutar pela minha independência e fiz-me rico, podendo
ter tudo e sentir o verdadeiro sabor da vida. Mas por um infortunado encontro
fiz-te meu confidente, confiando-te o meu segredo. Que ganhei com isso? Foi-se
o meu ouro por tua intromissão e sou mais infeliz e pobre do que nunca!
- Não te queixes,
homem injusto e insensato se te libertei da maldição do ouro, já esqueceste?
Viveste acorrentado ao ouro por mais de um século. Não o possuís mais, é
verdade, todavia é igual verdade que ele também não mais te possui e agora
andas livre e sem temores. O bufão, dando-se conta desta realidade franziu a
testa e seus olhos apertaram-se instantaneamente. Ficou assim por um breve
instante, mas logo recomeçou olhando para adiante:
- Nem tudo está
fácil, resta ainda minha aliança. Possuo a alma presa aos malignos poderes!
- Desejas ainda
deles libertar-te ou pretendes desistir?
- Naturalmente que
desejo libertar-me. Por que haveria de querer ficar escravizado?
- Então é chegado o
momento de procurarmos pela virtude! O bufão estancou, olhando-o com a
fisionomia alterada, arregalando os olhos e apontando-lhe o dedo:
- Que dizes? Não a
procuraste até hoje? Enganaste-me o tempo todo?
Sertório puxou as rédeas e parou Firmamento, apoiando a mão sobre o
salpicado lombo do animal, virando-se para responder:
- Não te enganei,
senhor Aldegundes. Disse-te seguidamente que andava a espera que o momento
eleito acontecesse. Cumpri primeiro de livrar-te de um cativeiro, agora
cuidamos ambos do outro.
Mas o
inconformismo e a incoerência eram o estado normal do bufão e ele se deixou
cair, levando as mãos à cabeça, ficando a lamentar:
- Meu ouro, tudo
perdido inutilmente! Nada mais me resta, sou o mais infeliz dos homens sobre a
Terra!
Tendo
prosseguido viagem, chegaram a uma taberna, entrando para obter algum alimento.
Já àquela hora havia muitos homens espalhados pelas mesas, comendo e bebendo
vinho. Ao verem o esquisito bufão, começaram a rir de sua aparência e a
exigir-lhe que fizesse algo para diverti-los. Irritado, ele soltou imprecações
e atirou-lhes canecas de vinho, promovendo um tumulto. Os homens, vendo nele um
insignificante ser para tomar-se de tal energia, avançaram para agarrá-lo,
porém Sertório gritou e falou:
- Senhores, por
favor, não estragueis o apetite e não sofrais indigestões. O alimento é sagrado
como sagrado é o direito de todo o homem de se recusar ao que julga injusto.
Não useis da força contra o próximo nem da violência. Antes, ouvi o que a dócil
alma da arte tem para dizer-vos e agraciar-vos.
E trazendo a viola
ao peito, começou a cantar. Os homens se acalmaram, retornando aos seus lugares,
ouvindo atentos.
- Bravos! –
aplaudiu o taberneiro, satisfeito por não ter tido prejuízos - canta e toca
mais!
- Por dois pratos
de comida e duas canecas de vinho, cantarei e tocarei outras duas vezes,
aceita?
- Aceito! –
respondeu prontamente o homem. E assim fez Sertório, sendo aplaudido e elogiado
ao final.
Deixando a taberna
prosseguiram. Aldegundes já se alternava com Sertório ao dorso de Firmamento,
entretanto permanecia taciturno. Logo chegaram aos limites de uma cidade e nela
penetraram. Algo acontecia no lugar; as pessoas corriam pelas ruas, ansiosas.
- Um circo, chegou
um circo! – gritavam.
