sexta-feira, 8 de maio de 2020

A Maldição e a Virtude - Apenas um Conto de Magia, Parte 2 [R]

      Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo, concluindo, afinal, que se a maldição havia recaído sobre mim de nada adiantaria ir agora tomar posse das terras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e ao ouro. Sendo senhor, como evitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo administrar e viajar a negócios? Além do mais, por supina infelicidade, não poderia dispor de uma única moeda daquele tesouro enquanto a maldição existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscar uma solução para anular a maldição do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim, enfiei-me cada vez mais no interior deste bosque até chegar a esse lugar, achando esta casa abandonada, escondendo o ouro e aqui permanecendo.

       Todavia, os dias iam se sucedendo, os meses, os anos e nada acontecia. Por vezes chegava a pensar que tal maldição em verdade não existiria ou se existisse já teria perdido a sua força. Porém, ante este pensamento, logo ouvia no ar a gargalhada do bruxo, sentindo meu braço a doer horrivelmente no exato lugar onde eu fora picado pela serpente. Assustado, corria para o esconderijo onde deixara o baú e abria-o, certificando-me com alívio que o ouro ali estava, intacto e todo meu!

       Mais anos se passaram, dezenas. O tédio veio possuir-me, fazendo-me sofrer indescritivelmente, crendo-me um morto vivo, semi sepultado, o que de fato sou. Em várias oportunidades pensei em dar cabo de mim, pôr um final ao que me parecia inexistência, mas ao lembrar-me que minha alma seria aprisionada pelos malignos, recuava temeroso. Ademais, a idéia de apartar-me do ouro violentava-me, não desejando isso de forma alguma. Somente viajantes extraviados em suas rotas costumam ainda passar por aqui, encontrando-me em casa ou pelas redondezas. Aproveitando esses momentos, converso um pouco tentando saber notícias do mundo, qual época estamos atravessando, qual rei nos dirige, se há guerras e outras coisas mais. Para afastá-los de mim conto-lhes que sou um amaldiçoado, confirmando a lenda que inventei de um mal contagioso. Dessa maneira, aqui escondido, venho mantendo o ouro a salvo de especuladores, não obstante ter-me tornado conhecido no reino inteiro.

       Mas os incríveis acontecimentos de minha vida não terminam por aqui, caro trovador. Há outro fato somado à maldição que passo a relatar-te: certa noite, deprimido pela solidão, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem sons, senti-me sufocado, verdadeiramente desesperado, não aguentando mais essa existência. Tentei chorar, mas não pude. Aliás, em toda a minha secular vida, jamais consegui derramar uma única lágrima. Dizem que o choro faz extravasar dores, por vezes acalmar e até consolar, mas nunca pude provar dessa forma de desabafo. Impossibilitado desse recurso, cada vez mais estrangulado pelas sensações que me tomavam, atingia ao auge de um desespero nunca antes experimentado. Uma onda de raiva veio em seguida possuir-me e comecei a quebrar coisas, a golpear a mesa e socar paredes, somente parando ao sentir-me esgotado e com o corpo dolorido. Então, caído ao chão, opresso e imóvel, comecei novamente a relembrar as palavras do bruxo, tentando encontrar nelas uma pista que me possibilitasse fazer uma tentativa de libertação, mas nada encontrei. Como estava, permaneci, e dormi profundamente, tendo um sonho estranho e marcante. No sonho, vi outra serpente em chamas com olhos a arderem de maneira indescritível. Tremi e temi-a, pois já havia provado a malignidade da outra. Produzindo movimentos inconstantes, em pé, dançando em círculos, ela começou a falar-me:
  
       Infeliz mortal. O peso da maldição que contraíste torna-te desesperado, não? Queres a liberdade, mas não a podes ter. Temes a morte porque tua alma é prisioneira das trevas. Apesar de tudo, não te arrependeste ainda de teus atos passados; teu coração permanece endurecido e congelado. És duplamente infeliz: prisioneiro de tua imensa ambição e presa fácil e indefesa dos poderes das trevas. Não obstante, ainda que sejas uma ovelha negra e desgarrada, resta para ti uma esperança. Somente uma chama ardente poderá aquecer teu gélido coração, fazendo timbrar uma nota que desconheces e se anela a uma virtude humana que não a possuís. Porém, tu não tens como atear no coração tal chama benigna. És vazio e inútil e, por consequência, jazes inerte como a própria morte. Por isso vou auxiliar-te, cumprindo ordens dos poderes superiores que a tudo velam. Deixar-te-ei algo, que um dia, não sei quando, te será valioso e útil, saiba guardá-lo!”

       Dizendo isso, a serpente lançou-se sobre o meu braço e picou-me no exato local onde eu trazia a marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dor horrível que me queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisa vi com incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa só forma, uma mecha de cabelos vermelhos, que de tão viva quase reluzia sob a fraca luz da vela ao chão, salva por milagre de minha fúria destrutiva. Repugnado, puxei-a e a atirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado, aproximei-me pegando-a e a lançando fora através da janela. Dia seguinte, via-a ali. Essa visão causou-me a tempestuosa lembrança da aparição. Na verdade, eu não a esquecera completamente, porque mal dormira de tanto me doerem os ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo, peguei-a novamente, saindo para dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante, disposto a não dar ouvidos a mais nada, julgando que estivera fora da razão.

       Aquele dia se passou sem outras surpresas. Porém, na manhã seguinte, ao abrir a janela, quase caí para trás, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre o peitoril. Inconformado, segurei-a e parti imediatamente para o lugar onde a enterrara, encontrando o buraco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para outra de minhas surpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei outro buraco mais profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela novamente voltou, dessa feita no bico de um pássaro vermelho que a jogou sobre mim, à mesa. Acreditando, então, que teria algo de mágico, aliado ao fato de que surgira de meu próprio sangue, resolvi guardá-la.

       Daquele dia para cá, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presença aqui, senhor Sertório, dentro dessa casa, à minha mesa, coisa jamais acontecida com outra pessoa em mais de um século. Aliás, ultimamente tenho encontrado pessoas com maior constância. Não obstante temerem-me quase todas e algumas sair a correr tresloucadamente, isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo não mais se encontra tão afastado assim das trilhas e estradas que levam às vilas e cidades; segunda, minha fama de amaldiçoado já é grande demais para que eu permaneça perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum aventureiro mais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. É natural te perguntares como consigo ter roupas, panos e cobertores, utensílios, ou mesmo boas ferramentas após tantos anos de reclusão. Acontece que a despeito de minha fama e do terror que a maldição desperta, existe ainda pessoas apiedadas de minha condição. Assim, um ou outro viajante, a quem exijo o mais absoluto sigilo sobre a localização exata de meu esconderijo, deixando ao acaso sua descoberta pelos passantes, trazem-me essas coisas em troca de agradecimento, julgando-me miserável. É uma ironia, não, senhor Sertório, eu, possuidor de uma fortuna em ouro, não poder pagar por uma camisa, uma calça ou qualquer outro objeto, ficando a receber doações?

       Outra questão deve também ter perambulado em teus pensamentos no decorrer de minha narrativa: como consigo viver nesse fim de mundo? Instinto de sobrevivência, talvez; adaptabilidade às regras da vida natural; sorte ou sortilégio, não sei bem. Ao aqui chegar e apossar-me dessa casa, quase nada em verdade nela existia. Mas ao correr em redor encontrei algumas coisas que me serviriam. Além de frutas, constatei existir abundância de pássaros e coelhos para caçar. Por quase um mês alimentei-me disso, trazendo água de um regato correndo ao largo, pouco distante daqui, mas me enjoando de tudo, sonhando com pão, bolinhos e outras variedades. Ademais, a casa necessitava de reparos e eu não possuía uma única ferramenta.

       Decidido, resolvi um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajar muito, não me importando com esse sacrifício, visto ter de permanecer por muitos anos nesse lugar. Carregando o baú com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por que precisava primeiro descarregá-lo para torná-lo leve levando-o até a carroça, para de novo enchê-lo, parti à noite, fazendo marcas e sinais aonde ia passando a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho sem dificuldade. Na terceira noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendo escondido o baú fora da trilha cobrindo-o com plantas, trabalho este que me fez novamente despender grande dose de energia, visto precisar outra vez descarrega-lo e transportá-lo como antes, parti para a vila. Lá chegando, pude comprar tudo o que precisava na oportunidade, trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho, galinhas, reprodutores, toucinho, pão, fermento, vinho, ferramentas, cobertores, lençóis, pratos, canecas, talheres, etc. Como o ouro que possuísse não bastasse e temeroso de usar do outro, negociei com o medalhão e o cordão tirados do rei, evidentemente não contando a verdade sobre a sua origem, obtendo ainda troco.

