quarta-feira, 27 de julho de 2016

Um Amor Que Não é Amor


  Diga a si mesma que esses sentimentos não importam. Não importa se você sente que ama a Deus ou não. Sentimentos de amor não têm valor. O que importa é a vontade – se agarrar à vontade de Deus, cruamente na fé

  Esse é um trecho do livro “Through the narrow gate” de Karen Armstrong. Essas palavras foram ditas a ela como um conselho espiritual. Mas o que elas realmente significam?

  No mesmo livro, também há a seguinte passagem, numa cerimônia iniciática em que ocorre um enterro simbólico:

  Ela havia treinado cada um no caminho pessoal da morte que Deus apontou para ela. Cada um agora era responsável por completar o simbolismo da cerimônia de hoje e fazer de sua vida uma morte diária, que a morte final de seu corpo irá completar

  Acredito que estamos mais familiarizados com essa segunda ideia: em ritos iniciáticos de várias religiões e sociedades secretas é muito comum representar a morte como uma etapa necessária para que ocorra o renascimento espiritual.

  Ajahn Brahmavamso conta que o monge budista Ajhan Chah costumava perguntar para aqueles que vinham treinar com ele: “Você veio aqui para morrer?”. Um pensamento comum seria: “Não, eu não vim aqui para morrer. Eu vim aqui para me Iluminar e ter umas meditações legais”. Mas quem deseja isso ainda está pensando com o seu eu, com seu ego.

  Uma das principais razões de não se obter o que se quer numa meditação está exatamente na ideia de “obter” e de “querer”. Sucesso na meditação torna-se apenas mais uma das conquistas que queremos atingir com nosso ego, para nos orgulharmos. Mas esse ego precisa ser destruído. Ele deve morrer.

  Ajahn Chah dizia: “Se você ficar aqui, você morre. Se for embora, você morre. Então por que não morrer agora?”

  Mas estamos aterrorizados. Não queremos morrer agora, pois nos apegamos demais à noção de um “eu”, de uma identidade que representa tudo o que queremos atingir no mundo.

  Algumas coisas que pertencem ao nosso eu-ego são as nossas visões de mundo e nossas emoções. Quando alguém nos diz que estamos errados, nos sentimos pessoalmente ofendidos. Nós nos apegamos demais às ideias que construímos sobre a vida, fruto de experiências e reflexões.

  Além disso, quando alguém nos direciona palavras duras, nos sentimos tristes ou ficamos com raiva. Por que isso acontece?

  Porque nós amamos aquele “eu” com o qual nos identificamos. Estamos completamente apaixonados por ele e não queremos desistir dele por nada desse mundo. Ao contrário, queremos que esse eu seja exaltado com elogios. Queremos ser amados, respeitados, e buscamos esse amor em toda parte. E parece que nunca basta. Queremos cada vez mais, pois o ego precisa se alimentar regularmente para continuar a existir.

  Lembro de uma aula de antropologia em que a professora usou o termo “pornografia da morte” para se referir à forma que encaramos a morte na época em que vivemos. Na Idade Média e em outras épocas em que se morria mais por doenças infecciosas e parasitárias, a morte, além de ser um espetáculo para alguns, era algo comum, um tema debatido no dia a dia, nas igrejas e nos teatros. Fazia parte do cotidiano.

  Hoje é como se a morte não fosse natural, mas uma espécie de aberração ou erro que queremos esconder. E esse pensamento se refletiu em como encaramos a religião hoje.

  Não queremos falar de morte e sim de vida. Escondemos que existe o sofrimento e só exaltamos a necessidade (até mesmo o dever) de ser feliz, de preferência o tempo todo ou o maior tempo possível.

  Em seu discurso “Entendendo o sofrimento”, Ajhan Chah diz:

  Os ensinamentos do Buda é que primeiro nós devemos desistir de fazer o mal e praticar o bem. Em segundo lugar, ele disse que nós devemos desistir do mal, mas desistir do bem também, não tendo apego a ele, porque também é um tipo de combustível. Quando há algo que é combustível irá eventualmente pegar fogo. Bem é combustível. Mal é combustível”.

  Falar nesse nível mata as pessoas. Elas não são capazes de seguir isso. Então nós temos que voltar para o começo e ensinar moralidade. Não machuquem um ao outro. Seja responsável no seu trabalho e não machuque ou explore os outros. O Buda ensinou isso, mas apenas isso não é o bastante para parar

  Todas as religiões falam de amar e fazer o bem. Isso é verdadeiro. É precioso. Mas é apenas o primeiro passo na jornada.