- Um circo? Quero
vê-lo! – exclamou Aldegundes entusiasmado, como que tocado por um raio, pulando
do lombo de Firmamento, largando a companhia de ambos e saindo a correr
desajeitado e manquitolando. Sertório, aturdido com aquela inesperada atitude
do frio bufão, seguiu-o, vendo-o ao longe a dobrar esquinas e perder-se por
vielas. Chegando a uma praça a agitação era geral. As atrações desfilavam
diante do público e os artistas faziam mil e uma estripulias. Uns, sem sair do
lugar, mostravam empolgante exibicionismo, cercando-se de curiosos
espectadores. Sertório procurou Aldegundes e a custo conseguiu vê-lo próximo de
uma equipe de saltimbancos. O bufão, na primeira linha de assistentes, prestava
inusitada atenção ao malabarismo que realizavam. Depois, Sertório viu-o
percorrer a todos os cantos da praça, apreciando tudo com real satisfação.
Súbito, todas as
atenções se voltaram para o centro da praça e os movimentos em derredor
estancaram. O povo ali se reuniu; o dono do circo informou que a maior atração
do mundo iria agora se apresentar: “Agnes, A Salamandra.” De novo Aldegundes
enfiou-se por entre o povo, posicionando-se na frente. Houve o afastar de uma
cortina e o aparecimento de uma urna de madeira, feito um caixão comprido e
retangular, apoiado em pé sobre um ressalto de terra batida, a guisa de uma
plataforma.
O apresentador e
dono do circo, em voz solene, disse que Agnes havia chegado naquele mesmo dia e
aquela seria sua primeira exibição. Ninguém a tinha visto atuar e, como todos,
estava também curioso. O que ela faria? Encerrar-se-ia na urna e mandaria que
ateassem fogo, dali saindo somente quando a madeira já estivesse consumida!
Feito o pedido para
que abrissem alas, Agnes surgiu de dentro de uma carroça sob uma capa vermelha
que se arrastava pelo chão, feito um manto. Vinha apertando com uma das mãos o
capuz que lhe encobria a cabeça e parcialmente o rosto, deixando unicamente os
olhos e parte da testa pouco descobertos. As pessoas abriram espaço; ela
percorreu o pequeno trecho subindo o ressalto e parou diante da urna que ficava
em pé. O povo se assustou com a estranha figura, se afastando uns passos. Dois
homens abriram a urna e ela entrou. Eles começaram a juntar palha seca de um
dos fardos ali deixados e junto à Agnes passaram a encher os espaços internos
da urna. Os demais fardos foram empilharam à volta. O silêncio era absoluto, ouvindo-se
tão somente os ruídos provocados pelos homens que realizavam a tarefa. Estando
tudo preparado, eles acenderam uma tocha e atearam fogo na palha de dentro da
urna, fechando-a, e em seguida nos fardos, se retirando.
O fogo ardeu,
cresceu e rapidamente se espalhou, produzindo grande fogueira, derramando calor
sobre todos, fazendo-os recuar novamente. Quando o fogo já havia consumido os
fardos e com incontida ânsia crepitava sobre a madeira, as paredes da urna
começaram a se descolar e soltar-se, caindo por terra. Estupefato, o povo ia
vendo-a imóvel, envolta e tomada pelas chamas. Uma espécie de terror os
invadiu; seria possível sobreviver a isto?
Passados instantes,
o fogo que a envolvia completamente veio declinando e já conseguiam ver parte
de seu rosto. De repente, como que obedecendo a uma voz de comando, as chamas
se extinguiram todas e Agnes reapareceu por inteiro, nua e exuberante, intacta
e de braços abertos. As mães, em ato reflexo, horrorizadas, procuravam tapar os
olhos dos filhos. Os homens não sabiam ao certo se admiravam sua nudez ou
aquela incrível performance – inacreditável aos olhos humanos! Alheia a soma de
reações da plateia, ela passou a girar de braços abertos, sorrindo plenamente
ao ato vitorioso, dançando como uma deusa ígnea!