       Ao encher a carroça com essas mercadorias, fiz-me alvo da curiosidade geral e temi ser pilhado por ladrões, anunciando então que prosseguiria viagem para a vila vizinha, dormindo a poucas milhas dali, debaixo de árvores. Mal saí, tomei caminho oposto, e já na floresta procurando o máximo possível disfarçar a trilha deixada pelas rodas da carroça, corri para o baú, recolocando-o na carroça, imediatamente partindo na noite. Consegui retornar sem dificuldade por que as marcas por mim deixadas eram visíveis e auxiliaram-me. Com o que trouxera, pude criar, plantar, colher e cozinhar, nunca deixando que se esgotassem. Afinal, tempo para tratar dessas coisas jamais me faltaria. Da casa, cuidei-a da melhor maneira possível, arranjando troncos, fabricando tábuas, amarrando cipós, inventando colas de resinas. Entretanto, como viesse a necessitar de mais coisas, fiz com o tempo mais duas dessas viagens, visitando outras vilas, por que temia ser reconhecido onde estivera antes. Gastei o que me restara do ouro recebido de troco do primeiro comerciante e negociei com as joias que tirara do rei e com o cordão e medalhão tomados também do tesoureiro. Nas duas últimas viagens procedi como da primeira vez, levando comigo o baú, escondendo-o e depois o trazendo de volta. Mais tarde, como o animal que possuísse viesse a morrer, não pude realizar mais viagens e aqui me encerrei definitivamente. Essa é a minha história, senhor Sertório, incrível, porém verdadeira, e prisioneiro estou da maldição, a espera que um dia, como me prometeu a serpente, possa encontrar a virtude que me libertará.

       Antes que Sertório dissesse qualquer coisa, o bufão enfiou dois dedos entre o cinto e a cintura puxando a mecha de cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertório olhou-a com curiosidade, sem tocá-la, voltando a encará-lo, induzindo e perguntando:
       - Supondo que tua história seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos se tenham materializado de teu próprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, que esperas de mim para auxiliar-te?

       O bufão apoiou um braço na mesa e arregaçou a manga da camisa.
       - Vês, aqui estão as marcas de que te falei. Num lugar qualquer está o baú com o ouro. Estou cansado, senhor Sertório, realmente muito cansado. Tendo ouvido falar de ti e de teus feitos, julgo que sejas o único homem de quem tenho notícias capaz de ajudar-me. Não saberia como procurar sozinho uma virtude, ou algo fazer para me libertar da maldição.

       Sertório, levando a mão ao queixo ficou pensativo por instantes. Aldegundes olhava-o silenciosamente, piscando com apreensão. Então o visitante falou:
       - Há entre nós, criaturas do mesmo Pai, obrigações e dívidas. Isto se estende para além das fronteiras humanas, atingindo, pois, o reino das almas. Não vejo como auxiliar-te a sair desta longuíssima enrascada em que te meteste, senhor Aldegundes, sem ficares a dever-me pelo serviço, endividando-te também comigo.

       O bufão enrijeceu o tronco e apoiou as mãos nervosamente na beirada da mesa, piscando assustado e desconcertado.
       - Então... não há virtudes em ti e recebes pelo que fazes? – perguntou ainda agitado.
       - Fosse eu um santo a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a mínima paga de meus serviços? Há diversas formas de pagamentos ou compensações, como há serviços e ajudas. Ademais, o virtuosismo não se desmerece por um punhado de moedas de ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por ser distinto e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufão, proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de teu ouro maldito!
       - Meu ouro? – levantou-se o homenzinho - jamais, nunca!
       - Que tens então a oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um sorriso de malícia. Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.

  - Vês, nada tens de valor para cambiar a não ser o ouro, que dizes?  

       Aldegundes voltou a sentar-se, carregando no cenho expressão de profunda contrariedade. De repente, seus olhos cintilaram e o rosto encheu-se com ar de satisfação:
       - Lembras-te das palavras do bruxo? Disse-me ele que eu não gastaria uma só moeda que não me viesse trazer prejuízo ou desgosto. Como, pois, dar-te o ouro?
       - Entendas tu, senhor Aldegundes, de que não o estarás negociando. Pagarás por uma virtude que te libertará dessa mesma maldição. Que tens assim a perder se desperdiçaste uma vida inteira por causa desse mesmo ouro? O bufão carregou de novo o cenho, levantando-se e andando de um lado para outro a murmurar:
       - Meu ouro, meu ouro!

       Como o homenzinho não se decidisse, Sertório pediu-lhe que lhe mostrasse onde dormiria. Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o até um quarto vazio e apontou para o chão de terra.
       - Não tenho outra acomodação a oferecer-te, trovador, mas arranjarei alguma palha seca para teu melhor conforto! Sertório saiu e retornou trazendo ao ombro seu cobertor de lã, falando ao bufão:
       - Aguardo por tua resposta pela manhã. Dono de meu destino, daqui parto pelos caminhos do mundo sob o sol abençoado, e livre como o ar e o vento. 

       Aldegundes saiu resmungando levando a vela, deixando Sertório mergulhado na escuridão. Pela madrugada, Sertório foi acordado pelo bufão. Sob a oscilante chama seu rosto mostrava intensa preocupação, denotando que ainda não dormira.
       - Como pretendes encontrar a virtude que me falta? – perguntou sem delongas.  Sertório sentou-se provocando ruído nas palhas e redarguiu com seriedade:
       - Já decidiste pagar-me?
       - Primeiro conte-me como irás ajudar-me?
       - Primeiro a promessa do pagamento! O bufão levantou-se soltando imprecações.
     
        Sertório riu e deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andava de um lado a outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de cócoras, com impaciência:
       - Está bem, prometo pagar-te do ouro!
       - Quanto?
       - Dez moedas!
       - Nada feito.
       - Vinte!
       - Hum, hum! – balançou negativamente a cabeça.
       - Ofereço-te então cinquenta, nem uma a mais!
       - Quero um terço do que existe no baú!
       - Um terço? É loucura, é roubo! Não farei negócio contigo! E saiu furioso, deixando o quarto a escurecer como antes.

       De madrugada, Sertório levantou-se e andou pé ante pé. Ao chegar à cozinha nada havia visto ou percebido. A escuridão era intensa e ele tateou pela parede, encontrando uma porta. Cuidadosamente abriu-a. Ao sair, percebeu uma luz tremeluzente no fundo do quintal, junto à base do barranco. Aproximou-se, guardando cautelosa distância, e pode ver com certa nitidez que o bufão retirava do baú muitas moedas, enchendo um caixote rude. Havia um buraco cavado no barranco e montes de terra espalhados. Sertório sorriu e voltou ao quarto, deitando-se novamente e dormindo.

       Ao levantar, pouco depois do dia raiar, foi recebido pelo bufão à mesa, com o desjejum pronto. Eram frutas e um caldo quente e Sertório se alimentou. Houve proposital silêncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada também dizia. Após o repasto, Sertório encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e água a Firmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o bufão ali o aguardava, Sertório trouxe o chapéu ao peito, dobrou-se levemente e disse:
       - Muito te agradeço pela hospitalidade, senhor Aldegundes. Não tenho ouro e momentos existem em que moedas pouco valem diante do que nos proporcionam. Assim mesmo pagar-te-ia se o tivesse. Impossibilitado, porém, ofereço-te o que de mais precioso possuo na humilde intenção de recompensar-te.