  Karen Armstrong, em “Through the narrow gate”, conta que no período em que foi freira na década de 60 usava um chicote para mortificação corporal, para diminuir a noção de um “eu”. Ela devia diminuir a si mesma ao máximo através de confissões e penitências, para desaparecer, quase como o nirvana budista. Como diz Fr. Jacques Philippe no livro “Searching for and Maintaining Peace”:

Ah! Qual é o coração que não gostaria de possuir virtude! É o que todos desejam. Mas quão poucos são aqueles que aceitam cair, ser fracos, que ficam contentes ao ver a si mesmos no chão e deixar que outros o vejam nessa condição

  Esses métodos, como o cilício (usado pelo Papa João Paulo II), comuns na Idade Média, hoje não são tão incentivados, porque na época em que vivemos o corpo é muito mais valorizado que o espírito, embora práticas ascéticas ainda sejam comuns na Índia. Não parece saudável ou parece até mesmo um pecado ferir o corpo em nome de algo que alguns nem acreditam que exista. Muitos céticos exigem provas de que exista Deus ou um espírito, mas os filósofos nos lembram que até hoje ninguém ainda provou que o mundo material existe, que não é uma ilusão, algo que Kant considera um escândalo.

  É verdade que até mesmo na Idade Média se recomendava não exagerar nas mortificações corporais e só realizar tais práticas sob estrita supervisão. São Francisco de Sales diz em seu livro “Filoteia”:

Há virtudes que a almas simples parecem maiores que outras e portanto são mais estimadas; a única razão disto é que essas virtudes, estando mais próximas de seus olhos, lhes dão mais na vista e se adaptam mais a suas ideias, que são muito materiais. Por isso o mundo prefere comumente a esmola corporal à espiritual, os cilícios e disciplinas, os jejuns e andar descalço, as vigílias e toda sorte de mortificação do corpo, à brandura, à benignidade, à modéstia e a todas as mortificações do espírito e do coração, que são, contudo, muito mais excelentes e meritórias. Escolhe, Filoteia, as virtudes que são melhores e não as mais apreciadas, as mais excelentes, e não as mais aparatosas. As mais sólidas e não as que fazem muito alarde e têm muito brilho exterior”.

  Afinal, as austeridades externas são feitas tendo em vista uma austeridade interna: uma mudança de coração, de espírito.

  Mas o que é esse amor que não é amor (não é o amor que conhecemos) que deve ser buscado? É comum que o budismo Mahayana acuse o budismo Theravada de querer destruir o amor e a bondade. O que realmente se busca é destruir uma forma de amor com apego e uma bondade com interesses: aquela bondade que se realiza buscando algo em troca. A bondade que ainda se deve cultivar no budismo Theravada se chama “Metta”: amor bondade.

  No meu post anterior “A jornada espiritual não é confortável“, um dos pontos levantados nos comentários foi se no fundo em todas as escolhas que fazemos não buscamos uma satisfação pessoal. Aquele que busca por vontade própria um caminho de sofrimento para destruir o ego não o faz também por paixão pelo próprio ego? Ele também não deseja algo em troca para si mesmo?

  Minha resposta, que também vou reproduzir aqui, foi que essa é uma visão chamada na filosofia de “egoísmo ético”: a noção de que até mesmo quando ajudamos alguém o fazemos por egoísmo.

  No entanto, a essa visão se contrapõe o altruísmo ético: de que é possível realizar um ato como ajudar alguém tendo em vista cumprir um dever, e não buscar recompensas. Nessa visão é possível realizar ações que não visem nosso conforto e prazer e que podem até mesmo destruir nossa felicidade e liberdade e a felicidade de outrem. O objetivo é o valor da ação e não seu efeito. Ou, como diria Kant: “que a justiça seja feita, mesmo que o mundo pereça”.

  É claro que uma pessoa que não acredita no espírito, no transcendente, pode considerar essa visão niilista. Isso porque estamos agarrados à ideia de que só vale a pena fazer algo se esse ato nos trouxer algum resultado no mundo material ou mental, como felicidade, seja para mim ou para outros. Para alguns parece estranha a noção de fazer o bem apenas porque “é a coisa certa” e não porque isso vai me deixar feliz.

  Kant defende que fazer o bem por amor ao dever e não por amor à sensação boa que sentimos com isso ou ao grau de felicidade alcançada é melhor, porque assim faremos o bem todas as vezes. Nos outros casos, só faremos o bem conforme nossas flutuações de humor ou nossos cálculos de utilidade.

  Essa é a base das religiões: o amor pelo dever, ou amor por Deus, vir antes do amor humano, que não é tão estável. Lembrando que amor por Deus significa seguir os mandamentos (não matar) então esse argumento não tem o menor sentido para apoiar atos de terrorismo.