Ao vê-la assim,
magnífica, e notar a incomparável e agressiva beleza de seu rosto, beleza
jamais suspeitada numa mulher, e verificar que seus fartos cabelos pousados
sobre os ombros eram da cor da própria chama, Aldegundes saboreou incrível
entusiasmo, sentindo no peito uma espontânea emoção e delicioso calor no
coração. Assim exaltado, ele mal conseguiu levar a mão ao cinto, lembrando-se
de que trazia a mecha ali escondida, puxando-a para diante do rosto a fim de
compará-la aos cabelos da maravilhosa Agnes. Ofegante, atestou que a mecha era
idêntica em cor, e isto a valorizou extraordinariamente.
O povo nem ainda se
recuperara do impacto da estonteante e desnuda aparição, quando lhe lançaram
sobre o corpo um cobertor, envolvendo-a rapidamente, retirando-a de cena para
dentro da carroça de onde saíra. Muitos homens protestaram, mas o dono do circo
elevou de novo a voz, dizendo-se tão surpreso e extasiado quanto todos dali.
Solicitou que jogassem suas moedas nos sacos de coletas que as moças saiam a
carregar, a fim de que pudessem fazer face às suas necessidades e conseguir
proporcionar-lhes novos e fantásticos espetáculos. Em meio ao rebuliço, algumas
mulheres se reuniram e começaram a protestar contra a impudica e imoral apresentação,
ao passo que outro grupo, só de homens, contrapunha-se aplaudindo e gritando
calorosamente o nome de Agnes, abafando os protestos femininos.
Aldegundes, surdo a
tudo, permanecia estático com a mecha apertada à mão, mirando a carroça onde
Agnes se escondera. Seu rosto revelava um ar hipnótico e os olhos se apertavam
em olhar distendido. Sem dúvida, jamais vira tamanho espetáculo, jamais sentira
algo assim! Sertório, puxando Firmamento, aproximou-se do bufão, porém ele não
os viu, continuando a fitar a carroça com o olhar distante.
- Vamo-nos, senhor
Aldegundes, precisamos encontrar um lugar onde ficarmos. – falou Sertório
parando ao seu lado.
- Ficarei aqui! –
respondeu Aldegundes, secamente, sem olhá-lo.
- Aqui, onde?
- Aqui, quero vê-la mais vezes!
- Agnes?
Ele somente meneou
afirmativamente a cabeça e caminhou até a proximidade da carroça onde ela se
encontrava. Sertório ficou a observá-lo. O bufão chamou, vendo a cortina
abrir-se e o rosto do dono do circo aparecer na porta. Pediu-lhe então para
ficar e trabalhar. Faria qualquer serviço em troca de comida e dormida, nada
mais. Mediante tal compensatória oferta e como estivessem sempre a precisar de
braços para o trabalho, ele o aceitou. Ademais, sendo anão se confundiria com
os especialistas do circo, podendo até figurar em espetáculos. Como
Aldegundes fosse aceito, Sertório aventurou-se a também pedir
pousada e comida; em troca cantaria e alegraria aos artistas.
- Já temos músicos,
senhor, não precisamos mais!
- Devem ser bons,
não os desmereço, mas o que trago comigo é algo que eles certamente não
possuem!
- O que, senhor?
- A alma da arte.
Ela vive em mim é meu alimento. Mas aprecio compartilhar dela com todos que a
amam!
O homem olhou-o
incrédulo. Estava acostumado com falsos virtuosos. Sertório, vendo-lhe a
desconfiança, tomou a viola e começou a cantar. Ao término, muitos o rodeavam e
o dono do circo tinha pulado da carroça, pedindo-lhe:
- Canta mais, senhor...?
- Sertório, vosso
amigo e das artes.
- Sertório?! –
surpreenderam-se muitos.
- Sertório, o
trovador, raios, porque não me disseste logo?
- Não acreditarias,
caro senhor, foi preferível antes cantar. Então, me aceitas?
- Por todo o tempo que desejares. Mas
canta, canta outra! E Sertório, satisfeito, cantou e inebriou-os. E cantou mais
após o jantar, até que todos se recolhessem para dormir.