       E trazendo a viola aos braços, cantou e recitou uma trova – admiráveis momentos de inspirada arte. Mas, como antes, o bufão não se comoveu com a preciosa oferenda do artista, permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertório conduziu Firmamento em direção ao portão e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes já o alcançava colocando-se ao seu lado, falando nervosamente:
       - Setenta moedas! Sertório meneou negativamente a cabeça, continuando a caminhar. Aldegundes o alcançou fora da propriedade e ao seu lado novamente propôs-lhe:
       - Cem!  Sertório não parou e nem respondeu, ele fez novo lance:
       - Uma última oferta: cento e vinte moedas! Sertório, silencioso, voltou-se para Firmamento e fez menção de montar.
       - Está bem, fazes-me chantagem, um terço do que tenho no baú. Sertório estancou o movimento e Aldegundes olhou-o interrogativamente.
       - Um terço do teu ouro, incluindo aquele que retiraste do baú esta madrugada.
       - Raios, então me surpreendeste? – reclamou furioso.
       - Pela última vez, senhor bufão, aceita minha proposta, ou parto imediatamente?
       - Maldição, não tenho alternativa. Dize-me, então, como irás encontrá-la?
       - Primeiramente indo e vindo por aí, sozinho, até que o momento eleito aconteça.
       - Somente isso? – interrogou-o com ar atarantado.
       - Por enquanto, somente. O bufão grunhiu e gesticulou, andando impacientemente.
       - Diabos, demônios, como posso confiar em ti homem? Julgava-te uma coisa, agora vejo-te totalmente diferente! – súbito, com a mesma cara enfarruscada, voltou-se agitadamente para Sertório – E que garantias me dás, trovador, de que irás retornar com a virtude, ou com os meios de eu consegui-la?
       - Retornarei. Basta dar-te minha palavra. Se houver achado a virtude que te falta, ela virá comigo! Furioso, o bufão entrou, deixando Sertório a sorrir largamente.

       Sertório partiu levando um terço do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu dois sacos velhos que o bufão possuía de ganhos dos passantes, reforçados por fora com fibras obtidas nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, de cócoras, cotovelos nos joelhos, braços encolhidos e mãos semi fechadas, mordia-as e praguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas, ouvindo-lhe o canto cada vez mais fraco.

       O tempo passou, três meses. Certo dia, Aldegundes corre à porta para atender a um chamado. Ao ver que se tratava de Sertório quase teve um desmaio. Recuperando-se, no entanto, mandou-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento, chegou-se com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria. Aldegundes, ao contrário, vestia-se de característica carranca. Sertório, parando a três passos da porta, retirou o chapéu da cabeça e o cumprimentou com habitual vênia, dobrando-se ligeiramente:
       - Boa tarde, senhor Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi.
       - Trazendo-me o que foste buscar, espero!
       - Trazendo-te notícias do mundo, em princípio.
       - Que me interessam as notícias do mundo neste momento. Quero somente aquilo que necessito e pelo que te paguei! – respondeu em tom agressivo.
       - É certo, senhor Aldegundes, porém são as notícias que te trago que necessitas. Mas não me convidas a entrar como outrora e não me ofereces alimento? 

       Aldegundes mirou-o desconfiado e grunhiu. Como Sertório nada mais dissesse e aguardasse, ele deu um passo atrás, fazendo aceno afirmativo de cabeça. Após a refeição, em que o silêncio novamente imperou, Sertório resolveu falar, olhando o ansioso e feio rosto do bufão.
       - Pois bem, senhor Aldegundes, lamento dizer-te que nada encontrei que possa servir-te.
       - Nada encontraste? Que fizeste do meu ouro?
       - Distribui-o aos necessitados.
       -Distribuíste-o aos necessitados? – o truão enfureceu-se, levantando-se repentinamente, batendo com os punhos na mesa –  O meu ouro? Diabos, que homem és tu, onde está tua honra, tua palavra?
       - Diante de ti, homenzinho esquisito! Não te prometi que algo traria, mas sim, que andaria até o momento eleito acontecer. Porém, o quase indecifrável destino não quis ainda mostrar-te o estreito caminho da salvação e eis-me aqui, cumprindo minha promessa de voltar.
       - Meu ouro, fui enganado! – ele sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, cotovelos à mesa, lamentando.
       - Não lamentes o destino de teu amaldiçoado ouro, ó avaro! Ao invés, deves lamentar tua insipiência e cupidez. És ainda cego e tolo, após tantos anos já vividos.
       - Sou um homem amaldiçoado, já te disse! – resmungou com choraminga sem alterar a postura.
       - És pior do que isto: és uma alma trancafiada em tua própria criação. Apesar de todas as coisas acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerraste voluntariamente, assim permanecendo.
       - Que faço agora, como vou livrar-me da maldição? O bruxo estava certo, começo a ter prejuízos e desgostos!
       - Cala-te, boca insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca a esperança que te resta!
       - Viverei eternamente aqui, estou prisioneiro das forças satânicas, que fazer?  O bufão não se acalmava, chorando a sua sorte.
       - Dá-me mais um terço do teu ouro que continuarei na busca do que precisas – falou Sertório com naturalidade.
       - Meu ouro? Estás louco? Fico pobre! – gritou, quase pulando tal o espanto, olhando-o com fisionomia alterada.
       - Então, creio nada mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda!
       - Ladrão eis o que és! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. Não te darei nem mais uma moeda, é meu o ouro!
       - Serei eu de fato o ladrão? De onde te veio o ouro e de que maneira?
       - Arrisquei minha vida para ganhá-lo!
       - Para roubá-lo, hipócrita! Ele não te pertence por direito, nem uma só moeda. Tu és o ladrão, não eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se, todavia, preferes viver encerrado e amaldiçoado em tua horrível teia, não te lamentes. Tudo tem um preço. Se não queres pagar por tua liberdade, fazes a pior escolha. Vou-me embora, adeus, senhor bufão!
       - Espera! Já dei-te um terço do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade. Tenho o direito de exigi-la!
       - A quem? O bufão calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto, insistindo:
       - Fizeste um preço, assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora!
       - O ouro que me deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude está ainda escondida. Dá-me mais ouro, outro terço, ou terás perdido uma coisa e outra.
       - Ladino, espertalhão! Não te darei! 
       - Então, adeus, homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te!

       E Sertório levantou-se, saindo. Aldegundes apoiou de novo a cabeça com as mãos ficando a resmungar e a dizer imprecações. Pouco depois, ao levantar o rosto dando-se conta de que se encontrava novamente sozinho, desesperou-se, saindo porta afora, gritando feito louco:
       - Senhor Sertório, senhor Sertório!

       Sertório, andando pelo quintal, puxava Firmamento. Aldegundes, transtornando, parou adiante, implorando de mãos juntas:
       - Não se vá, por favor!
       - Nada de querelas ou barganhas. Dá-me imediatamente outro terço do ouro ou não te darei atenção!
       - Dou-te, mas, por favor, ajuda-me!

       Sertório partiu e, como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufão que nada trazia e de novo distribuíra o ouro aos necessitados, ele sentou-se ali mesmo, urrando feito animal ferido. Não conseguindo verter lágrimas, puxava os cabelos e rolava pelo chão. Sertório assistia a tudo impassivelmente, ao término do desespero houve um silêncio sepulcral. Finalmente, o bufão falou com voz desanimada e arrastada:
       - Voltaste não só para dar-me conta de teus atos, mas também para levar-me o último terço do meu ouro.
       - Exatamente, senhor Aldegundes! – confirmou simplesmente Sertório.
       - E estás absolutamente convicto de que te darei?
       - Não, totalmente, porém com muita resistência, creio ainda.
       - Pois te enganas, astuto trovador. Desta feita não mais resistirei. Porém, não irás só; iremos ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu.
       - Bravos, senhor Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir duas exigências: primeira, irás onde eu for; segunda, o ouro estará sob minha custódia, fazendo eu próprio uso dele sempre que necessário.
       - Então o ouro não mais me pertencerá?
       - Nenhuma só moeda, se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufão estava realmente desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeça concordando. Tal foram essa facilidade e submissão que Sertório de novo surpreendeu-se. Pouco depois se recolhiam.

       A noite parecera produzir somente maus eflúvios na alma de Aldegundes. Pela manhã acordara irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia.

