Como entender uma história de vida sem ilusões? As ilusões são inconsistentes, elas existem enquanto as mantemos vivas em nossas almas. A infância é bela por estamos completamente imersos nas ilusões; mais tarde, quando a correnteza do rio da vida nos arrebata, nos prende e nos mantém nela, bebemos seguidos goles de amargores e vertemos lágrimas que nunca realmente nos consolam.
Viver a vida é viver a única realidade neste mundo, que são as ilusões, umas após outras. A principal insistência dos mestres orientais quando discorrem a neófitos são justamente as ilusões. Pois o grande problema é estarmos atrelados diariamente a elas. As ilusões são véus, sim são véus e adversárias que temos de abatê-las hoje e de novo amanhã e depois e depois. São nossas causas que o próprio mundo nos ensinou a cria-las – e amá-las durante muito tempo. E a maior de todas as ilusões é justamente não desejarmos nos separar delas. Mas como vivermos neste mundo sem um dia nos bastarmos completamente a todas as ilusões, e finalmente aguardarmos para ser içados definitivamente para as bordas de um divino?
Caminhemos mais um pouco juntos com Sorman.
“Dois anos decorreram. Sorman se dividia entre o trabalho e a faculdade. A convivência com os colegas era a melhor possível, e participativa. A vida estudantil tinha encantos: as conversas dos jovens, seus sonhos de vida, a força da juventude, todas estas coisas Sorman absorvia e externava, embora sob uma ótica peculiar. Não se furtava de ir a encontros, festas, passeios, namorar com belas moças. Em análise metafísica, aquilo, na verdade, era a projeção de um momento mental e emocional; sendo preciso exercitar qualidades, ampliar o campo de ação daquele eu que em si procurava externar-se. Era inteligência legítima sem contestação, que buscava âncoras no próprio ego para mais claramente poder manifestar-se. E que melhor maneira de se compreender a vida, senão vivendo?”.
(...) “- Boa tarde, jovem, deseja comprar essência? - a velha senhora aproximou-se com sorriso nos lábios rosados, quebrando aquele momento solitário. Sorman, reconhecendo-a apesar dos anos, meneou negativamente a cabeça lamentando intimamente a intromissão - vou ao campo segar milho e trago três belas espigas, porém são sete que tenho para dar a comer. Volto ao campo e tomo mais quatro, mas as aves de rapina roubaram-me as três. Se tenho quatro como dar a comer a sete? Já descobriu?
- Por que insiste neste enigma, senhora? A mulher riu descontraída.
- É seu enigma, sua vida. Ainda não desconfiou disto apesar da brilhante inteligência? Mas pense nele, desnude-o antes que seja tarde e todo o processo venha a regredir.
- De que fala?
- Vou então dizer-lhe mais, ouça bem: se os três estão famintos, aos quatro querem juntar-se para comer. Se os quatro a tudo comerem, os três com fome ficarão, porém se resolverem dividir de suas partes, os três com eles estarão. Lembre-se que as espigas são corpos e alma - dizendo isto ela começou a afastar-se.
- Espere! Que tenho a ver com tudo isto?
- A transformação continua. O maior deseja conduzir ao menor; mas há grande perigo por que ele irá novamente ressurgir forte. Isso acontecendo, as águas se levantarão de lado a lado e estrondarão no choque inevitável. Não se deixe arrastar por nenhum dos lados, pois as águas não encontrando solidez, deixarão atrás de si unicamente a destruição. Deus seja louvado!
- Quem é a senhora, afinal? - havia agora alteração em sua voz.
- Somente uma velha vendedora de essências”.
Enigmas existem ou os fazemos existir? A resposta nos parece óbvia demais, pois está encadeada em polos sobre polos, para simplesmente recair de volta no sempiterno, por quê? Ao adentrarmos no mundo interior do esoterismo ou gnose nada nos satisfaz nem nos tranquiliza, e buscamos sempre mais e mais sem nunca chegarmos a um termo final. Seremos um dia um Buda completo, mas não estancaremos, pois nem mesmo o grande Senhor Maitréia desejaria que fosse assim. E respostas nunca nos satisfazem completamente. Nem poderiam.