Entusiasmado com
Sertório e com o sucesso da apresentação de Agnes, ele ofereceu ao trovador
lugar em sua carroça, que era a mais espaçosa e confortável, porém Sertório
recusou polidamente, preferindo ir fazer companhia a Aldegundes noutro lado da
praça. Assim, sobre dois colchões velhos dormiram debaixo de uma carroça mais
modesta. Manhã seguinte, Aldegundes foi chamado para os trabalhos e Sertório,
mais tarde, solicitado pelos músicos e artistas a conversar. O bufão ia e vinha
carregando coisas, servindo de auxiliar nas tarefas, obedecendo sem o menor
rancor. Sertório cantava e ensaiava os músicos com novas canções ou
corrigia-lhes aqui e ensinava-lhes acolá.
Veio o almoço e
depois a hora de novo espetáculo. Eles haviam construído outra urna sobre o
ressalto de terra providenciando que, tão logo o fogo se extinguisse, lançassem
novamente um cobertor sobre Agnes a fim de que ela não expusesse sua nudez,
como já acontecido. Agnes entraria na urna e lançaria fora a capa fornecida
pelo dono do circo tomada emprestado de uma equilibrista. Tendo-a largado, eles
a guardariam por que não podiam, a cada espetáculo, dar-lhe uma nova, embora
aquela que se queimara, ela a tivesse trazido.
Após a primeira e
fulgurante apresentação Agnes se fechara em sua dependência e dali não saíra
para nada, nem para comer. Ninguém a vira mais e representava um mistério.
Chegara de repente; apresentara-se ao dono do circo com aquela capa vermelha e
nenhuma bagagem, gesticulando e se oferecendo para fazer esse sensacional
número. Não pronunciara uma só palavra, somente sibilos, mas conseguira
convencê-lo de que realizaria o que propunha em gestos. Entusiasmado com aquela
extraordinária mulher, ele a aceitou dando imediatas ordens para que lhe
arranjassem todas as coisas, oferecendo-lhe uma dependência em sua carroça, na
divisão do fundo. Sentiu por ela enorme atração e quando perguntada sobre seu
nome ela se abaixou e escreveu com o dedo: Agnes e ele alcunhou-a, “A
Salamandra”, julgando-a, todavia, muda.
Preocupado com sua
ausência, o dono do circo chamou-a, perguntando-lhe se estava bem e se faria hoje
nova apresentação. Ela enfiou-se pela fresta da porta confirmando com aceno
positivo de cabeça, abrindo largo e maravilhoso sorriso.
Neste dia, Aldegundes
não se acalmara. Realizava suas tarefas buscando passar sempre próximo à carroça
na intenção de vê-la. Não dormira aquela noite. A imagem espetacular de Agnes,
seu rosto, seu sorriso, tudo dela impregnara-lhe a memória. Ele esquecia-se e
aos percalços, ao ouro perdido, à maldição, à infelicidade que por toda a vida
permeara-o. Agnes passara a viver nele obsessivamente, a sugá-lo, ao mesmo
tempo a alimentá-lo. Desejava vê-la novamente, depois mais, a vida inteira,
nada lhe importando a partir de agora – somente Agnes!
A notícia sobre
Agnes havia corrido pela cidade como um relâmpago, reforçada pela propaganda
que os componentes do circo haviam feito neste dia para mais um incrível
espetáculo. À hora anunciada a praça superlotava. Para a garantia da
arrecadação, o dono do circo mandara coletar as moedas antecipadamente, não
obtendo aquilo que esperava, insistindo, porém, que, ao final, todos se
sentiriam na obrigação de pagar mais, tal a grandiosidade das apresentações.