       Partiram. Sertório cavalgava tranquilamente, levando como antes o ouro sobre Firmamento em dois sacos iguais. Em certo trecho do caminho já houvera convidado o companheiro de viagem para que montasse, trocando posições, tendo recebido resposta negativa acompanhada de um grunhido. Em dado instante, notando os fragmentos dos raios solares a se intrometer dentre os espremidos espaços arbóreos e a espalhar figuras múltiplas pelo chão, Sertório, tocado em sua sensibilidade, trouxe a viola adiante, afogando-a de encontro ao peito e afagando-a com mãos carinhosas de pai e de mestre. Então, fazendo escorregar os artísticos dedos sobre as reluzentes cordas, despertou-a da inércia. Qual formidável alento, sua audaciosa e limpa voz tonificou a alma da floresta como só os deuses dos homens saberiam inspirar. Depois mais e mais.

       Porém, se a alma de todas as coisas ali regozijava, incluindo o dócil animal que sacudia a cabeça em assentimento, Aldegundes, ao contrário, de alma ainda alheia à magia dos sons, caminhava ensimesmado em seu egocêntrico e descolorido mundo, tão descolorido como era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertório não se incomodava, acostumara-se com almas assim em suas andanças e retornou a viola às costas, passando a assobiar e a murmurar trechos e variações de seu grande repertório.

       Não muito haviam caminhado o bufão pediu para descansar. Sertório, ainda assobiando, freou Firmamento, sentando-se de lado na cela, olhando em derredor, logo apeando. Aldegundes encostou-se num tronco de árvore e se esticou, gemendo. Como o tempo passasse, Sertório chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer. Aldegundes não quis obedecer e Sertório pulou para a cela tomando posição, e tocou Firmamento. O bufão, vendo que ficava para trás, levantou-se de imediato e os alcançou poucos passos adiante. Mal tinham vencido curta distância, Aldegundes pediu novamente para descansar. Sertório mais uma vez aquiesceu, pulando novamente de Firmamento, desta feita andando pelos arredores à cata de frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois, insistia novamente para prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, o bufão resolveu pedir-lhe para montar, ao que Sertório concordando com malicioso sorriso apeou estendendo-lhe as mãos, ajudando-o ao dorso do animal. Bem adiante, era Aldegundes quem apeava e caminhava. Depois, era a vez de Sertório apear e Aldegundes cavalgava. Faziam isto por que o animal levava alguns quilos em moedas de ouro, dois grossos cobertores e um saco com objetos de seu dono.

  Neste rodízio de posições, alcançaram um casebre de pessoas conhecidas de Sertório, num local retirado da vegetação mais densa, rodeado por um riacho deslizante sobre muitas pedras. Era o lar de um lenhador que ali vivia com a mulher e dois filhos. Sendo próximo do meio dia, os homens retornavam do trabalho numa carroça rude, carregando troncos, e se encontraram todos ao portão. Após saudações habituais e alegres, aguardaram pela apresentação de Aldegundes, ao qual olhavam admirados. Sertório apresentou-o como um amigo. Eles o saudaram e receberam em troca grunhidos do truão.

       Convidados a entrar, encontraram a mulher alegre e jovial a recebê-los. Sentaram-se todos à mesa e o esquisito Aldegundes nada falou, preocupado tão somente em comer. Ao final, Sertório quis pagar pela refeição, mas o dono da casa negou-se a receber, dizendo que o ouro ganho nas duas vezes em que ele aqui estivera fora suficiente para propiciar-lhe adquirir uma parelha de animais novos. Os animais desempenhavam a contento o trabalho, ajudando-os obter pequenos lucros. Pela primeira vez Aldegundes pareceu escutar os assuntos, levantando a cabeça e olhando inquisitivamente para Sertório. Mas a mulher quis ouvir Sertório cantar. Ele, satisfeito, puxou a viola e a atendeu, inebriando os corações generosos daquela gente humilde.

       Prosseguiram viagem por dez dias. Sertório tinha muitos amigos e os ia visitando. Nessas paradas, aproveitavam para alimentar-se, às vezes dormir sob seus tetos. Ao final, Sertório pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, não aceitavam o pagamento; outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram também pobreza ou miséria. Sertório, condoído, ofertava-lhes um pouco do ouro para amenizar-lhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribuídas – guardado o devido cuidado para não lhes mostrar de onde as retirava e quanto possuía – pois os sacos passavam por bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes contorcia-se e se sentia apunhalar. Por causa destas extravagâncias do trovador, o bufão tornara-se mais ainda taciturno, quase assustador com sua carranca a quantos o viam.

   Ao cabo do décimo dia, o ouro de um dos sacos houvera acabado. Aldegundes parecia ter envelhecido cem anos. O relacionamento entre ambos tornava-se cada vez mais difícil, como de dois estranhos, entendendo-se quase que exclusivamente através de gestos. Durante as noites, enquanto dormiam em confortáveis quartos, em paióis ou sob árvores, ajudados às vezes contra o frio por fogueiras, Sertório acordava ouvindo os reclamos e gritos do companheiro em seguidos pesadelos. No décimo quinto dia de jornada, esgotados, avistaram o mosteiro. Isso animou o trovador por que afinal descansaria, mas Aldegundes não se alterou, olhando o prédio simplesmente.

       Em lá chegando, Sertório foi recebido com calor e levado para um dos aposentos de hóspedes, o mesmo sucedendo a Aldegundes. Após o banho e vestido com um hábito emprestado, Sertório compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade, contou-lhes somente parte da história, pois se detinha à promessa do silêncio feita ao bufão e ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassem melhor. Antes, porém, pediu-lhes licença, derramando o ouro no chão, ficando a remexê-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma moeda.
       - Eis o terceiro deles. A cada terço do ouro encontrei dentre as moedas um dobrão. Estranho valor de um país longínquo, logo não pertencente ao nosso padrão, por isso retirei-os. Fico com eles até saber ao certo o que fazer.

       Ambos permaneceram por uma semana no mosteiro. Sertório descansava e meditava. Aldegundes, calado, trancafiara-se no seu quarto, abrindo somente a porta para receber alimentos. Findo este período, Sertório veio-lhe ao encontro, propondo-lhe:
- Creio termos descansado o suficiente, uma vez que aqui estás de passagem. É natural não nos determos em demasia, por isso partimos amanhã bem cedo, caso não penses em tomar-te de maiores delongas. O bufão olhou-o e piscou, não fazendo qualquer gesto ou comentário e Sertório saiu.

       O sol se levantava. Sertório pôs-se de pé procurando por Firmamento e o encilhando. Os monges realizaram seus rituais do alvorecer e foram à mesa para o desjejum, vindo Sertório acompanhar-lhes. Mal o tinham acabado, receberam a notícia por um dos irmãos responsável em servir ao enclausurado hóspede, que ele não abrira a porta de seu quarto para colher a bandeja com o alimento e nem respondera aos seguidos chamados. Preocupados, foram até lá e o chamaram insistentemente, não obtendo qualquer resposta, permanecendo a porta trancada. Mediante as circunstâncias, não encontrando outra solução senão lançar mão de uma segunda chave, eles abriram a porta. A surpresa foi total! Viram a cama vazia e ele sentado a um canto, encolhido e sisudo, olhando-os sem nada dizer.

       Passada a surpresa e como Aldegundes permanecesse imóvel, Sertório solicitou a todos que se retirassem a fim de conversar a sós com ele. Tão logo isto se deu, o trovador fez-lhe perguntas, tentando saber o motivo daquela atitude, mas nada conseguiu. Convencido de que nada obteria do bufão, informou-o estar pronto e preparado para partir, aguardando-o no pátio. Decorrido algum tempo, o bufão surgiu no local combinado, emburrado, ainda alheio a todas as coisas parando ao lado de Firmamento. Sertório despediu-se dos monges e estendeu-lhe a mão convidando-o a montar, mas ele recusou a oferta com um gesto rude. Sertório então pulou para a cela e tocou Firmamento. Aldegundes o seguiu.