  É claro que o amor humano também é belo e é um bom começo segui-lo. Mas há um próximo passo, que para alguns pode parecer doloroso, especialmente para aqueles que se sentem desconfortáveis com a noção desse segundo amor, que não é exatamente amor, já que ele transcende tudo aquilo que nossos sentimentos experimentam geralmente e que nossa lógica pode conceber, fundamentando-se numa forma de onisciência.

  Tendo essa ideia em mente, já se torna mais fácil analisar o parágrafo inicial, que antes parecia tão estranho:

Diga a si mesma que esses sentimentos não importam. Não importa se você sente que ama a Deus ou não. Sentimentos de amor não têm valor. O que importa é a vontade – se agarrar à vontade de Deus, cruamente na fé

  É bem parecido com a ideia apontada por Ajahn Chah: no começo você se livra do ódio e cultiva o amor. Depois, até mesmo o apego ao amor deve ser superado, porque ele também é um combustível que nos faz sofrer, que nos queima. Mas se não houver nem ódio e nem amor não há ego. Assim, ocorre o apagar e com ele o nirvana. Ou, traduzindo na linguagem cristã, somente quando não há um ego Deus poderá nos preencher.

  A frase “não importa se você sente que ama a Deus ou não” significa que, como Kant disse, se fôssemos rezar somente quando estamos felizes e sentimos que amamos Deus e o mundo, deixaríamos de rezar quando experimentamos secura espiritual e não nos sentimos dispostos. Mas se rezamos pelo dever, por fé, o fazemos todas as vezes.

  Vejamos o que São Francisco de Sales nos diz em “Filoteia”:

  Grande é, pois, o erro de muitas pessoas, que creem que o serviço prestado a Deus sem gosto, sem ternura de coração, seja menos agradável a sua divina majestade. A ternura torna as nossas ações mais agradáveis a nós mesmos, julgando-se pela deleitação que produzem; têm, entretanto, muito mais suave odor para o céu e são de muito maior merecimento diante de Deus, feitas num estado de secura espiritual

  Não merece grande louvor servir a um príncipe nas delícias da paz e da corte; mas servi-lo em tempos tumultuosos e de guerra é um sinal de fidelidade e constância. A bem-aventurada Ângela de Foligno diz que a oração mais agradável a Deus é aquela que se reza contrafeito, isto é, aquela que fazemos não por gosto e por inclinação, mas reagindo para vencer a repugnância que aí achamos devido à nossa secura espiritual

  O mesmo penso também de todas as boas obras; porque, quanto maiores empecilhos, sejam interiores, sejam exteriores, encontramos, tanto mais merecem diante de Deus. Quanto menor é o nosso interesse particular nas práticas das virtudes, tanto mais resplandece a pureza do amor divino”. 

  Com isso tudo não quero dizer que seja errado amar ou ter amor com apegos. É apenas uma explicação para os que acham estranho ou extremo se falar tanto de dor e sofrimento nas religiões: a cruz de Cristo, as asceses de Buda. É claro que nos sentimos mal com isso. Não precisamos nos entregar a essas ideias ou práticas que nos levem a entendê-las se não estamos preparados. Nós podemos, e é bastante natural, seguir cada um em seu próprio ritmo. Mas é bom saber que existem essas próximas etapas, para nos servir de inspiração.

  De qualquer forma, não há um único caminho para chegar lá e o caminho mais rápido e mais sofrido não é necessariamente o melhor. Não precisamos nos retirar para viver nas montanhas. Podemos alcançar muito desse entendimento aqui mesmo. Muitos dos grandes santos viveram no mundo. E não é preciso ser um santo para entender muitas coisas importantes.

  Um dos conselhos mais necessários, que pode ser um bom começo, é não temer tanto falar sobre o sofrimento. Não fugir da Noite Escura da Alma, da batalha com Mara, pois caímos no abismo para deixar algo para trás, e assim, mais leves, nos elevarmos com o divino. Também é bom lembrar que aquilo que nossos sentidos não conhecem ou nossa razão não alcança (como o espírito, ou o amor onibenevolente) podem ser buscados com esperança e confiança no testemunho daqueles que chegaram lá antes de nós.

  (Na imagem de abertura do post, temos a cena célebre do sacrifício de Isaac por Abraão, largamente comentada na obra “Temor e Tremor” de Soren Kierkegaard, que representa esse equilíbrio delicado entre amor humano e divino

  Fonte: Um Amor Que Não é Amor
Wanju Duli   | 27 de julho de 2016

  Magia+do+Caos – Projeto Mayem

Rayom Ra
      http://arcadeouro.blogspot.com.br

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