Porém, o lançador de facas, o equilibrista, o levantador de pesos, o lutador
que desafiava qualquer adversário, os saltimbancos; nenhum destes, nem outro
qualquer, prendiam a atenção dos espectadores. O público quase inteiro se
postava impacientemente diante da nova urna de madeira parcialmente invisível,
encoberta por lances de um véu. Havia ruídos, nervosismo e agitação. Hoje não
se viam crianças, nem mocinhas, mas homens de muitas categorias e profissões,
religiosos e mulheres. Como as atrações ali exibidas não causassem mesmo maior
interesse, e vozes já exigissem a presença de Agnes, o dono do circo resolveu
atender. Não seria bom aumentar o nervosismo de um público assim ansioso.
Anunciada sua
presença, exagerada ao máximo na dramaticidade, ele mandou que retirassem o
suporte que prendia os véus, deixando a urna completamente à vista e a chamou.
O povo de novo se abriu em
alas. Para a surpresa do pessoal do circo, Agnes surgiu
vestida com outra capa vermelha, exatamente igual a que o fogo consumira-lhe no
dia anterior, com o capuz enfiado na cabeça, entrando na urna sem despi-la. De
onde a teria obtido?
O povo silenciara.
Os homens do circo realizaram aqueles mesmos movimentos preparatórios,
aumentando propositalmente a expectativa do público, incendiando a urna por
dentro, fechando-a, e depois ateando fogo nos fardos. O fogo se espalhou e cresceu.
Em pouco tempo as partes da urna caíram por terra, ardentes e enfraquecidas.
Agnes então apareceu inteiramente encoberta pelas chamas, a exemplo de uma
fogueira. Os auxiliares, cobertor à mão, tomaram posição e se prepararam para
envolvê-la tão logo o fogo se apagasse. Mas o fogo não se apagou. Em
inacreditável sequência, as labaredas escorregaram e vieram se constituir numa
roda viva em derredor de seu corpo – um anel ígneo que mantinha todos à
distância – deixando-a novamente nua e de braços abertos, a girar majestática.
Diante da visão,
muitos se abismaram, porém, muitos, principalmente religiosos e fanáticos,
horrorizaram-se, gritando e exigindo que terminassem com aquilo. Mas Agnes,
como antes, ignorava-os. Vestida somente de irônico e deslumbrante sorriso ela
girava e se mostrava. Como os protestos, desta feita, constituíssem maior
volume que os aplausos e um tumulto ameaçasse acontecer, o dono do circo
pediu-lhe para que saísse de cena. Ela, entretanto, ignorou-o e a todos,
permanecendo a girar e a sorrir, protegida pelo anel de fogo.
Gritos de bruxa e feiticeira saíram de muitas
bocas. O dono do circo, apavorado com a possibilidade de drásticas consequências,
ordenou que lançassem baldes de água sobre o fogo, mas tudo inútil, o anel ardia
e permanecia. Um dos homens ensopou-se e se preparou para pular dentro do anel
a fim de arrancá-la de cena de qualquer maneira. Ela, vendo-o, fez movimento
com o braço e o anel fechou-se de cima abaixo, voltando a envolvê-la em
crepitante fogueira. Este mágico ato fez que recuassem apavorados, inclusive os
que a aplaudiam! Foi uma confusão geral, mas de novo o fogo arrefeceu e voltou
a se constituir no anel, e ela a mostrar-se como antes, bela e imponente, a
girar e a sorrir.
O povo agora a temia.
Todos concordavam que ela não podia ser humana. E se resolvesse se voltar
contra eles? Era perigosa, precisavam fazer algo! Quanto mais confabulavam,
mais iam se afastando, temendo e rezando, pedindo aos céus por uma miraculosa
intervenção. O pessoal do circo, igualmente confuso e amedrontado, também se
afastara, a nada mais se aventurando. O dono do circo, aproveitando-se de que
não reparavam nele, correra e se escondera, temendo represálias. Sertório, de
longe, montado em Firmamento, contemplava os acontecimentos com
impassibilidade, aguardando o resultado.