       O sol parecia mais radiante, o ar mais leve e o céu mais limpo. Eles retomaram a estrada e desapareceram da vista dos religiosos acompanhando a sinuosidade de um pequeno monte coberto de capim rasteiro. Sertório começou a assobiar, fingindo não se importar com o estado de espírito do companheiro. De vez em quando o olhava disfarçadamente, mas como ele em nada se modificasse, calou o solfejo e falou:
       - Estranhas e misteriosas são as coisas criadas por Deus. O homem, outra de Suas criações, vive perdido no meio delas. Pode ele, realmente, atribuir valores sem conveniências se tem o péssimo hábito de só olhar de fora, valorizando pelo momento ou o desprezando? Quando possui vangloria-se e exalta-se. Quando não possui luta absurdamente até a morte para possuir. Quão mísero e insignificante é o preço de sua vida ao cambiar-se com os bens terrenos, passando a valer menos do que tudo. Cruel, eis no que se transforma! Insano, eis o que é! A alma do mundo grita e se agita e ele é agitado e impelido para ela num roldão impressionante. Nada vê senão ao seu próprio ser: insignificante e perecível, tão perecível como são todas as coisas da natureza visual. Como chamá-lo para que refreie o seu ímpeto de ambicionar e destruir; de que maneira acordá-lo de seu insensato sonho, para não dizer tenebroso pesadelo? O sofrimento, eis a ponte abençoada que se levanta. Esta perene dor que nunca morre e ao devido tempo vem devorar ilusões e destruir ao próprio homem! – ele mirou-o novamente e o bufão lançou-lhe olhar assustado. Vendo que fazia algum progresso, continuou  -  Olha tu, o teu próprio mundo. Que fizeste em cento e cinquenta anos? Se hoje morresses e em seguida renascesses em idênticas circunstâncias, certamente repetirias os mesmos erros, tornando-te, de novo, no mesmo infeliz homem. Vês como os valores atribuídos ao mundo misturam-se de tal forma em tua consciência que não os consegue isolar e a eles te subjugas? E o que representam tais valores senão efêmeros conceitos mundanos, modelados pela alma do mundo, voluptuosa e cega? Mas consegues de fato entender o que te digo?

       O bufão não respondeu, continuando em sua marcha. Logo, porém, sentou-se para descansar. Sertório pulou da cela e também se sentou; trouxe a viola ao peito e dedilhou-a. Findo o descanso, ele montou e esperou um breve instante. Aldegundes, teimosamente, como outrora, saiu a caminhar, ignorando a tentativa de auxílio do trovador. Tendo eles vencido um bom trecho, Aldegundes levantou o rosto e surpreendentemente falou:
       - Falas do homem e de sua ambição. Dizes que ele luta com insanidade até a morte para possuir, mas o que seria dele se não lutasse? Como viveria sem o ouro que a tudo compra?
       - Eis o erro fundamental, senhor Aldegundes. Ao crer-se que o ouro a tudo compra, corrompe-se a alma. A luta na Terra é salutar e necessária. As dificuldades e obstáculos são as lições a aprender. Porém, ao procurar-se por atalhos e neles perder-se, desmerece-se.
       - Balelas! Vê meu exemplo: durante um tempo segui o curso natural da vida, e o que obtive? Fui um miserável e insignificante bufão, mandado e pisoteado por um rei e uma princesa cruéis. Depois, resolvi lutar pela minha independência e fiz-me rico, podendo ter tudo e sentir o verdadeiro sabor da vida. Mas por um infortunado encontro fiz-te meu confidente, confiando-te o meu segredo. Que ganhei com isso? Foi-se o meu ouro por tua intromissão e sou mais infeliz e pobre do que nunca!
       - Não te queixes, homem injusto e insensato se te libertei da maldição do ouro, já esqueceste? Viveste acorrentado ao ouro por mais de um século. Não o possuís mais, é verdade, todavia é igual verdade que ele também não mais te possui e agora andas livre e sem temores. O bufão, dando-se conta desta realidade franziu a testa e seus olhos apertaram-se instantaneamente. Ficou assim por um breve instante, mas logo recomeçou olhando para adiante:
       - Nem tudo está fácil, resta ainda minha aliança. Possuo a alma presa aos malignos poderes!
       - Desejas ainda deles libertar-te ou pretendes desistir?
       - Naturalmente que desejo libertar-me. Por que haveria de querer ficar escravizado?
       - Então é chegado o momento de procurarmos pela virtude! O bufão estancou, olhando-o com a fisionomia alterada, arregalando os olhos e apontando-lhe o dedo:
       - Que dizes? Não a procuraste até hoje? Enganaste-me o tempo todo?  Sertório puxou as rédeas e parou Firmamento, apoiando a mão sobre o salpicado lombo do animal, virando-se para responder:
       - Não te enganei, senhor Aldegundes. Disse-te seguidamente que andava a espera que o momento eleito acontecesse. Cumpri primeiro de livrar-te de um cativeiro, agora cuidamos ambos do outro.

        Mas o inconformismo e a incoerência eram o estado normal do bufão e ele se deixou cair, levando as mãos à cabeça, ficando a lamentar:
       - Meu ouro, tudo perdido inutilmente! Nada mais me resta, sou o mais infeliz dos homens sobre a Terra!

             Tendo prosseguido viagem, chegaram a uma taberna, entrando para obter algum alimento. Já àquela hora havia muitos homens espalhados pelas mesas, comendo e bebendo vinho. Ao verem o esquisito bufão, começaram a rir de sua aparência e a exigir-lhe que fizesse algo para diverti-los. Irritado, ele soltou imprecações e atirou-lhes canecas de vinho, promovendo um tumulto. Os homens, vendo nele um insignificante ser para tomar-se de tal energia, avançaram para agarrá-lo, porém Sertório gritou e falou:
       - Senhores, por favor, não estragueis o apetite e não sofrais indigestões. O alimento é sagrado como sagrado é o direito de todo o homem de se recusar ao que julga injusto. Não useis da força contra o próximo nem da violência. Antes, ouvi o que a dócil alma da arte tem para dizer-vos e agraciar-vos.

       E trazendo a viola ao peito, começou a cantar. Os homens se acalmaram, retornando aos seus lugares, ouvindo atentos.
       - Bravos! – aplaudiu o taberneiro, satisfeito por não ter tido prejuízos - canta e toca mais!
       - Por dois pratos de comida e duas canecas de vinho, cantarei e tocarei outras duas vezes, aceita?
       - Aceito! – respondeu prontamente o homem. E assim fez Sertório, sendo aplaudido e elogiado ao final.

       Deixando a taberna prosseguiram. Aldegundes já se alternava com Sertório ao dorso de Firmamento, entretanto permanecia taciturno. Logo chegaram aos limites de uma cidade e nela penetraram. Algo acontecia no lugar; as pessoas corriam pelas ruas, ansiosas.
       - Um circo, chegou um circo! – gritavam.
       - Um circo? Quero vê-lo! – exclamou Aldegundes entusiasmado, como que tocado por um raio, pulando do lombo de Firmamento, largando a companhia de ambos e saindo a correr desajeitado e manquitolando. Sertório, aturdido com aquela inesperada atitude do frio bufão, seguiu-o, vendo-o ao longe a dobrar esquinas e perder-se por vielas. Chegando a uma praça a agitação era geral. As atrações desfilavam diante do público e os artistas faziam mil e uma estripulias. Uns, sem sair do lugar, mostravam empolgante exibicionismo, cercando-se de curiosos espectadores. Sertório procurou Aldegundes e a custo conseguiu vê-lo próximo de uma equipe de saltimbancos. O bufão, na primeira linha de assistentes, prestava inusitada atenção ao malabarismo que realizavam. Depois, Sertório viu-o percorrer a todos os cantos da praça, apreciando tudo com real satisfação.

       Súbito, todas as atenções se voltaram para o centro da praça e os movimentos em derredor estancaram. O povo ali se reuniu; o dono do circo informou que a maior atração do mundo iria agora se apresentar: “Agnes, A Salamandra.” De novo Aldegundes enfiou-se por entre o povo, posicionando-se na frente. Houve o afastar de uma cortina e o aparecimento de uma urna de madeira, feito um caixão comprido e retangular, apoiado em pé sobre um ressalto de terra batida, a guisa de uma plataforma.

       O apresentador e dono do circo, em voz solene, disse que Agnes havia chegado naquele mesmo dia e aquela seria sua primeira exibição. Ninguém a tinha visto atuar e, como todos, estava também curioso. O que ela faria? Encerrar-se-ia na urna e mandaria que ateassem fogo, dali saindo somente quando a madeira já estivesse consumida!