(...) “O enigma desta feita mexera com Sorman. As palavras da estranha mulher ecoavam-lhe na mente; ele buscava deslindar o seu significado. “Os três estão famintos e aos quatro querem juntar-se para comer”. Os sete, claro, eram a totalidade do ser - o homem cósmico - o setenário de corpos, os upadhis. Por que, no cristalino significado metafísico, estariam famintos se eram justamente o manancial, os provedores, ao contrário dos quatro, insaciáveis? Aos quatro a esfinge conhecia-os muito bem, sorria deles. Os quatro lados do universo material, as quatro faces do homem: o leão, o touro, a águia, o homem, como não associá-los ao enigma - homem conhece-te a ti mesmo? Admitia ter conhecido a este enigma, tê-lo realizado em si mesmo, mas não integralmente. Ainda faltava muito; a substância vai mais além do entendimento humano, não bastando unicamente provar o enigma. É necessário mais; é preciso viver a imanência. E voltava, ao postulado anterior. Os três estão famintos, e por quê?”
(...) “Sorman vou partir!”. Sorman olhava-o atônito.
- Quem é você? - a surpresa era intensa, aquilo não podia ser real!
“Vou partir - ele sorria-lhe - é preciso. Agora é novamente sua parte, a conquista pessoal!”
- Espere! - Sorman corria em sua direção, ele pairava sempre adiante, acima do chão. A réplica exata de si, então desaparecia”.
Sorman acordou e sentou-se na beira da cama. A última cena ainda vivia-lhe revigorada e nítida, como uma projeção congelada em tela. Ele sacudiu a cabeça e de nada adiantou; levantou-se e foi tomar banho. Este sonho se repetiu exatamente igual por três vezes.
Por mais que se esforçasse, Sorman não conseguira apagar as cenas da memória. Eram excessivamente vivas, por demais nítidas, e as palavras soavam. Se antes buscara ignorar uma possível abstração em direção ao enigma da velha vendedora, obtendo sucesso nisto, agora não se repetia - estava além de suas forças! Bastava relaxar um pouco, afrouxar as rédeas do pensamento, e sua própria imagem voltava a lhe falar, repetindo sempre: “Sorman vou partir, é preciso!”. Apesar disto, ele procurava não se impressionar, pretendendo fingir que nada estaria acontecendo, entregando-se ao trabalho com maior denodo.
E como sua capacidade em absorver-se e se concentrar fosse grande, exagerava na dose. Quanto mais isso acontecia mais ele duplicava esforços, conseguindo nestas horas de dedicação esquecer-se temporariamente e a seu íntimo, escalando patamares que o deixavam próximo de perder-se na realidade dos fatos sobre si mesmo. Eduardo, que no princípio vira aquela atitude como prova de amor e digna dedicação ao trabalho, com o decorrer dos dias já se preocupava. Sorman chegava cedo à mesa de trabalhos e de lá somente saía para atender assuntos externos, ou participar de reuniões na própria empresa. Pouco conversava, se alimentava mal. Escrevia laudas, fazia extensos e detalhados relatórios, concebia difíceis projetos tecnicamente perfeitos. Mantinha frequentes contatos com clientes e fornecedores. Ao visitá-los, aproveitava para pesquisar junto a órgãos e associações, sobre estatísticas, índices diversos e atuações de concorrentes no mercado. Retornando à sala, retomava as tarefas e ali permanecia até tarde. Era o último a deixar a empresa, mesmo após Eduardo. Transformava-se, assim, num titã, um gigantesco homem de negócios: imbatível na sua energia, perspicácia e produtividade, com ilimitada capacidade para gerar sempre novas e perfeitas soluções. Isto o tornara respeitado e temido, e reconheciam: era a escalada de um gênio em processo de gestação!
Os sinais de fadiga e emagrecimento, já eram notados por Olga que em vão o alertava de seus excessos. Até Javan numa de suas esporádicas visitas ao escritório, pode atestar com preocupação a transformação que se processara no amigo. Malgrado suas tentativas, não conseguira demovê-lo de sua têmpera, ou convencê-lo a saírem para se distrair.
“Sorman vou partir, é preciso!”. Aquilo já era um agente obsessivo; algo forte e real a persistir sempre. Sem tréguas, entregando-se febrilmente e cada vez mais ao trabalho, ele mesmo não se reconhecia - estava indo longe demais! Falhara na tentativa de apagar aquela aparição, fazer calar a sua voz. Como resultado, perdia a paciência, irritava-se com facilidade; a custo continha-se nas suas explosões. Finalmente, quase esgotado, teve um momento de lucidez convencendo-se de que exagerava e recolheu-se para descansar. Olga atendeu-o, cobrindo-o de cuidados. Apesar de tudo a tensão povoava-lhe o íntimo”.
Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com
Ver Parte VIII:https://arcadeouro.blogspot.com/2022/08/o-eterno-giro-do-presente-viii.html
Ver Parte VI: https://arcadeouro.blogspot.com/2022/08/o-eterno-giro-do-presente-vi.html
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