Mas dentre todos,
havia um só que não arredara pé e fiel espectador permanecia admirando-a. Com a
mecha novamente à mão, Aldegundes apertava-a fortemente: estático, extasiado,
ardente, não perdendo um só de seus movimentos! Ali estava Agnes, a mulher mais
extraordinária que jamais vira em toda a sua secular vida. Ela o fervilhava,
agitava-o; rolava-lhe torrentes de lavas pelo sangue; produzia-lhe indizível
torvelinho de paixão! E ele ali estava: destemido, reverente, apaixonado,
ansioso e apelante! Ele a via e a desejava; ela pulsava-lhe, explodia-lhe! Era
o peito, o coração, o sangue, as mãos, era sua alma – toda Agnes!
E Agnes prosseguia
na sua dança do fogo, provocando novas erupções em Aldegundes, ativando
fortíssima voltagem em todo o seu ser, alastrando-se dentro de um mundo outrora
frio e vazio, inflamando-o em cada fímbria que possuía. A claridade das
serpenteantes chamas movia-se inconstantemente em seu rosto. Os prisioneiros olhos
só refletiam aquela arrebatante imagem! Súbito, ele foi acordado e tirado
daquela soma de revoluteantes sensações, ouvindo os gritos da multidão, gritos
mais fortes. Eram brados que se misturavam no ar, indo do pasmo ao terror, da
satisfação ao medo; coisas que se produziam nas impressionáveis almas de quem há
bem pouco havia-na aplaudido entusiasticamente. O volume dos protestos ia
ganhando corpo: a massa agitava-se ameaçadoramente, embora não ousasse ainda
uma ação declarada.
Tendo se conscientizado
do perigo, ele se tomou de tremor, que nada tinha a ver com a sucessão de
abrasantes desejos que dele se haviam apossado traduzidos em incandescente
paixão, e apelou-lhe quase sussurrante, procurando conter-se na excitação;
- Por favor, eles
vão maltratar-te!
Ao escutar estas
palavras, ela baixou o rosto encarando-o. Ante o ardente olhar, Aldegundes
sentiu o mundo rodopiar dentro de sua cabeça e chamuscantes faíscas
salpicar-lhe o corpo, cegando-o para tudo mais, produzindo um manto de trevas em derredor. Agora só
ela existia. Ela era-lhe a vida, o alento, o mundo, a deusa de todas as coisas
que se resumiam na sua única soberana e soberba presença. Essa ilusória
sensação, porém, logo se-diluiu como se diluiu o anel de fogo que a circundava,
expondo-a ao perigo e à sanha da multidão.
Aldegundes,
ressurgindo do torpor, teve um lampejo de lúcido heroísmo e pulou para o
ressalto de terra, segurando-a pela mão. Encorajada pela extinção do fogo, a
turba urrou e avançou, vindo os homens à frente sem saber ao certo se agiam
somente desejosos de agarrá-la e senti-la ou com outro objetivo ainda não
definido. Vendo a carroça como alternativa mais próxima ele para lá se dirigiu,
puxando-a com dificuldade, perdendo terreno para os perseguidores. Entretanto,
Sertório surgiu à sua retaguarda, empinando Firmamento com estardalhaço,
assustando-os e gritando para que se acalmassem. Isto valeu a ambos os
fugitivos ganhar preciosos segundos e subir na boleia da carroça. Aldegundes
imediatamente chicoteou os cavalos, entrando pela primeira rua que encontrou.
Mas o povo, insatisfeito, correu atrás e os perseguiu até próximo dos limites
da cidade, ali parando.
Os mais exaltados –
a maioria fanáticos religiosos – começou a esbravejar e a insuflar a massa,
apontando Agnes como perniciosa e endemoninhada, perigosa em todos os sentidos.
Precisava ser destruída, bem como seu acompanhante que com ela se pactuava e
contraíra o mal. Assim, insuflados ao extremo, mais aterrorizados do que
justiceiros, eles se organizaram. Como aqueles desatinados gritos e balbúrdia
despertassem a atenção da polícia, ela se detivera a acompanhar o povo.