       Feito o pedido para que abrissem alas, Agnes surgiu de dentro de uma carroça sob uma capa vermelha que se arrastava pelo chão, feito um manto. Vinha apertando com uma das mãos o capuz que lhe encobria a cabeça e parcialmente o rosto, deixando unicamente os olhos e parte da testa pouco descobertos. As pessoas abriram espaço; ela percorreu o pequeno trecho subindo o ressalto e parou diante da urna que ficava em pé. O povo se assustou com a estranha figura, se afastando uns passos. Dois homens abriram a urna e ela entrou. Eles começaram a juntar palha seca de um dos fardos ali deixados e junto à Agnes passaram a encher os espaços internos da urna. Os demais fardos foram empilharam à volta. O silêncio era absoluto, ouvindo-se tão somente os ruídos provocados pelos homens que realizavam a tarefa. Estando tudo preparado, eles acenderam uma tocha e atearam fogo na palha de dentro da urna, fechando-a, e em seguida nos fardos, se retirando.

       O fogo ardeu, cresceu e rapidamente se espalhou, produzindo grande fogueira, derramando calor sobre todos, fazendo-os recuar novamente. Quando o fogo já havia consumido os fardos e com incontida ânsia crepitava sobre a madeira, as paredes da urna começaram a se descolar e soltar-se, caindo por terra. Estupefato, o povo ia vendo-a imóvel, envolta e tomada pelas chamas. Uma espécie de terror os invadiu; seria possível sobreviver a isto?

       Passados instantes, o fogo que a envolvia completamente veio declinando e já conseguiam ver parte de seu rosto. De repente, como que obedecendo a uma voz de comando, as chamas se extinguiram todas e Agnes reapareceu por inteiro, nua e exuberante, intacta e de braços abertos. As mães, em ato reflexo, horrorizadas, procuravam tapar os olhos dos filhos. Os homens não sabiam ao certo se admiravam sua nudez ou aquela incrível performance – inacreditável aos olhos humanos! Alheia a soma de reações da plateia, ela passou a girar de braços abertos, sorrindo plenamente ao ato vitorioso, dançando como uma deusa ígnea!

       Ao vê-la assim, magnífica, e notar a incomparável e agressiva beleza de seu rosto, beleza jamais suspeitada numa mulher, e verificar que seus fartos cabelos pousados sobre os ombros eram da cor da própria chama, Aldegundes saboreou incrível entusiasmo, sentindo no peito uma espontânea emoção e delicioso calor no coração. Assim exaltado, ele mal conseguiu levar a mão ao cinto, lembrando-se de que trazia a mecha ali escondida, puxando-a para diante do rosto a fim de compará-la aos cabelos da maravilhosa Agnes. Ofegante, atestou que a mecha era idêntica em cor, e isto a valorizou extraordinariamente.

       O povo nem ainda se recuperara do impacto da estonteante e desnuda aparição, quando lhe lançaram sobre o corpo um cobertor, envolvendo-a rapidamente, retirando-a de cena para dentro da carroça de onde saíra. Muitos homens protestaram, mas o dono do circo elevou de novo a voz, dizendo-se tão surpreso e extasiado quanto todos dali. Solicitou que jogassem suas moedas nos sacos de coletas que as moças saiam a carregar, a fim de que pudessem fazer face às suas necessidades e conseguir proporcionar-lhes novos e fantásticos espetáculos. Em meio ao rebuliço, algumas mulheres se reuniram e começaram a protestar contra a impudica e imoral apresentação, ao passo que outro grupo, só de homens, contrapunha-se aplaudindo e gritando calorosamente o nome de Agnes, abafando os protestos femininos.

       Aldegundes, surdo a tudo, permanecia estático com a mecha apertada à mão, mirando a carroça onde Agnes se escondera. Seu rosto revelava um ar hipnótico e os olhos se apertavam em olhar distendido. Sem dúvida, jamais vira tamanho espetáculo, jamais sentira algo assim! Sertório, puxando Firmamento, aproximou-se do bufão, porém ele não os viu, continuando a fitar a carroça com o olhar distante.
       - Vamo-nos, senhor Aldegundes, precisamos encontrar um lugar onde ficarmos. – falou Sertório parando ao seu lado.
       - Ficarei aqui! – respondeu Aldegundes, secamente, sem olhá-lo.
       - Aqui, onde?
       - Aqui, quero vê-la mais vezes!
       - Agnes?

       Ele somente meneou afirmativamente a cabeça e caminhou até a proximidade da carroça onde ela se encontrava. Sertório ficou a observá-lo. O bufão chamou, vendo a cortina abrir-se e o rosto do dono do circo aparecer na porta. Pediu-lhe então para ficar e trabalhar. Faria qualquer serviço em troca de comida e dormida, nada mais. Mediante tal compensatória oferta e como estivessem sempre a precisar de braços para o trabalho, ele o aceitou. Ademais, sendo anão se confundiria com os especialistas do circo, podendo até figurar em espetáculos. Como Aldegundes fosse aceito, Sertório aventurou-se a também pedir pousada e comida; em troca cantaria e alegraria aos artistas.
       - Já temos músicos, senhor, não precisamos mais!
       - Devem ser bons, não os desmereço, mas o que trago comigo é algo que eles certamente não possuem!
       - O que, senhor?
       - A alma da arte. Ela vive em mim é meu alimento. Mas aprecio compartilhar dela com todos que a amam!

        O homem olhou-o incrédulo. Estava acostumado com falsos virtuosos. Sertório, vendo-lhe a desconfiança, tomou a viola e começou a cantar. Ao término, muitos o rodeavam e o dono do circo tinha pulado da carroça, pedindo-lhe:
       - Canta mais, senhor...?
       - Sertório, vosso amigo e das artes.
       - Sertório?! – surpreenderam-se muitos.
       - Sertório, o trovador, raios, porque não me disseste logo?
       - Não acreditarias, caro senhor, foi preferível antes cantar. Então, me aceitas?
       - Por todo o tempo que desejares. Mas canta, canta outra! E Sertório, satisfeito, cantou e inebriou-os. E cantou mais após o jantar, até que todos se recolhessem para dormir.

       Entusiasmado com Sertório e com o sucesso da apresentação de Agnes, ele ofereceu ao trovador lugar em sua carroça, que era a mais espaçosa e confortável, porém Sertório recusou polidamente, preferindo ir fazer companhia a Aldegundes noutro lado da praça. Assim, sobre dois colchões velhos dormiram debaixo de uma carroça mais modesta. Manhã seguinte, Aldegundes foi chamado para os trabalhos e Sertório, mais tarde, solicitado pelos músicos e artistas a conversar. O bufão ia e vinha carregando coisas, servindo de auxiliar nas tarefas, obedecendo sem o menor rancor. Sertório cantava e ensaiava os músicos com novas canções ou corrigia-lhes aqui e ensinava-lhes acolá.

       Veio o almoço e depois a hora de novo espetáculo. Eles haviam construído outra urna sobre o ressalto de terra providenciando que, tão logo o fogo se extinguisse, lançassem novamente um cobertor sobre Agnes a fim de que ela não expusesse sua nudez, como já acontecido. Agnes entraria na urna e lançaria fora a capa fornecida pelo dono do circo tomada emprestado de uma equilibrista. Tendo-a largado, eles a guardariam por que não podiam, a cada espetáculo, dar-lhe uma nova, embora aquela que se queimara, ela a tivesse trazido. 

       Após a primeira e fulgurante apresentação Agnes se fechara em sua dependência e dali não saíra para nada, nem para comer. Ninguém a vira mais e representava um mistério. Chegara de repente; apresentara-se ao dono do circo com aquela capa vermelha e nenhuma bagagem, gesticulando e se oferecendo para fazer esse sensacional número. Não pronunciara uma só palavra, somente sibilos, mas conseguira convencê-lo de que realizaria o que propunha em gestos. Entusiasmado com aquela extraordinária mulher, ele a aceitou dando imediatas ordens para que lhe arranjassem todas as coisas, oferecendo-lhe uma dependência em sua carroça, na divisão do fundo. Sentiu por ela enorme atração e quando perguntada sobre seu nome ela se abaixou e escreveu com o dedo: Agnes e ele alcunhou-a, “A Salamandra”, julgando-a, todavia, muda.

       Preocupado com sua ausência, o dono do circo chamou-a, perguntando-lhe se estava bem e se faria hoje nova apresentação. Ela enfiou-se pela fresta da porta confirmando com aceno positivo de cabeça, abrindo largo e maravilhoso sorriso.

  Neste dia, Aldegundes não se acalmara. Realizava suas tarefas buscando passar sempre próximo à carroça na intenção de vê-la. Não dormira aquela noite. A imagem espetacular de Agnes, seu rosto, seu sorriso, tudo dela impregnara-lhe a memória. Ele esquecia-se e aos percalços, ao ouro perdido, à maldição, à infelicidade que por toda a vida permeara-o. Agnes passara a viver nele obsessivamente, a sugá-lo, ao mesmo tempo a alimentá-lo. Desejava vê-la novamente, depois mais, a vida inteira, nada lhe importando a partir de agora – somente Agnes!

       A notícia sobre Agnes havia corrido pela cidade como um relâmpago, reforçada pela propaganda que os componentes do circo haviam feito neste dia para mais um incrível espetáculo. À hora anunciada a praça superlotava. Para a garantia da arrecadação, o dono do circo mandara coletar as moedas antecipadamente, não obtendo aquilo que esperava, insistindo, porém, que, ao final, todos se sentiriam na obrigação de pagar mais, tal a grandiosidade das apresentações. Porém, o lançador de facas, o equilibrista, o levantador de pesos, o lutador que desafiava qualquer adversário, os saltimbancos; nenhum destes, nem outro qualquer, prendiam a atenção dos espectadores. O público quase inteiro se postava impacientemente diante da nova urna de madeira parcialmente invisível, encoberta por lances de um véu. Havia ruídos, nervosismo e agitação. Hoje não se viam crianças, nem mocinhas, mas homens de muitas categorias e profissões, religiosos e mulheres. Como as atrações ali exibidas não causassem mesmo maior interesse, e vozes já exigissem a presença de Agnes, o dono do circo resolveu atender. Não seria bom aumentar o nervosismo de um público assim ansioso.

       Anunciada sua presença, exagerada ao máximo na dramaticidade, ele mandou que retirassem o suporte que prendia os véus, deixando a urna completamente à vista e a chamou. O povo de novo se abriu em alas. Para a surpresa do pessoal do circo, Agnes surgiu vestida com outra capa vermelha, exatamente igual a que o fogo consumira-lhe no dia anterior, com o capuz enfiado na cabeça, entrando na urna sem despi-la. De onde a teria obtido?

       O povo silenciara. Os homens do circo realizaram aqueles mesmos movimentos preparatórios, aumentando propositalmente a expectativa do público, incendiando a urna por dentro, fechando-a, e depois ateando fogo nos fardos. O fogo se espalhou e cresceu. Em pouco tempo as partes da urna caíram por terra, ardentes e enfraquecidas. Agnes então apareceu inteiramente encoberta pelas chamas, a exemplo de uma fogueira. Os auxiliares, cobertor à mão, tomaram posição e se prepararam para envolvê-la tão logo o fogo se apagasse. Mas o fogo não se apagou. Em inacreditável sequência, as labaredas escorregaram e vieram se constituir numa roda viva em derredor de seu corpo – um anel ígneo que mantinha todos à distância – deixando-a novamente nua e de braços abertos, a girar majestática.

       Diante da visão, muitos se abismaram, porém, muitos, principalmente religiosos e fanáticos, horrorizaram-se, gritando e exigindo que terminassem com aquilo. Mas Agnes, como antes, ignorava-os. Vestida somente de irônico e deslumbrante sorriso ela girava e se mostrava. Como os protestos, desta feita, constituíssem maior volume que os aplausos e um tumulto ameaçasse acontecer, o dono do circo pediu-lhe para que saísse de cena. Ela, entretanto, ignorou-o e a todos, permanecendo a girar e a sorrir, protegida pelo anel de fogo.

   Gritos de bruxa e feiticeira saíram de muitas bocas. O dono do circo, apavorado com a possibilidade de drásticas consequências, ordenou que lançassem baldes de água sobre o fogo, mas tudo inútil, o anel ardia e permanecia. Um dos homens ensopou-se e se preparou para pular dentro do anel a fim de arrancá-la de cena de qualquer maneira. Ela, vendo-o, fez movimento com o braço e o anel fechou-se de cima abaixo, voltando a envolvê-la em crepitante fogueira. Este mágico ato fez que recuassem apavorados, inclusive os que a aplaudiam! Foi uma confusão geral, mas de novo o fogo arrefeceu e voltou a se constituir no anel, e ela a mostrar-se como antes, bela e imponente, a girar e a sorrir.

       O povo agora a temia. Todos concordavam que ela não podia ser humana. E se resolvesse se voltar contra eles? Era perigosa, precisavam fazer algo! Quanto mais confabulavam, mais iam se afastando, temendo e rezando, pedindo aos céus por uma miraculosa intervenção. O pessoal do circo, igualmente confuso e amedrontado, também se afastara, a nada mais se aventurando. O dono do circo, aproveitando-se de que não reparavam nele, correra e se escondera, temendo represálias. Sertório, de longe, montado em Firmamento, contemplava os acontecimentos com impassibilidade, aguardando o resultado.

       Mas dentre todos, havia um só que não arredara pé e fiel espectador permanecia admirando-a. Com a mecha novamente à mão, Aldegundes apertava-a fortemente: estático, extasiado, ardente, não perdendo um só de seus movimentos! Ali estava Agnes, a mulher mais extraordinária que jamais vira em toda a sua secular vida. Ela o fervilhava, agitava-o; rolava-lhe torrentes de lavas pelo sangue; produzia-lhe indizível torvelinho de paixão! E ele ali estava: destemido, reverente, apaixonado, ansioso e apelante! Ele a via e a desejava; ela pulsava-lhe, explodia-lhe! Era o peito, o coração, o sangue, as mãos, era sua alma – toda Agnes!

       E Agnes prosseguia na sua dança do fogo, provocando novas erupções em Aldegundes, ativando fortíssima voltagem em todo o seu ser, alastrando-se dentro de um mundo outrora frio e vazio, inflamando-o em cada fímbria que possuía. A claridade das serpenteantes chamas movia-se inconstantemente em seu rosto. Os prisioneiros olhos só refletiam aquela arrebatante imagem! Súbito, ele foi acordado e tirado daquela soma de revoluteantes sensações, ouvindo os gritos da multidão, gritos mais fortes. Eram brados que se misturavam no ar, indo do pasmo ao terror, da satisfação ao medo; coisas que se produziam nas impressionáveis almas de quem há bem pouco havia-na aplaudido entusiasticamente. O volume dos protestos ia ganhando corpo: a massa agitava-se ameaçadoramente, embora não ousasse ainda uma ação declarada.

       Tendo se conscientizado do perigo, ele se tomou de tremor, que nada tinha a ver com a sucessão de abrasantes desejos que dele se haviam apossado traduzidos em incandescente paixão, e apelou-lhe quase sussurrante, procurando conter-se na excitação;
       - Por favor, eles vão maltratar-te!

       Ao escutar estas palavras, ela baixou o rosto encarando-o. Ante o ardente olhar, Aldegundes sentiu o mundo rodopiar dentro de sua cabeça e chamuscantes faíscas salpicar-lhe o corpo, cegando-o para tudo mais, produzindo um manto de trevas em derredor. Agora só ela existia. Ela era-lhe a vida, o alento, o mundo, a deusa de todas as coisas que se resumiam na sua única soberana e soberba presença. Essa ilusória sensação, porém, logo se-diluiu como se diluiu o anel de fogo que a circundava, expondo-a ao perigo e à sanha da multidão.

       Aldegundes, ressurgindo do torpor, teve um lampejo de lúcido heroísmo e pulou para o ressalto de terra, segurando-a pela mão. Encorajada pela extinção do fogo, a turba urrou e avançou, vindo os homens à frente sem saber ao certo se agiam somente desejosos de agarrá-la e senti-la ou com outro objetivo ainda não definido. Vendo a carroça como alternativa mais próxima ele para lá se dirigiu, puxando-a com dificuldade, perdendo terreno para os perseguidores. Entretanto, Sertório surgiu à sua retaguarda, empinando Firmamento com estardalhaço, assustando-os e gritando para que se acalmassem. Isto valeu a ambos os fugitivos ganhar preciosos segundos e subir na boleia da carroça. Aldegundes imediatamente chicoteou os cavalos, entrando pela primeira rua que encontrou. Mas o povo, insatisfeito, correu atrás e os perseguiu até próximo dos limites da cidade, ali parando.