Deixando-se envolver pela tempestuosa atmosfera emocional, os soldados
tornaram-se também solidários com a opinião geral, e partiram a cavalo pela
estrada a fim de alcançá-los.
Neste comenos, a
gente do circo, às pressas, arrumou suas coisas e fugiu pelo outro lado da
cidade, dando graças que o povo os tinha esquecido, mas certo de que logo
retornaria. Com efeito, o povo voltou furioso para a praça a fim de arrasar o
circo. Necessitava extravasar a ira destrutiva que dele se apossara, mas não o
encontrou, ficando desapontada.
Por outro lado,
Aldegundes tomara a estrada principal e se distanciara, perdendo-se depois
entre o arvoredo de pequeno e marginal bosque. Julgando-se a salvo parou numa
clareira, debaixo de uma trepadeira folhada que se emaranhava nos galhos das
árvores, e pulou da carroça. Movendo-se rapidamente pela periferia da clareira,
deu-se conta de estar a sós com Agnes. Tomado então de um arremedo de
escrúpulos, buscou e achou um lençol dentre a roupa dobrada a um canto da
carroça, correndo para Agnes, que já se achava no chão, cobrindo-a. Suas mãos
tremiam; Agnes o perturbava com aquele olhar e enigmático sorriso. Quis
dizer-lhe algo, mas não encontrou palavras. Era-lhe difícil justificar sua
desassombrada e heroica atitude, o porquê de sua paixão – se estas coisas se
explicam – se tanto não conseguia entender, se a confusão em si se instalara, e
calou-se. Entretanto, lembrou-se da mecha e buscou-a entre o cinto e a roupa,
não a encontrando. Preocupado por este fato, correu opresso para a boleia da
carroça, procurando-a avidamente, remexendo pelo banco e debaixo dos panos dos
assentos, agachando-se e achando-a, ali, no chão, trazendo-a triunfante,
estendendo-a para próximo dos cabelos dela. Era idêntica, sem qualquer dúvida,
como se lhe pertencesse, parecendo ter saído de sua farta e anelada cabeleira.
Mas Agnes sequer a
olhou, continuando calada e sorridente, e Aldegundes baixou os olhos, tímido,
embaraçado, submisso diante da estonteante figura alva e rubra. Esta atitude,
porém, não durou mais do que alguns segundos por que logo a via girar, lançando
fora o lençol branco, abrindo de novo os braços a solfejar. Era algo forte,
penetrante e agudo, um indescritível sibilo que o deixava atordoado. Ela girou
mais rápido e sibilou mais forte. Aldegundes não conseguia manter os olhos
abertos: fechava-os e abria-os. Via-se agora girando com ela, embora, estranhamente,
permanecesse parado. Ela continuou a girar e ele percebeu que acontecia alguma
coisa inacreditável: via-se e sentia-se em dois lugares ao mesmo tempo, em
torno dela e aqui parado! Mas o Aldegundes que lá estava: etéreo, volátil,
sensível a tudo, era um desdobramento deste daqui, embora fosse ele próprio,
como um instrumento que recebe a ação e repercute na caixa.
O sibilante canto
já o envolvia amplamente, prendendo-o, tolhendo-o, produzindo-lhe inebriante
sensação. Fazia-o circunscrever uma órbita qual um planeta em torno de seu sol.
Quando aquilo atingia a um auge e Agnes rodopiava com incrível velocidade, ela
subitamente estancou, causando à Aldegundes fortíssima atração, indo sua
projeção chocar-se violentamente contra o belo corpo de Agnes, mergulhando em
seu peito. Neste exato instante, ele gritou levando a mão ao coração
sentindo-se rasgar e queimar, caindo ambos ao chão.
Por quanto tempo
permaneceu desfalecido, não conseguiu saber. Foi dar-se conta de assim ter
estado no momento em que abriu os olhos, sentando-se assustado, vendo-a ali, em
pé, a olhá-lo e a sorrir-lhe. Levantando-se meio atordoado, não teve tempo de
pensar em nada, porque escutou ruídos à esquerda. Era Sertório que vinha
cavalgando por entre arbustos e árvores. Mas Aldegundes não chegou a vê-lo.