       Os mais exaltados – a maioria fanáticos religiosos – começou a esbravejar e a insuflar a massa, apontando Agnes como perniciosa e endemoninhada, perigosa em todos os sentidos. Precisava ser destruída, bem como seu acompanhante que com ela se pactuava e contraíra o mal. Assim, insuflados ao extremo, mais aterrorizados do que justiceiros, eles se organizaram. Como aqueles desatinados gritos e balbúrdia despertassem a atenção da polícia, ela se detivera a acompanhar o povo. Deixando-se envolver pela tempestuosa atmosfera emocional, os soldados tornaram-se também solidários com a opinião geral, e partiram a cavalo pela estrada a fim de alcançá-los.

       Neste comenos, a gente do circo, às pressas, arrumou suas coisas e fugiu pelo outro lado da cidade, dando graças que o povo os tinha esquecido, mas certo de que logo retornaria. Com efeito, o povo voltou furioso para a praça a fim de arrasar o circo. Necessitava extravasar a ira destrutiva que dele se apossara, mas não o encontrou, ficando desapontada.

       Por outro lado, Aldegundes tomara a estrada principal e se distanciara, perdendo-se depois entre o arvoredo de pequeno e marginal bosque. Julgando-se a salvo parou numa clareira, debaixo de uma trepadeira folhada que se emaranhava nos galhos das árvores, e pulou da carroça. Movendo-se rapidamente pela periferia da clareira, deu-se conta de estar a sós com Agnes. Tomado então de um arremedo de escrúpulos, buscou e achou um lençol dentre a roupa dobrada a um canto da carroça, correndo para Agnes, que já se achava no chão, cobrindo-a. Suas mãos tremiam; Agnes o perturbava com aquele olhar e enigmático sorriso. Quis dizer-lhe algo, mas não encontrou palavras. Era-lhe difícil justificar sua desassombrada e heroica atitude, o porquê de sua paixão – se estas coisas se explicam – se tanto não conseguia entender, se a confusão em si se instalara, e calou-se. Entretanto, lembrou-se da mecha e buscou-a entre o cinto e a roupa, não a encontrando. Preocupado por este fato, correu opresso para a boleia da carroça, procurando-a avidamente, remexendo pelo banco e debaixo dos panos dos assentos, agachando-se e achando-a, ali, no chão, trazendo-a triunfante, estendendo-a para próximo dos cabelos dela. Era idêntica, sem qualquer dúvida, como se lhe pertencesse, parecendo ter saído de sua farta e anelada cabeleira.

       Mas Agnes sequer a olhou, continuando calada e sorridente, e Aldegundes baixou os olhos, tímido, embaraçado, submisso diante da estonteante figura alva e rubra. Esta atitude, porém, não durou mais do que alguns segundos por que logo a via girar, lançando fora o lençol branco, abrindo de novo os braços a solfejar. Era algo forte, penetrante e agudo, um indescritível sibilo que o deixava atordoado. Ela girou mais rápido e sibilou mais forte. Aldegundes não conseguia manter os olhos abertos: fechava-os e abria-os. Via-se agora girando com ela, embora, estranhamente, permanecesse parado. Ela continuou a girar e ele percebeu que acontecia alguma coisa inacreditável: via-se e sentia-se em dois lugares ao mesmo tempo, em torno dela e aqui parado! Mas o Aldegundes que lá estava: etéreo, volátil, sensível a tudo, era um desdobramento deste daqui, embora fosse ele próprio, como um instrumento que recebe a ação e repercute na caixa.

       O sibilante canto já o envolvia amplamente, prendendo-o, tolhendo-o, produzindo-lhe inebriante sensação. Fazia-o circunscrever uma órbita qual um planeta em torno de seu sol. Quando aquilo atingia a um auge e Agnes rodopiava com incrível velocidade, ela subitamente estancou, causando à Aldegundes fortíssima atração, indo sua projeção chocar-se violentamente contra o belo corpo de Agnes, mergulhando em seu peito. Neste exato instante, ele gritou levando a mão ao coração sentindo-se rasgar e queimar, caindo ambos ao chão.

       Por quanto tempo permaneceu desfalecido, não conseguiu saber. Foi dar-se conta de assim ter estado no momento em que abriu os olhos, sentando-se assustado, vendo-a ali, em pé, a olhá-lo e a sorrir-lhe. Levantando-se meio atordoado, não teve tempo de pensar em nada, porque escutou ruídos à esquerda. Era Sertório que vinha cavalgando por entre arbustos e árvores. Mas Aldegundes não chegou a vê-lo. Atrás de si, escutou ruídos mais fortes, virando-se. Eram os seus perseguidores, que os vendo, gritaram furiosos feito um bando selvagem e investiram. Um deles, soldado da polícia, mais arrojado, preso à forte sugestão dos fanáticos, portando somente a idéia do extermínio, apontou sua lança para Agnes arremessando-a. Aldegundes, percebendo aquilo segundos antes, pulou adiante, recebendo a lança no peito, sendo trespassado. Não satisfeitos, eles continuaram a avançar com a mesma fúria e outro deles apontou nova lança contra Agnes. Ela, porém, levantou um braço produzindo uma cortina de fogo em derredor, assustando os cavalos que frearam, jogando-os a quase todos ao chão.

        Eles se espalharam e o fogo cresceu mais, lançando-lhes línguas que aterrorizavam. Acreditando mais do que nunca que se tratava de uma bruxa possuidora de forças demoníacas, impossíveis de serem vencidas, correram espavoridos, gritando por seus protetores no céu, abandonando o lugar.

       Logo o fogo decresceu e sumiu. Sertório que a tudo observara, aproximou-se, indo atender Aldegundes. Porém, era tarde. O bufão não mais vivia naquele pequeno e disforme corpo. Seu pálido rosto mostrava-se ausente e os olhos estavam fechados. As mãos seguravam a mortífera lança; o sangue escorria-lhe abundantemente pelas vestes, indo manchar a verde relva. Sertório olhou em torno ouvindo um sibilante som e seus olhos puderam perceber uma forma clara e ardente que se esboçava e se afirmava. Atrás dela e em redor, formas negras pretendiam abraçar, mas não ousavam, sendo rechaçadas. Em novo seguimento, ele viu as chamas conformarem-se em Agnes, mas não se sustentavam, transformavam-se ao mesmo tempo em serpente que se enrolava em torno da alma de Aldegundes, produzindo um tipo de energia que mantinha à distância as formas negras.

       Aldegundes, neste espaço etéreo, permanecia inerte com olhos fechados, qual seu corpo físico na Terra. Sem dúvida, seria levado para regiões mais altas, a salvo das incursões das trevas, a fim de ser tratado e mais tarde conduzido ao Tribunal dos Justos onde escutaria sua sentença. Sertório, com as poucas ferramentas encontradas na carroça, cavou pequena cova ali mesmo, enterrando o corpo do bufão, envolvendo-o no mesmo lençol com que cobrira Agnes. Em seguida, fez uma cruz de paus e cipós, fincou-a no chão, e orou por ele. Depois subiu na carroça, conduzindo-a até a primeira estalagem fora da cidade, deixando-a lá com uma gorjeta e a recomendação de que avisaria o pessoal do circo onde reavê-la e aos dois cavalos.

       De volta ao mosteiro, relatou-lhes toda a história desde o início por que não precisaria mais ater-se à promessa feita ao bufão. Finalizando, estendeu ao principal uma pequena algibeira de couro, pronunciando em voz quase grave as seguintes palavras, que soaram como uma profecia:
       - Eis aqui os três dobrões que separei do ouro amaldiçoado. São como três irmãos estrangeiros que viveram as experiências do mal; três flores do pântano que realizaram a alquimia da terra; três criações que havendo mergulhado e conhecido, virão levantar-se sob a plenitude da vida e sobre o ontem. São o amanhã que se desvelará para os homens de pouco viver. Estranho, não? Três peças, três moedas que cruzarão destinos!

       Anos mais tarde, dois monges partiriam para terras distantes cruzando o mar, com a missão de fundar outro mosteiro, levando entre seus objetos pessoais a algibeira de couro e os três dobrões.

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