Atrás de si, escutou ruídos mais fortes, virando-se. Eram os seus
perseguidores, que os vendo, gritaram furiosos feito um bando selvagem e
investiram. Um deles, soldado da polícia, mais arrojado, preso à forte sugestão
dos fanáticos, portando somente a idéia do extermínio, apontou sua lança para
Agnes arremessando-a. Aldegundes, percebendo aquilo segundos antes, pulou
adiante, recebendo a lança no peito, sendo trespassado. Não satisfeitos, eles
continuaram a avançar com a mesma fúria e outro deles apontou nova lança contra
Agnes. Ela, porém, levantou um braço produzindo uma cortina de fogo em
derredor, assustando os cavalos que frearam, jogando-os a quase todos ao chão.
Eles se espalharam
e o fogo cresceu mais, lançando-lhes línguas que aterrorizavam. Acreditando
mais do que nunca que se tratava de uma bruxa possuidora de forças demoníacas,
impossíveis de serem vencidas, correram espavoridos, gritando por seus
protetores no céu, abandonando o lugar.
Logo o fogo
decresceu e sumiu. Sertório que a tudo observara, aproximou-se, indo atender
Aldegundes. Porém, era tarde. O bufão não mais vivia naquele pequeno e disforme
corpo. Seu pálido rosto mostrava-se ausente e os olhos estavam fechados. As
mãos seguravam a mortífera lança; o sangue escorria-lhe abundantemente pelas
vestes, indo manchar a verde relva. Sertório olhou em torno ouvindo um
sibilante som e seus olhos puderam perceber uma forma clara e ardente que se
esboçava e se afirmava. Atrás dela e em redor, formas negras pretendiam
abraçar, mas não ousavam, sendo rechaçadas. Em novo seguimento, ele viu as
chamas conformarem-se em Agnes, mas não se sustentavam, transformavam-se ao
mesmo tempo em serpente que se enrolava em torno da alma de Aldegundes, produzindo
um tipo de energia que mantinha à distância as formas negras.
Aldegundes, neste
espaço etéreo, permanecia inerte com olhos fechados, qual seu corpo físico na
Terra. Sem dúvida, seria levado para regiões mais altas, a salvo das incursões
das trevas, a fim de ser tratado e mais tarde conduzido ao Tribunal dos Justos
onde escutaria sua sentença. Sertório, com as poucas ferramentas encontradas na
carroça, cavou pequena cova ali mesmo, enterrando o corpo do bufão,
envolvendo-o no mesmo lençol com que cobrira Agnes. Em seguida, fez uma cruz de
paus e cipós, fincou-a no chão, e orou por ele. Depois subiu na carroça,
conduzindo-a até a primeira estalagem fora da cidade, deixando-a lá com uma
gorjeta e a recomendação de que avisaria o pessoal do circo onde reavê-la e aos
dois cavalos.
De volta ao
mosteiro, relatou-lhes toda a história desde o início por que não precisaria
mais ater-se à promessa feita ao bufão. Finalizando, estendeu ao principal uma
pequena algibeira de couro, pronunciando em voz quase grave as seguintes
palavras, que soaram como uma profecia:
- Eis aqui os três
dobrões que separei do ouro amaldiçoado. São como três irmãos estrangeiros que
viveram as experiências do mal; três flores do pântano que realizaram a
alquimia da terra; três criações que havendo mergulhado e conhecido, virão
levantar-se sob a plenitude da vida e sobre o ontem. São o amanhã que se
desvelará para os homens de pouco viver. Estranho, não? Três peças, três moedas
que cruzarão destinos!
Anos mais tarde,
dois monges partiriam para terras distantes cruzando o mar, com a missão de
fundar outro mosteiro, levando entre seus objetos pessoais a algibeira de couro
e os três dobrões.
Seguir o Link para a Parte 1
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